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COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO DA PARTE MAIS FRACA
Sumário
Por aplicação das disposições especiais dos artigos 11º nº 1 al. b) e artigo 13º nº 2 do Regulamento (EU) nº 1215/2012, o tribunal português é internacionalmente competente para julgar o litígio em que a autora, residente em Portugal, demanda a ré, companhia de seguros francesa (com representação em Portugal), pelos danos emergentes de acidente de viação ocorrido em França, com veículo segurado nesta última, por aplicação do princípio de proteção da parte mais fraca e por ser possível a ação direta em matéria de seguro de responsabilidade civil automóvel, nos termos do artigo 146º nº 1 do Decreto-Lei 72/2008, de 16/04 (Regime Jurídico do Contrato de Seguro).
Texto Integral
Acordam na 6ª Seção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
SI… instaurou acção declarativa comum contra a A… Limited – Sucursal em Portugal, com sede em Lisboa, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de 2.800,00€, alegando, para tanto, que, em 27.02.2017 e na A86, em Bagneux, França, ocorreu um acidente entre o seu veículo de passageiros, propriedade da autora, e o veículo de terceiro, que havia transferido a responsabilidade civil para uma seguradora francesa (da qual a ré será representante em Portugal).
Na contestação, além do mais, a ré invoca que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer da causa, dado que, em matéria extracontratual, a mesma deve ser julgada perante o tribunal onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso; no caso em apreço, o evento lesivo ocorreu em França.
Foi então proferido despacho que declarou a incompetência internacional do tribunal português para o conhecimento da causa, com a consequente absolvição da ré da instância, nos termos dos artigos 96.º, alínea a), 577.º, alínea a), e 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, e 576.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil.
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Não se conformando, a autora apresentou recurso de apelação, pugnando pela revogação da decisão recorrida com a consequente determinação do prosseguimento dos autos.
A apelante formula as seguintes conclusões das alegações de recurso:
« 1) Vem o presente recurso interposto da douta decisão do Tribunal a quo que considerou os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para conhecer da acção.
2) A base legal invocada pelo Tribunal a quo é o art. 7º, nº 2 do Regulamento (EU) 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Concelho, de 12 de Dezembro de 2012.
3) O objecto da acção é um pedido de indemnização formulado contra companhia de seguros com sede em França, por danos sofridos na sequência de acidente de viação ocorrido em França, mas cujos danos se fizeram repercutir em Portugal, onde a Autora, ora recorrente, reside, e para onde a viatura sinistrada foi rebocada após o acidente.
4) A companhia de seguros recorrida já assumiu a responsabilidade pela produção do acidente, pelo que na acção não estão em causa nem a responsabilidade pelos danos materiais nem a dinâmica do acidente, mas tão só outro tipo de danos advenientes em território português.
5) A matéria controvertida prende-se assim com a quantificação dos danos decorrentes da privação de uso do veículo bem como do valor comercial do veículo, já que se tratou de uma perda total.
6) O Tribunal a quo entende que ao caso deve aplicar-se o art. 7º, nº 2 do Regulamento (EU) 1215/2012, e estribando-se exclusivamente no conceito fechado de «facto danoso», concluiu pela incompetência internacional dos tribunais portugueses por considerar competente o «tribunal onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso».
7) A recorrente sustenta que devem ser aplicadas ao caso as normas conjugadas dos artigos 13º, nº 2 e 11º, nº 1, alínea b) do aludido Regulamento, por ter intentado a acção directamente contra o segurador e daí decorrer que a acção pode ser instaurada no lugar do domicílio do requerente.
8) Em termos sistemáticos, o Regulamento (EU) 1215/2012 contém no seu Capítulo II (Competência), entre outras, a Seção 2 (Competências especiais – arts. 7º a 9º), onde se integra a matéria extracontratual – art. 7º, nº 2 – e a Seção 3 (Competência em matéria de seguros – arts. 10º a 16º), onde se inclui a previsão de aplicação do art. 11º, nº 1, alínea b) às situações de acção intentada pelo lesado directamente contra o segurador, desde que tal acção direta seja possível.
