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REGISTO AUTOMÓVEL
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
CONSERVADOR
Sumário
I - Em face das disposições legais conjugadas do arts.1º, nºs 1 e 2, 2.º/1 e 3.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro e em face das exigências decorrentes do princípio da legalidade vertido no artigo 68º do CRegisto Predial em conjugação com as exigências de justiça, a verificação pelos serviços da Conservatória do Registo Automóvel durante o procedimento de apreciação de viabilidade do pedido de registo a que alude o artigo 68º do Código de Registo Predial, aplicável ao Registo Automóvel, ex vi, art. 29º do DL 54/75, de 12-02, mediante acesso à base de dados do IMTT, I.P., do cancelamento da matrícula ocorrido em data anterior ao registo de uma aquisição onerosa cujo cancelamento foi ordenado por sentença transitada em julgado, não constitui motivo de inviabilidade do registo de extinção do direito de propriedade em vigor, com fundamento na resolução judicial do contrato de compra e venda que lhe serviu de base. II - Perante o teor da sentença judicial que ordena o cancelamento do registo de aquisição a favor da recorrida, irrelevam para o caso, as razões substanciais que presidiram ao pedido de cancelamento do registo de propriedade a favor da recorrida, sendo certo que a sentença assume um carácter de incontestabilidade que, nos próprios termos constitucionais (expressos no artigo 208.º, n.º 2 da Constituição) não pode ser posto ser posto em causa. III - Ignorar a informação relativa ao cancelamento da matrícula e que foi obtida pela recorrente na base de dados do IMTT, I.P e querer obrigar a recorrida a instaurar um procedimento autónomo de cancelamento do registo de aquisição a seu favor com fundamento no artigo 47º, nº2 do RRA seria, no caso, continuar a manter registada uma aquisição que viola o princípio da legalidade a que está sujeita a actuação dos conservadores, aquisição essa cujo registo ab initio não deveria ter sido permitido.
Texto Integral
Processo n.º 4079/18.8 T8PRT (Recurso de conservador)
Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I.RELATÓRIO
Os presentes autos de Impugnação Judicial no âmbito dos quais foi proferida a sentença que é objecto de recurso de apelação, referem-se ao despacho de 18/01/2018, do Senhor Presidente do Conselho Diretivo, que homologou o Parecer do Conselho Consultivo n° 75/DGATJSR/2018, P° R. BM. 6/2017 STJSR-CC e foram instaurados por B....
E a factualidade jurídico processual que releva para se percepcionar a tramitação ocorrida até ser proferida a sentença que é objecto do presente recurso de apelação é a seguinte:
1-Nos autos de acção declarativa que correu termos sob o nº 6/11.4TBMTS no Tribunal Judicial de Matosinhos instaurados por B... contra “C..., Unipessoal, Lda e D... foi proferida sentença em 18.10.2011, transitada em julgado, na qual, além do mais, se declarou resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre a autora e a 1ª Ré, que deu lugar ao registo de propriedade em vigor a favor da autora, devendo, em consequência, ser restituído tudo o que foi prestado, (…) e se ordenou o cancelamento oficioso do registo de propriedade relativa ao veículo com a matrícula ..-..-NG em nome da impugnante, B..., lavrado sob a apresentação .... de 24/07/2009.
2-Na sequência dessa decisão judicial de procedência do pedido de resolução do contrato de compra e venda do veículo com a matrícula ..-..-NG, (negócio que deu lugar ao registo de propriedade em vigor a favor de B...), o tribunal por onde tramitou a ação judicial procedeu à comunicação da referida sentença à Conservatória do Registo de Veículos do Porto, tendo em vista o cancelamento do registo de aquisição em vigor, nos termos ordenados na sentença.
3- A apresentação foi, porém, rejeitada, por decisão de 13.09.2017, proferida pela Sr.ª Conservadora do Registo Automóvel do Porto com base na inviabilidade do registo, em virtude de se ter confirmado, por acesso à base de dados da entidade competente (IMTT, I.P.) que a matrícula se encontrava cancelada e que, por isso, o registo a efetuar se traduziria num registo nulo (art. 3.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de fevereiro), acrescentando-se, como impedimento à feitura do registo, nos termos requeridos, a falta de certificação do trânsito em julgado da sentença comunicada.
