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QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
ADVOGADO
Sumário
Se a prevalência do segredo ou do dever de cooperação com a justiça depende da conclusão a que, em concreto, se chegue quanto ao interesse dominante, afigura-se-nos que tal interesse predominante é, no caso, o dever de manter sigilo sobre a relação havida entre a testemunha, enquanto advogado, e o arguido, enquanto cliente, pois caso assim se não entenda estar-se-á a minar o grau de confiança próprio da relação cliente/advogado em prol do esmiuçar e concretizar uma prova que já se mostra suficientemente carreada para os autos.
Se a violação daquele dever de sigilo pode fazer incorrer o advogado infractor em responsabilidade disciplinar conforme estabelece o artigo 115 do seu Estatuto, por outro lado, também, não tem um carácter absoluto e assim, pode, em casos especiais ou excepcionais, o Sr. Advogado ser dispensado do respectivo sigilo e prestar as informações desejadas.
Esta decisão compete, no caso de dúvida sobre a legitimidade da recusa, aos Tribunais- no caso ao Tribunal da 2a. Instância.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa.
I–Relatório:
Nos autos de processo …/…, pendentes no Juízo de Instrução Criminal de Cascais – J1-, Comarca de Lisboa Oeste, em que se investigam factos susceptíveis de integrar a prática de crime de falsificação de documento, a Srª. Juíza titular, perante a recusa da Ordem dos Advogados sobre o pedido de levantamento do sigilo profissional do Srº Advogado FM…, a fim de o mesmo prestar depoimento como testemunha, solicitou a este Tribunal que decida sobre a quebra de sigilo, ao abrigo do disposto no n°. 3 do artigo 135 do C.P.P.
Pedido este fundado no despacho que a seguir se transcreve na parte relevante: "Veio o Ministério Público requerer que seja decretado o levantamento do sigilo profissional de Senhor Advogado dado que tal se mostra necessário à prossecução das investigações pela prática de crime de falsificação de documento. O segredo imposto aos senhores advogados é uma forma de segredo profissional, sendo a sua violação ilegítima e punida nos termos do disposto no art° 195 do Código Penal. A recusa poderá ser considerada legítima, por ter cobertura legal, ou ilegítima e, nesse caso, o Tribunal ordenará a junção dos elementos pretendidos. A ilicitude de tal conduta ficará, contudo, excluída quando efectuada no cumprimento de um dever jurídico sensivelmente superior (art° 36° do Código Penal ). Nos termos do disposto no artigo 135°, do Código de Processo Penal, o Tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso do incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das Secções Criminais pode decidir da prestação de testemunho com quebra de segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento. Ora, no caso em apreço, os elementos sobre os quais se pretende que o senhor advogado deponha não estão excluídos do âmbito de imposição de sigilo profissional e assim, a obtenção do depoimento ou da informação escrita já não pode ser ordenada sem a ponderação do valor relativo dos interesses em confronto: os interesses protegidos pelo segredo, por um lado; os interesses no sucesso da investigação criminal, por outro, sendo legítima a recusa a prestá-los sem prévia declaração de quebra de sigilo. É precisamente este juízo que o n.° 3, do mesmo artigo 135.", do Código de Processo Penal, prevê que seja assumido em incidente específico - incidente de quebra de segredo profissional - a ser suscitado no tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa tiver ocorrido - pelo que suscito o incidente de quebra de sigilo profissional e consequentemente ordeno que seja elaborado apenso, com certidão da promoção que antecede e do presente despacho, e ainda das peças processuais que o MP vier a indicar, devendo o mesmo ser remetido para o Tribunal da Relação de Lisboa.”
