SÓCIO GERENTE
SOCIEDADE POR QUOTAS
EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
Sumário

I - A qualidade de sócio gerente de uma sociedade por quotas não impede o reconhecimento da qualidade, também, de trabalhador, não vigorando aqui o impedimento estabelecido no art. 398º, n.º 1 do CSC para as sociedades anónimas.
II - Contudo, esse reconhecimento de um vinculo laboral depende sempre da demonstração de indícios relevantes de subordinação jurídica a outros gerentes ou a deliberações da gerência no seu todo, sendo o respectivo ónus de prova do autor.
III - O mero pagamento, pela sociedade, de um rendimento mensal não chega para se concluir, quer pela existência de um contrato de trabalho, quer pela existência de créditos por retribuições em atraso, subsídios de férias e/ou de natal (posto que estas prestações são inerentes a um contrato dequeles).

Texto Integral

Processo nº 12602/16.9T8PRT.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo do Trabalho do Porto - Juiz 3

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

1 – Relatório

A Autora B... intentou contra C..., Ld.ª, a presente ação declarativa, com processo comum, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia global de € 15.866,28, relativa a indemnização pela resolução com justa causa do contrato de trabalho e créditos laborais decorrentes do trabalho prestado em Março, Abril, alguns dias de Maio, Subsidio de Férias vencidas em Janeiro de 2016, e proporcionais das férias e subsídios de férias e de Natal.
Alegou, para tanto e em síntese, que: desde os 17 anos que trabalhou como empregada de balcão, para a sociedade Ré, pertença dos seus progenitores; posteriormente adquiriu, por sucessão, 20% da sociedade, mantendo, porém a qualidade de trabalhadora; em 2016 auferia o salário de € 650,00; a Ré deixou de cumprir o pagamento das retribuições, designadamente os salários de Março e Abril de 2016, pelo que a 11 de Maio de 2016 a Autora fez cessar a relação laboral com fundamento falta de pagamento daqueles salários.
Citada, veio a Ré contestar, impugnando relação laboral descrita pela Autora e alegando, ao invés, que desde as partilhas do acervo hereditário aberto por óbito dos pais da Autora todos os irmãos adquiriram a qualidade de sócios gerentes; tal situação, relativamente à Autora, só deixou de verificar-se do ponto de vista formal em janeiro de 2014, por renúncia; não obstante esta circunstancia a autora continuou a acompanhar diariamente o fecho da caixa os depósitos no Banco e controlava a documentação a remeter à contabilidade; a Autora nunca se encontrou com a Ré numa relação de dependência jurídica ou de subordinação, ao contrário agiu sempre com independência e autonomia, com poderes para, por si só obrigar a Ré; fundamenta o não pagamento das quantias peticionadas como contrapartidas das funções exercidas pela Autora em dificuldades económicas, pelo que exceciona a atuação em manifesto abuso de direito, quanto à resolução do contrato por justa causa, caso seja reconhecida a existência do contrato de trabalho. Conclui pela improcedência da ação-
A Autora respondeu mantendo, no essencial a alegação da petição inicial e concluindo nos mesmos termos.
Proferiu-se despacho saneador, com enunciação de questões e temas de prova e fixação do valor da causa em 15.866,28 euros.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento, finda a qual foi proferida sentença com a seguinte:
“Decisão
Nos termos legais e fatuais expostos, julgo a presente ação totalmente improcedente e, consequentemente, absolvo a Ré do pedido.
Custas a cargo da Ré.”
Não se conformando com o assim decidido, a Autora interpôs o presente recurso, alegando e formulando as seguintes:
..............................................
..............................................
..............................................
A Re/recorrida contra-alegou, nos termos que constam dos autos, formulando as seguintes:
..............................................
..............................................
..............................................

2 – Factos considerados

Foram os seguintes os factos considerados como provados na primeira instância:

A Ré, na sua atividade comercial, dedica-se à confeção, venda e distribuição de artigos de panificação e confeitaria, possuindo e explorando para o efeito um estabelecimento tipo “Pão Quente”, com a designação de D....

A Sociedade C..., Lda, foi criada e gerida pelos pais da Autora E... e F..., enquanto vivos.

