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CONTRATO DE SUPRIMENTO
CONTRATO DE MÚTUO
CESSÃO DE QUOTA
TRANSMISSÃO DE DÍVIDA
Sumário
I - Como o contrato de suprimento exige o carácter de permanência do empréstimo feito pelo sócio à sociedade, ficando esta obrigada a restituir outro tanto, por falta desse elemento ou de qualquer dos índices legais do carácter de permanência, não constituem suprimentos as entregas em dinheiro feitas pela autora à sociedade para o funcionamento desta e com a vinculatividade desta o restituir. II - Tais entregas têm de ser enquadradas no contrato de mútuo, do qual emerge para a ré mutuária a idêntica obrigação de restituir o montante emprestado. III - A cessão de quotas não é, por regra, acompanhada da transmissão de quaisquer direitos de que o cedente seja titular, embora os sócios cedente e cessionário possam convencionar em sentido diverso. IV - Sendo a cessão de quotas omissa quanto aos créditos da autora sobre a sociedade demandada, sobre esta continua a pender a obrigação de restituir as quantias pecuniárias que lhe foram entregues.
Texto Integral
Processo 5211/17.7T8VNG.P1 Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 2
Acórdão
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório
B..., residente na Rua ..., ..., 2º Esq., ...-... PORTO, instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra a sociedade comercial “C..., L.da”, com sede na Rua ..., .., ....-... PORTO, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 21.052,90 euros.
Alegou, para tanto, que foi sócia e gerente da ré, à qual, entre setembro e outubro de 2015, fez vários empréstimos, no montante global de 21.052,90 euros, utilizados pela mesma para assegurar fluidez de caixa e para atender a despesas relativas ao seu funcionamento. Não tendo sido definida uma data concreta para o reembolso dos suprimentos, após a cessão de quotas solicitou à ré o pagamento, obtendo como resposta que nada lhe era devido.
A ré contestou, impugnando a existência dos suprimentos invocados pela autora. Concluiu, pedindo a condenação desta como litigante de má fé.
Respondendo, a autora manteve a sua posição inicial e pediu a condenação da ré como litigante de má fé.
Invocou a ré invocou a nulidade parcial da resposta apresentada pela autora, a qual foi julgada improcedente.
Proferido despacho saneador, foi identificado o objeto do litígio e foram enunciados os temas da prova, sem reclamação.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância das formalidades legais e foi proferida sentença que enjeitou a litigância de má fé das partes e emitiu o seguinte dispositivo: «Pelo exposto, julgo a presente acção procedente e, em consequência, condeno a ré a pagar à autora a quantia de 21.052,90 euros».
Inconformada, apelou a ré, assim concluindo a sua alegação (transcrição):
«I. A Apelante tem opinião diversa quanto à análise e ponderação da prova carreada aos autos e produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, entendendo dever resultar da mesma diferente decisão de facto, e de direito;
II. A sentença aqui em crise dá como não provado no elenco dos factos não provados os artigos 4º a 12º e 18º da contestação e os artigos 12º a 14º e 20º da resposta.”
III. Ora, com o devido respeito pela Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, tal segmento factual resulta provado, pelo menos no que à quantia de € 8.000,00 (oito mil) euros diz respeito.
IV. É a própria depoente que admite que recebeu metade do valor dos cheques que constam do elenco dos factos dados como provados na sua alínea i).
V. A própria sentença ora em crise na sua motivação afirma que a testemunha, referindo-se a D..., “ouviu conversas que davam conta da existência de dinheiro no banco que as sócias levantaram e dividiram por conta dos lucros...”
VI. Facilmente se verifica que os cheques supramencionados foram emitidos e levantados após a reunião a 10 de agosto, onde como a autora refere “...me inteirei como é que estava a contabilidade...”.
VII. O que demonstra falta de credibilidade na sua teoria que estaria a receber os valores a título de lucros, tendo ela pleno conhecimento que a empresa não tinha lucros para distribuir, pelo contrário, apresentava um resultado negativo.
VIII. Assim, e de acordo com o antes exposto sempre deverá ser aditado ao elenco dos factos provados um facto provado j) com a seguinte redação: A quantia de €16.000,00 referente ao somatório dos cheques elencados na alínea i) dos factos provados foi levantada pelas sócias.”
IX. Assim sendo deveria ter sido dado como provado parcialmente o facto que consta do nº 5 da contestação, com a redação supramencionada.
X. Bem como, deveria ter sido dado como provado, com base nos mesmos depoimentos, o artigo 13º da resposta.
XI. Devendo ser aditado ao elenco dos factos provados um facto provado k) com a seguinte redação “Tal quantia, foi de facto, levantada pelas sócias, ao balcão do banco sacado e tal quantia foi de imediato, cada vez, que ocorreu o levantamento de cada um desses quatro cheques, distribuída igualmente por ambas.”
XII. A sentença ora em crise na sua motivação afirma que “o documento de fls 10 a 11 verso- “Balancete analítico- contabilidade geral” - diz respeito ao mês de Janeiro de 2016 e não é elucidativo.
