CONDIÇÃO DE SUSPENSÃO
EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
Sumário

I - O montante da indemnização a cujo pagamento fica sujeita a suspensão da execução da pena de prisão deve ser fixado de acordo com critérios de razoabilidade e proporcionalidade.
II - Não é legalmente possível a subordinação da suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de dever de prestação de trabalho comunitário.

Texto Integral

Processo n.º 3420/16.5T9GDM.P1 – 4.ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro

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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO
1.1 Por sentença proferida após realização da audiência de julgamento, no Proc.º n.º 3420/16.5T9GDM, que correu termos no Juízo Local Criminal de Gondomar, Juiz 1, Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi decidido o seguinte:
Absolvo a arguida de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, do Código Penal;
Condeno a arguida B…:
• como autora material um crime de furto qualificado previsto e punível pelos artigos 203º, n.º 1, e 204º, n.º 1, a) e d), do Código Penal, na pena de 24 meses de prisão;
• como autora material de um crime de burla qualificada previsto e punível pelos artigos 217º, n.º 1, e 218º, n.º 1, c), do Código Penal, na pena de 14 meses de prisão;
• em cúmulo jurídico de penas, condeno a arguida na pena única de 30 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período com regime de prova e sob condição de, nesse prazo, pagar a indemnização fixada a favor do demandante e prestar 150 horas de trabalho comunitário.
Julgo parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por C… e, em consequência, condeno a arguida a pagar-lhe a quantia de €13.728,35, acrescida de juros de mora legais desde a citação até integral pagamento, e a quantia de €2.000,00, acrescida de juros de mora legais desde a presente decisão até integral pagamento.”
1.2. Não se conformando com tal sentença, dela interpôs recurso a arguida, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:
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22. Bem como, não fazer depender da suspensão da execução da pena o pagamento da indemnização fixada (de €15.728,35) a favor do demandante, uma vez que faz depender a manutenção da liberdade da arguida de condições económicas que, bem sabe o tribunal a quo, a mesma não dispõe.
23. Naturalmente, a arguida não tem condições económico-financeiras para proceder ao integral pagamento de €15.728,35 num curso espaço de tempo de 30 meses.
24. A arguida teria de amealhar cerca de €525,00 mensais para perfazer o valor no período estipulado.
25. Ora, auferindo apenas €400,00 mensais, tendo 63 anos de idade, estando o seu cônjuge reformado - com uma pensão mensal de €540,00 - impossível se torna cumprir as condições impostas pela decisão de primeira instância.
26. Por consequência, errou a decisão recorrida porquanto o tribunal a quo não considerou os elementos anteriormente elencados na determinação da medida concreta da pena, violando assim o disposto no art.º 71°, n° 2, do C.P., violando consequentemente o disposto no art.º 70°, n° 1, do mesmo diploma.
27. Devendo a mesma ser revogada e substituída por outra que tenha em consideração todos os factos supra expostos, abonatórios da agente.”
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1.7.3. Da suspensão da execução da pena de prisão aplicada à recorrente e a razoabilidade do dever de indemnizar imposto como condição de tal suspensão
Sobre a questão da razoabilidade da obrigação imposta ao condenado como condição de suspensão da execução da pena de prisão aplicada, já este Tribunal da Relação do Porto se pronunciou, no âmbito do processo nº 653/14.2GAVCD.P1, em cujo acórdão foi relator o também relator do presente acórdão, em termos que, por considerarmos aplicáveis ao mérito da decisão a proferir nestes autos, passamos a transcrever de seguida:
“Naquilo que pode ser denominado como modalidades da suspensão da execução da pena de prisão, com a diversidade ou plasticidade de soluções que poderão ser encontradas para a especificidade de cada caso concreto, diz o art.º 51º, nº 1, do CP que “a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente: a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea; b) Dar ao lesado satisfação moral adequada; c) Entregar a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente.”
Pese embora resulte da letra da lei que os deveres ali impostos se justificarão pela finalidade de “reparação do mal do crime”, parecendo assim apontar para uma justificação essencialmente assente numa conceção de caráter retributivo da pena, alheia ao princípio da necessidade desta, a verdade é que não só a al. c) do nº 2 do mesmo artigo o parece desmentir, pelo menos numa interpretação que se quisesse cingir desde logo à letra da lei, como sobretudo porque a aplicação das normas ali contidas exige necessariamente que se tenha em conta a necessidade de satisfação das finalidades de prevenção, quer geral, quer especial, que terão de estar sempre presentes na escolha e determinação da pena concreta a aplicar, por imposição dos art.ºs 40º, nº 1, 70º, 70º, nº 1, e 50º, nº 1, do CP. E a pena, neste caso, é a suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
Note-se que, na sua versão originária, correspondente ao então art.º 49º, nº 1, do CP, se dizia que a suspensão da execução da pena podia ser subordinada ao cumprimento de certos deveres impostos ao “réu” destinados a reparar o mal do crime “ou a facilitar a sua readaptação social”.