Em 21 de Julho de 1995 morreu o sócio E....

A partir dessa data as duas quotas, que passaram a integrar o acervo hereditário da herança, foram inscritas, sem determinação de parte ou direito, a favor da totalidade dos herdeiros, sendo estes: F..., G..., H..., B..., I... e J....

Sendo que, em 12 de Abril de 2012, a Autora adquiriu, por sucessão, uma quota de 20%, daquela sociedade.

Desde 29 de Julho de 1999, que todos os sócios eram sócios gerentes, bastando a intervenção de qualquer um deles para obrigar a sociedade.

Desde os 17 anos que a Autora exerceu naquele estabelecimento, entre outras, as funções de empregada de balcão.

Em Janeiro de 2014, a Autora renunciou à gerência da sociedade Ré.

Não obstante, continuou a acompanhar o fecho do caixa, os depósitos no banco, bem como verificava pessoalmente toda a documenta relativa a despesas e receitas a enviar à contabilidade.
10º
Pelas funções exercidas naquela sociedade a Autora obtinha um rendimento mensal, que, em 2016, estava fixado em € 610,00.
11º
Valor com o qual fazia face às despesas inerentes ao seu sustento.
12º
Em Março de 2016 e Abril de 2016, a Autora não recebeu o rendimento mensal supra referido.
13º
De igual modo não recebeu quaisquer valores a título de subsídio de férias e de subsídio de Natal do ano de 2016.
14º
Com data de 11 de Maio de 2016, a Autora remeteu à Ré, que a recebeu, uma carta com o seguinte teor:
“(…)
Atendendo às atuais condições de trabalho de onde se destacam:
1. Dois meses de salário em atraso;
2. Subsídio de férias e de Natal (1/2) de 2014 e 2015 em atrasado;
Venho por esta forma, comunicar-lhes a resolução do meu contrato de trabalho com a empresa nos termos do art.º 349º, do Código do Trabalho, (…).”

3 – Objeto do recurso

Como é sabido e sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso – cfr. os arts. 635, nº 4, 639º, nºs 1 e 2, e 608º, nº 2 do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do art. 87º, nº 1, do Código de Processo do Trabalho. Sendo certo que naquelas conclusões, e mais uma vez sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso, não se podem suscitar questões que não tenham sido colocadas à apreciação do Tribunal recorrido e por ele efectivamente apreciadas – cfr. arts. 608º, nº 2, 627º, nº 1, e 635º, nº 4, este “a contrário”, do CPC.
Assim e no caso, atentas as conclusões supra transcritas, são as seguintes as questões a resolver:
- se entre a A. e a R. existiu um verdadeiro contrato de trabalho; e, caso a resposta seja afirmativa:
- se a A. tinha causa justificativa para a resolução do contrato de trabalho, com direito à indemnização e demais créditos laborais que peticiona.
..............................................
..............................................
..............................................

3.2 – Da existência (ou não) de um verdadeiro contrato de trabalho entre as partes