XIII. No entanto, a apelada na sua petição inicial requereu “a notificação da Técnica Oficial de Contas da Ré, G..., com domicílio na rua ..., nº.., ..., ....-... Vila Nova de Gaia para juntar aos autos balancete analítico do ano de 2016 e 2017”
XIV. Não tendo sequer o Tribunal a quo pronunciando-se sobre o requerido.
XV. A autora não provou que recebeu os montantes supramencionados a título de lucros.
XVI. Sindicados os factos que o Tribunal a quo considerou resultarem não provados e expostas as alterações que na óptica da apelante se impõe realizar de acordo com a prova carreada aos autos e produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
XVII. O tribunal a quo começa por se debruçar sobre a qualificação e caracterização do contrato de suprimento.
XVIII. Bem andou, pois, o Tribunal “a quo” ao considerar que “no caso em apreço, não é possível qualificar o acordo celebrado entre a autora e ré como um contrato de suprimento.”
XIX. Não sendo possível qualificar o acordo como um contrato de suprimento, todos o restantes direitos e obrigações fazem parte integrante da quota.
XX. Assim sendo, com a cessão de quotas celebrada “cuja cópia se encontra junta a fls. 7 a 9 verso e cujo teor se dá aqui por reproduzido” extraído da alínea c) dos factos dados como provados.
XXI. Na mesma a autora declara que “cede a sua quota no valor de € 2500,00 (dois mil e quinhentos euros) livre de quaisquer ónus ou encargos não sendo a mesma objecto de qualquer litígio de natureza judicial e/ou extrajudicial, à primeira outorgante, por preço igual ao seu valor nominal, já recebido, com todos os correspondentes direitos e obrigações inerentes à mesma”.
XXII. Assim sendo, com a cessão de quota a autora cedeu todos os direitos e obrigações a ela inerentes, incluindo quaisquer créditos a que tenha direito, nada tem a liquidar-lhe, mas sim, à sócia F..., pois que foi esta que ingressou na titularidade dos mesmos aquando da compra da referida quota.
XXIII. Porque em sede de sindicância da matéria de facto dada por não provada pelo Tribunal a quo se pugnou pela transição dos factos não provados para a matéria de facto provada a constar das alíneas j) e k).
XXIV. Tendo a Ré procedido ao pagamento parcial da quantia peticionada, à autora, ainda enquanto sócia, extingue-se a obrigação que sob si impendia a esse respeito.
XXV. Julgando-se procedente a excepção peremptória do pagamento.
XXVI. Por tudo quanto ficou exposto, deve este Venerando Tribunal proceder à alteração da matéria de facto conforme se requer e em consequência julgar procedente por verificada a excepção peremptória do pagamento e absolver a Ré, nesse montante alterando a decisão recorrida em conformidade.
XXVII. Bem como, julgar procedente que com a cessão a autora cedeu todos os direitos e obrigações a ela inerentes, incluindo quaisquer créditos a que tenha direito, à sócia F..., alterando a decisão recorrida em conformidade
Nestes termos, e nos melhores de direito que V. Exas mui doutamente suprirão, deverá ser julgado procedente o presente recurso alterando-se a sentença recorrida nos termos expostos assim se fazendo Inteira e Sã Justiça.»
Respondendo, a autora alegou, em síntese:
1. A análise da prova produzida e a sua ponderação tem por base o que os autos ofereceram como documentos e os depoimentos, incluindo o depoimento de parte, que não levou à confissão dos factos.
2. Também o depoimento da testemunha D... não permite a pretendida alteração da matéria de facto. Apenas ouviu conversas que davam conta da existência de dinheiro no banco que as sócias levantaram e dividiram por conta dos lucros e que a autora lhe transmitiu que ia receber o reembolso dos empréstimos depois da data da cessão de quotas, embora desconhecendo as datas em que tal deveria ocorrer.
3. A testemunha E... disse ter estado presente numa reunião, mas a questão da cessão de quotas não foi tema de debate.
4. A sentença efetuou adequada valoração da prova produzida e, atenta a matéria de facto provada, tem pleno acerto a qualificação jurídica operada.
5. Estando em causa um mútuo, ferido de nulidade por vício de forma, cabe à ré mutuária a restituição da quantia de 21.052.90 euros.
6. Ademais, a ré não logrou provar o invocado pagamento, pelo que deve manter-se a decisão recorrida.
II. Âmbito do recurso
Ressalvada a abordagem de questões de oficioso conhecimento, o objeto do recurso é balizado pelas conclusões da alegação do recorrente [artigos 635º e 639º do Código de Processo Civil, doravante denominado “CPC”]. Destarte, esta apelação impõe a apreciação de:
1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
2. Suprimentos/empréstimos à sociedade demandada;
3. Exceção perentória do pagamento.
III. Fundamentação 1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
A ré apelante discorda da falta de prova dos factos exarados nos artigos 4º a 12º e 18º da contestação e os artigos 12º a 14º e 20º da resposta, os quais apresentam a seguinte redação:
- da contestação
«4. Ao contrário do pretendido pela Autora, a Ré pagou integralmente os empréstimos feitos pela sócia.
5. A quantia de € 16.000,00 foi paga por cheques como se comprova pela junção de cópia dos mesmos – documentos nos 1 a 4, dados como reproduzidos.
6. A quantia remanescente foi paga em dinheiro no dia 8 de setembro de 2016.
7. Tendo a Autora recusado assinar os recibos de reembolso dos valores recebidos - documentos nos 5 e 6, dados como reproduzidos.
8. Até porque, a Autora recusou-se a ceder a sua quota à Sócia F..., enquanto a Sociedade não lhe pagasse os valores entregues a título de empréstimo.
