1 – Não resultando, das conclusões recursivas, quais os concretos pontos da matéria de facto impugnados e não se apresentando a prova aduzida suficientemente idónea para fundar a convicção de que a alteração daquela matéria se impõe, esta pretensão soçobra.
2– Tendencialmente, e salvo as especificidades do caso concreto, a qualidade de consumidor, para efeitos de aplicação da legislação pertinente – vg. DL67/2003, de 8.04 –, apenas é excluída se o adquirente do bem o destinar à revenda para obtenção de lucro; e, assim, tal qualidade se compaginando com outros usos do bem, que não o apenas particular/pessoal, vg., a sua adstrição à actividade profissional deste.
3 - O regime jurídico fixado pelo DL nº 67/2003 de 8.04 assume-se, por reporte ao regime geral do CC, mais favorável para o consumidor, o que decorre, essencialmente: de o produtor/vendedor/empreiteiro responder ex vi da desconformidade do bem/obra - presumida em função dos factos índice estabelecidos no nº2 do artº 2º -, mesmo que tenha agido sem culpa; e de, para se eximir de tal responsabilidade, ter de provar que atuou diligentemente e sem culpa.
4 – Decretada a resolução de contrato de venda de veículo automóvel cujo preço foi, quase totalmente, pago através da permuta com outro veículo, a justa composição dos interesses alcança-se pela obrigação de restituição dos veículos pelo seu valor actual, repondo-se pelo diferencial do preço.
Mais estatuindo e definindo, no seu artº 1º-B:
a) «Consumidor», aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho;
b) «Bem de consumo», qualquer bem imóvel ou móvel corpóreo, incluindo os bens em segunda mão;
…
h) h) «Reparação», em caso de falta de conformidade do bem, a reposição do bem de consumo em conformidade com o contrato.
Por sua vez, o DL 24/2014, de 14 de Fevereiro, que transpôs para o nosso ordenamento jurídico a Directiva 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho, define como consumidor a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional – artigo 3º, alínea c).
Para além destes subsídios fornecidos pela lei, inexiste um conceito legal de consumidor comummente aceite na doutrina e jurisprudência.
Destarte «a amplitude do conceito de consumidor tem variado, consoante as cambiantes factuais de cada caso…Cabe, por isso, aos tribunais trabalhar esse conceito casuisticamente, a partir da indispensável componente factual, uma vez que não se trata de uma questão estritamente jurídica. » - Ac. do STJ de 31.10.2017, p. 353/14.3T8AMT-E.P1.S1, in dgsi.pt.
E, assim, existindo posições mais estritas e mais latas sobre o conceito de consumidor.
Naquela perspectiva, consumidor é apenas a pessoa singular destinatária final do bem transacionado, sendo-lhe alheio qualquer propósito de revenda lucrativa, estando assim excluídos todos os sujeitos que tenham a qualidade de comerciantes e aqueles que destinem negociar o bem.
Nesta ótica, só está excluído do conceito de consumidor aquele que adquire o bem no exercício da sua atividade profissional de comerciante e o destine a futura alienação, aceitando-se porém que seja taxado de consumidor quem não o adstrinja apenas a mero uso particular, mas outrossim dele retire algum provento/proveito.
Parece ser este o conceito mais defendido pelo STJ, no qual se: « acentua a qualidade de sujeito final na transação do bem, excluindo apenas os comerciantes e aqueles que destinam o imóvel (bem) a revenda para obtenção de lucro» - Ac. do STJ de 16.02.2016, p. 135/12.7TBMSF.G1.S1 in gsi.pt.
(Itálico nosso)
Na verdade: «Tem sido ponderada a possibilidade de estender o conceito de consumidor ao profissional que adquire um bem para uso profissional, sendo o bem é alheio à sua área de actuação, à sua especialidade, mas mostrando-se necessário para satisfazer as necessidades da sua actividade profissional, apresentando-se, portanto, como um consumidor normal.» - Ac. do STJ de 31.10.2017, sup. Cit.
No caso vertente o autor, adquirente, é pessoa singular.
Nada nos autos indicia minimamente que ele adquiriu o carro para revenda.
Assim, e mesmo que ele o utilize quer na sua actividade meramente privada/pessoal/familiar quer em uso profissional, tal não lhe retira a qualidade de consumidor, ao menos atenta a conceção mais alargada defendida pelo STJ e supra aludida.