Esta questão é a questão de direito essencial e determinante para a decisão sobre os pedidos formulados.
Ora, cumpre observar que o início do exercício, em beneficio da Ré e por parta da Autora, das funções de “empregada de balcão” que esta pretende ver qualificadas como correspondendo a uma atividade laboral não ficou concretamente apurado, sabendo-se apenas que as exercia desde os 17 anos (idade que a própria A. situa em 1983); que em julho de 1995 adquiriu, em conjunto com os demais herdeiros, as duas quotas da sociedade Ré; que em 12/04/2012 adquiriu uma quota para si de 20%; e que desde julho de 1999 e até janeiro de 2014 era, não só sócia, mas também gerente.
Seja como for, para o que nos cumpre indagar, a definição legal, ao longo dos sucessivos regimes temporalmente aplicáveis, sobre o que é um contrato de trabalho não tem variado substancialmente, podendo dizer-se que, seja ao abrigo do Decreto-Lei nº 49408, de 24/11/1969 (art. 1º), seja ao abrigo do Código do Trabalho aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27/08 (art. 10º), seja ao abrigo do Código do Trabalho aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12/02 (art. 11ª), a existência de uma relação laboral implica sempre a prestação de uma atividade mediante retribuição e sob a autoridade de outrem.
Os elementos essenciais e constitutivos do contrato de trabalho são, assim, a subordinação económica e a subordinação jurídica, traduzindo-se o primeiro no facto de o trabalhador receber certa retribuição do dador de trabalho e o segundo no facto de o mesmo se encontrar na sua actividade sob as ordens, direcção e fiscalização do empregador.
Em rigor e posto que a retribuição também existe noutro tipo de contratos (máxime, o de prestação de serviços), até é a subordinação jurídica o elemento fundamental para se reconhecer da existência de um contrato de trabalho.
A propósito da definição de subordinação jurídica diz-nos Monteiro Fernandes que esta “consiste numa relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo contrato e das normas que o regem” – Direito do Trabalho, 13ªedição, página 136.
A subordinação jurídica, que assim é elemento constitutivo do contrato de trabalho, não existe no contrato de prestação de serviços, definido do art. 1154º do Cód. Civil. Neste, quem presta o serviço apenas se obriga, perante a contraparte, a proporcionar-lhe certo resultado, sendo livre e autónomo quanto aos meios e forma de o alcançar. A propósito, veja-se, entre outros, Galvão Telles, in B.M.J., nº 83, pág. 165, em que alude àquilo que se promete (um certo resultado ou uma actividade) para distinguir entre os dois tipos de contrato.
A jurisprudência e a doutrina têm apontado como índices da subordinação jurídica, para além do recebimento de ordens, os seguintes: a vinculação a um horário de trabalho; a actividade em local definido pelo empregador; a pertença dos instrumentos de trabalho e das “matérias primas” ao empregador – cfr., entre outros, Monteiro Fernandes, in Direito do Trabalho, 2ª ed., p. 144; Motta Veiga, Lições de Direito do Trabalho, 1995, página 356 e seguintes; e o Parecer da Procuradora da República 6/81 de 28.5.1981 no BMJ nº312, página 104.
Também Maria do Rosário Palma Ramalho se refere a tais indícios, aditando outros complementares: (…) “i) a titularidade dos meios de produção ou dos instrumentos de trabalho; ii) o local de trabalho; iii) o tempo de trabalho; iv) o modo de cálculo da remuneração; v) a assunção do risco da não produção dos resultados; vi) o facto de o trabalhador ter outros trabalhadores ao seu serviço; vii) a dependência económica do trabalhador; viii) o regime fiscal e o regime de segurança social a que o trabalhador se encontra adstrito; ix) a sujeição do trabalhador a ordens directas ou a simples instruções genéricas e o controlo directo da sua prestação pelo credor; x) a inserção do trabalhador na organização predisposta pelo credor e a sua sujeição às regras dessa organização” (…) – Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 3ª edição, páginas 43/44.
Com mais ou menos indícios, a verdade é que, invocando a A. a existência de um contrato de trabalho, como causa de pedir da acção (ou integrante dela), incumbe-lhe o ónus da prova dos factos constitutivos daquele tipo de contrato, designadamente a dita subordinação – cfr. art. 342º, nº 1, do Cód. Civil.
Ora, compulsados os factos apurados, afigura-se-nos que a A. não logrou demonstrar praticamente nenhum facto revelador de subordinação jurídica à R., seja quanto ao recebimento de ordens propriamente ditas por parte da da gerência da sociedade Ré, seja sequer quanto ao cumprimento de um horário pré-estabelecido. E mesmo o exercício das funções em local indicado pela gerência ou com instrumentos disponibilizados por esta não ficou concretamente demonstrado.
Acresce que, se essa insuficiência de indícios já era patente no que respeita ao período anterior à morte do gerente que era pai da A., desde a morte deste (em 21/07/1995) e com a circunstância de a A. se tornar (também) sócia da sociedade, os indícios ainda se tornam mais raros, praticamente desaparecendo desde 29/07/1999, altura a partir da qual “todos os sócios (incluindo a A.) eram sócios gerentes, bastando a intervenção de qualquer deles para obrigar a sociedade”.