9. A mesma exigiu que todos os montantes pagos, nessa data, o fossem em dinheiro.
10. Inclusive, a quantia que exigiu receber a mais como compensação por ceder a quota.
11. Na verdade, a Autora dificultou, ao máximo a sua saída da sociedade.
12. O único montante que foi pago por cheque foi o pagamento do valor nominal da quota cedida.
18. Como referido anteriormente, a Autora recusou-se a assinar quaisquer recibos de pagamento.»
- da resposta
«12. A quantia de €16.000,00 referida no Art.5 da Contestação, correspondente à soma dos valores dos cheques juntos na Contestação como documentos 1 a 4, não se destinou ao pagamento de empréstimos feito pela Autora à Ré.
13. Tal quantia foi, de facto, levantada pelas sócias, ao balcão do banco sacado e tal quantia foi de imediato, cada vez que ocorreu o levantamento de cada um desses quatro cheques, distribuída igualmente por ambas.
14. De facto, a Autora e a sua ex-sócia F... tinham acordado proceder à distribuição dessa quantia, a título de lucros, da sociedade, aqui Ré, o que fizeram, tendo cada uma recebido oito mil euros.
20. A Autora efetuou tais empréstimos no período entre finais de setembro e finais de outubro de 2015.»
Auditada a prova pessoal produzida, vejamos o que nos aporta. B..., autora, disse que lhe foi paga a quantia de 8.000,00 euros, correspondente a metade dos valores titulados pelos cheques datados de julho e agosto de 2016, «mas esses valores foram levantados a título de lucros da empresa» (…) «Foi a sócia que me disse que havia muito dinheiro no banco. Assim fiz, fui ao banco e levantámos o dinheiro para as duas. Achei estranho e pedi para ver a contabilidade, o que me foi negado por diversas vezes». Disse que, nesta altura, não se falava em cessão de quotas, mas houve uma reunião em agosto com reconhecimento dos suprimentos, pensando que a situação iria ser resolvida mais tarde. Afirmou que os cheques não foram para pagar a quantia que tinha entregue à sociedade: «Na reunião não me foram entregues nem balanço nem balancetes, só me foram dados mais tarde. (…) Eu fui surpreendida com a minha sócia a dizer-me que me comprava a minha quota». (…) «No dia 8 de setembro eu recebi um cheque de 2.500,00 euros relativos ao capital social, valor nominal. Na cessão de quotas a minha sócia disse que ia pagar o valor logo que pudesse». Disse nunca ter recebido o mail que lhe foi exibido, mas afirmou: «verbalmente, ficou combinado que me iriam pagar os suprimentos. Eu confiei na palavra da minha sócia. Também achei que a empresa precisava de algum tempo para pagar». (…) «Foi-me dito que, dentro de um mês dois meses no máximo me iria ser pago; eu aceitei, porque também achei que a empresa não tem esse dinheiro disponível de uma hora para a outra». Instada se no dia da cessão de quotas recebeu qualquer outro valor em dinheiro, respondeu negativamente. Mencionou: «Não havia assuntos pendentes nem houve acertos de contas, nem houve acordo nesse sentido». Referiu que entrou com o valor da maior parte das obras de adaptação: «uma primeira tranche de obras em outubro de 7.227,00 euros, uma segunda tranche em outubro de 9.540,00 euros e depois em novembro 2.830,00 euros (…). Em dezembro fizemos, eu e a minha sócia, mais um reforço de 1.500,00 euros para pagar a renda, tudo num total de 21.000 e tal euros, que consta depois de um balancete que foi fornecido pela contabilista. Eu assinei umas atas, mas as últimas não assinei». Instada se se recusou a assinar as atas, respondeu: «Eu tenho de ver as atas». Referiu que fazia depósitos na conta da empresa e outros pagava diretamente, sempre fornecendo os documentos para serem tratados pela contabilidade. Quando foram levantar o dinheiro foram as duas (sócias) ao banco e, logo lá, foi feita a divisão por ambas. Explicou que a sua conta de e-mail, que era da empresa, foi encerrada em agosto de 2016. Mais iterou que, em 08/09/2016, recebeu um cheque para pagamento do valor nominal da quota cedida – 2.500,00 euros. G..., contabilista que presta serviço à ré desde a constituição da sociedade, disse ser irmã da sócia F.... Falou da cessão de quotas, dizendo que a sócia F... lhe pediu dinheiro emprestado para comprar a quota à outra sócia: «Eu emprestei-lhe 20.000,00 euros e a minha cunhada, que estava na altura comigo em férias, disponibilizou-se a emprestar-lhe também 20.000,00 euros». Referiu que, em termos contabilísticos, a sócia F... continuou a atividade societária com as duas quotas. Explicou que a sociedade iniciou atividade, sem certeza, em novembro e foi instalada num talho, sendo as obras de adaptação feitas já depois de constituída a sociedade. Referiu que as entradas em dinheiro foram qualificadas como empréstimos dos sócios à sociedade. Em julho e agosto foram retiradas em dinheiro, como lhe foi dito pelas duas sócias, numa pequena reunião, por acordo de ambas, sem que houvesse dinheiro em caixa, mas a sócia que ficou colocou dinheiro em caixa. Disse ter elaborado a primeira ata e outras, mas não todas, tendo consigo o livro de atas durante algum tempo. Confrontada com a ata n.