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GÉNEROS ALIMENTÍCIOS
INTRODUÇÃO FRAUDULENTA NO CONSUMO
Sumário
I - O crime previsto no art. 24º, 1, do DL 28/84, de 20 de Janeiro (crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares) não exige que esteja verificado o risco de criação de perigo para a saúde, dado que o bem jurídico aí protegido é a autenticidade e genuinidade dos produtos. II - É constitucionalmente justificada a norma do art. 96º do RGIT (Lei 15/2001, de 5/6), punindo a introdução fraudulenta de mercadorias no mercado, sem que tenham sido pagos os tributos devidos, dado que só desse modo se defendem compromissos assumidos pelo nosso país junto da EU (defesa da economia e da livre concorrência).
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
Nos autos de processo comum colectivo …/04.7TASTS, do .º Juízo de competência Criminal de Santo Tirso, acusados pelo Ministério Público, foram julgados os arguidos:
1. B………., casada, comerciante, nascida em 17/07/49 na freguesia de ………, concelho de Santo Tirso, filha de C………. e de D………., residente na rua ………., nº .., ………., concelho de Santo Tirso;
2. E………., casado, reformado, nascido em 01/04/30 na freguesia de ………., concelho de Santo Tirso, e aí residente, filho de F………. e de G……….;
É-lhes imputada a prática, em co-autoria material, de um crime “contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares” p. p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 24º, nº 1, a), e 82º, nºs 1, a), e c), e 2, a), I), II) e III), do DL 28/84, de 20/01, e 1º, nºs 1, 2 e 4, f), 1. a), do Regulamento CEE n.º 1576/89 do Conselho, de 29/05 (com referência ao DL147/98, de 23/05), em concurso com um crime de “introdução fraudulenta no consumo” p. p. pelo art. 96º, nº 1, a), e d), do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributária) aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/06, com referência ao disposto nos art. 3º, 4º, 6º, 7º, 8º, 21º, 48º, 57º, 63º e 67º do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo aprovado pelo DL 566/99, de 22/12, sendo ainda passível de aplicação aos arguidos das penas acessórias previstas nos art. 8º do DL 28/84 e 16º do RGIT.
Efectuado o julgamento, foi proferido acórdão que, na procedência da acusação, condenou cada um dos arguidos na pena de um ano de prisão e de cem dias de multa à razão diária de dez euros, e na pena de nove meses de prisão, como co-autores de, respectivamente, um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, p. p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 24º, nº 1, a), e 82º, nºs 1, a), e c), e 2, a), I), II) e III), do DL 28/84, de 20/01, e um crime de introdução fraudulenta no consumo p. p. pelo art. 96º, nº 1, a), e d), do RGIT (Regime Geral das Infracções Tributária) aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05/06, com referência ao disposto nos art. 3º, 4º, 6º, 7º, 8º, 48º e 67º do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo aprovado pelo DL 566/99, de 22/12;
Em cúmulo jurídico dessas penas parcelares, condenou cada um dos arguidos na pena única de um ano e três meses de prisão; e em cem dias de multa à razão diária de dez euros.
A pena de prisão foi declarada suspensa na sua execução pelo período de 3 anos.
Inconformados, os arguidos interpuseram recurso, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões:
1. Os Recorrentes foram condenados pela prática dos crimes contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, e de introdução fraudulenta no consumo.
2. Os Recorrentes não podiam ter sido condenados pela prática desses crimes, porque não se provaram todos os elementos de cada um desses tipos, sendo certo que, quanto ao segundo, a norma incriminadora enferma de clara inconstitucionalidade.
Assim:
3. Os Recorrentes não podiam ter sido condenados pela prática do crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, p. e p. pelo disposto nos art.°s. 24º, 1, a), 82º, 1, a) e c) e 2º a), I), II) e III) do Dec. Lei n° 28/84, de 20/1, porque foi julgado provado que os produtos apreendidos não eram susceptíveis de criar risco efectivo para a vida ou integridade física de terceiros consumidores, sendo certo que as normas incriminadoras pressupõem esse risco. O douto acórdão recorrido violou assim as normas em que se fundou. E por isso os Recorrentes devem ser absolvidos da prática de tal crime.
