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EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
CONTRATO DE MÚTUO BANCÁRIO
VALIDADE FORMAL
Sumário
Face à vigência do Dec. Lei n.º 32.765, de 29 de Abril de 1943, os contratos de mútuo, seja qual for o seu valor, quando neles intervenham estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular ainda que a outra parte não seja comerciante.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto I. Relatório
Foi instaurada em 2.02.2004, pelo Banco B…, SA, contra C…, D…, a ação executiva n.º 1029/04.5TBVNG, que corre termos no Juízo de Execução do Porto - Juiz 7, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, para cobrança do capital de €159.220,17, acrescido de juros, constituindo título executivo o documento particular intitulado “Contrato de mútuo” celebrado entre Banco B… como primeiro outorgante e C… e mulher D… como segundos outorgantes.
Em 15.04.2016, os executados C… e D… deduziram embargos à execução, invocando: a nulidade do contrato de mútuo; a “inexistência ou inexequibilidade” do título executivo; e “a opacidade da finalidade da utilização do mútuo”.
Em 14.03.2017 foi proferido o seguinte despacho: «A executada D… foi citada para no prazo de 20 dias deduzir oposição à execução em 02.12.2005. Por conseguinte, a oposição à execução apresentada pela mesma em 15.04.2016 é manifestamente extemporânea, sendo que não é aplicável à oposição o disposto no nº2 do artº 569º do CPC ( artº 728º nº3 do CPC). Pelo exposto, indeferem-se liminarmente os embargos de executado apresentados por D… ao abrigo do disposto no artº 732º nº1 a, do CPC. Custas a cargo da embargante. Notifique. Recebem-se os embargos apresentados por C…. Cumpra-se o disposto no artº 732º nº2 do CPC.».
Notificado o exequente veio este alegar em síntese: o embargado aceita a confissão expressa nos artigos 2.º e 4.º da petição de embargos, no sentido que foi celebrado contrato de mútuo entre embargado e embargante, sendo a quantia mutuada de 32.000.000,00 de escudos; o contrato de mútuo celebrado entre o embargado e o embargante e D…, trata-se não de um mútuo civil mas sim de um mútuo bancário; sendo o sujeito contratante/mutuante uma empresa bancária e consistindo o objeto contratual consiste em dinheiro legal ou escritural, atribuindo-se ao mutuário a propriedade da quantia mutuada e, tendo em conta a sua finalidade, em que o mutuário fica obrigado a utilizar a quantia mutuada para finalidades predeterminadas, fácil é concluir que estamos perante um mútuo bancário; como o contrato de mútuo em crise não se trata de mútuo civil, não está sujeito às formalidades previstas no artigo 1143º do CC, nomeadamente a exigência de ser celebrado por escritura pública quando o seu valor seja superior a €25.000,00; basta apenas a mera forma escrita, conforme prescreve o artigo único do DL nº 32 765, de 29 de abril de 1943, “Os contratos de mútuo ou usura, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular, ainda mesmo que a outra parte contratante não seja comerciante.”; forma essa que foi integralmente cumprida, uma vez que o contrato aqui celebrado o foi por documento particular devidamente assinado pelo embargado e os executados; refira-se, quanto a este aspeto, o entendimento expendido no acórdão de 29.11.2006 pelo Tribunal da Relação do Porto, e, ainda, o entendimento expendido no Acórdão de 9.04.2013 pelo Tribunal da Relação de Lisboa; conforme consta do contrato, o valor mutuado teve como finalidade “liquidação de responsabilidades em curso”.
Realizou-se audiência prévia em 18.04.2018, na qual não se revelou viável o acordo das partes, tendo sido proferido em ata o seguinte despacho: «Uma vez que, atento o teor dos autos, decide-se proferir decisão por escrito pelo que determina-se a conclusão dos mesmos para ser proferida decisão».
Em 30.04.2018 foi proferida sentença na qual se julgaram improcedentes os embargos.