Aí se refere: “(…) compulsada a base de dados do IMT, verificamos que a matrícula já se encontra cancelada no referido IMT. Ora, nos termos do art. 3º do Decreto de Lei 54/75, de 12 de Fevereiro os registos lavrados posteriormente ao cancelamento da matrícula são nulos. No entanto sempre se dirá que, poderá a matrícula ser reposta, art. 47º do Decreto n.º 55/75 12 de fevereiro (…).Assim, em sede de qualificação jurídica do requerido, foi a apresentação rejeitada, por inviabilidade do registo requerido, ao abrigo do disposto nos artigos 32° e 49° do Decreto n° 55/75 de 12 de Fevereiro, 66°, 69° n° 2 e 68° do Código do Registo Predial, aplicáveis "ex vi" do artigo 29° do Dec-Lei 54/75 de 12 de Fevereiro. Tal rejeição assentou no facto de a matrícula já se mostrar cancelada no IMT, sendo que, nos termos do artigo 3º do Decreto-Lei 54/75 de 12 de Fevereiro, os registos lavrados posteriormente ao cancelamento da matrícula do veículo são nulos.”
Fez-se ainda constar que deveria ser certificada a data do trânsito em julgado, da decisão judicial que ordenou o cancelamento do registo de propriedade.
4-Esta decisão foi comunicada ao Tribunal conforme resulta de fls. 40 v. e dela foi dado conhecimento à autora, cfr. fls. 39.
5 - Desta decisão de recusa da prática do ato de registo nos termos requeridos foi interposto pela aí autora, B... recurso hierárquico para o Conselho Diretivo do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P., cfr. fls. 41 a 42. A fls. 93 e ss foi proferido despacho a sustentar a decisão proferida.
6- O recurso hierárquico interposto pela impugnante foi julgado improcedente por despacho de 18.1.2018 do Presidente do Conselho Diretivo que homologando o parecer do Conselho Consultivo considerou, ainda, que o apoio judiciário não se estendia ao recurso e determinou a elaboração da conta do ato em conformidade com o disposto no art. 27º do RERN, cfr. fls. 124 e ss.
7. Notificada a recorrente na pessoa da sua mandatária e não se conformando com o referido Parecer do Conselho Consultivo, veio proceder à impugnação judicial do mesmo, sob apresentação 9205 de 12/02/2018, dando origem aos presentes autos de impugnação judicial.
8. Nestes autos foi proferida sentença no dia 22.05.2018, a qual, deu provimento ao recurso interposto, revogando a decisão recorrida e determinando o cancelamento do registo de propriedade do veículo a favor da recorrente B.... Inconformada, a Conservatória do Registo Automóvel do Porto, interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes Conclusões:
1 - O cancelamento da matrícula, confirmado mediante acesso à base de dados do IMTT, IP, constitui motivo de inviabilidade do registo de cancelamento do direito de propriedade em vigor, com fundamento na resolução judicial do contrato de compra e venda que lhe serviu de base, atento o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 2o n° 1 e 3o do DL 54/75 de 12/02.
2-Opedido de cancelamento requerido tem por base uma decisão judicial (a qual não pode ser desconsiderada por ter sido submetida a registo), cujo efeito nas tábuas, em caso de deferimento, além de se traduzir num cancelamento do registo de propriedade, obrigaria à reposição do registo de propriedade anterior, o que não se coaduna com o disposto no artigo 3º do DL 54/75 de 12/02.
3- Esse cancelamento requerido (enquadrável no normativo previsto nos artigos 13º e 43° n° 1 do Código do Registo Predial e artigo 28° n° 1 do Decreto 55/75 de 12/02 - RRA), não substitui nem se confunde com o cancelamento do registo de propriedade previsto no artigo 47° do D. 55/75 de 12/02 (e nos Despachos em vigor sobre a matéria), porque se trata de atos com pressupostos, fundamentos e efeitos diversos;
4- E exigiria (caso pudesse ser efetuado, o que entendemos não poder ser) que da certidão judicial constasse, o trânsito em julgado da decisão que o ordenou, podendo ainda ser certificada posteriormente, em sede de suprimento de deficiências nos termos do artigo 42º-A Decreto 55/75 de 12/02 - RRA, caso motivo de rejeição não houvesse ab inicio;
5- não podendo ser considerada tal certificação, quando apresentada posteriormente à interposição da impugnação, por pôr em causa a qualificação anteriormente efetuada, sob pena de se postergar o princípio da prioridade do registo, ínsito no artigo 6º do Código do Registo Predial.