º 4, disse que foi elaborada pela sócia F..., tendo-a passado para o livro a pedido dela. Não foi consultada sobre a emissão dos cheques e, por isso, questionou as sócias: «não havia dinheiro em caixa, mas havia dinheiro no banco». Explicou que, em agosto, houve uma reunião com as duas sócias e, nessa altura, perguntou pela causa de emissão dos cheques, tendo as sócias dito que foi para entregar à sócia B... o valor correspondente no âmbito da cessão de quotas. Instada acerca da conciliação bancária, disse que terá sido feita por si, mas há apontamentos que não foram feitos por si. Na reunião de 20 de agosto teve a perceção de que a sócia B... já não tinha interesse na sociedade. Entretanto, foi de férias e pensa que a B... propôs à F... deixar a sociedade, porque as relações entre ambas estavam tensas. O valor da cessão de quotas foi de 60.000,00 euros, conforme lhe disse a irmã no telefonema que lhe fez quando lhe pediu dinheiro. Tanto ela como a cunhada fizeram transferências para a conta da irmã, que terá entregue o valor uns dias antes da cessão e, nessa data, tudo ficou liquidado. Nunca houve quaisquer conversas acerca de suprimentos, porque se, assim fosse, teria de o saber para efeitos contabilísticos. Confirmou que a sociedade não tinha lucros. D..., consultora imobiliária, disse conhecer a B..., por ter feito para ela alguns trabalhos no âmbito dos negócios que a mesma tem: «“Cheguei a prestar alguns serviços à sociedade ré, onde ajudava a vender bilhetes e atendia os clientes, entre março e, mais ou menos, julho de 2016». Referiu ter assistido a algumas conversas com as sócias, querendo a D. B... consultar a contabilidade e não lhe era apresentada. Começou a gerar-se mal-estar até que houve uma proposta da F... à B..., o que terá sucedido no verão. Afirmou: «A D. B... disse que recebeu apenas o valor da quota». Perguntada se a contabilista foi ouvida na negociação, disse que não foi, mas referiu que a D. G... esteve presente numa conversa sobre a contabilidade. As duas sócias já estavam desgastadas e a F... entendeu que o envio de carta registada a pedir a consulta da contabilidade representou uma desconfiança. Soube que as duas sócias foram ao banco levantar dinheiro, «porque havia dinheiro a mais e foram para dividir os lucros». Afirmou que a D. B... injetou na empresa cerca de 20.000,00 euros, segundo pensa em finais do ano de 2015, e «contratou um advogado para tratar dessa situação». O fecho da caixa era feito por uma ou por outra: «eu tanto fechei caixa com uma como com outra»; os documentos eram tratados pela F.... Confirmou a reunião de agosto entre as sócias e a D. G..., mas disse que nessa altura ainda não tinha ouvido falar na cessão de quotas. Referiu: «A D. B... e a D. F... foram ao banco para levantar um cheque de distribuição de lucros», o que soube por lhes ter ouvido essa conversa.«Eu ouvi dizer naquele dia que iam ao banco e saíram as duas». E..., contabilista de outras sociedades comerciais de que a autora é sócia. No âmbito da atividade da ré limitou-se a prestar assessoria numa reunião que teve lugar em agosto de 2016, para que a autora pudesse perceber a situação contabilística da empresa. Referiu que questionou o levantamento de lucros, porque o procedimento foi irregular, mas nada foi debatido acerca da cessão de quotas. As sócias disseram-lhe que dividiram esse valor entre si e receberam o dinheiro relativo aos lucros. H..., empregada de balcão que trabalha com a sócia F... mas no âmbito da atividade de uma outra empresa. Referiu ignorar os motivos da cessão de quotas da B.... Apercebeu-se de alguns desacordos, «mas isso é normal nesse tipo de trabalho». Disse que estava presente na papelaria quando a sócia F... pediu o dinheiro para a cessão de quotas. Acompanhou-a ao banco duas vezes: uma vez com a finalização de um negócio na loja – 10.500,00 euros; uma segunda vez, foram buscar ao banco 10.000,00 euros. Dinheiro que a F... disse ser para entregar à B..., tudo em dinheiro. Disse ter ideia destes factos terem ocorrido em agosto: «Pelas minhas contas foram cerca de 60.000,00 euros». Não viu qualquer entrega nem lá viu a D. B.... I..., professora, disse conhecer a F..., irmã da sua cunhada G..., mas não conhecer a D. B..., embora tivesse ouvido falar dela como sócia da F.... Referiu: «Soube porque eu estava em férias com a minha cunhada e a minha cunhada recebeu um telefonema da irmã… havia um problema que precisava urgentemente de ser resolvido. Foi aí que soube que havia um problema na sociedade… A única coisa que eu disse: Ok. Se eu puder ajudar. Emprestei 20.000,00 euros. Foi nos primeiros 10 dias de setembro... ali no dia 5/6. Fui à J... … e passei da minha conta para a conta da F...». Não acompanhou o negócio. Foi-lhe dito que o dinheiro se destinava a pagar à sócia que saiu da sociedade.