4. Os Recorrentes também não podiam ter sido condenados pela prática do crime de introdução fraudulenta no consumo de bebidas sujeitas ao regime de impostos especiais, neste caso aguardente, p. e p. no art.° 96º do RGIT.
5. Este art.ºs 96º prevê, pelo menos, dois subtipos, no que respeita a bebidas:
a) O da subtracção ao pagamento do imposto especial, por introdução fraudulenta no consumo, quando o produto está em condições de ser tributável, por força do disposto nos art.°s. 4º, 6º, 7º, 8º, 48º, 67º e 52º e segs. do CIEC e na 1ª hipótese da parte final do n° 1 do art.º 96º do RGIT;
b) O de introdução fraudulenta no consumo, quando o produto não está em condições de ser tributado, por lhe faltarem os requisitos previstos nas normas do CIEC referidas na alínea anterior, e na 2ª hipótese da parte final do n.° 1 do art.° 96º do RGIT.
6. Foi julgado provado que foram apreendidos 4.280 litros de aguardente, “com um valor não concretamente apurado”, e que esses produtos “não correspondiam às exigências de genuinidade necessária à sua introdução no mercado”.
7. A acusação atribuiu àquela aguardente o valor de 17.120,00€, e não lhe atribuiu qualquer valor tributário, porque não tinha condições de entrar no consumo, por falta dos requisitos previstos na lei.
8. Sem tal facto constar da acusação o Tribunal julgou provado que o valor tributário daquela aguardente “ascendia ao montante de 22.204,31€”.
9. Por força do disposto no art.º 32°, n.º 5 da Constituição, e ao abrigo do disposto nos art.ºs 379° al. b) e 431º, a) do CPP, o facto referido na conclusão anterior deve ser eliminado dos fundamentos de facto, porque não pôde ser objecto do contraditório, e até ofende as normas invocadas na conclusão 5ª.
10. Como não foi apurado o valor da aguardente, e sendo certo que o valor a apurar não poderia ser superior ao valor de 17.120,00€ indicado na acusação, não estão preenchidos os requisitos da parte final do n° 1 do art.º 96º do RGIT, para que os Recorrente pudessem ser condenados por um qualquer dos subtipos referidos na conclusão 4ª.
11. Sem prescindir, os factos julgados provados, demonstram que a aguardente não era passível de entrar regularmente no consumo, porque não preenchia os requisitos do CIEC, nomeadamente os previstos nas normas invocadas na al. a) da conclusão 5ª, e o seu valor, por força do descrito na acusação, não era superior a 17.120,00€, ou seja, era inferior a 25.000,00€. Por isso esses factos teriam que ser qualificados pela 2ª hipótese da parte final do n.º1 do art.º 96º do RGIT. Como o valor (aliás não provado) da aguardente não era igual nem superior a 25.000€, este elemento do tipo não está preenchido. Por isso os Recorrentes deverão ser absolvidos da prática deste crime.
12. O disposto no n.º 1 do art.º 96º do RGIT tipifica o crime de introdução fraudulenta no consumo, enquanto o art.º 109º do mesmo diploma consagra a contra-ordenação de introdução irregular no consumo. Ambas as normas supõem a mesma conduta do agente, estando apenas demarcados os seus campos de aplicação pelo valor de 1 cêntimo de Euro dos produtos ou ao valor do imposto.
13. A lei dos impostos especiais sobre o consumo, nomeadamente de bebidas alcoólicas, tabaco e jogo, considera estes bens como nocivos à saúde, porque causam dependência psicológica nos consumidores e distúrbios orgânicos. Com base neste juízo, a lei prescreve apertadas regras administrativas e legais de produção e distribuição desses bens, com o pretexto de defender a saúde pública, e tributa por excesso, em face da tributação de outros bens, o consumo desses bens.