6- O cancelamento do registo de propriedade previsto no artigo 47° do D. 55/75 de 12/02 deverá ser (como já poderia ter sido) requerido pela interessada (já que vigora para o registo de veículos o princípio da instância, salvo os casos de oficiosidade expressamente previstos na lei - artigo 41° do Código do Registo Predial), o qual será gratuito, nos termos do artigo 16°-B/b) do RERN.
Nos termos expostos, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que defira em conformidade com o supra alegado.
Foram apresentadas contra-alegações pela recorrida. II- DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
As questões colocadas pela recorrente são as seguintes:
Da recusa de efetuar o cancelamento do registo de propriedade do veículo com a matrícula ..-..-NG a favor da recorrente, B... em virtude de a matrícula se encontrar cancelada e atento o disposto no art. 3º do DL. N.º 54/75, de 12 de Fevereiro e da Omissão de junção de certidão de sentença com nota de trânsito em julgado pelo Tribunal.
III- FUNDAMENTAÇÃO. 3.1-Na 1ª instância foi considerada apurada a seguinte factualidade com relevo para a impugnação judicial em apreço:
1- A matrícula ..-..-NG encontra-se cancelada desde 21.5.2009 tendo sido o cancelamento feito oficiosamente ao abrigo do n.º 1 do art. 5 do D.L. 78/2008;
2- A entidade requerente deste cancelamento foi D...;
3- A propriedade do veículo com a matrícula ..-..-NG esteve inscrita a favor do referido D... desde 4.11.2005;
4- E inscrita uma reserva de propriedade a favor da E... Banco de Crédito ao Consumo;
5- A propriedade do veículo com a matrícula ..-..-NG encontra-se registada desde 24.7.2009 a favor de B...;
6- Em 24.9.2009 foi cancelada o registo de reserva de propriedade a que se alude supra;
7- Cancelamento do registo de propriedade a favor de B... foi determinado oficiosamente pelo Tribunal.
3.2 Do Mérito da Decisão Recorrida.
As disposições legais convocáveis são, entre outras, as seguintes, sem prejuízo de ulteriores referências a outras disposições legais que se tornem necessárias consoante a argumentação que vai ser exposta.:
Estabelece o Artigo 66.º do Código de Registo Predial, sob a epígrafe, “Rejeição da apresentação” aplicável ao caso dos autos, ex vi , art. 29º do Registo Automóvel. 1 - A apresentação deve ser rejeitada apenas nos seguintes casos: a) [Revogada]; b) Quando os documentos não respeitarem a atos de registo predial; c) Quando não tiverem sido indicados no pedido de registo o nome e residência do apresentante e tais elementos não puderem ser recolhidos dos documentos apresentados ou por qualquer outro meio idóneo, designadamente por comunicação com o apresentante; d) Salvo nos casos de retificação de registo e de anotação não oficiosa prevista na lei, quando o pedido escrito não for feito no modelo aprovado, se dele não constarem os elementos necessários e a sua omissão não for suprível por qualquer meio idóneo, designadamente por comunicação com o apresentante; e) Quando nenhum preparo tiver sido feito; f) Quando for possível verificar no momento da apresentação que o facto constante do documento já está registado. 2 - Verificada a existência de causa de rejeição, é feita a apresentação do pedido no diário com os elementos disponíveis. 3 - A rejeição deve ser fundamentada em despacho a notificar ao interessado, para efeitos de impugnação, nos termos do disposto nos artigos 140.º e seguintes, aplicando-se-lhe, com as devidas adaptações, as disposições relativas à recusa. 4 - Sem prejuízo do disposto no n.º 9 do artigo 151.º, a verificação das causas de rejeição previstas nas alíneas b) e e) do n.º 1 após a apresentação do pedido no diário dá lugar à recusa da qualificação, aplicando-se com as devidas adaptações o disposto no número anterior.