Não se conformou o embargante e interpôs recurso de apelação, apresentando alegações, findas as quais formula as seguintes conclusões:
i. Veio o Embargante, aqui Apelante, invocar a nulidade do mútuo, pela falta de forma e pelo conteúdo do contrato.
ii. O Tribunal a quo determinou as questões a decidir, porque foram arguidas em sede de embargos, e que seriam:
- Nulidade do contrato de mútuo;
- Validade do título executivo;
- Novação da divida.
iii. Salvo melhor entendimento, o Apelante entende que, o Tribunal a quo não se pronunciou quanto à novação da dívida, ou melhor, quanto à inexistência desta.
iv. Resumidamente, o Apelante deduziu oposição à execução mediante dedução de embargos, com os seguintes fundamentos:
a. Nulidade do contrato de mútuo por falta de forma, porquanto o contrato de mútuo celebrado entre a Exequente e os Opoentes foi celebrado por documento particular;
b. Inexistência ou inexequibilidade do Título Executivo, pois sendo o contrato nulo, não pode este consubstanciar-se num título executivo;
c. Opacidade, Vicio no objeto e finalidade do contrato celebrado;
d. O contrato celebrado não resulta da novação da dívida, pois a vontade de contrair nova obrigação em substituição da antiga deve ser expressamente manifestada, como dispõe o Código Civil no art.º 859º.
v. A douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, veio sustentar a decisão nos seguintes fundamentos:
a. O Ac STJ nº3/2018 de 19 de Fevereiro, que veio muito recentemente uniformizar jurisprudência sobre a nulidade do mútuo por falta de forma nos seguintes termos: «O documento que seja oferecido à execução ao abrigo do disposto no artigo 46.º, n.º 1, alínea, c), do Código de Processo Civil de 1961 (na redacção dada pelo Decreto -Lei n.º 329 -A/95, de 12 de Dezembro), e que comporte o reconhecimento da obrigação de restituir uma quantia pecuniária resultante de mútuo nulo por falta de forma legal goza de exequibilidade, no que toca ao capital mutuado.”
b. Nos termos do artigo único do Decreto n.º 32765, de 29 de Abril de 1943, determina-se que «os contratos de mútuo [...], seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular, ainda que a outra parte não seja comerciante».
vi. A douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, conclui então que: Uma vez que foi observada a forma prevista – escrito particular- resta concluir pela improcedência da exceção deduzida.
vii. Não pode o Apelante estar em maior desacordo com a interpretação dada pelo Tribunal a quo, pois essa norma não estabelece objetivamente a forma a revestir os mútuos bancários.
viii. O aludido decreto Decreto n.º 32765, de 29 de Abril, não estabelece nenhuma regra quanto à forma dos mútuos bancários, porquanto vem apenas estabelecer a possibilidade de se poder provar a celebração do contrato por escrito particular – sem no entanto afastar as regras quanto à forma estatuídas no art.º 1143º do Código Civil
ix. A possibilidade de “se poder provar” como dispõe a norma, é bem diferente do conceito de validar, ou de estabelecer uma exceção à regra do artigo 1143º do Código Civil e definir um regime alternativo.
x. O acórdão invocado (Ac STJ nº3/2018 de 19 de Fevereiro), posterior à dedução de embargos do Apelante, vem estabelecer a seguinte uniformização: «O documento que seja oferecido à execução ao abrigo do disposto no artigo 46.º, n.º 1, alínea, c), do Código de Processo Civil de 1961 (na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), e que comporte o reconhecimento da obrigação de restituir uma quantia pecuniária resultante de mútuo nulo por falta de forma legal goza de exequibilidade, no que toca ao capital mutuado».
xi. Ou seja, segundo o recente acórdão que foi invocado, o contrato no limite será exequível apenas quanto ao capital mutuado, mas nunca quanto aos juros peticionados.
xii. O Tribunal a quo, ao invocar e aplicar o citado acórdão, deveria declarar oficiosamente a inexequibilidade do título executivo, quanto aos juros.
xiii. Para além de conhecer a nulidade do contrato pelo vicio de forma. xiv. Assim, verificado o vício de forma, por força deste acórdão, o Tribunal a quo deveria declarar o prosseguimento da execução apenas quanto ao capital mutuado.
xv. Declarando expressamente a inexequibilidade do título quanto aos juros.
xvi. Considera o Apelante que o Tribunal a quo não conheceu convenientemente quanto aos vários vícios materiais, quanto ao escopo e utilização do mútuo, arguidas sem sede de embargos e de alegações.
xvii. O Apelante não dispôs do crédito concedido pelo Apelado.
xviii. O “valor mutuado” foi creditado numa conta, cujos movimentos a débito foram efetuados pelo Apelado sem qualquer autorização do Apelante.