Aliás, levanta-se aqui uma questão de princípio, qual seja a de saber se o gerente de um sociedade comercial, como foi o caso da A. até janeiro de 2017, pode ser trabalhador da mesma, ou seja, considerar-se vinculado a ela por um contrato de trabalho.
Trata-se de questão já debatida entre a jurisprudência e a doutrina – vd., por todos, a dissertação de mestrado de Carla Patrícia Jesus Soares, subordinada ao tema “A designação de administradores com contrato de trabalho: solução a (re)pensar?”, apresentada e publicada on line pela Fac. de Direito de Coimbra, 2014.
Fazendo um breve resenha das posições doutrinais nesta matéria, citaremos os seguintes autores:
Segundo LUÍS BRITO CORREIA, in "Os administradores de sociedades anónimas", 1993, página 575: "(…) o facto de o administrador representar a sociedade não significa que a sua pessoa se confunda juridicamente com a da sociedade: são pessoas distintas a sociedade e o administrador, podendo aquela ser representada também por outros administradores, ou pela vontade coletiva de vários administradores, em cuja formação o administrador - trabalhador pode não ter um voto decisivo ou até não votar de todo (…)”. Por outro lado, nota o mesmo autor, “a lei admite, em certas condições, o negócio consigo mesmo (C.C. artigo 261/II) (…)”. E, acrescenta, “há interesses atendíveis e razoáveis, quer da sociedade, quer do trabalhador, na cumulação das duas qualidades. A sociedade, pode ter interesse em aproveitar melhor as aptidões do seu trabalhador, promovendo-o a administrador, sem lhe provocar a perda dos benefícios resultantes da legislação do trabalho ou confiar a um administrador também funções técnicas especiais distintas das funções de administração, em posição de subordinação ao Conselho de Administração. O trabalhador, solicitado a exercer funções de administração, hesitará se isso implicar a perda das vantagens do estatuto de trabalhador subordinado, designadamente advenientes da sua antiguidade e da protecção contra a destituição sem justa causa”.
Já RAUL VENTURA sustentava "a impossibilidade de um indivíduo funcionar simultaneamente como administrador e trabalhador..." - in "Teoria da Relação Jurídica de Trabalho", 1944, volume I, página 299 – embora seja outra a posição agora exposta a páginas 35 e seguintes do volume III do seu "Comentário ao Código das Sociedade Comerciais - Sociedades por Quotas”, onde sustenta que "Na prática portuguesa existem numerosas pequenas sociedades por quotas em que o sócio gerente exerce funções que não competem aos gerentes: exemplos típicos são o do gerente que vende ao balcão ou trabalha na oficina, ou "está encarregado de ordenhar as vacas" como no caso do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Abril de 1986, acima citado: um preceito legal, que proibisse tal prática seria ridiculamente ineficaz (...)”.
INOCÊNCIO GALVÃO TELES, por seu turno, entendia que "... em relação a um administrador pode acontecer e acontece por vezes achar-se investido em funções especiais de natureza executiva, como a de director de serviço, que exerce subordinadamente ao Concelho de Administração, com uma remuneração própria, distinta da do administrador, caso em que está também vinculado por contrato de trabalho. Dá-se então como que um desdobramento de papéis: o de administrador, que concorre para a formação do órgão da sociedade, inserindo-se na estrutura desta, e o de prestador de trabalho subordinado da empresa" - in Dir., 104, 1972, página 336.
ABÍLIO NETO, por seu vez, comentava que "... não constando do nosso direito positivo (...) a expressa proibição de o gerente ou administrador acumular o exercício das suas funções específicas com as de trabalhador subordinado (v.q. director de determinado departamento da empresa) nada obstará, em princípio, à reunião na mesma pessoa dessa dupla qualidade, mormente quanto ao desempenho de uma e outra função esteja ligada a percepção de retribuições distintas e haja/uma qualquer subordinação ao órgão de gestão". - in "Direito do Trabalho" Separata B.M.J., 1979, página 167.
A nível legal e relativamente aos administradores das sociedades anónimas, o art. 398º, n.º 1 do CSC veio estabelece expressamente um obstáculo/impedimento ao estabelecimento e manutenção de relações laborais entre a sociedade e o administrador societário (titular de um órgão social com funções administrativas). Este obstáculo legal também se verifica quanto aos directores das cooperativas uma vez que, quer o CCoop aprovado pelo DL n.º 103/80 de 9 de Maio, quer o CCoop aprovado pela Lei n.º 51/96 de 7 de Setembro, (alterado pelos DL n.ºs 343/98 de 6 de Novembro, 131/99 de 21 de Abril, 108/01 de 6 de Abril e 204/2004 de 19 de Agosto) não regulam especificamente a matéria e eregem como direito subsidiário o direito comercial, nomeadamente a legislação referente a sociedades anónimas (art. 8º do CCoop de 1980) ou o CSC, nomeadamente os preceitos aplicáveis às sociedades anónimas (art. 9º do CCoop de 1996).
Relativamente a outros tipos de pessoas coletivas, entre as quais as sociedades por quotas (como é o caso da aqui R.), nada na lei obsta expressamente à constituição de um vínculo laboral entre a sociedade e um gerente. Mas tal vínculo, implicando como vimos subordinação jurídica, apenas se poderá formar se e na medida em que o trabalhador já tivesse um contrato de trabalho antes de ser nomeado gerente, continuando a desempenhar as mesmas funções e nos mesmos moldes; ou se e na medida em que seja contratado de entre não sócios e por outro ou outros gerentes designados no pacto social ou em assembleia de sócios – é, com efeito, sobretudo em relação aos gerentes não sócios que não tem sido afastada a possibilidade de qualificar o seu vínculo como laboral, como se alcança de acórdãos como o do Supremo Tribunal de Justiça de 25.02.1993, in CJ (STJ), 1993, tomo I, pág. 257, ou o acórdão da Relação de Lisboa de 13.07.1988, in CJ (STJ), 1988, tomo IV, pág. 150.