E estabelecem os artigos 32º e 49º do Regulamento do Registo Automóvel: Artigo 32.º Rejeição da apresentação Sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 40.º, para além dos casos de rejeição da apresentação previstos na legislação subsidiariamente aplicável, a apresentação do pedido de registo pode ainda ser rejeitada se for verificada a inviabilidade do registo requerido. Artigo 49.º-Casos especiais de recusa
Para além dos motivos de recusa previstos na legislação subsidiariamente aplicável, o acto de registo deve ser recusado:
a) Se não for apresentado o certificado de matrícula, nos casos em que tal apresentação seja exigível ao requerente;
b) Se o requerimento de registo ou os documentos que o instruam apresentem deficiências insupríveis e que impeçam a feitura do acto.
Entende a recorrente que, após o cancelamento da matrícula, confirmado mediante acesso à base de dados do IMTT, IP, só os atos praticados no âmbito do art. 47º do D.L. 55/75 ficarão fora do campo do citado art. 3º.
Ou seja, que “a extinção do registo de propriedade em vigor fundado na resolução judicial do contrato de compra e venda que lhe serviu de base não pode substituir o cancelamento do registo de propriedade em vigor previsto no art. 47º do Regulamento do Registo de Automóveis porquanto se trata de atos com pressupostos, fundamentos e efeitos diversos.
Do posição da recorrente resulta, assim, que o cancelamento oficioso determinado pelo Tribunal não pode ser registado já que apenas o poderá ser pela titular inscrita nos termos do art. 47º.
Por seu lado, a recorrida entende que a nulidade prevista no artigo 3º do DL 54/75, de 12-02 (Registo Automóvel) abrangerá apenas os registos de novos direitos ou encargos e já não a sua extinção.
Estabelece o artigo 3º do DL 54/75, de 12-02 (Registo Automóvel)
1 - Os registos lavrados posteriormente ao cancelamento da matrícula do veículo são nulos.
2 - O cancelamento da matrícula não prejudica os registos de ónus ou encargos que estiverem em vigor sobre o veículo.
E o artigo 47º do Decreto – Lei nº 55/75, de 12-02 (Regulamento do Registo Automóvel) sob a epígrafe “Registos sobre matrículas canceladas”, estabelece : 1 - O cancelamento da matrícula, desde que comunicado pela entidade competente para tal acto, determina o cancelamento oficioso do registo de propriedade em vigor sobre o veículo, se sobre este não se encontrarem em vigor registos de ónus ou encargos. 2 - A comunicação referida no número anterior é dispensada sempre que a conservatória tiver acesso por via electrónica a toda a informação necessária à verificação do cancelamento de matrícula, nos termos a definir por despacho do presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, I. P. 3 - A reposição ou renovação de matrícula anteriormente cancelada, no caso de haver mudança de proprietário do veículo, dá lugar a novo registo de propriedade. 4 - O registo de propriedade do veículo nas condições a que se refere o número anterior é equiparado ao registo inicial.
Dos factos provados resulta que a matrícula ..-..-NG encontra-se cancelada desde 21.5.2009 tendo sido o cancelamento feito oficiosamente ao abrigo do n.º 1 do art. 5 do D.L. 78/2008[1], o qual, dispõe: “Artigo 5.ºCancelamento oficioso 1 - Consideram-se desaparecidos os veículos e são canceladas oficiosamente as respectivas matrículas, decorridos seis meses sobre o pedido de apreensão do veículo feito pelo proprietário para efeitos de regularização da propriedade, sem que tenha havido apreensão ou regularização da propriedade por eventuais possuidores. 2 - Para efeitos do número anterior apenas são considerados os pedidos de apreensão efectuados até 31 de Dezembro de 2008. 3 - São ainda canceladas oficiosamente as matrículas de veículos matriculados entre 1 de Janeiro de 1980 e 31 de Dezembro de 2000 que não tenham sido submetidos a inspecção periódica obrigatória após 1 de Janeiro de 2003. 4 - O cancelamento oficioso de matrículas, efectuado nos termos dos números anteriores, não prejudica a validade dos contratos de seguro de responsabilidade civil automóvel. 5 - A reposição da matrícula dos veículos referidos no n.º 3, que seja requerida no prazo de seis meses a contar da data do cancelamento da matrícula, carecendo da aprovação em inspecção extraordinária a realizar nos centros de inspecção técnica de veículos da categoria B, não está sujeita a pagamento de taxa ao IMTT, I. P.”