Ademais, e não despiciendo, antes quasi determinante, verifica-se que o autor alicerçou a sua pretensão na lei do Consumidor – Lei 24/96 de 31 de Julho- , e a ré, na sua contestação, aceitou tal subsunção, em nada a contradizendo.
Tal posição não é de somenos, pois que, afigurando-se a lei do consumidor, pelo menos em tese, tendencialmente mais favorável para o demandante, e sendo suposto que a ré, assessorada por ilustre causídico, disso estivesse cônscia, demonstra que esta aceitou a qualidade de consumidor do autor.
Por conseguinte, mal se compreende que, em venire contra factum proprium, e só depois de perder causa, venha levantar a questão.
Nesta conformidade se concluindo que ao demandante deve ser atribuída, para os devidos efeitos jurídicos, a qualidade de consumidor.
5.2.3.
Devendo o autor ser considerado consumidor, são os seguintes os preceitos das leis do consumidor a considerar:
Do DL 67/2003.
Artº 2º
1 - O vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda.
2 - Presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos:
a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor…;
b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;
c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem …
Artº 3.º
1 - O vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue.
2 - As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.
Artº 4º:
1 - Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato.
2 - Tratando-se de um bem imóvel, a reparação ou a substituição devem ser realizadas dentro de um prazo razoável, tendo em conta a natureza do defeito, e tratando-se de um bem móvel, num prazo máximo de 30 dias, em ambos os casos sem grave inconveniente para o consumidor.
5 - O consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.
Da Lei 24/96 de 31.07.
Artº 12º
1 - O consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos.
Sendo o autor consumidor, é de aplicar, em primeira mão, o disposto nestes diplomas.
E, apenas subsidiariamente, nos casos omissos ou duvidosos, o disposto na lei nacional.
Na verdade, com a directiva europeia que esteve na origem do aludido DL pretendeu-se a harmonização da legislação europeia nesta área e uma proteção acrescida do consumidor.
Pelo que a legislação nacional, apenas, por via de regra, deverá ser aplicada, quando se revelar mais favorável ou aquele corpo normativo se mostrar lacunoso.
Desde logo, tal acrescida proteção dimana do facto de, versus o que sucede na legislação nacional, os direitos permitidos ao consumidor em caso de incumprimento do contrato, poderem, por via de regra, ser exercidos eletivamente, não estando eles sujeitos a um qualquer exercício sequencial decorrente de uma pré-determinada e fixa hierarquização de tais direitos.
E diz-se, «por via de regra» porque têm de excluir-se de tal hipótese de escolha, os casos de intolerável desequilíbrio na composição dos direitos e interesses em presença e, bem assim, os casos de atuação com má fé, ou com abuso de direito -cfr. Ac. do STJ de 30.09.2010, p. 822/06.9TBVCT.G1.S1 e João Calvão da Silva in Vendas de Bens de Consumo, 4ª edição, página 110.
Depois e determinantemente, tal acrescida proteção ressumbra do facto de, desde logo no que concerne à compra e venda defeituosa:
«contrariamente ao que consta do artigo 914º do Código Civil, para o Decreto-Lei nº 67/2003 o desconhecimento, “sem culpa”, do “vício ou falta de qualidade de que a coisa padece” não afasta a correspondente responsabilidade do vendedor (artigos 2º, nº 1 e nº 3º).»- Ac. do STJ de 30.09.2010, p. 822/06.9TBVCT.G1.S1.
É que o conceito relevante para o efeito do artº 2º de tal DL é o de conformidade dos bens com o contrato, advindo a responsabilidade do vendedor, pelo menos por via de regra, independentemente da existência, ou não, de culpa, stricto sensu, desde que se verifiquem os factos índice estabelecidos no nº2 e em função dos quais a desconformidade se presume.
E devendo o devedor, ilidir tal presunção, provando que a desconformidade inexiste.
Ou que agiu diligentemente - o que não seria o bastante pois que assim o tribunal ficaria na ignorância de qual a causa do defeito - e que as causas deste lhe são completamente estranhas, porque nada tiveram a ver com a sua atuação, ou seja, que atuou sem culpa – cfr. João Cura Mariano, in “Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra”, Almedina, 2004, p. 58.
Na verdade:
«Em matéria de venda a consumidor o (re)vendedor final é ainda responsável pelos danos emergentes e lucros cessantes resultantes da entrega de coisa defeituosa a consumidor, salvo se provar que o cumprimento imperfeito da obrigação não procede de culpa sua.» - Ac. da RL de 13.12.2009, p. 993/06-2.