Subidos os autos a esta instância a Srª Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer onde considerou que “(…) uma vez que o depoimento da testemunha Sr. Advogado Dr. FM… se mostra nos autos reputado como imprescindível para a descoberta da verdade material, dado o mesmo ter conhecimento directo de matéria essencial ao objecto da causa, consideramos que o interesse público da boa administração da justiça penal deverá prevalecer sobre os interesses tutelados pelo sigilo profissional.” Colhidos os vistos legais, teve lugar a conferência, cumprindo decidir. II–Motivação. Foi correcta a forma como se desenvolveu o presente incidente uma vez que a decisão sobre quebra de sigilo profissional é in casu da exclusiva competência do Tribunal Superior tal como vinha sendo defendido pela Doutrina e Jurisprudência dominantes (cfr. entre outros, Ac. da Relação do Porto de 11/11/91 in C.J., Ano XVI, 1991, tomo V, pag. 215 e 216 e Ac. da Relação de Lisboa de 4/12/96 in C.J., Ano XXI, 1996, tomo V, pag. 152 a 155) e foi entretanto decidido pelo do Acórdão do STJ, de fixação de jurisprudência n° 2/2008, de 13 de Fevereiro de 2008, publicado in www.dgsi.pt.). Um primeiro reparo, contudo, merece o pedido formulado. Conquanto os autos estejam na fase de inquérito é ao juiz a quem compete suscitar este incidente. O incidente é assim, da sua completa responsabilidade, e dirigindo-se a um Tribunal Superior, competeria ao dito juiz circunstanciar o pedido que fazia, integrando-o, dizendo qual a extensão da quebra de sigilo pretendida e, em especial, porque é que entende que a quebra de sigilo se justifica. De nada interessa que o Ministério Público entenda pertinente a quebra de sigilo. Interessa que o Juiz de Instrução a entenda necessária para que a suscite. Ora, no caso concreto, a Srª Juiz de Instrução limita-se a informar que “veio o Ministério Público requerer que seja decretado o levantamento do sigilo profissional de Senhor Advogado dado que tal se mostra necessário à prossecução das investigações pela prática de crime de falsificação de documento” e que “os elementos sobre os quais se pretende que o senhor advogado deponha não estão excluídos do âmbito de imposição de sigilo profissional (…)”. Ora, não só não decorre do pedido que tipo de falsificação de documento está em causa como se desconhece, através do despacho em apreço, quais são os elementos sobre os quais se pretende que o senhor advogado deponha. Além do mais, o despacho é complemente omisso quanto à razão da necessidade da quebra de sigilo. A solução mais óbvia seria a de reenviar os autos à primeira instância para que se reformulasse o despacho nele integrando os elementos em falta, o que levaria a um inevitável atraso no andamento dos autos. Assim, não sem deixar consignada a falência do despacho em apreço, tentaremos, através da análise da certidão remetida, aquilatar da existência dos pressupostos que permitam deferir o solicitado … ou não. No caso. Equacionando analiticamente o quadro legal de tutela/quebra dos segredos profissionais em geral e de Advogado em especial, verificamos que existe um conjunto de normas que impõem o dever de sigilo e punem a sua violação como delito, destinando-se a proteger, por um lado, os direitos pessoais e a reserva da vida privada, garantidos pelo art. 26° n°1, da Constituição da República e, por outro, a confiança (no caso especial) nas relações entre o advogado e os seus clientes. No entanto, o dever de colaboração com a administração da justiça, cuja violação configura o crime previsto no n° 2 do art. 360° do C.P. tem por objectivo a tutela de um interesse público que radica no art. 205° da CRP. O conflito entre aqueles dois deveres há-de resolver-se pela ponderação dos interesses tutelados, em função da sua natureza e relevância jurídica, segundo um critério de proporcionalidade na restrição de interesses constitucionalmente protegidos, como impõe o n°2 do art.18° da CRP, tendo em atenção o caso concreto. Assim, o n° 3 do art. 135° do CPP faz depender a quebra do segredo, da existência de uma causa da exclusão de ilicitude, segundo os princípios da lei penal e, nomeadamente, face ao principio da prevalência do interesse preponderante. Isto é, terá, então, este Tribunal da Relação de conhecer do "interesse preponderante", "tendo em conta a imprescindibilidade do testemunho na descoberta da verdade" perante o crime em investigação e a necessidade de obtenção, para os autos, dos elementos em falta e respeitantes a matéria sujeita a sigilo. Em situações destas, sendo caso disso, o dever de sigilo deverá ceder perante o dever de colaborar com as autoridades judiciais na realização da justiça, porquanto será este então o valor preponderante (cfr. art. 202°, n.° 3, da CRP). Citando o que foi dito no Ac. R. Porto de 7/7/2010 acessível em www.dgsi.pt "A relação constituída com o mandato forense apenas impõe dever de segredo sobre os factos inerentes ao exercício concreto do mandato, não criando um salvo-conduto para invocação de segredo por factos exteriores a essa relação, nomeadamente daqueles que integrem a prática de um crime. A relação profissional ou de proximidade que se constitui entre duas pessoas, e que justifica, em certos casos, a existência do dever de sigilo, tem um fim e um âmbito específicos, não podendo aquele dever ser alargado a factos nos quais se desempenhe um mero papel secundário, estranho àquela relação, como é o caso de se ser testemunha".