9) A recorrente defende que não faz sentido o apelo às regras da Seção 2 daquele Regulamento, porquanto tratando-se de normas especiais que regulam matéria genérica extracontratual (art. 7º, nº 2), estas normas não se aplicam em matéria de seguros (Seção 3), contratos de consumo (Seção 4) ou contratos individuais de trabalho (Seção 5), por serem matérias especificamente contempladas no Regulamento.
10) Aliás, o facto do legislador europeu se referir a matéria de seguro em vez de contrato de seguro (contrariamente ao que fez em relação aos contratos de consumo ou contratos individuais de trabalho), evidencia que pretendeu incluir nesta Seção 3 todas as situações (contratuais e extracontratuais) desde que envolvessem seguros, designadamente aquelas em que o lesado, independentemente de não ter celebrado qualquer contrato com o segurador, intentou a acção directamente contra o segurador, nos casos em que tal acção é possível (face ao direito nacional do lesado).
11) A lei portuguesa permite a acção direta em matéria de seguro de responsabilidade civil automóvel (art. 146º, nº 1 do Decreto-Lei nº 72/2008 de 16 de Abril – Regime Jurídico do Contrato de Seguro).
12) Logo, nada obsta a que a acção seja instaurada na jurisdição portuguesa.
13) A jurisprudência dos tribunais superiores portugueses sobre esta matéria acima elencada acolhe maioritariamente a tese da ora recorrente.
14) A jurisprudência do Tribunal de Justiça é pacífica quando refere que a remissão do artigo 11º, nº 2 do Regulamento nº 44/2001 para o artigo 9º, nº 1, alínea b), deste diploma – a que corresponde actualmente a remissão do art. 13º, nº 2 para o art. 11º, nº 1, alínea b) ambos do Regulamento (EU) 1215/2012 – deve ser interpretada no sentido de que a pessoa lesada pode intentar uma acção directamente contra o segurador no tribunal do lugar em que tiver o seu domicílio num Estado-Membro, sempre que tal acção direta seja possível e o segurador esteja domiciliado no território de um Estado-Membro.
15) Em consequência, estão reunidos todos os pressupostos para se considerar internacionalmente competentes os tribunais portugueses para julgar a acção.
16) Pelo que deve a decisão do Tribunal a quo ser revogada, declarar-se que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes e ordenar-se o prosseguimento dos autos.»
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Foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão e improcedência do recurso.
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Obtidos os vistos legais, cumpre apreciar.
* Questões a decidir:
O objeto e o âmbito do recurso são delimitados pelas conclusões das alegações, nos termos do disposto no artigo 635º nº 4 do Código de Processo Civil. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Similarmente, não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Abrantes Geraldes, Recursos no N.C.P.C., 2017, Almedina, pág. 109).
Importa apreciar unicamente se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento, ao declarar a incompetência internacional do tribunal português com base no disposto no art. 7º, nº 2 do Regulamento (EU) 1215/2012?
* FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade processualmente adquirida com relevo para a decisão é a seguinte:
1 – No dia 27.02.2016, em Bagneux, França, ocorreu um acidente de viação entre o veículo ligeiro de passageiros pertencente à autora, que se encontrava estacionado, e o veículo ligeiro de passageiros propriedade de DR… e por este conduzido.
2 – A seguradora, com sede em França, assumiu a responsabilidade civil emergente do acidente de viação, no âmbito do contrato de seguro titulado através da apólice nº …
3 – As partes não chegaram a acordo quanto ao valor da indemnização a título de valor venal do veículo e de privação do uso do veículo.
4 – A autora tem o domicílio habitual em Portugal.
5 – A ré é a representante, em Portugal, da seguradora com sede em França.
* FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
a). Se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento, ao declarar a incompetência internacional do tribunal português com base no disposto no art. 7º, nº 2 do Regulamento (EU) 1215/2012?
Defende a apelante, em síntese, que devem ser aplicadas as normas conjugadas dos artigos 13º, nº 2 e 11º nº 1, alínea b) do aludido Regulamento, por ter intentado a acção directamente contra o segurador e a lei portuguesa permitir a acção direta em matéria de seguro de responsabilidade civil automóvel, nos termos do artigo 146º nº 1 do Decreto-Lei 72/2008, de 16/04 (Regime Jurídico do Contrato de Seguro).