5.2.4.
Por outro lado, o direito de resolução dum contrato, enquanto meio de extinção do vínculo contratual, quando não convencionado pelas partes, depende da verificação de um fundamento legal, correspondendo, nessa medida, ao exercício de um direito potestativo vinculado - artigo 432º CC.
Assim, a parte que invoca o direito à resolução fica obrigada a alegar e a demonstrar o fundamento que justifica a destruição do vínculo contratual.
Na verdade, o direito de resolução está sempre condicionado a uma situação de inadimplência, seja ele o incumprimento definitivo, propriamente dito, seja a conversão da mora em incumprimento definitivo.
Este incumprimento definitivo pode advir de uma impossibilidade de cumprimento (objetivo/naturalística ou subjetiva porque imputável a título de culpa ao devedor) – artº 801º do CC.
Ou advir da transformação da simples mora em incumprimento definitivo, o que pode ocorrer por três vias:
a) convencer o credor da sua perda de interesse na prestação ex vi da demora no cumprimento; ´
b) demonstrar que a prestação não foi efetivada no prazo razoável que, admonitoriamente, fixou ao devedor – artº 808º do CC;
c) provar que o devedor se recusou, absoluta, perentória e definitivamente, a cumprir.
Importando ainda reter que a simples emergência ou verificação dos fundamentos resolutivos do contrato não opera automaticamente no sentido de atribuir imediatamente jus ao direito à resolução.
Pois que esta: «além de pressupor o incumprimento definitivo de uma prestação contratual, exige a gravidade da violação, não sendo esta apreciada em função da culpa do devedor mas das consequências desse incumprimento para o credor. Não é, portanto, qualquer incumprimento, ainda que definitivo, que viabiliza a resolução» - Ac do STJ de 18.12.2012, p. 5608/05.5TBVNG.P1.S1.
Assim, e desde logo no que concerne à impossibilidade de cumprimento, importa ter presente que a lei não se contenta apenas com uma mera dificuldade em se efetivar a prestação, exigindo uma efetiva, real e total não consecução da prestação.
No que tange à perda do interesse convém não descurar que ela não pode ser relevada apenas pela convicção ou perspetiva do credor, tendo antes de ser apreciada objetivamente, ie., em função da análise do homem médio, do homo prudens, sopesando-se v.g., a duração da mora e as suas consequências nocivas, o comportamento do devedor e o propósito do credor – nº2 do artº 808 – cfr. Acs. do STJ de 27.05.2010, p. 6882/03.7TVLSB.L1.S1, de 14.04.2011, p. 4074/05.0TBVFR.P1.S1. e de 13.09.2012, p. 4339/07.6TVLSB.L1.S2, todos in dgsi.pt.
Pois que: «Não basta que o credor afirme, mesmo convictamente, que a prestação já não lhe interessa para se considere que perdeu o interesse na prestação: há que ver, em face das circunstâncias, concretas e objectivas, se a perda de interesse corresponde à realidade das coisas» - Ac. do STJ de 05.05.2005, p. 05B724.
No atinente ao cumprimento em prazo razoável, urge interiorizar que este prazo tem de ser fixado mediante uma interpelação admonitória.
Ou seja, o accipiens deve notificar o solvens concedendo-lhe um prazo razoável - ie. adequado, porque ponderado à luz da natureza, circunstancialismo e à função do contrato, aos usos correntes e aos ditames da boa fé -, porém final e preclusivo, para o cumprimento.
Na verdade a interpelação admonitória a que se refere a segunda parte do n.º 1 do artigo 808º, contém e implica (i) a intimação para cumprimento, (ii) a fixação de um termo peremptório para esse cumprimento e (iii) a admonição ou a cominação de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo– cfr. Ac. do STJ de 22.11.2012, p. 98/11.6TVPRT.P1.S1.
Quanto aos efeitos da resolução: «na falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico…» -artº 433º do CC - e «tem efeito retroactivo, salvo se a retroactividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução» - artº 434º.
E, assim, «devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente» - artº 289º.
5.2.5.
No caso vertente.