Mais resulta dos autos que a entidade requerente deste cancelamento de matrícula foi D..., em nome de quem esteve inscrita desde 4.11.2005 a propriedade do veículo com a matrícula ..-..-NG e que existia uma inscrição de reserva de propriedade a favor da E... Banco de Crédito ao Consumo, a qual, por força do disposto no nº2 do artigo 3º do DL 54/75, de 12-02 ( Registo Automóvel ) continuou a vigorar apesar do cancelamento da matrícula.
E dos autos resulta verificada uma falta de troca de informação entre os serviços do IMTT, IP e os serviços da Conservatória do Registo Automóvel do Porto, a qual, permitiu que tivesse sido feito o registo de uma compra e venda posterior ao cancelamento da matrícula ..-..-NG.
Dos autos não resulta que essa falta seja imputável à recorrida.
Pelo contrário. Resulta da sentença que decretou a resolução da compra e venda celebrada entre a recorrida, como compradora, e um terceiro, como vendedor, que aquela não teve qualquer intervenção no cancelamento da matrícula e que, sem o saber, foi comprar um veículo cuja matrícula estava cancelada, negócio de compra e venda que estranhamente foi registado na Conservatória do Registo Automóvel do Porto em data posterior ao cancelamento da matrícula.
Consequentemente, do cancelamento da matrícula ..-..-NG resulta que nunca o registo a favor da impugnante/recorrida datado de 24.7.2009 devia ter sido efectuado, uma vez que foi feito após o cancelamento da matrícula (21.05.2009).
Concluímos, assim, que no caso, os serviços da administração indirecta do Estado, nos quais se integram os serviços de registo automóvel, revelam uma falha na sua missão de assegurar a prestação de serviços aos cidadãos no âmbito do controlo e fiscalização da actividade ligada ao comércio jurídico de veículos automóveis. Feito este reparo, e tendo em conta esta falha do “sistema”, a qual não é relevada no recurso interposto, apreciemos os argumentos apresentados pela recorrente para revogar a sentença.
No essencial, a recorrente alega que “A falta de matrícula torna inviável a divulgação de quaisquer factos jurídicos, constitutivos, modificativos ou extintivos, enquadráveis no leque dos artigos 5o e 6o do DL 54/75 de 12/02. Consequentemente, assim será também com a extinção subjectiva do direito de propriedade, decorrente da resolução de contrato de compra e venda, porquanto se trata efectivamente de um efeito real que, face à retroactividade que lhe é associada (artigo 434° do Código Civil), repõe a titularidade a favor do transmitente, repristinando a situação registral correspondente, e que, por isso, não se confunde com o cancelamento do registo de propriedade a que se refere o artigo 47° /I do D. 55/75 de 12/02 (RRA).”.
A recorrente convoca ainda o Despacho nº 79/2008 relativo ao Acesso à base de dados do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I.P. e que refere “que sempre que seja solicitado um pedido de cancelamento de registo na sequência de cancelamento de matrícula de veículo, deve o serviço de registo verificar a informação do referido cancelamento, por consulta ao sítio de Internet do IMTT, com o endereço www.imtt.pt, sendo dispensada a comunicação prevista no n.° 1 do artigo 47.° do Regulamento do Registo de Automóveis”, para concluir que no caso a recorrida tem de apresentar um pedido autónomo de cancelamento de registo de propriedade com vista a obter o cancelamento do registo de compra e venda que está feito a seu favor, em conformidade com o princípio da instância. Quid iuris?
Antes de tudo, impõe-se referir que não ignoramos que a actividade dos conservadores obedece a certos princípios, entre os quais, avultam os princípios da instância e da legalidade.
O princípio da instância, consagrado no artigo 41.º do Código de Registo Predial, aplicável, ex vi, art. 29º CRA, diz-nos que por regra o registo é feito a pedido das partes ou de outros eventuais interessados, só se podendo efectuar com base nesse pedido. Os casos de oficiosidade constituem excepção, uma vez que só existem quando a lei expressamente os prevê.
O princípio da legalidade, consagrado no artigo 68º do Código de Registo Predial enunciado de uma maneira muito simples, diz-nos que só podem ser registados os factos que estejam conformes com a lei e sejam baseados em títulos válidos e correctos, e ainda que respeitem a sujeitos identificados (que já figurem nos títulos como completamente identificados ou que possam ser incontroversamente identificáveis) bem como a prédio determinado.