xix. Mais, desses movimentos, o banco, aqui Apelado cobrou valores que o Apelante desconhece, de forma abusiva e discricionária.
xx. O Apelado, no requerimento executivo vem falsear os factos, ao afirmar que o montante mutuado foi utilizado pelos executados, juntando para efeito de prova dessa utilização, um extrato bancário com as movimentações na conta a ordem.
xxi. Extrato esse, e que se encontra junto aos autos, contém a morada associada à conta à ordem, o endereço da própria Exequente, a Unidade de Contencioso, sito na Av. …, Lote …., em Lisboa.
xxii. Nem os mutuários dispuseram do mútuo concedido, nem movimentaram a conta, nem tão pouco receberam o extrato bancário.
xxiii. Ora, analisando-se esse extrato bancário que se encontra junto aos autos, não se percebe os movimentes a débito e a que operações se referem, tendo sido efetuados indiscriminadamente pelo Banco Apelado, sem qualquer autorização pelos titulares da conta.
xxiv. O Apelante e sua esposa, também executada, foram ludibriados e levados a crer que estariam a reestruturar o crédito por um prazo de 20 anos, logrando dispor do capital não só para reestruturar a dívida proveniente de obrigações anteriormente assumidas, como dispor de capital para relançar o seu negócio.
xxv. O contrato menciona que a finalidade do “mútuo” seria para liquidar de “responsabilidades em curso” anteriormente assumidas.
xxvi. O contrato, não específica, porém, nem a natureza, nem o capital em dívida dessas responsabilidades vencidas.
xxvii. O Banco, aqui Apelado, conseguiu à margem da vontade dos Executados, programar o pagamento do capital em 2 anos apenas, para o montante aproximado de 160.000,00€! Vide cláusula 8ª do contrato.
xxviii. Ora, não foi o que havia sido pré-acordado entre o Banco e os Executados, porquanto tinham previamente acordado o prazo de 240 meses (20 anos) para amortizar o capital.
xxix. Ora, para além do vício formal, estamos perante uma simulação, de uma nulidade material do negócio promovido pelo Apelado, e que deveria ter tido outra apreciação pelo Tribunal a quo.
xxx. Na realidade, o mútuo sub judice não passou de uma operação financeira fictícia, sobretudo para produzir efeitos contabilísticos do Banco Apelante, onde os mutuários nunca utilizaram qualquer valor da quantia supostamente mutuada.
xxxi. Na realidade, os Mutuários nada ganharam com esta operação, ates pelo contrário.
xxxii. Pela falta de objeto, pela não disposição dos valores mutuados, pelo prazo de amortização de 2 anos introduzido no texto do contrato, que passou despercebido aos mutuários, este contrato enferma de vários vícios.
xxxiii. O Tribunal a quo não se pronunciou quanto à arguição da não novação da dívida, que implica a inexistência de Titulo Executivo.
xxxiv. A vontade de contrair nova obrigação em substituição da antiga deve ser expressamente manifestada, como dispõe o Código Civil no art.º 859º.
xxxv. Ora, do contrato não decorre expressamente a manifestação.
xxxvi. Como vimos anteriormente, o contrato é omisso quanto às obrigações que se pretendiam substituir.
xxxvii. Assim, não havendo menção expressa, como exige o artigo 859º do Código Civil, não há novação da dívida.
xxxviii. Não havendo novação da dívida por via deste contrato de mútuo, as obrigações foram constituídas nos contratos originários, anteriormente celebrados ao mútuo sub judice.
xxxix. Ou seja, não havendo novação, o aludido contrato apresentado não pode revestir título executivo, pois não foi o contrato constituinte das obrigações assumidas pelo Apelante e pelo Apelado.
xl. Como foi largamente demonstrado, o contrato apresentado enferma de vícios formais e materiais, dos quais deveriam ter sido conhecidos pelo Tribunal a quo, e que determinariam a nulidade do contrato, e/ou insuficiência de título executivo. xli. Conclui-se que face à prova produzida e a matéria provada pelo Tribunal a quo, impunha-se outra decisão.
xlii. Assim, deverá a decisão proferida na douta Sentença que se recorre ser substituída por outra, com a procedência dos embargos, com a declaração de nulidade do contrato de mutuo, e/ou a invalidade do titulo executivo apresentado pelo Apelado.
xliii. Sem conceder, atendendo ao acordão supracitado, havendo decisão que determine a continuidade da execução, que a mesma prossiga apenas quanto ao capital mutuado, por inexequibilidade quanto aos juros.