A causa foi decidida nos seguintes, ora sintetizados, termos:
«Da conjugação da prova produzida, a conclusão que se retira é a de que o (gerente) Réu, fez crer no Autor que não assumiria qualquer reparação do turbo, uma vez que foi explícito ao excluir por escrito, a dita avaria no turbo da abrangência da mencionada garantia que ficou assegurada com a celebração do contrato. E bem assim, nada mais fez ou disse ao Autor aquando da receção do email datado de Fevereiro de 2016, que o Autor lhe enviou a exigir a reparação do veículo. Neste email, o Autor concedia-lhe um prazo para que procedesse à reparação do turbo, o que para o Autor era urgente. Não tendo o Réu oferecido qualquer solução para a avaria reportada e negando que tal avaria estivesse a coberto da garantia do veículo, o Autor ordenou a reparação do veículo na oficina que previamente havia sido indicada pelo Réu.
Após a reparação do turbo ordenada pelo Autor, este voltou a remeter missiva datada de 22.02.2016 ao Réu, comunicando-lhe que o veículo continuava a ter um funcionamento do turbo deficiente e como tal, foi-lhe reportado que o veiculo vendido não estava de acordo com as características de origem, nem possuía o desempenho normal que era suposto ter para um bem idêntico.
…concedendo-lhe prazo para o efeito, pelo que esgotado o mencionado prazo, o Réu entrou a partir desse momento em mora no cumprimento da sua obrigação.
…Se por um lado o Réu colocou a hipótese desse turbo recondicionado que havia sido instalado no veiculo antes do negócio celebrado, poder ter alguma avaria da qual entendeu que por ela só responderia a empresa que havia instalado o turbo recondicionado, e como tal recusou assumir os custos da reparação do dito turbo recondicionado alegando que não estaria sequer abrangido na garantia dada com o contrato, por outro lado, importa atentar na circunstância de que mesmo após tal reparação/substituição do turbo do veiculo ordenada pelo Autor, este reportou novamente ao Réu, por missiva emitida em 22 de Fevereiro de 2016, que o veículo continuava a ter mau desempenho, referindo-se ao turbo ter deficiente rendimento…
…estando a falar agora de um turbo recondicionado que já havia sido substituído em 10.02.2016 – reparação ordenada pelo Autor-, já não se pode aceitar que fosse novamente excluída pelo Réu a reparação do veículo por deficiente desempenho que lhe foi reportada após tal substituição…
Estamos perante defeitos da coisa vendida ou desconformidades do veículo vendido que impedem a sua circulação em segurança ou, pelo menos que afetam de forma importante a realização do fim a que se destina e o desvalorizam, defeitos esses subsumíveis nas previsões legais quer do artigo 913.º do Código Civil- regime da compra e venda de coisa defeituosa - , quer das alíneas c) e d) do n.º 2 do artigo 2.º do DL n.º 67/2003 de 8 de Abril.
Nos termos do citado artigo 3.º, n.º 1, do DL 67/2003, o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue, sendo que as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de 2 anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.
Face á factualidade apurada, o Autor provou a existência dos defeitos apontados, presumindo-se que eles já existiam na data da entrega do bem, não tendo o Réu provado, para se libertar da sua responsabilidade, que a causa concreta do mau funcionamento era posterior à entrega do bem. Também não alegou, nem provou, como lhe competia, factos concretos de onde se pudesse concluir que face às características das anomalias do veículo, não seria razoável presumir a existência das mesmas. Antes pelo contrário, o que se retira da matéria factual assente, é que anteriormente o Réu já tinha substituído o turbo no veículo, tendo este levado um turbo recondicionado em 2015.
O que se pode concluir da matéria factual provada, é que os vícios do veículo adquirido que foram denunciados ao Réu pelo Autor, surgiram no prazo da garantia – dentro de um ano- logo, o Réu vendedor, é responsável pela falta de conformidade do bem móvel vendido ao Autor.
Poderia questionar-se a validade da cláusula que estipulou a garantia de 1 ano, limitada a avarias do motor e caixa de velocidades.
A norma imperativa prevista no n.º 1 do artigo 5.º, do citado DL67/2003, admite um encurtamento até um ano, do prazo de duração da garantia quando em causa esteja coisa móvel usada, e exista acordo entre vendedor e comprador.