14. Desde que observados os requisitos de natureza administrativa e tributária, os bens referidos circulam e podem ser consumidos livremente, caso contrário, os produtores e distribuidores desses bens são considerados autores do crime de introdução fraudulenta no consumo ou da contra-ordenação de introdução irregular no consumo (art.º 96º e 109º do RGIT).
15. As normas administrativas predispostas na lei, pressupostas no art.º 96º 1 do RGIT, assentes num juízo salutista que acolhem, enfermam da falta de base ética, porque não é a norma que vai transformar o bem nocivo para a saúde em coisa boa para esta. A contradição lógica, ontológica e axiológica é inescamoteável. Por isso, objectivamente, essa norma apenas serve para afastar os pequenos e médios produtores e distribuidores do mercado desses bens, e para proteger os produtores e distribuidores de grande capacidade financeira, que assim dominam esse mercado.
16. As normas tributárias predispostas na lei, e também pressupostas no art.º 96° do RGIT, também enfermam de falta de fundamento ético, porque assentam no juízo de que o tributo excessivo expia o pecado do consumidor. A contradição lógica, ontológica e axiológica é também incontornável. Por isso, essa norma apenas serve para proporcionar altos réditos ao Estado, em flagrante abuso da fragilidade dos consumidores, causada pela dependência psicológica e orgânica de que sofrem.
17. Os art.ºs 96º, n.º 1 e 109º do RGIT pressupõem a conduta dos consumidores de bens prejudiciais à saúde, e a conduta de produtores e distribuidores desses bens. Para essas normas, o consumo, enquanto conduta, não tem relevância jurídica (é neutro, juridicamente). A conduta dos produtores e distribuidores já é juridicamente relevante, face àquelas duas normas; e por isso, quando com elas se não compagina o agente ou pratica o crime de introdução fraudulenta ou a contra-ordenação de introdução irregular no consumo. A relevância, no campo do art.º 96º ou do art.º 109º, separa-se por 1 cêntimo de Euro. Do ponto de vista material, visto este pelos prismas lógico, ontológico e axiológico, as condutas são exactamente as mesmas, apenas as separando um critério quantitativo ínfimo.
18. A conduta prevista no art.º 109º, enquanto contra-ordenação, é, axiológico-socialmente, neutra. Só releva ao nível da proibição; a conduta prevista no art.º 96º, enquanto crime, é, axiológico-socialmente, relevante. Esta contradição é insanável, lógica, ontológica e axiologicamente (cf. Figueiredo Dias, Dto. Penal/Parte Geral, 150 e s e Costa Andrade, RLJ, n.°s 3931/3972, 307 e segs.).
19. O disposto no art.º 96º do RGIT, pelas razões apontadas nestas conclusões, usa assim a pessoa humana de modo desconforme com a sua eminente dignidade da Pessoa, com o seu direito à integridade moral, ao bom nome e à reputação e à liberdade, de forma desproporcionada e desigual, e controverte com os princípios de direito e de justiça. Viola por isso o disposto nos art.°s 1º, 2º, 13º, 18º, 25º, n.º 1, 26º, n.º 1 e 27º da CRP. É por isso inconstitucional, o que nele vem disposto.
20. Como o douto acórdão recorrido violou as normas invocadas nestas conclusões, os Recorrentes devem ser absolvidos.
Respondeu o M.º P.º pugnando pela manutenção do julgado.
Nesta Relação, o Ex.mo PGA emite douto parecer no sentido do não provimento do recurso.
Colhidos os vistos dos Ex.mos Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.
O Tribunal Colectivo considerou provada a seguinte factualidade, que se tem por definitivamente fixada:
1. No dia 5 de Maio de 2004, pelas 8 horas, foram apreendidos aos arguidos os produtos que a seguir se descriminam e que tinham em seu poder na respectiva residência, sita na rua ………., nº .., ………., e ainda no interior da viatura ligeira de mercadorias de matrícula ..-..-GV em que, naquele dia e hora, a arguida se fazia transportar, próximo dessa residência:
I - Na viatura: 1 tambor de 10 litros de aguardente amarela;
II- Nos fundos/garagem da residência: a) 1 tambor de 30 litros de aguardente amarela; b) 2 tambores, de 10 litros cada, de aguardente branca; c) 4 tambores, de 5 litros cada, de aguardente branca.