A decisão recorrida é do seguinte teor:
«A autora SI…, instaurou a presente acção comum contra a ré A… Limited – Sucursal em Portugal, com sede em Lisboa, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de 2.800,00€, alegando, para tanto, que, em 27.02.2017 e na A86, em Bagneux, França, ocorreu um acidente entre o seu veículo de passageiros, propriedade da autora, e o veículo de terceiro, que havia transferido a responsabilidade civil para uma seguradora francesa (da qual a ré será representante em Portugal). A ré, na sua contestação, além do mais, alega que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer da presente causa, dado que, em matéria extracontratual, perante o tribunal onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso; no caso em apreço, o evento lesivo ocorreu em França. Estamos aqui perante a questão de saber se serão os Tribunais portugueses internacionalmente competentes para conhecer da presente causa. Considerando que a questão em causa foi, desde logo, aflorada pela autora na sua petição inicial e que a ré também abordou a mesma na sua contestação, ambas as partes já exerceram o respectivo contraditório. Vejamos. A incompetência internacional dos Tribunais portugueses é um caso de incompetência absoluta e configura uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, que importa a absolvição do réu da instância, nos termos do disposto nos artigos 96.º, alínea a), 577.º, alínea a), e 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, e 576.º, n.º 2, todos do Novo Código de Processo Civil. É sabido que um dos pressupostos processuais tem a ver com a competência do tribunal para julgar a causa que nele foi instaurada. A competência, em geral, deve ser aferida em função do pedido formulado pelo autor e dos fundamentos (causa de pedir) que o suportam, ou seja, de acordo com a relação jurídica tal como é configurada pelo autor1. Sendo a competência a medida de jurisdição de um tribunal, ele é competente para o julgamento de certa causa quando os critérios determinativos da competência lhe atribuírem uma medida de jurisdição que seja suficiente para essa apreciação2. A aferição do tribunal competente através desses critérios funciona como um factor de legitimação dos poderes de que esse tribunal se pode servir para apreciar a admissibilidade da acção, instrui-la e julgá-la. Quanto ao âmbito, a competência pode ser interna ou internacional - artigos 59.º e 60.º do Novo Código de Processo Civil. “A competência internacional, aquela aqui em causa, designa a fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros, para julgar as acções que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas internacionais”, tratando-se, no fundo, de “definir a jurisdição dos diferentes núcleos de tribunais dentro dos limites territoriais de cada Estado”3. Pode, assim, dizer-se que uma questão de competência internacional se suscita (ou pode suscitar-se) quando a causa, através de qualquer dos seus elementos, tem conexão com outra ordem jurídica, além da portuguesa. Desse modo, a competência internacional dos tribunais portugueses traduz-se na competência dos tribunais da ordem jurídica portuguesa para conhecer de situações que, apesar de possuírem, na perspectiva do ordenamento jurídico português, uma relação com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras, apresentam também uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa. Nesse âmbito e visando acautelar e abarcar tais situações, consagrou-se no artigo 59.º do Novo Código de Processo Civil, que “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses têm competência internacional quando se verifique algumas das circunstâncias mencionadas nos artigos 62.º e 63.º”. O artigo 62.º dispõe que: Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes: a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa; b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram; c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real. O artigo 63.º estabelece que: Os tribunais portugueses são exclusivamente competentes: a) Em matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis situados em território português; todavia, em matéria de contratos de arrendamento de imóveis celebrados para uso pessoal temporário por um período máximo de seis meses consecutivos, são igualmente competentes os tribunais do Estado membro da União Europeia onde o requerido tiver domicílio, desde que o arrendatário seja uma pessoa singular e o proprietário e o arrendatário tenham domicílio no mesmo Estado membro; b) Em matéria de validade da constituição ou de dissolução de sociedades ou de outras pessoas colectivas que tenham a sua sede em Portugal, bem como em matéria de validade das decisões dos seus