Relativamente a tal normativo, e mais precisamente sobre as diversas alíneas do nº 1, pronunciou-se o Professor Figueiredo Dias, repudiando expressamente uma “conceção restritiva”, com a qual se visasse defender, quanto a tais deveres, olhando à sua natureza, que só poderia tratar-se de deveres de natureza predominantemente económica, situados a meio caminho entre “meios de reparação do dano e instrumentos adjuvantes da compensação da culpa”.[1] Acrescentando que a própria lei ao acentuar que tais deveres poderiam destinar-se não apenas a reparar o mal do crime, mas também a facilitar a readaptação social do agente, nessa medida fazia englobar no conceito de deveres verdadeiras regras de conduta. Considerando que os “deveres” do art.º 49º abrangiam, entre outras, as regras de conduta que tipicamente acompanhavam o regime de prova, enumeradas no então art.º 54º, nº 2. E é bom de ver que essas regras, quer por força da expressão “nomeadamente”, contida no art.º 49º, nº1, que poderiam ser adotadas como dever condicionante da suspensão da execução da pena de prisão, quer diretamente pelo dever de dar uma satisfação moral adequada ao lesado, prevista no art.º 49º, nº 1, al. b), não teriam de traduzir necessariamente deveres de natureza económica, mas verdadeiras condutas, às quais se ligavam essencialmente finalidades, embora no caso da al. a), mais claramente também de reparação do mal do crime. Em todo o caso, e este é um fator importante a ter em conta, não é possível desligar da determinação dos deveres a aplicar, quer se considere que uns, mais do que outros, se ligam ao “cerne socializador da pena de suspensão da execução da pena de prisão”, pois a verdade é que também assumem, todos eles, uma “função adjuvante” da realização da finalidade da punição[2].
E o caráter meramente adjuvante da realização das finalidades da punição, e não propriamente ou diretamente destinado a realizar tais finalidades, saiu ainda mais reforçado com a redação que veio as ser dada ao atual art.º 51º do CP pela Lei nº 90/97, de 30/07, e isto apesar de no seu preâmbulo se afirmar, como propósito da alteração operada, uma pretensão do reforço da vertente ressocializadora[3]. Na verdade, do nº 1 do atual art.º 51º do CP desapareceu a expressão “ou a facilitar a sua readaptação social”, ficando apenas a referência à reparação do mal do crime, como principal desígnio dos deveres impostos.
Já no cometário à norma do art.º 49º, na sua versão originária, correspondente ao atual art.º 51º, o professor Figueiredo Dias fez referência ao art.º 56b do Código Penal alemão, embora essencialmente para realçar o facto de tal artigo pôr “muito corretamente o pagamento na dependência das forças do condenado”[4]. Sendo que no âmbito da Comissão Revisora, voltou a referir-se àquele mesmo diploma ao dizer, que nele “se recolhe a ideia de que o arguido deve proceder ao pagamento segundo aquilo que puder de acordo com as suas forças.” No que foi depois secundado pelo Sr. Procurador-Geral da República, a propósito da previsão da possibilidade de pagamento em prestações: “se o arguido não pode indemnizar, o juiz não deve fixar essa obrigação condicionante.” Acrescentando mais adiante, o Ilustre Professor, ao aludir à possibilidade de menção ou não, na al. c), de qualquer montante que servisse de limite ao objeto da obrigação aí prevista, que a ausência de qualquer limite “seria uma solução perigosa, pois poderia levar a uma aplicação casuística, transformando-se numa pena.” E ainda em relação à proposta feita pelo Sr. Procurador-Geral da República, no sentido de que se deveria deixar ao julgador uma certa margem de decisão nesta matéria, o mesmo Professor “frisou, a finalizar, que é necessário que fique bem claro que o dever em apreço não é substitutivo da pena de multa.”[5]
(…)
Por outro lado, e utilizando as palavras dos membros da Comissão Revisora, a medida só poderá ser aplicada na “medida das forças” do condenado, e mais precisamente em obediência ao princípio da razoabilidade do dever imposto, conforme resultou determinado no nº 2 do art.º 51º, ao estabelecer que “os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de exigir. Não devendo, portanto, ser determinado tal dever se o condenado, logo à partida, não estiver em condições de pagar qualquer quantia. Ou seja, fixando-se o dever dentro dos parâmetros “da finalidade da punição, da proporcionalidade e da exigibilidade.”[6]
Tal preceito tem necessariamente ínsito o princípio da proporcionalidade, consagrado no art.º 18º da CRP, que transposto para o âmbito das decisões judiciais, tem o sentido de que qualquer imposição restritiva de um direito fundamental, ainda que baseado na lei, e justificada pela necessidade de proteção de bens jurídicos fundamentais, só poderá ocorrer, ademais como uma correta aplicação dessa mesma lei, se no caso concreto se verificar a necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito, de uma tal restrição.”