III – No quarto da residência: a) 2 tambores, de 10 litros cada, de aguardente branca; b) 4 tambores, de 5 litros cada, de aguardente branca.
IV – nos anexos/galinheiro da residência: a) 4 tambores, de 30 litros cada, de aguardente amarela; b) 6 tambores com capacidade de oitocentos litros cada e que continham, respectivamente, 800, 800, 700, 600, 400 e 300 litros de aguardente branca (juntamente com outros 9 tambores de igual capacidade, mas vazios, embora com vestígios odoríferos de aguardente ou produto similar); c) 14 tambores, de 30 litros cada, de aguardente branca; d) 2 tambores, de 10 litros cada, de aguardente branca.
2. Essa aguardente, na quantidade global de 4.280 (quatro mil duzentos e oitenta litros) litros, sendo 4.120 (quatro mil cento e vinte) litros de aguardente branca e 160 (cento e sessenta) litros de aguardente amarela, e com um valor concretamente não apurado, tinha os seguintes teores:
3. - Tambores descritos em IV, c) e d):
- Tambores descritos em II, b) e c) e em II, a) e b):
-Tambor nº 1 dos descritos em IV, b):
- Tambor nº 2 dos descritos em IV, b):
- Tambor nº 3 dos descritos em IV, b):
- Tambor nº 4 dos descritos em IV, b):
- Tambor nº 5 dos descritos em IV, b):
- Tambor nº 6 dos descritos em IV, b):
- Tambores descritos em IV, a):
- Tambores descritos em II, a) e I:
4. Os arguidos destinavam a aguardente por eles armazenada e transportada, nas condições referidas, a ser vendida lucrativamente a terceiros, quer consumidores particulares quer comerciantes, e não se encontravam autorizados a proceder a esses actos ou à pretendida futura comercialização.
5. Não obstante, os arguidos não tinham declarado nem iriam declarar tal facto às autoridades aduaneiras para efeito de observância das formalidades respeitantes à selagem, rotulagem e liquidação dos impostos especiais de consumo sobre o álcool e bebidas alcoólicas, para desta forma se eximirem ao pagamento do valor tributário, que, no caso, ascendia ao montante de € 22.404,31 (vinte dois mil quatrocentos e quatro euros e trinta e um cêntimos).
6. A aguardente referida apresentava metanol com os teores de 1.583,7 e 1.602,2 g/hl alc. 100% vol. a supra referenciada nos quadros nºs 4º, 5º, respectivamente, e butanol-2 com os teores de 104,5, 108,2, 210, 105.2, 139,5, 125,4 e 123,4 g/hl alc. 100% vol. a supra referenciada nos quadros nºs 1º, 2º, 5º, 7º, 8º, 9º e 10º, também respectivamente, mas não era susceptível de criar risco efectivo para vida ou integridade física de terceiros consumidores.
7. Ao agirem da forma descrita, os arguidos sabiam que as suas condutas são proibidas e punidas por lei e tinham a consciência de que aquelas bebidas, mercê de deliberada e irregular manipulação em sede de produção não correspondiam às exigências de genuinidade necessárias à sua introdução no mercado e de que aquele tipo de produto estava sujeito a especiais exigências formais de rotulagem, selagem e aplicação de impostos especiais.
8. A arguida explora um talho e foi condenada em 5/7/2001, em pena de multa, como autora de um crime de desobediência e o arguido é reformado, auferindo uma pensão de 200 euros mensais, e não tem antecedentes criminais.