Para que este último princípio se possa concretizar é indispensável que o responsável pelo registo – que entre nós (e v.g. também em França) se chama conservador faça um juízo sobre a viabilidade do pedido de registo no sentido de o admitir (definitiva ou provisoriamente) ou de o rejeitar. A esta apreciação – a este juízo – que o conservador deve fazer para apreciar a possibilidade de o pedido ser satisfeito e o acto inscrito no sistema de registo (ficando, portanto, revestido da correspondente autenticidade erga omnes) chama-se juízo de qualificação ou simplesmente qualificação
Todavia, também não ignoramos, como referido, que os serviços de registo automóvel, integram os serviços da administração indirecta do Estado e sofreram desde o DL nº 54/75, de 12-02, várias alterações no sentido de se adaptarem às exigências da sociedade de informação, nas suas diversas vertentes, (com recurso crescente e predominante em todas as áreas a redes digitais de informação e com impacto também nos serviços da administração pública), à limitada duração e extrema mobilidade negocial inerente aos veículos automóveis, concretamente , o tratamento informático do registo de veículos, a grande simplicidade das soluções adoptadas, o recurso a informação na base de dados do IMTT, IP, etc, sem falar, da recente legislação publicada do intercâmbio internacional de informação sobre veículos na área criminal, o desapego às normas aplicáveis ao registo predial que tradicionalmente lhe têm servido de paradigma.
E não podemos ignorar que o Instituto dos Registos e do Notariado, I. P., abreviadamente designado por IRN, I.P., é um instituto público integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa (Decreto – Lei nº 148/2012, de 12-07) e tem por missão, entre outras “ executar e acompanhar as políticas relativas aos serviços de registo, tendo em vista assegurar a prestação de serviços aos cidadãos e às empresas no âmbito da identificação civil e do registo civil, de nacionalidade, predial, comercial, de bens móveis e de pessoas coletivas, bem como assegurar a regulação, controlo e fiscalização da atividade notarial.”
De resto, qualquer solução que se tome no caso dos autos não pode nunca ignorar que o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista segurança do comércio, que a lei admite o cancelamento oficioso do registo de propriedade no caso de ser comunicado à Conservatória do Registo Automóvel o cancelamento de matrícula e que essa comunicação é dispensada quando na sequência do pedido cancelamento do registo de propriedade os serviços do registo automóvel consultarem o sítio de Internet do IMTT.
Feitas estas considerações, e reportando-nos ao caso dos autos, entendemos que no caso, porque a recorrente, na sequência do pedido de cancelamento do registo de aquisição em vigor, nos termos ordenados na sentença, confirmou, por acesso à base de dados da entidade competente (IMTT, I.P.) que a matrícula se encontrava cancelada, deveria aproveitar essa informação e proceder ao cancelamento do registo de aquisição em vigor em nome da recorrida, irrelevando para o caso, as razões substanciais que presidiram ao pedido de cancelamento do registo de propriedade a favor da recorrida, sendo certo que a sentença assume um carácter de incontestabilidade que, nos próprios termos constitucionais (expressos no artigo 208.º, n.º 2 da Constituição) não pode ser posto ser posto em causa.
Ignorar essa informação relativa ao cancelamento da matrícula e querer obrigar a recorrida a instaurar um procedimento autónomo de cancelamento do registo de aquisição a seu favor com fundamento no artigo 47º, nº2 do RRA seria, no caso, continuar a manter registada uma aquisição que viola o princípio da legalidade a que está sujeita a actuação dos conservadores, aquisição essa que ab initio não deveria ter sido permitida.
E no que concerne ao argumento da recorrente no sentido desse cancelamento determinar a reposição do registo de propriedade anterior, a favor do réu D..., ficando assim este registo, a impender sobre matrícula cancelada, em violação do artigo 3º referido, falece esse argumento.
Como a recorrente aceita, confirmou junto do sítio da internet do IMIT que o anterior dono do veículo, D..., foi quem solicitou o cancelamento da matrícula.
Logo, porque a matrícula já se encontra cancelada e trata-se de um veículo sobre o qual já não impenderão ónus ou encargos, sempre se imporá o cancelamento oficioso desse registo de propriedade.