Face ao exposto, e considerando a factualidade dada como provada nos presentes autos, somos levados a concluir que não é proporcionado nem razoável exigir-se, ao abrigo da al. a) do nº 1 do art.º 51º do CP, o pagamento de indemnização, cujo cumprimento, face ao rendimento disponível se afigura como impossível, isto é, o pagamento do montante de €15.728,35, acrescido de juros de mora legais desde a citação até integral pagamento, no período de 30 meses, implicaria uma prestação mensal de €524,28, superior, portanto, ao montante que a recorrente aufere mensalmente do seu trabalho - €400,00 por mês.
Assim sendo, e considerando ainda que a recorrente vive em casa própria com o marido, o qual aufere mensalmente a quantia de €540,00, não tendo pessoas a seu cargo, e possuindo despesas de €260,00 mensais, considera-se adequado reduzir o montante fixado ao abrigo do art.º 51º, nº 1, al. a), do CP para €7.000,00, a ser pago no prazo de 30 meses fixado na sentença.
Devendo nesta parte ser concedido parcial provimento ao recurso.
1.7.4. Da impossibilidade legal de subordinação da suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento do dever de prestação de trabalho comunitário
O tribunal a quo sujeitou a suspensão da execução da pena de prisão, não só ao pagamento da indemnização devida, e a regime de prova, como ainda à prestação de 150 horas de trabalho comunitário.
A prestação de 150 horas de trabalho comunitário traduz-se na imposição de um dever com clara similitude material com a pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade, prevista no art.º 58º do Código Penal. E nessa medida também a possibilidade de se ver em tal decisão uma cumulação de penas não prevista na lei, com a consequente violação do princípio da legalidade das penas (nulla poena sine lege), a que aludem os 1º. nº 1, 2º, nº 1, do CP, 29º, nºs 1 e 3, da CRP e do princípio da pena única consagrado no art.º 77º do CP para o concurso de crimes.
Aliás sobre uma tal possibilidade pronunciou-se negativamente o Professor Jorge de Figueiredo Dias, em devido tempo, nos termos que passamos a transcrever:
“(…) pese embora a generalidade e amplitude com que se encontra formulado o art.º 54º-2, g) - não é admissível condicionar a suspensão à prestação de trabalho, mesmo em instituições de solidariedade social e ainda que dispondo do consentimento do condenado: tal significaria uma mistura atrabiliária – e violadora, por conseguinte, do princípio da legalidade da pena – de duas diferentes penas de substituição, cada qual com o seu sentido e os seus pressupostos próprios.”
Razão por que, nesta parte, irá ser revogada a decisão recorrida.
2.1 Responsabilidade pelo pagamento de custas
Uma vez que a arguida obteve vencimento, ainda que parcial, no recurso, não terá de suportar as custas do mesmo - artigos 513.º, nº 1, do Código de Processo Penal.
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto em:
a) Conceder parcial provimento ao recurso interposto pela arguida B… e, consequentemente:
1. Reduz-se para €7.000,00 o valor objeto do dever de pagamento a que ficou sujeita a suspensão da execução da pena de prisão;
2. Revoga-se a decisão recorrida, na parte em que sujeitou a suspensão da execução daquela mesma pena de prisão ao cumprimento do dever de prestação de 150 horas de trabalho comunitário;
3. Mantém-se quanto ao mais a decisão recorrida.
Sem custas
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Porto, 24 de outubro de 2018
Francisco Mota Ribeiro
Elsa Paixão
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[1] In “Direito Penal Português, as Consequências Jurídicas do Crime”, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 348.
[2] Figueiredo Dias, Idem, p. 349 e 353, sobretudo ao referir-se ao dever de indemnizar o lesado, em relação ao qual reconhece uma função positivamente condicionante da realização das finalidades da punição, sem que a mesma possa ser considerada, em si, como dotada de caráter penal, defendo por isso o mesmo Ilustre Professor que não pode ter sentido a fixação do dever de indemnizar, quando a respetiva obrigação se encontra prescrita.
[3] Aí se dizendo, a dada altura: “O regime de prova, descaracterizado como pena autónoma de substituição, passa a ser configurado como modalidade da suspensão da execução da pena ao lado da suspensão pura e simples e da suspensão com deveres ou regras de conduta, acentuando a vertente ressocializadora e responsabilizante da suspensão da execução da pena de prisão.”
[4] Ibidem.
[5] Cfr. “Código Penal, Actas e Projeto da Comissão Revisora”, Ministério da Justiça, 1993, p. 47 e 48.
[6] Figueiredo Dias, Ibidem, p. 354.