E considerou que não se provou que:
a) A mercadoria apreendida tem um valor global aproximado de € 17.120 (dezassete mil cento e vinte euros); uma parte da aguardente branca e toda aguardente amarela apreendidas foram obtidas mediante processo de destilação de substância(s) estranha(s) ou em estado inadequado à natureza e composição do produto genuíno, indicado o teor de butanol-2 referido nos quadros nºs 1º, 8º, 9º e 10º um destilado proveniente da fermentação de frutos pútridos.
b) O arguido E………. estabeleceu-se como fabricante de aguardente há mais de 40 anos, actividade que deixou de poder exercer por exigências administrativas, sem que os seus produtos fossem motivo de queixa por falta de qualidade; os arguidos encerraram definitivamente tal actividade após a apreensão.
As conclusões da motivação balizam o objecto do recurso.
Os Recorrentes submetem à apreciação deste tribunal as seguintes questões:
1. Os Recorrentes não podiam ter sido condenados pela prática do crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares porque os produtos apreendidos não eram susceptíveis de criar risco efectivo para a vida ou integridade física de terceiros consumidores.
2. O acórdão recorrido procedeu a alteração substancial dos factos atendendo a que da acusação não consta que a aguardente tenha qualquer valor tributário e o tribunal a quo considerou provado que o valor tributário daquela aguardente “ascendia ao montante de 22.204,31€”, sendo que este é elemento do tipo, o que importa a absolvição dos Recorrentes.
3. Porque a aguardente não era passível de entrar regularmente no consumo, e o seu valor, por força do descrito na acusação, não era superior a 17.120,00€, a conduta dos Recorrentes teria de ser qualificada nos termos da parte final do n.º1 do art.º 96º do RGIT. Atendo a que esse valor não era igual nem superior a 25.000€, não se verifica esse elemento do tipo, razão pela qual deverão ser absolvidos da prática deste crime.
4. Porque a tipificação do crime do art.º 96º do RGIT e da contra-ordenação do art.º 109º do mesmo diploma está apenas dependente de 1 cêntimo de Euro dos produtos ou do valor do imposto, é materialmente inconstitucional o crime já que a saúde pública tanto está em perigo quando o valor seja inferior ou superior a 7.500€, enfermando, por isso, a norma do art.º 96º 1 do RGIT de base ética porque não é a norma que vai transformar o bem nocivo para a saúde em coisa boa para esta.
5. Tal norma serve apenas para proporcionar altos réditos ao Estado, em flagrante abuso da fragilidade dos consumidores, causada pela dependência psicológica e orgânica de que sofrem.
Vejamos:
Começam os Recorrentes por afirmar que não podiam ter sido condenados pela prática do crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares porque os produtos apreendidos não eram susceptíveis de criar risco efectivo para a vida ou integridade física de terceiros consumidores.
Dispõe o n.º 1 do art.º 24º do DL 28/84, de 20 de Janeiro:
“Quem detiver, (...) armazenar, detiver em depósito, (...) ou transaccionar por qualquer forma, quando destinados ao consumo público, géneros alimentícios e aditivos alimentares anormais não considerados susceptíveis de criar perigo para vida ou para a saúde ou integridade física alheias (...).
Defende-se que é elemento do tipo a criação/existência de risco efectivo para a vida ou para a saúde ou integridade física alheias.
Com o devido respeito, os Recorrentes não analisaram devidamente o art.º 24º citado.
Aliás, os Profs. Faria da Costa[1] e Figueiredo Dias[2] tratam profundamente o tema de forma tal que se fica a saber de todas as questões que se podem levantar.
O que permite de concorde ou se discorde, desde que se tenha fundamentos para tanto.
É para nós evidente (dentro das limitações do próprio vocábulo) que o preceito em causa, ele próprio, de forma clara e expressa, afasta o dito risco: “não considerados susceptíveis de criar perigo para vida ou para a saúde ou integridade física alheias”.
Acresce que, o crime em causa é um crime contra a economia e não contra a saúde pública, como pretendem os Recorrentes. Por isso, o bem jurídico protegido é a confiança da sociedade na lisura do comércio jurídico, e mais concretamente na autenticidade e genuinidade dos produtos.