Pelo exposto e com o douto suprimento de V.Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso, com a procedência dos embargos deduzidos, com o que se fará JUSTIÇA!
O embargado não apresentou resposta às alegações de recurso.
II. Do mérito do recurso 1. Definição do objecto do recurso
O objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, n.º 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 3.º, n.º 3, do diploma legal citado), consubstancia-se nas seguintes questões:
i) a questão da validade formal do contrato;
ii) a questão da utilização do capital mutuado;
iii) a invocada “não novação” e as questões novas suscitadas
2. Fundamentos de facto
O Tribunal de 1.ª instância considerou provada, sem impugnação, a seguinte factualidade:
1. Por documento particular intitulado “Contrato de mútuo” celebrado entre Banco B… como primeiro outorgante e C… e mulher D… como segundos outorgantes acordaram as partes celebrar contrato de empréstimo nos termos constantes das seguintes cláusulas:
Cláusula 1ª O E… concede, nesta data, aos mutuários um empréstimo no montante de Esc.32.000.000$00.
Cláusula 2ª: o empréstimo deve ser utilizado única e exclusivamente para o seguinte fim: liquidação de responsabilidade em curso.
Cláusula 3ª: 1ªa utilização do empréstimo será efectuada através da conta empréstimo, ficando o E… autorizado a creditar a conta de depósitos à ordem de que os mutuários são titulares na loja E1… com o número …….. pelo respectivo valor e designada no presente contrato como conta-mutuário;
2º O E… pode fazer depender a utilização do empréstimo de regularização de quaisquer obrigações dos mutuários para com o E…, designadamente do serviço de divida, ainda que não emergente do presente contrato.
Cláusula 4ª: no caso de incumprimento de quaisquer obrigações emergentes do presente contrato ou em situações que possam envolver risco para o reembolso do empréstimo, nomeadamente quando se verificar diminuição do valor das garantias prestadas ou da solvabilidade dos mutuários, bem como qualquer montante do empréstimo concedido tenha sido destinado a fim diferente do definido na clausula 2 , pode o E… considerar vencidas as dividas dos mutuários emergentes deste contrato e exigir o cumprimento imediato das correspondentes obrigações.
(…)
Clausula 8ª- O prazo do empréstimo é de 2 anos, a contar da data de produção de efeitos do contrato, mas se por acordo entre o E… e os mutuários houver alteração das condições de reembolso, o prazo de empréstimo abrangerá também o prazo que vier a resultar de tais alterações;
Cláusula 8ª 2 – o empréstimo será reembolsado em 24 prestações mensais, iguais e sucessivas de capital e juros, no montante de esc. 250.000$00 cada uma, vencendo-se a primeira um mês após a utilização do crédito, sendo renegociado o remanescente da divida, até integral pagamento.
Cláusula 9ª- Em garantia do bom e pontual pagamento do aludido empréstimo, dos juros contratuais e moratórios e de outros eventuais encargos o Sr C… e esposa vão constituir a favor do E… hipoteca sobre a fracção “P” do prédio urbano sito na Rua …, …, … e …, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de V.N. Gaia sob o nº 00223/190685 , inscrito na matriz predial da freguesia de …;
2. Os executados pagaram as prestações devidas de capital e juros até á prestação vencida no dia 23.04.2000 inclusive.
3- O Banco E… fundiu-se com o Banco B… SA- … mediante a transferência global do seu património para a sociedade incorporante.
3. Fundamentos de direito 3.1. A questão da validade formal do contrato
O contrato apresentado como título executivo tem a forma de documento particular, tendo sido intitulado como “Contrato de mútuo”, sendo celebrado entre Banco B… como primeiro outorgante e os executados como segundos, nele se estipulando um empréstimo nos termos constantes das seguintes cláusulas: «Cláusula 1ª O E… concede, nesta data, aos mutuários um empréstimo no montante de Esc.32.000.000$00. Cláusula 2ª: o empréstimo deve ser utilizado única e exclusivamente para o seguinte fim: liquidação de responsabilidade em curso».
Nas conclusões i a xi, alegam os recorrentes que tal contrato deveria ter sido declarado nulo por vício de forma e, se assim não se entendesse, deveria ter-se considerado que o título em apreço não abrangia os juros.