Correlacionando estes depoimentos com a posição das partes nos articulados e os documentos juntos aos autos, numa análise crítica global à luz das regras da lógica e da experiência comum, não nos parece que a ré tenha pago à autora a totalidade dos valores pecuniários que esta lhe emprestou para cobrir as despesas com as obras de adaptação do espaço. Tendo a ré admitido que a autora lhe entregou o valor global de 21.052,90 euros e que a sócia F... contribuiu com igual montante, foi dado por assente, e disso a recorrente não dissente, que aquele valor entrou no património da sociedade demandada. Aliás, o balancete analítico – contabilidade geral –, correspondente ao documento de fls. 10 a 11 verso, relativo ao mês de janeiro de 2016, inscreve os “adiantamentos por conta de lucros” no montante de 42.105,80 euros, efetuados pelas sócias F... e B... em igual proporção, ou seja, no valor de 21.052,90 euros cada uma. Vale por dizer que tal documento (fls. 403 e 404), anterior à cessão de quotas, que data de 08/09/2016, qualifica os valores agora pedidos pela autora como “adiantamentos por conta de lucros”. A autora defende a tese de que esse valor respeita a empréstimos e é alheio aos valores pecuniários que levantou da sociedade a título de lucros, mas a prova produzida não sustenta tal versão. Tudo o que as testemunhas narraram foi a partir das conversas havidas com uma ou outra sócia e, sendo verdade que a autora recebeu da ré a título de lucros, como alega, a a quantia de 8.000,00 euros (matéria que foi até por si aceita na resposta à contestação), parece-nos razoável admitir, à luz das regras da experiência comum que esse valor fosse para abater o montante dos contabilisticamente inscritos “adiantamentos por conta dos lucros”. É certo que a ré defende que os valores inscritos em todos os identificados cheques foram entregues à autora para pagamento da quantia agora pedida, mas não logrou fazer tal prova. Por um lado, os cheques estão, como teriam de estar, face ao contrato social, assinados pelas duas sócias, mas não identificam o beneficiário, o que corrobora a tese da autora de que tais valores foram levantados pelas duas como lucros e divididos por ambas. Posição que é confirmada pela contabilista da sociedade ré, a testemunha G..., que não foi previamente ouvida sobre a distribuição de lucros e que questionou junto delas o procedimento usado para aquele efeito. As regras da vida não ditam outro entendimento: não se compreende que, havendo empréstimos como “adiantamento por conta dos lucros” – conforme registo contabilístico e tese das duas sócias – as mesmas façam “levantamentos de lucros”, os dividam entre si e os desconsiderem na amortização dos empréstimos. E sendo os atos dos gerentes imputados à sociedade, admitimos, portanto, que a autora tenha recebido a quantia de 8.000,00 euros a imputar na amortização do empréstimo feito à ré, mas não há quaisquer elementos que comprovem o pagamento do remanescente, sobretudo quando as sócias estão desavindas e, no dia da cessão de quotas, a ré paga à autora, por cheque, o valor nominal da quota – 2.500,00 euros – e não paga o remanescente do empréstimo. Antes alega tê-lo feito em dinheiro, sem qualquer comprovativo, sob a adução de que a mesma se recusou a assinar recibos. Evidentemente que teria bastado que a ré, naquele cheque, incluísse o valor em dívida ou efetuasse transferência bancária ou outro meio de pagamento de que guardasse registo. Donde a nossa adesão às dúvidas expressas pela sentença recorrida quanto ao alegado pagamento em numerário no dia da cessão de quotas. Identicamente também não fez a ré qualquer prova de que a integralidade do montante dos cheques fosse entregue à autora, restando apenas o reconhecimento da autora de ter recebido 8.000,00 euros de lucros da empresa e que este tribunal entende corresponder, como ficou dito, a amortização dos “adiantamentos por conta dos lucros”. Nesta lógica, entendemos que está demonstrado, como pretende a recorrente, que a quantia de 16.000,00 euros referente ao somatório dos cheques elencados na alínea i) dos factos provados foi levantada pelas sócias, pelo que aditamos essa matéria sob a alínea l) dos factos provados.
Opõe a recorrente que, na sua petição inicial, requereu “a notificação da Técnica Oficial de Contas da Ré, G... para juntar aos autos balancete analítico do ano de 2016 e 2017, requerimento sobre o qual o tribunal se não pronunciou”. Cremos que esse documento não permitiria provar que a sócia F... entregou à autora a totalidade do valor pecuniário levantado da conta da ré, a título de lucros. Ainda assim, mesmo admitindo que essa omissão poderia constituir irregularidade com influência no exame ou na decisão da causa, sendo a ré a interessada na observância da requerida formalidade, cabia-lhe a arguição da correspondente nulidade (artigos 195º/1 e 197º do CPC). Não estando em causa uma nulidade principal, o prazo para a sua arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou quando deva presumir-se que dela teve conhecimento quando foi notificada para qualquer termo dele (artigos 198º e 199º/1 do CPC). Ora, a ré interveio por diversas vezes no processo e optou por silenciar a nulidade cometida, pelo que a mesma se encontra sanada, sem qualquer efeito ao nível da valoração da prova, ao contrário do que parece defender a recorrente.