“Entrecruzam-se nele interesses individuais e colectivos”[3].
Por isso, não exige o tipo que esteja verificado o risco de criação de perigo para a saúde, como pretendem os Recorrentes, antes, que esteja garantida aquela autenticidade e genuinidade.
Ao partirem de pressuposto errado – bem jurídico protegido – todo o restante raciocínio está viciado.
Provado que está o produto era anormal, e verificados que estão os restantes elementos objectivo e subjectivo do tipo, como demonstra o Colectivo – e os Recorrentes não põem em crise – só podiam ser condenados, como foram, pela prática do aludido crime.
Defendem ainda que o acórdão recorrido procedeu a alteração substancial dos factos atendendo a que da acusação não consta que a aguardente tenha qualquer valor tributário e o tribunal a quo considerou provado que o valor tributário daquela aguardente “ascendia ao montante de 22.204,31€”, sendo que este é elemento do tipo, o que importa a absolvição dos Recorrentes.
Quanto a esta questão, uma de duas coisas:
- Ou os Recorrentes não leram devidamente a acusação;
- Ou estão a atirar areia a este tribunal.
O que, em ambos os casos, sempre tem de se censurar.
Lê-se na acusação – fls. 205 e 206:
“Os arguidos tinham em depósito aquela mercadoria e iriam comercializá-la sem que tivessem declarado tal facto às competentes autoridades aduaneiras para efeito de observância das formalidades respeitantes à selagem, rotulagem e liquidação dos impostos especiais de consumo sobre o álcool e bebidas alcoólicas – tanto mais que não se encontravam autorizados a proceder ao verificado depósito ou armazenamento nem à pretendida futura comercialização - para desta forma se eximirem ao pagamento do valor tributário apurado mediante contagem documentada a fls. 142/143 e que ascende a € 22.404,31 (vinte dois mil quatrocentos e quatro euros e trinta e um cêntimos).
Vir agora afirmar-se que da acusação não consta que a aguardente tenha o valor tributário de 22.204,31€, quando dela consta que o “valor tributário apurado mediante contagem documentada a fls. 142/143 e que ascende a € 22.404,31 (vinte dois mil quatrocentos e quatro euros e trinta e um cêntimos)” é inverdade facilmente constatável!...
Nada foi, pois, alterado, aditado ou modificado pelo que não há que falar em alteração dos factos, substancial ou não.
A terceira questão suscitada parte de dois pressupostos que, em nossa opinião, e com o devido respeito, não têm suporte legal:
- O de que a aguardente não era passível de entrar regularmente no consumo;
- E o de que não podia ser apurada a prestação tributária.
Quanto a este, já se viu que a prestação tributária está devidamente calculada em 22.404,31€.
E está apurada da forma que a lei impõe.
Aliás, se assim não fosse, ter-se-ia violado o princípio da legalidade tributária, a que infra faremos referência.
Quanto ao 1º pressuposto:
Primo: Não é elemento do tipo a susceptibilidade de entrar “regularmente” no consumo. Com efeito, o crime consuma-se no preciso momento em o agente corporiza e exterioriza a intenção de não submeter o produto ao pagamento dos impostos devidos.
Esta está devidamente comprovada: “os arguidos não tinham declarado nem iriam declarar tal facto às autoridades aduaneiras para efeito de observância das formalidades respeitantes à selagem, rotulagem e liquidação dos impostos especiais de consumo sobre o álcool e bebidas alcoólicas, para desta forma se eximirem ao pagamento do valor tributário”.
O que basta para que a conduta dos arguidos seja subsumível ao tipo.
Secundo: o facto de o produto ter sido considerado anormal em nada contende com a dita intenção, não há uma relação de causa e efeito entre um e outra, como parece evidente
Há produtos anormais que, devidamente tratados, podem transformar-se em normais. Como, quiçá podia ter ocorrido com a aguardente.
A 4ª questão suscitada, tem de ser decomposta.