Dispõe o Estatuto da Ordem dos Advogados, sobre o sigilo profissional: (Artigo 92.° Segredo profissional) 1– O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente: a)- A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste; b)- A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; c)- A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; d)- A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante; e)- A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio; f)- A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2–A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço. 3– O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo. 4– O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento. 5– Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo. 6– Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.° 4, o advogado pode manter o segredo profissional. 7– O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.° 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.° 5. 8– O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever. Se a violação daquele dever de sigilo pode fazer incorrer o advogado infractor em responsabilidade disciplinar conforme estabelece o artigo 115 daquele seu Estatuto, por outro lado, também, não tem um carácter absoluto e assim, pode, em casos especiais ou excepcionais, o Sr. Advogado ser dispensado do respectivo sigilo e prestar as informações desejadas. Esta decisão compete, no caso de dúvida sobre a legitimidade da recusa, como também já referimos acima, aos Tribunais- no caso ao Tribunal da 2a. Instância.
Este entendimento vem sendo seguido pela jurisprudência, sendo disso exemplo, entre outros, refere o Acórdão da Relação de Coimbra, de 04-03-2015: "I– O segredo profissional não é um segredo absoluto e inafastável, mas a razão de ser da sua existência impõe que só em casos excepcionais o advogado o possa quebrar. (...) III– O princípio da prevalência do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá, in casu, prevalecer." (...) V - A imprescindibilidade do depoimento de testemunha sujeita a segredo profissional é elemento essencial à densificação do princípio da prevalência do interesse preponderante a actuar pelo tribunal com vista à decisão sobre a quebra do segredo."