Na sentença é feita uma referência ao acórdão uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.02.2018 (in DR. Diário da República n.º 35/2018, Série I de 2018-02-19), no qual se decidiu estabelecer a seguinte uniformização: «O documento que seja oferecido à execução ao abrigo do disposto no artigo 46.º, n.º 1, alínea, c), do Código de Processo Civil de 1961 (na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), e que comporte o reconhecimento da obrigação de restituir uma quantia pecuniária resultante de mútuo nulo por falta de forma legal goza de exequibilidade, no que toca ao capital mutuado».
Salvo todo o respeito devido, o aresto em apreço nada tem a ver com a questão formal suscitada.
Com efeito, no processo em que foi proferido estava em causa uma declaração de reconhecimento de dívida dos executados perante os exequentes, sem intervenção de qualquer entidade bancária[1].
Invoca-se depois na sentença, o artigo único do Decreto n.º 32765, de 29 de Abril de 1943, no qual se determina que «os contratos de mútuo [...], seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular, ainda que a outra parte não seja comerciante».
Ao citado diploma legal se reporta o Assento 17/94 (in Diário da República n.º 279/1994, Série I-A de 1994-12-03), com a seguinte fixação de jurisprudência: «O contrato de desconto bancário tem natureza formal, para cuja validade e prova é exigida a existência de um escrito que contenha a assinatura do descontário, embora tal escrito possa ter a natureza de documento particular[2]».
São estas as disposições legais e a jurisprudência relevantes in casu.
Tal como decidiu a Relação de Évora, em acórdão de 26.04.2012 (processo n.º 3026/08.2TBEVR-A.E1), a expressão “salvo disposição legal em contrário” contida no art.º 1143º do C. Civil chama à colação o Dec. Lei nº 32.765, de 29 de Abril de 1943, de cujo artigo único se extrai que os contratos de mútuo, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular ainda que a outra parte não seja comerciante, mantendo-se tal normativo em vigor, dado que não foi revogado por qualquer legislação posterior, incluindo o Código Civil aprovado pelo Dec. Lei nº 47.344 de 25 de novembro[3].
Decorre do exposto a manifesta improcedência da argumentação do embargante (conclusões i a xv), quer quanto à pretendida nulidade formal, quer quanto à alegada inexigibilidade dos juros com base no título dado à execução.
3.2. A questão da utilização do capital mutuado
Alega o recorrente/embargante que não dispôs do crédito concedido pelo recorrido, que o “valor mutuado” foi creditado numa conta, cujos movimentos a débito foram efetuados pelo recorrido sem qualquer autorização do recorrente.
Consta da sentença recorrida:
«Ora, salvo o devido respeito, a alegação agora efectuada parece contradizer os termos acordados pelas partes no documento que foi dado à execução como título executivo, que foi celebrado livremente (artº 405º do C.Civil), pois não é alegado nenhum vício da vontade subjacente á celebração do mesmo. Com efeito, consta do próprio contrato que o empréstimo deve ser utilizado única e exclusivamente para a liquidação de responsabilidades emcurso. Ou seja, o embargante , ao abrigo do princípio previsto no artº 405º do C.Civil, contraiu responsabilidades para pagamento de outras responsabilidades já vencidas, alegando agora que não beneficiou do montante em apreço, o que não se compreende ( aliás por isso é que as partes acordaram que o E… pode fazer depender a utilização do empréstimo de regularização de quaisquer obrigações dos mutuários para com o E…, designadamente do serviço de divida, ainda que não emergente do presente contrato). Por conseguinte, o escopo do contrato parece bastante claro, não se vislumbrando qualquer opacidade na finalidade do contrato ou das suas clausulas, sendo que se o contrato nada diz sobre sobre a natureza do capital em divida, terá sido essa a vontade das partes, assim como é irrelevante para a sorte dos autos, neste contexto, averiguar se existiu ou não novação da divida».
Lidas as 18 cláusulas do contrato e tendo em conta o facto de os executados terem procedido ao pagamento das prestações devidas de capital e juros até à prestação vencida no dia 23.04.2000 inclusive, com o devido respeito, temos a maior dificuldade em compreender a argumentação do recorrente.