Contudo a redução em espécie não está prevista na lei, não podendo deixar de se interpretar que a garantia vale para o bem em segunda mão, no seu todo, sob pena de a não ser assim, ficar irremediavelmente comprometido o desempenho normal que deve ter a coisa vendida e corresponder ao fim para o qual foi adquirida
…
O que justifica a resolução do contrato, por parte do Autor, é a falta de conformidade do bem vendido com o contrato, ou seja, a discrepância entre a compra de um veículo com motor e turbo, e o deficiente desempenho manifestado no veículo nos cinco meses após a compra, que mesmo com a substituição do turbo recondicionado por outro, não foi eliminado e se manteve, o que revela que não se reportava apenas ao funcionamento do turbo, tal desconformidade manifestada.
A resolução consiste no ato de um dos contraentes dirigido à dissolução do vínculo contratual, em plena vigência deste, e que tende a colocar as partes na situação que teriam se o contrato não se houvesse celebrado (vd. Almeida Costa,”Direito das Obrigações”, 7ª ed., p. 268).
Está prevista a resolução do contrato, fundada na lei ou em convenção, nos termos do disposto no artigo 432.º, n.º 1, do Código Civil, podendo fazer-se extrajudicialmente, mediante declaração à outra parte, conforme prevê o artigo 436.º, n.º 1, do Código Civil, ou judicialmente.
Na falta de disposição especial, a resolução do negócio equipara-se, relativamente aos efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, ou seja, dado o seu efeito retroativo, é restituído tudo o que tiver sido prestado, ou, se a restituição em espécie, não for possível, o valor correspondente, cfr. artigos 289.º, 433.º e 434.º, do citado diploma.
Havendo resolução do contrato, a restituição do que foi prestado unitariamente só tem lugar na medida em que exceda, na economia do contrato, o que foi objeto de contraprestação.
Por outro lado, a parte que a invoca tem ainda direito a ser indemnizada pelos prejuízos sofridos, ou seja, os que não teria sofrido se não tivesse celebrado o contrato interesse contratual negativo- aqui se incluindo o valor da reparação do veículo adquirido, €641,90 documentado na fatura emitida em nome do Autor e a despesa de aluguer de uma viatura enquanto a reparação do veículo comprado não estava terminada, na quantia de €105,53.
…
Diga-se ainda que ao mesmo resultado se chegaria com a aplicação do regime geral da compra e venda de bens defeituosos previstas nos artigos 913.º e ss. do Código Civil.».
Este discurso argumentativo apresenta-se, na sua essencialidade, curial, em tese, e, atentos os factos apurados, adequado, exceto no ponto que infra se analisará.
Efetivamente, e versus o defendido pela recorrente, o defeito do carro provou-se: foi a deficiência o turbo.
Clama ela que sempre teria trinta dias para reparar o carro e que, tendo o autor, ele próprio, optado pela reparação, a sua responsabilidade cessou.
Assim seria se provasse que aceitou efectivar a reparação.
Mas tal não ficou apurado.
Antes, pelo contrário, existem factos que provam, ou, ao menos, indiciam fortemente, que a não aceitou.
Dos quais sobressai o facto do ponto 17, no qual nega a responsabilidade pela mesma: «Em questão da avaria do turbo não esta coberta pela nossa garantia dada a essa viatura conforme concordou e assinou.»
Quanto à reparação ao abrigo da garantia, tudo ficou nebuloso e inconclusivo no que à efectiva e atempada vontade do autor em efectivar a reparação.
É ainda de notar que, atentos os factos apurados, a célere reparação por banda do autor foi até benéfica para a ré, pois que demonstrando o processo que aquele tinha estrita necessidade do uso do veículo, tanto que se o não pudesse usar teria de alugar um outro, como fez no período em que se realizou para além do carro de substituição, ela obviou a que tivesse pago maior valor de aluguer, o qual, no quadro dos autos, sempre teria de ser imputado à demandada.
Mas, mesmo que assim não fosse, certo é que passada a fase inicial, em que, com maior ou menor legitimidade/oportunidade/necessidade, o autor mandou reparar o carro, se verifica que se seguiu uma fase subsequente durante a qual a ré demonstrou a sua intenção de não cumprir.
Efetivamente, a reparação não surtiu efeito, pelo que o autor intimou admonitoriamente a ré para a realizar num prazo que se tem por razoável.
E a realidade é que esta nada fez nem nada disse.
Ora a avaria não é de somenos, antes se afigurando, objectivamente, grave, pois que «A viatura revela falta de rendimento do turbo a partir das 3000 rpm (rotações por minuto) e consome cerca de 5 litros de óleo por cada 3.000Km.»