E, o Acórdão da relação do Porto, de 10-11-2015 em cujo sumário se pode ler: "II– O segredo profissional é reconhecido como direito e dever fundamental e primordial do advogado e tem a sua razão de ser na necessidade de preservar o princípio da confiança, sendo que o exercício da advocacia assume reconhecido interesse público, dada a natureza social dessa função. III– Mas nem todos os factos estão abrangidos pelo sigilo profissional, mas apenas aqueles que se reportam a assuntos profissionais que o advogado tomou conhecimento, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste, já que o princípio da confiança, essencial e imprescindível ao exercício dessa função, exige confidencialidade relativamente aos factos e informações reveladas pelo seu cliente e que, não fora essa garantia, os não revelaria a mais ninguém." Ora, da análise do teor da certidão, mormente da promoção da Srª Procuradora Adjunta de 10.09.2018 (refª citius …) conclui-se que a Srª Procuradora tem a seu cargo um inquérito em que se investiga a prática de um crime de falsificação de documento do art. 256.°, n.° 1, al. e), do Código Penal, ou seja, a prática de um crime de uso de documento falso. Não se investiga o fabrico de um documento falso, a adulteração de um documento ou uma falsificação intelectual. Está em causa o uso do documento falso sabendo-o tal o seu agente. A Srª Procuradora Adjunta faz ainda constar da sua promoção –a qual foi acolhida pela Srª Juiz – que “O depoimento dessa testemunha revela-se imprescindível, uma vez que foi a pessoa que recebeu tal documento do suspeito e o juntou àqueles autos, importando averiguar o circunstancialismo em que tal ocorreu.” Ora, a Srª Procuradora esclarece porque é que no seu entendimento o depoimento é imprescindível : porque importa averiguar o circunstancialismo em que a testemunha recebeu o documento e em que o juntou. Ora, se a imprescindibilidade advém daí , com o devido respeito, tal mostra-se perfeitamente claro do depoimento da testemunha FM… cujo depoimento agora é pretendido mas que já depôs tendo-se recusado a continuar invocando segredo profissional (não se descortinando porquê já que no auto de inquirição levado a cabo e no qual a Srª Procuradora não esteve presente não se fez constar qual a questão colocada que motivou a recusa de depoimento). Ouvida a mesma em 14.06.2018 (refª citius : …) esta refere “ (…)ser advogado e conhece TF…, do exercício das suas funções. (…) patrocinou o denunciado no âmbito do proc. n.° …/..., em que juntou a garantia bancária, cuja cópia consta de fls. 40 verso. Diz que foi TF… quem lhe entregou essa garantia bancária para juntar ao processo. Na altura em que juntou a garantia bancária ao referido processo, acreditou que esse documento era verdadeiro e que o denunciado sempre lhe disse que essa garantia bancária é verdadeira.”
Está então conhecido o circunstancialismo em que a “garantia” foi recebida:
-foi recebida pela testemunha na qualidade de advogado do arguido;
-tendo sido junta pois a testemunha foi informada da sua veracidade;
- nada o levando a crer o contrário;
- sendo elemento reputado necessário à acção cível onde foi junta.
Assim sendo, à mingua de outros elementos, quer no despacho em que é solicitada a quebra, quer na promoção que o motiva, e considerando o crime que se investiga – uso de documento falso - não se compreende o que mais se pode querer da testemunha (aceitando-se, como parece ser o caso, que a mesma desconhecia a falsidade pois que se assim não fosse deveria ser constituído arguido).
Assim, não se compreende qual o interesse do presente incidente quando se tem, aparentemente, tudo para se prosseguir com os autos, sem haver necessidade de quebra de qualquer segredo. Nada de decisivo no processo transmite a convicção segura de que, sem o depoimento da testemunha, se não pode deduzir uma acusação suficientemente apoiada em factos fortemente indiciados, não estando, de todo, demonstrada a imprescindibilidade de tal depoimento.
Se a prevalência do segredo ou do dever de cooperação com a justiça depende da conclusão a que, em concreto, se chegue quanto ao interesse dominante, afigura-se-nos que tal interesse predominante é, no caso, o dever de manter sigilo sobre a relação havida entre a testemunha, enquanto advogado, e o arguido, enquanto cliente, pois caso assim se não entenda estar-se-á a minar o grau de confiança próprio da relação cliente/advogado em prol do esmiuçar e concretizar uma prova que já se mostra suficientemente carreada para os autos. III–Dispositivo. Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o presente incidente de quebra de sigilo profissional, não dispensando o Srº Advogado FM… do dever de sigilo que sobre ele impende na sua qualidade de Advogado. Sem custas. Notifique, devendo ser remetida cópia à Ordem dos Advogados para conhecimento.
(Acórdão elaborado pelo 1º signatário em processador de texto que o reviu integralmente sendo assinado pelo próprio e pela Mmª. Juíza Adjunta).
Lisboa e Tribunal da Relação, 24 de Outubro de 2018
Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira -Relator - Maria Teresa Féria de Almeida -1ª Adjunta -