Com efeito, consta do contrato que: o E… concede, nesta data, aos mutuários um empréstimo no montante de Esc.32.000.000$00; “o empréstimo deve ser utilizado única e exclusivamente para o seguinte fim: liquidação de responsabilidade em curso”; a utilização do empréstimo será efetuada através da conta empréstimo, ficando o E… autorizado a creditar a conta de depósitos à ordem de que os mutuários são titulares na loja E1… com o número …….. pelo respetivo valor e designada no presente contrato como conta-mutuário; o E… pode fazer depender a utilização do empréstimo de regularização de quaisquer obrigações dos mutuários para com o E…, designadamente do serviço de divida, ainda que não emergente do presente contrato; e o empréstimo será reembolsado em 24 prestações mensais, iguais e sucessivas de capital e juros, no montante de esc. 250.000$00 cada uma, vencendo-se a primeira um mês após a utilização do crédito, sendo renegociado o remanescente da divida, até integral pagamento.
Afigura-se-nos claro para um declaratário normal, o alcance da vinculação operada através da outorga do contrato em apreço.
Vocacionados para dirimir a questão interpretativa, os artigos 236.º a 238.º do Código Civil preveem as regras que o intérprete deverá seguir, consagrando uma doutrina objetivista da interpretação, temperada por uma salutar restrição de inspiração subjectivista[4].
O n.º 1 do artigo 236.º consagra a denominada teoria da impressão do destinatário, nestes termos: «A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele».
O n.º 2 do citado normativo estabelece o princípio de que «[s]empre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida».
O artigo 237.º prevê as situações de dúvida interpretativa, estabelecendo o seguinte critério para a sua superação: «Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações».
Finalmente, o n.º 1 do artigo 238.º estabelece o primado do elemento interpretativo literal: «Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso»; prevendo o n.º 2 as condições excecionais e específicas do seu afastamento: «Esse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade».
A jurisprudência tem considerado que «na interpretação dos contratos, prevalecerá, em regra, “a vontade real do declarante”, sempre que for conhecida do declaratário; faltando esse conhecimento, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (...)»[5].
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela[6] em anotação ao artigo 236.º do Código Civil, enuncia-se no n.º 1 deste normativo, a seguinte regra: «o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante».
Afirma o recorrente que ele e sua esposa “foram ludibriados e levados a crer que estariam a reestruturar o crédito por um prazo de 20 anos, logrando dispor do capital não só para reestruturar a dívida proveniente de obrigações anteriormente assumidas, como dispor de capital para relançar o seu negócio”, dado que o contrato, não específica, nem a natureza, nem o capital em dívida dessas responsabilidades vencidas.
Reiterando o devido respeito, não se vislumbra como possa o recorrente ter qualquer dúvida, face ao teor do contrato que subscreveu (cláusula 8.ª, 1.º, 2.º e 3.º), na medida em que as suas “responsabilidades” perante o banco mutuante, tendo ficado estipulado que «o empréstimo deve ser utilizado única e exclusivamente para o seguinte fim: liquidação de responsabilidade em curso», que o prazo do empréstimo é de 2 anos, a contar da data de produção de efeitos do contrato, sendo o mesmo reembolsado em 24 prestações mensais, iguais e sucessivas de capital e juros, no montante de esc. 250.000$00 cada uma, tendo os executados procedido ao pagamento das prestações devidas de capital e juros até á prestação vencida no dia 23.04.2000 inclusive.
Ora, sendo o empréstimo «utilizado única e exclusivamente para o seguinte fim: liquidação de responsabilidade em curso», não se vê como possa o recorrente ter sido iludido, pensando que poderia “dispor de capital para relançar o seu negócio”.
Revela-se manifesta a improcedência da argumentação do recorrente expressa nas conclusões xvi a xxxii. 3.3. A invocada “não novação” e as questões novas suscitadas
Alega o recorrente que
xxxvii. (…) não havendo menção expressa, como exige o artigo 859º do Código Civil, não há novação da dívida.
xxxviii. Não havendo novação da dívida por via deste contrato de mútuo, as obrigações foram constituídas nos contratos originários, anteriormente celebrados ao mútuo sub judice.
xxxix. Ou seja, não havendo novação, o aludido contrato apresentado não pode revestir título executivo, pois não foi o contrato constituinte das obrigações assumidas pelo Apelante e pelo Apelado.
Salvo o devido respeito, não vislumbramos sentido para a argumentação que se transcreveu.