órgãos; para determinar essa sede, o tribunal português aplica as suas regras de direito internacional privado; c) Em matéria de validade de inscrições em registos públicos conservados em Portugal; d) Em matéria de execuções sobre imóveis situados em território português; e) Em matéria de insolvência ou de revitalização de pessoas domiciliadas em Portugal ou de pessoas colectivas ou sociedades cuja sede esteja situada em território português. (no qual se enunciam situações que se apresentam em conexão com o nosso território e susceptíveis de, em geral, determinar a competência internacional dos tribunais portugueses). Aos tribunais portugueses cabe, assim, aferir a sua própria competência internacional, de acordo com as regras de competência internacional vigentes entre nós. Todavia, essas regras não são apenas as que constam do Código de Processo Civil. Sobre estas prevalecem as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas, enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português, bem como as que se inserem em regulamentos comunitários e leis especiais. Isso decorre não só do próprio texto constitucional (artigo 8.º da CRP), como do artigo 59.º do Novo Código de Processo Civil, que expressamente esclarece que as circunstâncias de atribuição de competência internacional não podem prejudicar ou contrariar o que se ache estabelecido em regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais. No caso, estamos perante uma acção instaurada por uma autora com residência em Portugal contra uma ré, com sede também em Portugal, representante de uma seguradora com sede também em França Contudo, o litígio que suporta a acção apresenta elementos de conexão com a nossa ordem jurídica (sede das partes) e com a ordem jurídica francesa como, por exemplo, quanto ao lugar da ocorrência do acidente e dos danos que desencadearam a causa de pedir desta acção, que terão ocorrido em França. Estaremos, assim, perante um litígio privado internacional, sendo que a competência do estado do foro competente para o julgar terá que ser encontrada à luz do que dispõe o Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12/12/2012, que veio substituir o Regulamento (CE) n.º 44/2001 (que veio substituir entre os Estados Membros (com excepção da Dinamarca) a Convenção de Bruxelas de 1968). – que doravante designaremos somente por Regulamento. Este último regulamento é relativo à competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial, que entrou em vigor em 01.03.20024, sendo obrigatório e directamente aplicável a todos os Estados Membros – entre os quais se figuram, como é sabido, Portugal e França -, aplicando-se a todas as acções instauradas a partir daquela data em que entrou em vigor - cfr. artigos 249.º do Tratado da Comunidade Europeia, e 1.º, 66.º, 68.º e 76.º do Regulamento. Assim, sempre que um caso cai no âmbito da sua aplicação tal Regulamento as suas normas prevalecem sobre as normas de direito interno que regulam a competência internacional, numa afirmação do primado do direito comunitário sobre o direito nacional e da aplicabilidade directa. Desta feita, será à luz das regras estatuídas nesse Regulamento, e só delas, que deverá ser averiguado se os tribunais portugueses são ou não internacionalmente competentes para conhecer da acção que neles foi interposta. O âmbito de aplicação do Regulamento n.º 1215/2012 (e à semelhança do que sucedia com o Regulamento n.º 44/2001) é delimitado em função da matéria civil e comercial - artigo 1.º - e dos sujeitos, por ser aplicável, em princípio, quando o réu tenha domicílio ou sede num dos Estados-Membros, sendo irrelevante a nacionalidade da parte - cfr. artigos 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1. O artigo 4.º, n.º 1, do Regulamento consagra que: Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro. O artigo 5.º dispõe que: 1 - As pessoas domiciliadas num Estado-Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo. 2 - Em especial, as regras de competência nacionais notificadas pelos Estados-Membros à Comissão nos termos do artigo 76.º, n.º 1, alínea a), não se aplicam às pessoas a que se refere o n.º 1. Da conjugação de tais normativos, resulta que o legislador comunitário estabeleceu, em matéria de competência internacional, um critério geral e critérios especiais. Como critério geral, o legislador comunitário elegeu, desde logo, o domicílio do demandado (localizado num dos Estados-Membros) como factor de conexão relevante para determinação da competência internacional (à semelhança do que já sucedia aquando da Convenção de Bruxelas e no Regulamento n.º 44/2001). Significa tal que sobre a competência (internacional) directa para as acções declarativas, o Regulamento estabelece como critério geral o do domicílio do demandado, sendo, por isso, competente, como regra, o tribunal do domicílio do réu (artigo 5.