Mais defende a recorrente que o preço acordado para a cessão da quota da autora foi de 60.000,00 euros, no que estava incluído o valor dos empréstimos da autora. Para tanto, depuseram as testemunhas G..., contabilista da ré e irmã da sócia F..., e I..., cunhada desta, que emprestaram àquela dinheiro para o efeito, cada uma 20.000,00 euros. Contudo, não obstante esta última testemunha ter falado na transferência bancária dessa importância pecuniária, não foi feita qualquer prova nesse sentido. Aliás, instadas se o dinheiro tinha sido efetivamente entregue pela sócia F... à autora, as mesmas referiram ignorá-lo. Posição que a testemunha H..., empregada de balcão de uma outra empresa de que é sócia a F..., quis confirmar, dizendo que estava presente na papelaria onde trabalha quando a sócia F... pediu o dinheiro para a cessão de quotas. Depois referiu que a acompanhou ao banco duas vezes: uma vez com a finalização de um negócio na loja, a mesma alcançou 10.500,00 euros; uma segunda vez, foram buscar ao banco 10.000,00 euros. Dinheiro que a F... disse ser para entregar à B..., tudo em dinheiro, afirmando, sem qualquer consistência: «Pelas minhas contas foram cerca de 60.000,00 euros», mas esclarecendo que não viu qualquer entrega à altora, nem a viu na empresa. Ora, estando envolvidas pessoas com atividades negociais, bem cientes dos meios de prova comummente exigidos, é de todo irrazoável e contraria as regras da vida que os pagamentos fossem feitos em dinheiro, mormente quando a contabilidade exige o respetivo suporte documental.
Por seu turno, o e-mail de 25 de agosto, enviado pela contabilista G... à autora, refere que os cheques se reportam a pagamento dos empréstimos conforme o combinado na reunião de 13 de agosto, e a ata n.º 4, datada de 30/09/2016, que menciona que os empréstimos da autora foram pagos com aqueles cheques. Só que tais documentos não exibem qualquer aceitação da autora e a ata foi até elaborada já depois da cessão da quota da autora e, naturalmente, sem a sua presença.
Em suma, alteramos a matéria de facto quanto ao pagamento pela ré da quantia de 8.000,00 euros, aditando aos factos provados as alíneas l) e m) com o seguinte teor:
«l) A quantia de 16.000,00 euros, referente ao somatório dos cheques elencados na alínea i) dos factos provados, foi levantada pelas duas sócias».
«m) Dessa quantia de 16.000,00 euros a ré entregou à autora o montante de 8.000,00 euros (oito mil euros) para amortização do valor referido em e)».
Todos os demais factos aduzidos pela recorrente não têm qualquer convincente sustentáculo na prova produzida.
2. Factos provados
a) A sociedade comercial ré “C..., Lda.” está matriculada na Conservatória do Registo Comercial com o NIPC ........., tendo por objeto atividades dos operadores turísticos, organização de feiras, exposições e outros eventos, venda e revenda de produtos de artesanato, comércio a retalho em estabelecimentos não especializados.
b) Foi constituída a 29 de setembro de 2015, com o capital de 5.000,00 euros, dividido em duas quotas, no valor nominal de 2.500,00 euros cada, uma titulada por F... e outra titulada por B..., as quais foram também designadas gerentes.
c) Por documento datado de 8 de setembro de 2016, denominado “Cessão de Quotas e Alteração do Pacto Social”, cuja cópia se encontra junta a fls. 7 a 9 verso e cujo teor se dá aqui por reproduzido, a autora declarou ceder a quota de que era titular no capital social da ré, no valor nominal de 2.500,00 euros, à sócia F..., por preço igual ao seu valor nominal, já recebido, e renunciar à gerência.
d) A transmissão referida na alínea anterior mostra-se registada desde 13 de setembro de 2016, o mesmo se verificando com o ato de renúncia à gerência (inscrição com a ap. 325).
e) A autora emprestou à ré, em diferentes momentos, quantias em dinheiro, no montante global de 21.052,90 euros, para atender a despesas relativas ao seu funcionamento, e que a mesma se obrigou a restituir-lhe.
f) Tais empréstimos não foram formalizados por escrito e não foi acordada data para o respetivo reembolso.
g) A autora enviou à ré a carta cuja cópia se encontra junta a fls. 12 e seguintes e cujo teor se dá aqui por reproduzido, datada de 25 de novembro de 2016, pedindo o reembolso da quantia referida na alínea e) no prazo máximo de 30 dias.
h) A ré recebeu tal carta e respondeu através da carta cuja cópia se encontra junta a fls. 13 verso e seguintes e cujo teor se dá aqui por reproduzido, datada de 27 de dezembro de 2016, informando-a de que nada tinha a pagar à mesma.
i) A ré emitiu os seguintes cheques:
- Cheque n.o ........., emitido a 4 de julho de 2016, no valor de 4.000,00 euros;
- Cheque n.o .........., emitido a 3 de agosto de 2016, no valor de 4.000,00 euros;
- Cheque n.o .........., emitido a 17 de agosto de 2016, no valor de 5.000,00 euros;
- Cheque n.o .........., emitido a 25 de agosto de 2016, no valor de 3.000,00 euros;
j) O preço referido na alínea c) foi pago através do cheque n.o 8247018327, datado de 8 de setembro de 2016.
l) A quantia de 16.000,00 euros, referente ao somatório dos cheques elencados na alínea i) dos factos provados, foi levantada pelas duas sócias [aditado pela Relação].
m) Dessa quantia de 16.000,00 euros a ré entregou à autora o montante de 8.000,00 euros (oito mil euros) para amortização do valor referido em e) [aditado pela Relação].