Com efeito, através da declaração negocial consubstanciada no contrato, o ora recorrente contraiu uma nova obrigação, obtendo capital mutuado destinado a pagar “responsabilidades anteriores”, não resultando do contrato que não se pretendeu apenas intervir sobre uma obrigação já existente, mas extingui-la por inteiro, extinguindo-se também os primitivos meios de defesa, acessórios, etc., pelo que não se poderá falar de novação[7].
O que não se compreende, é a que propósito vem invocada a questão.
Através do contrato de mútuo dado à execução, o ora recorrente contraiu uma obrigação que não cumpriu, sendo o contrato um título inquestionavelmente válido.
Nas conclusões xxiii a xlii, o recorrente repete-se alegando que foi “ludibriado” e invocando nova factualidade, nomeadamente, que “não se percebe os movimentes a débito e a que operações se referem, tendo sido efetuados indiscriminadamente pelo Banco Apelado, sem qualquer autorização pelos titulares da conta”.
Acontece que na petição de embargos, o ora recorrente se limita a alegar: nulidade formal do contrato (artigos 1.º a 14.º); “opacidade da finalidade de utilização do mútuo” (artigos 15.º a 29.º).
Os recursos são um “instrumento de impugnação de decisões judiciais, permitindo a sua reapreciação por um tribunal de categoria hierarquicamente superior”[8], destinando-se à reponderação de questões que hajam sido colocadas e apreciadas pelo tribunal recorrido, não se destinando ao conhecimento de questões novas[9].
Se este Tribunal apreciasse agora, em sede de recurso, uma questão que nunca foi invocada nem debatida nos autos (questão nova) o presente acórdão enfermaria de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos da 2.ª parte do artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil.
Improcedem as conclusões xxiii a xlii.
* III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, ao qual negam provimento e, em consequência, em manter a sentença recorrida.
*
Custas pelo recorrente.
*
A presente decisão compõe-se de dezassete páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator.
*
Porto, 18 de Dezembro de 2018
Carlos Querido
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
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[1] Consta da factualidade provada do citado aresto: «1. Na execução a que os presentes autos estão apensos foi apresentada à execução o documento escrito particular de fls. 8 da execução, o qual se mostra datado de 18-7-95 e contém as assinaturas dos dois executados, tendo o seguinte teor, na parte relevante:
"Nós abaixo assinados F…, casado com G… declaramos que nos confessamos devedores ao Sr. H… e mulher I…, da importância de 6.000.000$00, que este nos fez o favor de emprestar, a fim de ser utilizado na n/ vida particular, no dia 18-7-95, pelo prazo de um ano."».
[2] Colhe-se do acórdão a seguinte nota doutrinária (apesar de no aresto se seguir uma outra definição, considerando-se irrelevante a divergência na apreciação da questão específica): «A doutrina e uma grande parte da jurisprudência têm entendido que o contrato de desconto bancário de que nos estamos a ocupar corresponde, fundamentalmente, a um contrato misto de mútuo e de dação pro solvendo (cf. os Profs. Varela e Vaz Serra, nas citações feitas pelo Acórdão de 29 de Abril de 1981, in Colectânea, ano VI, t. II, pp. 212 e seguintes), não subsumível aos requisitos de forma indicados no artigo 1143.º do Código Civil (escritura pública ou documento assinado pelo mutuário, consoante o mútuo respeite a quantia superior a 200000$00 ou a 50000$00), com a natureza de operação comercial e, como tal, sujeito às regras da lei comercial».
[3] Vide, no mesmo sentido, o acórdão da Relação de Lisboa, de 19.05.2011 (processo n.º 6684/09.7TVLSB.L1-8).
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição, 1987, pág. 223.
[5] Acórdãos do STJ de 14.01.1997 (CJ-STJ, V, 1, 47) e de 20.10.2009 – Proc. 1307/06.9TBPRD.S1, acessível no site da DGSI.
[6] Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição, 1987, pág. 223.
[7] Vide, Código Civil Anotado, Coordenação de Ana Prata, 2017, Almedina, 2017, Volume I, pág. 1075.
[8] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 19.
[9] Sobre esta matéria vejam-se, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2ª edição revista e actualizada, Almedina 2008, António Santos Abrantes Geraldes, páginas 25 e 26, anotação 5; Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, Almedina 2009, Fernando Amâncio Ferreira, páginas 153 a 158.