º, n.º 1). Porém, esse critério, por força do estatuído no citado artigo 3.º, n.º 1, não é absoluto, pois com ele concorrem os critérios especiais de competência, previstos nas secções 2.ª a 7.ª do Capítulo II, o que permite concluir poder o autor escolher qualquer dos tribunais determinados pela aplicação de ambos os critérios (gerais e especiais). Ou seja, se o réu estiver domiciliado num Estado-Membro, pode ser demandado tanto no tribunal desse Estado, como nos tribunais de um outro Estado-Membro, em caso de verificação de alguns dos factores de conexão definidos ou previstos nos artigos 5.º a 24.º do Regulamento (os quais se encontram inseridos nas já referidas secções 2.ª a 7.ª do seu Capítulo II). No que ora importa e quanto às competências especiais, está previsto na Secção 2, artigo 7.º que: As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro: (…) 2) Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso; Tanto a autora como a ré têm o seu domicílio no nosso país, sendo indiscutível que a presente acção tem natureza civil e que a mesma foi instaurada depois da entrada em vigor do Regulamento, sendo assim (como supra já deixámos expresso) este aqui aplicável e sendo exclusivamente à sua luz que a problemática da resolução de saber qual o tribunal que internacionalmente é competente para julgar a referida acção terá que ser aferida. Já atrás vimos que à luz de tal Regulamento, e fora dos casos de competência exclusiva (cfr. artigo 22.º) – que no caso não ocorre -, a ré poderá ser demandada indistintamente em qualquer um dos tribunais cuja competência (internacional) resulte da aplicação quer do critério geral, quer de alguns dos critérios especiais previstos nas secções 2.ª a 7.ª (artigos 5.º a 24.º, excluído o tal artigo 22.º da competência exclusiva). Pelo critério geral (inserto no artigo 2.º, n.º 1), do domicílio do demandado, seria competente o foro português, já que é em Portugal que a ré tem o seu domicílio. Viremo-nos, agora, para os critérios especiais, previstos também no Regulamento. Parece ser claro que, à luz dos fundamentos da acção, nos encontramos perante um caso de responsabilidade civil extracontratual (por factos ilícitos), sendo com base nela que a autora fundamenta a razão de ser da sua pretensão indemnizatória aí formulada. Sendo, assim, após o artigo 7.º começar por estatuir que uma pessoa, com domicílio em território de um Estado-Membro, poderá também ser demandada noutro Estado-Membro, dispõe depois no seu n.º 2 que, em matéria extracontratual, essa demanda deverá ocorrer no “tribunal onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”. Tal critério especial de competência é particularmente justificado pela proximidade do foro do lugar onde ocorreu o facto danoso relativamente às provas e pela coincidência entre este foro e o direito aplicável à responsabilidade extracontratual. Ora, “o facto danoso” deve ser entendido como o facto ou evento que desencadeou ou causou o dano, ou seja, que esteve na origem dos danos e gerador, portanto, da responsabilidade civil extracontratual, e que está normalmente associado a um facto dominável ou controlável pela vontade humana, pelo que o tribunal competente é aquele do lugar onde esse facto ocorreu. Nesse sentido, cfr., por todos, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 01.06.2004 e de 19.12.2000, respectivamente, in “CJ, Ano XXIX, T3 – 21” e in “Agravo de 19/12/2000. Face ao exposto, não resta concluir que os Tribunais portugueses são internacionalmente imcompetentes para o conhecimento da presente causa. * A incompetência internacional dos Tribunais portugueses é um caso de incompetência absoluta e configura uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, que importa a absolvição do réu da instância, nos termos do disposto nos artigos 96.º, alínea a), 577.º, alínea a), e 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, e 576.º, n.º 2, todos do Novo Código de Processo Civil. Custas pela Autora. Registe e Notifique. »
O Regulamento (CE) 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12.2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, manteve no essencial a disciplina do Regulamento (CE) 44/2001, de 22.12.2000, que veio substituir, introduzindo porém disposições destinadas a facilitar o acesso à justiça, nomeadamente, para unificar as regras de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial e a fim de garantir o reconhecimento e a execução rápidos e simples das decisões proferidas num dado Estado-Membro, quando tal seja necessário para o bom funcionamento do mercado interno (cfr. Considerandos (3) a (5)).