3. Subsunção jurídica dos factos
3.1. Suprimentos/empréstimos
A recorrente não contesta o enquadramento jurídico feito pela sentença recorrida, designadamente a rejeição da outorga de contratos de suprimento, mas entende que, «não sendo possível qualificar o acordo como um contrato de suprimento, todos o restantes direitos e obrigações fazem parte integrante da quota» e que «com a cessão de quota a autora cedeu todos os direitos e obrigações a ela inerentes, incluindo quaisquer créditos a que tenha direito, nada tem a liquidar-lhe, mas sim, à sócia F..., pois que foi esta que ingressou na titularidade dos mesmos aquando da compra da referida quota», assim se extinguindo a obrigação que sob si impendia a esse respeito.
De facto, a qualificação feita pelas partes em relação a um alegado negócio não é decisiva para a qualificação jurídica levada a cabo pelo julgador. Ela depende essencialmente do conteúdo negocial, das estipulações que as partes introduziram no negócio do que da denominação que estas lhe atribuem[1]. Nos termos do artigo 243º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), considera-se contrato de suprimento o contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, desde que o respetivo crédito fique tendo carácter de permanência. E constituem índices do carácter de permanência a estipulação de prazo de reembolso superior a um ano ou a não utilização da faculdade de reembolso pelo prazo de um ano.
Estes índices ou presunções legais de permanência são ilidíveis e o contrato de suprimento não exige qualquer forma especial e pode ser celebrado, salvo convenção em contrário, sem necessidade de prévia deliberação dos sócios (artigos 243º/6 e 244º/3 do CSC). Embora o contrato de suprimento tenha, na sua génese, a subcapitalização das sociedades por quotas e assuma muita importância no seu desenvolvimento social, ele não supõe uma situação de crise da sociedade, podendo justificar-se pela expansão da atividade social.
No caso, está demonstrado que a autora emprestou à ré, em diferentes momentos, quantias em dinheiro, no montante global de 21.052,90 euros, para atender a despesas relativas ao seu funcionamento, e que a mesma se obrigou a restituir-lho. Tais empréstimos não foram formalizados por escrito e não foi acordada data para o respetivo reembolso. Porém, em 25/11/2016, a autora enviou à ré a carta a pedir-lhe o reembolso dessa quantia no prazo máximo de 30 dias [alíneas e) a g) dos factos provados]. Não emerge destes factos o índice de permanência do crédito, porque não está apurada qualquer convenção para a restituição daquele montante, como ignoramos se a autora não utilizou a faculdade de reembolso pelo prazo de um ano. Sabemos apenas que foram feitos empréstimos por diversas vezes, decerto em data ulterior à constituição da sociedade, em 29/09/2015, e a autora só reclamou o seu reembolso em 25/11/2016, o que não permite inferir se a mesma os não reclamou no prazo de um ano. Portanto, desconhecendo as datas da constituição dos empréstimos, também não constitui índice do carácter de permanência a não utilização da faculdade de exigir o reembolso devido pela sociedade durante um ano, contado da constituição do crédito, quer não tenha sido estipulado prazo, quer tenha sido convencionado prazo inferior (artigo 243º/3 do CSC)[2].
Não obstante não ser exigida a forma escrita (artigo 243º/6 do CSC), a verdade é que os contratos de suprimento devem ter expressão contabilística na conta de suprimentos, o que aqui não sucedeu, sendo justificados contabilisticamente como “adiantamentos por conta dos lucros”. Esta conta – 263 –, segundo o Sistema de Normalização Contabilística (SNC) pertence ao ativo corrente, ao passo que os suprimentos efetuados pelos sócios devem ser inscritos na conta ... – Outros participantes - Suprimentos e outros mútuos –a qual pertence ao grupo de contas de financiamentos obtidos. Donde nos pareça que o próprio registo contabilístico dos empréstimos feitos pela autora exclui qualquer convenção a respeito da sua natureza de suprimentos. E, também por isso, bem andou a sentença recorrida ao enjeitar a qualificação de suprimentos atribuída pela autora às entregas em dinheiro que fez à sociedade demandada.
Em consequência, tal como decidiu a sentença recorrida, tais entregas em dinheiro integram contratos de mútuo, pois a tradição da coisa foi efetuada com intuito de a ré o usar e depois restituir outro do mesmo género, quantidade e qualidade. Digamos que os factos afeiçoam declarações de vontade nesse sentido e com intuito de celebrar o negócio com aquele fim. Com efeito, o contrato de mútuo configura-se, precisamente, como aquele em que alguém empresta a outrem dinheiro ou outra coisa fungível, ficando este obrigado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (artigo 1142º do Código Civil). Trata-se de um contrato bilateral ou sinalagmático, dele nascendo obrigações recíprocas para ambos contraentes, e oneroso, dele resultando um benefício para ambas as partes. Para o mutuante emerge a obrigação de entrega da coisa ou quantia pecuniária e para o mutuário o correlativo dever de restituir a quantia ou bem fungível em valor equivalente, do mesmo género e qualidade, ao que lhe foi entregue pelo mutuante. Daí a sua natureza de um contrato real, quoad constitutionem, que se perfetibiliza com a entrega da quantia ou da coisa ao mutuário para integrar a sua propriedade (artigo 1144º do Código Civil).