De facto, só em hipóteses como estas é configurável a coexistência, na mesma pessoa, da qualidade de trabalhador e gerente (contratado). E mesmo nos casos em que não concorre na mesma pessoa a qualidade de sócio e membro da pessoa colectiva, a titularidade da gerência tanto pode exercer-se na posição de trabalhador subordinado como na de mandatário, havendo que averiguar os termos em que o contrato foi celebrado e é executado para lhe conferir a qualificação, ou de contrato de trabalho, ou de mandato.
Em todos os restantes casos, de pessoa nomeada no pacto social como gerente de uma sociedade por quotas, designada como administradora de uma sociedade anónima ou eleita como tal pela respectiva assembleia geral (arts. 391º do CSC), ou eleita em assembleia geral como membro da direcção de uma cooperativa (arts. 46º do CCoop. de 1980 e 49º do CCoop. de 1996), que actua com autonomia e em representação da pessoa colectiva, não estão preenchidas, por princípio e natureza, as características do contrato de trabalho. De facto, é praticamente inconciliável com a subordinação jurídica que o contrato de trabalho supõe a actividade daqueles que não se apresentam normalmente adstritos às ordens de quem quer que seja, só tendo que prestar contas dos seus actos de gestão à própria sociedade cujos órgãos directivos integram, pelo que o vínculo entre a pessoa colectiva e o gestor (gerente, administrador ou director), que actua com autonomia, sem controle ou superintendência de outrem, e em representação da pessoa colectiva, a revestir alguma natureza contratual, só poderá ser a de um “mandato”, ainda que retribuído, ou, mais especificamente, de “contrato de administração” - neste sentido, vd., entre outros autores, Monteiro Fernandes, in Direito do Trabalho, 6ª ed., vol. I.
Como se refere, entre outros, no Acórdão do STJ de 30/09/2004, proc. 03S2053, in www.dgsi.pt.:
“X - Não pode afirmar-se que o autor exercia as suas funções de forma juridicamente subordinada provando-se que foi fundador da ré, que tomou decisões autónomas relativamente à gestão dos assuntos administrativos e comerciais da cooperativa (…).
XI - O facto de a partir de certa altura auferir da ré uma remuneração não tem qualquer relevo na medida em que, quer nas sociedades anónimas, quer nas cooperativas, os administradores são geralmente remunerados pelo seu exercício.
XII - A circunstância de o autor estar sujeito às deliberações da assembleia geral e às resoluções do órgão a que presidia não consubstancia o dever de obediência às ordens dadas pela entidade patronal, pois que estas resoluções e deliberações sempre obrigam todas e cada uma das pessoas que constituem o elemento pessoal do substrato de qualquer ente colectivo, porque representam a vontade deste através dos seus órgãos competentes para tal, pelo que o autor devia cumprir as deliberações da Assembleia Geral e proceder em conformidade com as decisões da Direcção, decisões em cujo processo formativo participava na qualidade de presidente deste órgão.”
Mas, enfim, seja por que prisma for, a solução cabal da questão não pode deixar de radicar na aferição da natureza do contrato de trabalho e do seu elemento mais distintivo e essencial que é, como vimos, a subordinação jurídica. Esta exige, por definição, a possibilidade de o trabalhador receber ordens, directivas ou instruções por parte de outrem que represente a entidade empregadora, seja um representante legal desta ou um superior hierárquico por ela designado.
Ora, no caso dos autos, nada revela um tal estado de sujeição por parte da A. à gerência ou administração da R. E não, diga-se, quer no período em que foi gerente – de julho de 1999 a janeiro de 2014 – quer mesmo no período anterior – em que nada demonstra que cumpria um horário pré-estabelecido pelos gerentes seus ou que cumpria outras ordens/instruções destes – quer ainda no período posterior – em que, não obstante a renuncia à gerência, continuou “a acompanhar o fecho do caixa, os depósitos no banco, bem como verificava pessoalmente toda a documentação relativa a despesas e receitas a enviar à contabilidade”.
Não vemos assim e face aos factos apurados, qualquer fundamento para reconhecer que, em algum momento da relação entre as partes (a A., como pessoa singular, e a R., como pessoa colectiva), se formou um vínculo laboral. Sendo da A., como vimos, o ónus da prova nesta matéria, temos de concluir pela não verificação da existência de um contrato de trabalho.
Até porque e ao invés, como salientou o Tribunal a quo - tendo em vista, pelo menos, a relação desenvolvida após a morte do gerente pai e até à altura em que a própria A. a fez cessar - “ do acervo fático provado resulta à saciedade a independência e insubordinação da Autora face à sociedade Ré, pois que era esta quem, juntamente com os irmãos, firmava a vontade da Ré, acompanhava o fecho do caixa, efetuava depósitos no banco e conferia a documentação a remeter ao contabilista”.