As partes não divergem quanto à aplicabilidade direta do Regulamento à situação dos autos, em que a lesada portuguesa demanda companhia de seguros francesa, com sucursal em Portugal, pelos danos emergentes de acidente de viação ocorrido em França com veículo segurado nesta última.
Na perspectiva da recorrente, os danos fizeram-se repercutir em Portugal, onde a mesma reside, e não faz sentido o apelo às regras da Seção 2 do Regulamento, por se tratarem de normas que regulam matéria genérica extracontratual (art. 7º, nº 2), que não se aplicam em matéria de seguros (Seção 3), contratos de consumo (Seção 4) ou contrato de individuais de trabalho (Seção 5), por serem matérias especificamente contempladas no diploma.
Em termos gerais, o citado Regulamento estabelece no artigo 4º que: “sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro.”
No entanto, o artigo seguinte (5º) refere que:
“1 - As pessoas domiciliadas num Estado-Membro só podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo”.
Por consequência, é fixado um critério especial no artigo 7º nº 2 (seção 2) do Regulamento de que:
“Artigo 7º nº 2: As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser
demandadas noutro Estado-Membro: (…) Em matéria extracontratual, perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso”.
Paralelamente, em matéria de seguros, a seção 3 do Regulamento estabelece igualmente critérios especiais de competência, designadamente, no:
Artigo 11º nº 1: O segurador domiciliado no território de um Estado-Membro pode ser demandado:
a) Nos tribunais do Estado-Membro em que tiver domicílio;
b) Noutro Estado-Membro, em caso de ações intentadas pelo tomador de seguro, o segurado ou um beneficiário, no tribunal do lugar em que o requerente tiver o seu domicílio; ou
c) Tratando-se de um cossegurador, no tribunal de um Estado-Membro onde tiver sido intentada ação contra o segurador principal.
E no Artigo 12º: O segurador pode também ser demandado no tribunal do lugar onde o facto danoso ocorreu quando se trate de um seguro de responsabilidade civil ou de um seguro que tenha por objeto bens imóveis. Aplica-se a mesma regra caso se trate de um seguro que incida simultaneamente sobre bens móveis e imóveis cobertos pela mesma apólice e atingidos pelo mesmo sinistro.
Entendendo-se como facto danoso, tal como é referido na decisão recorrida, como sendo “ o facto ou evento que desencadeou ou causou o dano, ou seja, que esteve na origem dos danos e gerador, portanto, da responsabilidade civil extracontratual, e que está normalmente associado a um facto dominável ou controlável pela vontade humana, pelo que o tribunal competente é aquele do lugar onde esse facto ocorreu”, no caso sub judice, o facto danoso consubstancia-se na eclosão do sinistro.
Por sua vez, o sinistro (que é o facto que esteva na origem dos danos) ocorreu em França.
A presente ação tem indiscutivelmente natureza civil e funda-se na responsabilidade civil extracontratual, transferida para a ré seguradora através de contrato de seguro.
No que «respeita a repartição da competência internacional, o regime instituído pelo Regulamento estrutura-se em torno de cinco princípios fundamentais: a proteção das pessoas domiciliadas nos Estados membros, a proximidade ou forum conveniens, a proteção da parte mais fraca na relação jurídica, a soberania estadual e a autonomia da vontade» (Dário Moura Vicente, no estudo “Competência Judiciária e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras no Regulamento (CE) nº 44/2001», publicado na revista Sciencia Iuridica, nº 293, pág. 360).
Assim, o critério de conexão fundamental adotado pelo Regulamento em matéria de competência internacional é o domicílio do réu (artigo 2º do Reg. Nº 44/2001, que corresponde ao artigo 4º do Reg. 1215/2012), visando-se poupar ao réu as dificuldades inerentes à condução da sua defesa perante um tribunal estrangeiro (obra citada, pág. 360).