Todos estes elementos ressaltam dos factos provados, sem que esteja demonstrada a convenção de qualquer retribuição a favor do mutuante, mas a retribuição não constitui um traço definidor do mútuo.
Relativamente à forma, o mútuo é um contrato solene, cuja validade exige que as declarações de vontade expressas pelos contraentes sejam reduzidas a escrito (artigo 1143º do Código Civil, na redação dada pelo decreto-lei n.º 116/2008, de 4 de julho). Efetivamente, está normativizado que, sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de mútuo de valor superior a 25.000,00 euros só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a 2.500,00 euros se o for por documento assinado pelo mutuário. In casu, está provado que a autora emprestou à ré, em diferentes momentos, quantias em dinheiro, no montante global de 21.052,90 euros [alínea e) dos factos provados), o que parece afeiçoar várias declarações de vontade no sentido de tais empréstimos e com intuito de celebrar o negócio com aquele fim.
Para a fixação do sentido das declarações negociais, o intérprete deve atender à letra do negócio, às circunstâncias do tempo, lugar e outras que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como às negociações respetivas, à finalidade prática visada pelas partes, ao próprio tipo negocial, à lei, aos usos e costumes a ela associados, bem como ao comportamento posterior dos contraentes. Tais elementos e, particularmente, os factos provados levar-nos-iam a reputar a outorga de vários contratos, tal como alegou a autora, ao articular que efetuou vários empréstimos que ascendem à quantia total de 21.052,90 euros, sem, contudo, especificar se esteve em causa um único contrato com entregas parcelares da quantia acordada ou, antes, várias convenções (artigo 3º da petição inicial). Na contestação, aceitou a ré essa versão e a sentença partiu do pressuposto de um único contrato no valor global de 21.052,90 euros, afetado por vício de forma. Como a recorrente não questiona tal posição, adotamos essa solução, convocando a sanção da nulidade do contrato e as consequências legalmente impostas (artigos 220º, ex vi 1143º do Código Civil). Como a nulidade determina a restituição de tudo o que recebeu o mutuário, corroboramos, nesse concreto segmento, o acerto da sentença sindicada.
Não colhe o argumento da recorrente no sentido de que a cessão de quota pela autora à sócia F... integrou quaisquer créditos a que tenha direito, com a sequente extinção do seu direito a reclamar o valor do mútuo.
A cessão de quotas, como ato voluntário transmissivo da respetiva titularidade, não é, por regra, acompanhada da transmissão de quaisquer direitos de que o cedente seja titular (artigo 228º do CSC). A quota corresponde ao conjunto de direitos e deveres inerentes ao vínculo social e, embora o empréstimo feito à sociedade, esteja relacionado com ele, não integra a participação social e é dele cindível. Admitimos que as sócias cedente e cessionária pudessem ter convencionado no sentido da sua transmissão, mas acessão de quotas é completamente omissa quanto aos créditos da autora, nada permitindo extrair a conclusão de que a vontade das partes (cedente e cessionária) fosse a de transmitir simultaneamente a quota e esse crédito (fls. 366 a 368). Aliás, as partes não articularam factos reconduzíveis a essa proposição e, não havendo junção entre o património social e o património pessoal do sócio, que antes são dotados de plena autonomia jurídica, nunca esse argumento poderia fundar a extinção do crédito da autora/cedente sobre a sociedade. O que equivale a afirmar que a transmissão da quota da autora à sócia F... não acarreta, só por si, a transmissão do crédito daquela sobre a sociedade. Asociedade por quota tem personalidade jurídica, a qual não se confunde com a personalidade jurídica dos seus sócios, a significar que a personalidade jurídica de uma sociedade por quotas é distinta da personalidade jurídica dos titulares das suas quotas.
3.2. Pagamento
A recorrente, à semelhança da tese exposta na contestação, continua a defender que procedeu ao pagamento desse valor à autora, mas apenas resultou apurado que amortizou a quantia de 8.000,00 euros.
Consabido que o pagamento constitui matéria excetiva, cuja prova incumbe à ré (artigo 342º/2 do Código Civil), sobre ela recaem as desvantagens da falta de prova dessa sua alegação. Na verdade, o significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem compete a prova de um facto, mas em determinar como deve o tribunal decidir quando ocorre um non liquet em matéria probatória[3]. Medida em que damos parcial procedência à apelação e condenamos a ré a pagar à autora a quantia de 13.052,90 euros (21.052,90 – 8.000,00).
Regime de custas: As custas da ação e da apelação são suportadas por ambas as partes em função do vencimento (artigo 527º/1 do CPC).
IV. Dispositivo
Na defluência do expendido, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em dar parcial procedência à apelação e, consequentemente, em condenar a ré/recorrente, “C..., L.da”, a pagar à autora/recorrida, B..., a quantia de 13.052,90 euros (treze mil, cinquenta e dois euros, noventa cêntimos), no mais a absolvendo do pedido.
Custas da ação e da apelação a cargo de ambas as partes na proporção do decaimento.
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Porto, 15 de janeiro de 2019.
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
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[1] Rui Pinto Duarte, Tipicidade e Atipicidade dos Contratos, Almedina, pág. 65.
[2] Raul Ventura, Sociedades por Quotas, II Volume, Almedina, pág. 108.
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I Volume, Coimbra Editora, 4.ª ed. revista e atualizada, pág. 306.