Destarte, os requisitos para a emergência da resolução - vg. a conclusão pelo incumprimento definitivo pela via da mora em função da provada interpelação admonitória -, estão presentes, pelo que esta se consecutiu.
Quanto aos seus efeitos são os supra mencionados.
Porém o caso vertente encerra especificidades.
E aqui a dissonância com o decidido, e a anuência, no essencial, ao impetrado pela recorrida.
Efetivamente, a compra do veículo em causa, pelo preço de 7 mil euros, foi paga pelo autor em espécie, com um carro seu avaliado em 6.500 euros e os restantes 500 euros por ela entregue em dinheiro.
Tal compra foi feita em Setembro de 2015, há quase dois anos.
Ora é consabido, porque facto notório, que os veículos automóveis se desvalorizam com o decorrer do tempo.
Ademais, não se provou que o autor tenha deixado de circular com o carro, até porque não se provou que a deficiência o impedisse de circular, apenas lhe retirando potência.
Pelo que se indicia que o autor, quiçá com menor assiduidade, tenha entretanto com ele circulado.
O que, tudo, clama a conclusão que nenhum dos veículos que foram usados no negócio vale hoje, comercialmente, o que valia na data deste.
Decorrentemente, o autor não pode, sob pena de locupletamento indevido, receber os 7 mil euros em numerário em contrapartida da devolução, que, naturalmente, teria de efectivar à ré.
Antes cada um dos outorgantes no contrato tem de restituir o que recebeu em espécie, ou seja, os aludidos veículos.
Cujo valor a considerar será o que eles actualmente têm.
A apurar em incidente de liquidação.
Porém, há que perspectivar que o autor pagou pelo carro 7 mil euros.
Pelo que, se o valor do veículo VW que deu na permuta for inferior ao valor do Citroen, terá direito a receber a diferença.
Contrariamente ao defendido pela insurgente, o valor a considerar não pode ser apenas a diferença de 500 euros em dinheiro que existiu no negócio.
É que quase a totalidade do preço deste adveio do valor dos veículos, e sendo certo que, pelo uso diferenciado que possa ter sido de cada um deles, o seu actual valor, não seja, proporcionalmente, o que existia na data do contrato, deve ser considerado o valor atualizado de cada um, com referência à totalidade do preço.
Procede, parcialmente, o recurso.
6.
Sumariando- artº 663º nº7 do CPC.
I – Não resultando, das conclusões recursivas, quais os concretos pontos da matéria de facto impugnados e não se apresentando a prova aduzida suficientemente idónea para fundar a convicção de que a alteração daquela matéria se impõe, esta pretensão soçobra.
II – Tendencialmente, e salvo as especificidades do caso concreto, a qualidade de consumidor, para efeitos de aplicação da legislação pertinente – vg. DL67/2003, de 8.04 –, apenas é excluída se o adquirente do bem o destinar à revenda para obtenção de lucro; e, assim, tal qualidade se compaginando com outros usos do bem, que não o apenas particular/pessoal, vg., a sua adstrição à actividade profissional deste.
III - O regime jurídico fixado pelo DL nº 67/2003 de 8.04 assume-se, por reporte ao regime geral do CC, mais favorável para o consumidor, o que decorre, essencialmente: de o produtor/vendedor/empreiteiro responder ex vi da desconformidade do bem/obra - presumida em função dos factos índice estabelecidos no nº2 do artº 2º -, mesmo que tenha agido sem culpa; e de, para se eximir de tal responsabilidade, ter de provar que atuou diligentemente e sem culpa.
IV – Decretada a resolução de contrato de venda de veículo automóvel cujo preço foi, quase totalmente, pago através da permuta com outro veículo, a justa composição dos interesses alcança-se pela obrigação de restituição dos veículos pelo seu valor actual, repondo-se pelo diferencial do preço.
7.
Deliberação.
Termos em que se acorda julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência:
I - Declarar resolvido o contrato;
II - Condenar a ré a pagar ao autor a quantia de €747,44 acrescida de juros de mora, à taxa de de 4%, desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
III - Ordenar a restituição dos veículos automóveis envolvidos no contrato, com consideração do seu valor actual, a liquidar incidentalmente, com reposição do diferencial para o valor de 7000 euros, se o houver.
Custas na proporção de 2/3 para a ré e 1/3 para o autor.
Coimbra, 2018.04.12.
Carlos Moreira ( Relator )
Moreira do Carmo
Fonte Ramos