Cumulativamente, no Considerando (16) é estabelecido que «O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele. Este elemento é especialmente importante nos litígios relativos a obrigações extracontratuais decorrentes de violações da privacidade e de direitos de personalidade, incluindo a difamação.
E no Considerando (18) que: «No respeitante aos contratos de seguro, de consumo e de trabalho, é conveniente proteger a parte mais fraca por meio de regras de competência mais favoráveis aos seus interesses do que a regra geral.» No Considerando (19): «A autonomia das partes num contrato que não seja de seguro, de consumo ou de trabalho quanto à escolha do tribunal competente, no caso de apenas ser permitida uma autonomia limitada de escolha do tribunal, deverá ser respeitada sem prejuízo das competências exclusivas definidas pelo presente Regulamento.»
Na situação presente, a autora residente em Portugal demanda companhia de seguros, com sede em França, pelos danos emergentes de acidente de viação ocorrido em França, sendo a ré representante no nosso país da seguradora.
De acordo com (i) o critério especial fixado no artigo 11º, a ré seguradora pode ser demandada no tribunal do Estado-Membro em que tiver domicílio (nº 1 alínea a), ou noutro Estado-Membro, no tribunal do lugar em que o requerente tiver o seu domicílio (nº 1 alínea b), em ações intentadas pelo tomador de seguro, o segurado ou um beneficiário, ou (ii) seguindo o critério especial fixado no artigo 12º, quando se trata de um seguro de responsabilidade civil, pode ser demandada no tribunal do lugar onde o facto danoso ocorreu.
Por seu turno, (iii), o artigo 13º determina a aplicação das disposições dos artigos 10º, 11º e 12º no caso de ação intentada pelo lesado diretamente contra o segurador, desde que tal ação direta seja possível.
A autora não é beneficiária do seguro, para os efeitos previstos no artigo 11º nº 1 al. b) do Regulamento (EU) nº 1215/2012, de 12/12, mas assume a qualidade de lesado (aderindo ao entendimento perfilhado no Acórdão do S.T.J. de 03.03.2005, disponível no sítio do IGFEJ).
Consequentemente, a autora enquanto pessoa lesada em litígio que a opõe a uma seguradora, que é demandada precisamente por causa de contrato de seguro, dispõe de diversos foros alternativos, podendo optar pelo tribunal que for mais favorável aos seus interesses, de acordo com o princípio de proteção da parte mais fraca (consagrado no já citado Considerando 18), e desde que a ação direta seja possível, o que sucede na situação presente (artigo 146º nº 1 do Decreto-Lei nº 72/2008, contendo o Regime Jurídico do Contrato de Seguro).
No mesmo sentido, já se pronunciou o Acórdão da Relação do Porto de 09.05.2013, relativamente a um litígio que opunha o lesado residente em Portugal, vítima de um acidente ocorrido em Espanha, à ré seguradora, sedeada em França, com representação em Portugal, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.10.2009 (ambos disponíveis no sítio do IGFEJ), relativamente a litígio em que uma empresa portuguesa demanda companhia de seguros francesa, pelos danos emergentes de acidente de viação ocorrido em França, com veículo segurado nesta última.
Similarmente, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, conforme se dá conta no Acórdão de 31.01.2018 (disponível no mesmo sítio), proferido no âmbito de um pedido de reenvio prejudicial, e estabelecendo além do mais que «o artigo 11º, nº 1, alínea b), e o artigo 13º, nº 2, do Regulamento nº 1215/2012 retomam, no essencial, as redações respetivas do artigo 9º, nº 1, alínea b), e do artigo 11º, nº 2, do Regulamento nº 44/2001» (por referência aos acórdãos de 21 de maio de 2015, CDC Hydrogen Peroxide, C-352/13, EU:C:2015:335, n.o 60, e de 21 de janeiro de 2016, SOVAG, C-521/14, EU:C:2016:41, nº 43).
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Por conseguinte, e acolhendo as pretensões da apelante, conclui-se que o tribunal português é competente internacionalmente para conhecer do presente litígio.
* DECISÃO
Em face do exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso, pelo que revoga-se a decisão recorrida, declarando o tribunal competente em razão da nacionalidade e determinando o prosseguimento dos autos.