Esta solução é a única que permite colmatar a falha verificada a montante no sistema da administração indirecta do Estado, do qual faz parte integrante o IRN, IP, falha não imputável à recorrida, e é a única que é conforme com os fins de controlo e fiscalização da actividade ligada ao comércio jurídico de veículos automóveis.
Por último, no que concerne à omissão pelo Tribunal da junção da sentença sem nota de trânsito em julgado versus junção pela recorrente já com essa nota de trânsito mas apenas em sede de interposição de recurso, diremos o seguinte:
Estabelece o artigo 42º-A, do DL nº 55/75, de 12-02, sob a epígrafe” Suprimento de deficiências” 1 - Sempre que possível, as deficiências do processo de registo devem ser supridas oficiosamente com base nos documentos apresentados ou já existentes na conservatória ou por acesso directo à informação constante de bases de dados das entidades ou serviços da Administração Pública. 2 - Não sendo possível o suprimento das deficiências nos termos previstos no número anterior, o serviço de registo comunica este facto ao interessado por correio eletrónico, sempre que este forneça o respetivo endereço, ou por qualquer outro meio idóneo, para que, no prazo de cinco dias, proceda a tal suprimento, sob pena de o registo ser recusado. 3 - O registo não é recusado se as deficiências em causa respeitarem à omissão de documentos a emitir pelas entidades referidas no n.º 1 e a informação deles constante não puder ser obtida nos termos aí previstos, desde que o interessado tenha expressamente solicitado ao serviço de registo, pessoalmente ou por escrito, e no prazo referido no número anterior, que diligencie pela sua obtenção diretamente às entidades ou serviços da Administração Pública. 4 - [Revogado]. 5 - Das decisões tomadas no âmbito do suprimento de deficiências não cabe recurso hierárquico ou impugnação judicial. 6 - O suprimento de deficiências nos termos dos n.os 2 e 3 depende da entrega das quantias devidas.
Nesta parte, resulta dos autos que dos documentos que foram enviados pelo Tribunal para a Conservatória foi enviada cópia da sentença proferida não constando, no entanto, da certidão a nota de trânsito em julgado, cfr. fls. 46.
E como refere a sentença recorrida, “Não estamos, assim, perante um documento novo apenas junto em sede de interposição de recurso”
E, acolhendo a decisão recorrida nesta parte, também a nós se nos afigura que perante aquela falta de certificação do trânsito em julgado bastaria a notificação ao Tribunal para informar a data do trânsito em julgado, cfr. art. 42º A do D.L. 55/75, de 12 de fevereiro.
Aliás, a própria recorrente no ponto 14 das alegações refere: “14.A questão fulcral e que motivou a rejeição da apresentação, circunscreve-se ao facto de a matrícula do veículo se encontrar cancelada, tendo a falta de certificação do trânsito em julgado, como de tudo se infere, relevância subordinada, sendo deficiência a suprir, caso motivo de rejeição não houvesse e, em caso de não suprimento, constituiria motivo de recusa do registo, não de rejeição.”
Assim, não se tratava de uma deficiência insuprível do documento suscetível de integrar a recusa do registo nos termos do art. 49º alínea b) do Decreto n.º 55/75, de 12 de fevereiro.
Acresce que no caso, não se coloca, sequer, o perigo de violação do princípio da prioridade do registo, ínsito no artigo 6o do Código do Registo Predial (ver conclusão 5ª das alegações de recurso) no caso eventual, de ser apresentada a certidão do trânsito em julgado após a impugnação judicial, uma vez que por força do cancelamento da matrícula estão vedadas por lei novos registos.
Last, but not least, deve prevalecer a solução que privilegie a cooperação entre as Conservatórias do Registo Predial/ Autómovel/ Comercial, por um lado, e os Tribunais, por outro.
Em face das razões expostas, concluímos pela improcedência do recurso interposto.
Sumário .................................................... .................................................... .................................................... IV.DECISÃO:
Em face do exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pela recorrente confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Notifique.
Porto, 10-01-2019
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva
Teles de Menezes
____________
[1] Estabelece um regime transitório e excepcional, até ao dia 31 de Dezembro de 2008, para o cancelamento de matrículas de veículos que não disponham do certificado de destruição ou de desmantelamento qualificado.