Começando por dizer que este tribunal não decide casos abstractos. Decide apenas e só o caso concreto que lhe foi submetido em sede de recurso. E este tem por objecto um caso concreto, real, não aquele que poderia ter ocorrido.
Se assim não for entendido, e no que respeita a juízos de constitucionalidade, estes seriam abstractos, o que só é permitido ao Tribunal Constitucional.
Porque se estaria a usurpar poderes, a decisão seria juridicamente inexistente.
Vício em que não cairemos.
Do que vem de ser dito fácil é concluir que não pode o Juiz comum dizer se é inconstitucional a norma do art.º 96º do RGTI porque pune como crime as condutas em que o valor da prestação tributária é superior em 1 cêntimo a 7.500,00€, quando abaixo desse valor do imposto, já é punido como contraordenação.
Porque a situação se não levanta no caso concreto (o valor da prestação tributária é de 22.404.31€, quase 3 vezes superior aos 7.500,00€.), a ela não nos referiremos, pelo menos de forma directa.
Importa afirmar que também neste tipo de ilícitos estamos face a um crime contra a economia, cujo bem jurídico é o antes referido, e não, como se alega, em face de um crime contra a saúde pública.
Não faz, por isso, sentido, dizer-se que “não é a norma que vai transformar o bem nocivo para a saúde em coisa boa para esta”.
Nem isso ela visa, naturalmente!
Nem esta, nem uma outra qualquer, por impossibilidade de objecto.
Quanto à base ética e aos réditos.
Esta alegação é contraditória com os restantes argumentos usados na motivação.
Na verdade, se fosse intenção do legislador obter réditos, não puniria a conduta como crime, mas como contraordenação fiscal, indexando-a ao valor do imposto que deveria ser pago, salvaguardando o princípio da proporcionalidade.
Assim não é.
A CRP, no seu artigo 81º, alíneas f) e i), impõe ao Estado a obrigação de defender a economia do país e de criar os instrumentos jurídicos necessários ao desenvolvimento económico e social.
Portugal, enquanto Membro da União Europeia, assumiu todos os compromissos constantes do Tratado de Roma, designadamente o de contribuir para o progresso e coesão económica da União – art.º 2º - e o de garantir a verdade e liberdade de concorrência – art.º 81.
Mas, e por outro lado, está obrigado a respeitar e a fazer respeitar o conteúdo dos Regulamentos, das Directivas recepcionadas e de todas aquelas que sejam claras, precisas e incondicionais, mesmo que ainda não transpostas para a ordem jurídica nacional.
Se o não fizer sujeita-se à acção de incumprimento a propor pela Comissão Europeia junto do Tribunal de Justiça das Comunidades.
As decisões deste Tribunal, que têm eficácia erga omnes, contêm em si mesmas elementos dissuasores para os Estados incumpridores.
O Direito de livre concorrência só fica salvaguardo, como é consabido, se as regras forem as mesmas para todos os agentes económicos, o que só acontece quando a carga tributária é igual para todos.
A relação jurídica tributária é duplamente coactiva, como resulta do art.º 8º da LGT, isto é:
- Por um lado, tem de ser criada por acto normativo (Lei, Decreto Lei autorizado, Regulamento autorizado ou Tratado internacional).
- Por outro, o montante do tributo tem de resultar directamente do acto normativo, sendo insusceptível de negociação entre a Administração Fiscal e o SP. E tem de resultar seja em termos de cálculo do rendimento tributável, seja em termos de taxa a aplicar.
Coactiva como é, sujeita, portanto, ao princípio da legalidade, a todos é imposta por igual, sendo exigível de todos os que se encontrem nas mesmas condições.
Quem não paga impostos pode praticar preços inferiores aos do mercados, subvertendo as regras da livre e sã concorrência.
Ciente de todas estas realidades, o legislador ordinário teve de criar os impostos sobre os bens de consumo e, naturalmente, teve de impor sanções para aqueles que se eximam ao seu pagamento.