3.3 – Da existência (ou não) de causa justificativa para a resolução do contrato de trabalho, com direito à indemnização e demais créditos laborais que peticiona

Não tendo a A. logrado demonstrar, como era seu ónus, que entre ela e a sociedade Ré existia um contrato de trabalho, deixa de ser verificar a causa de pedir de todos os pedidos que formulava, pois que:
- só é resolúvel por justa causa e com direito à indemnização peticionada um contrato de trabalho – cfr. arts. 394º a 396º do CT; e
- os demais créditos reclamados, tendo-o sido a titulo de retribuições e subsídios de férias e de natal – ou seja, a titulo de prestações inerentes a um contrato de trabalho (cfr. arts. 258º, 263º e 264º do CT) – também só poderiam ser reconhecidos, no âmbito da jurisdição laboral, se fosse de reconhecer a existência de um contrato de trabalho.
Ainda que a A. auferisse um rendimento mensal da R., no valor de 600 euros no ano em que a A. pôs termo à relação existente, a verdade é que o não auferia, segundo o que se apurou, em virtude de um contrato de trabalho, podendo a A. ter direito aos rendimentos não pagos em março e abril de 2016 mas por virtude de outro contrato ou acordo e que, não sendo de trabalho, nem sequer poderia ser apreciado no âmbito da jurisdição laboral. Como concluiu o Tribunal a quo “Quanto aos valores não recebidos, fundamentam-se em negócio de diversa natural do laboral, não pode o Tribunal condenar a Ré no seu pagamento.Tem pois de improceder o pedido”.

4 – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a presente apelação, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela Autora/recorrente

Porto, 21/01/2019
Rui Ataíde de Araújo
Fernanda Soares
Domingos Morais