O que, ao que parece, sempre foi entendido como estando em conformidade com a Constituição da República Portuguesa.
No quadro da livre e sã concorrência, as obrigações assumidas pelo Estado Português exigem que as sanções a aplicar criem contra-motivo forte nos infractores.
A conduta que subverte a livre e sã concorrência, pelo menos quando estão em causa valores elevados, não é, contrariamente ao alegado, axiologicamente neutra, mas antes positiva já que põe em risco a economia de um país como também acontece, por exemplo, com a contrafacção de moeda ou com o contrabando.
O contra-motivo só é atingível, pelos valores elevados que estão em causa, quando determinadas condutas forem puníveis com pena de prisão.
Como é do conhecimento empírico.
A livre concorrência é, já se referiu, valor constitucionalmente consagrado.
É princípio basilar de Tratado Internacional, o de Roma, que até tem primazia sobre a Constituição Portuguesa.
É valor essencial e imprescindível à economia de um país, seja ele qual for, bem como ao desenvolvimento da União Europeia.
Todas as normas que com ele estejam interligadas têm de ser interpretadas teleologicamente, seja, segundo os objectivos a alcançar em termos de União.
Todavia, é consabido que o Estado só deve intervir em termos de reacções penais, limitando direitos e liberdades fundamentais na medida em que isso se torne imprescindível ao asseguramento dos direitos e liberdades fundamentais dos outros[4].
O que, descodificado, significa:
- Só se justifica a reacção penal quando haja carência de tutela (necessidade);
- A pena deve constituir o único instrumento adequado a garantir a tutela do bem jurídico (subsidiariedade);
- A pena deve ser proporcional à sanção (proporcionalidade);
- Em todo o caso, deve sempre ser respeitada a dignidade da pessoa humana.
Presentes os valores que subjazem ao tipo (defesa da economia e da livre concorrência), bem como os compromissos assumidos pelo nosso país junto da EU, e ainda as reacções, passe a expressão, “nada meigas” do Tribunal de Justiça da União, é nosso entendimento, e com todo o respeito por opinião contrária (que até a há), que justificada está a intervenção do direito penal sancionatório no campo da fuga aos impostos, ademais quando põem em crise a livre concorrência, desde que, como acontece in casu (e só este apreciamos) o valor da prestação tributária seja superior a 20.000,00€.
Os bens jurídicos só assim ficam devidamente protegidos, evitando-se por em causa direitos fundamentais de terceiros, os compradores e os restantes agentes económicos.
Tutela essa que não se alcança com a sujeição a ilícito contra-ordenacional.
A moldura penal abstracta – prisão até 3 anos – respeita os princípios enumerados, especialmente o da proporcionalidade.
Daí que não se enxergue a violação de qualquer dispositivo constitucional, designadamente dos invocados pelos Recorrentes.
Atendendo ao valor da prestação tributária em falta – mais de 22.000,00€ - prejudicada está a alegação dos Recorrentes de que a conduta teria de ser qualificada nos termos da parte final do n.º 1 do art.º 96º do RGIT.
Só podemos socorrer-nos do valor dos produtos se não houver lugar a prestação tributária.
E há, como antes se demonstrou.
DECISÃO:
Termos em que, na improcedência do recurso, se mantém e confirma o douto acórdão recorrido.
Fixa-se em 7 Ucs a tributação a pagar por cada um dos Recorrentes.
Porto, 11 de Julho de 2007
Francisco Marcolino de Jesus
Ângelo Augusto Brandão Morais
José Carlos Borges Martins
José Manuel Baião Papão
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[1] RLJ 134º-361
[2] CJ, Acs. do STJ, XII, tomo 12, pg. 54
[3] Cfr. Ac. desta Relação de 27/02/2002, relatado pelo hoje Juiz Cons. Costa Mortágua, tirado no processo 1349/01, da 1ª Secção,
[4] Cfr. Prof. Figueiredo Dias in “Sobre os Fundamentos da Doutrina Pena”, pg. 54