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EXECUÇÃO
LIVRANÇA
OBRIGAÇÕES FRACIONADAS
VENCIMENTO
Sumário
(art.º 663º nº 7 do CPC) – Da exclusiva responsabilidade do relator 1. No domínio das relações imediatas o executado, subscritor da livrança dada à execução, pode livremente deduzir contra o credor qualquer meio de defesa, incluindo os decorrentes da invalidade, ineficácia ou extinção da obrigação causal.
2. Estando subjacente à emissão da livrança um direito de crédito emergente de contrato de mútuo bancário, em que se estabelecia o pagamento do montante financiado em prestações mensais que incluíam juros remuneratórios e amortização do capital, essas obrigações estão sujeitas ao prazo prescricional de 5 anos, por força do Art. 310.º al.s d) e e) do C.C..
3. A convenção contratual pela qual se estabelece que o não cumprimento de uma prestação de obrigação fracionada determina o vencimento imediato das restantes, nos termos do Art. 781.º do C.C., deve ser interpretada com o sentido de conferir uma faculdade ao credor que, para o efeito, tem de expressamente ser exercida por interpelação ao devedor, nos termos do Art. 805.º n.º 1 do C.C..
4. Não sendo essa faculdade oportunamente exercida, as prestações relativas à amortização do empréstimo e respetivos juros não perdem a sua individualidade e continuam a vencer-se nas datas convencionadas (Art. 805.º n.º 2 al. a) do C.C.), ficando cada prestação concretamente considerada subordinada ao prazo de prescrição de 5 anos estabelecido nas al.s d) e e) do Art. 310.º do C.C., a contar da data de vencimento respetivo.
5. Tendo a livrança dada à execução sido entregue em branco, com autorização de preenchimento, com o propósito de servir de garantia do cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de contrato de mútuo, no domínio das relações imediatas, a prescrição da obrigação causal determina a necessária extinção da obrigação cartular. Extinta a obrigação garantida, extingue-se a relação jurídica de garantia que lhe é meramente acessória.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I- RELATÓRIO
B. e B’. vieram deduzir, por apenso à execução para pagamento de quantia certa que lhes foi movida por A., a presente oposição por embargos de executado.
Alegam que o exequente deu à execução uma livrança, por este unilateralmente preenchida, com data de emissão de 27/06/1997 e data de vencimento de 15/04/2016, a qual fora entregue pelos embargantes como garantia de pagamento de um empréstimo concedido pelo exequente, sem que se mostre junto aos autos o respetivo contrato, nem o qualquer acordo de preenchimento.
Sustentam que a exequente carece de legitimidade ativa para demandar os embargantes, uma vez que não é referida a base legal, nem foi junto o documento que legitima o direito à cobrança por parte da exequente do crédito invocado, o qual terá sido transferido de C., sendo que não se mostrando documentada a cessão de créditos.
Invocam os embargantes também a exceção perentória de prescrição da dívida, quer no que respeita ao capital, quer no que respeita aos juros.
No final pediram que fossem julgadas por procedentes as exceções invocadas e consequentemente a oposição à execução.
Recebidos os embargos e ordenado cumprimento do disposto no Art. 732.º n.º 2 do C.P.C., veio a exequente contestar pugnando pela improcedência das exceções invocadas.
Relativamente à legitimidade ativa, sustentou que ela decorre da deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal, tomada em reunião extraordinária de 03.08.2014.
Esclareceu que a livrança dada à execução tem na sua origem num contrato de mútuo celebrado em 27.06.1997 entre o C. e os embargantes, encontrando-se autorizado o seu preenchimento e respetivos termos, tendo os embargantes sido interpelados por cartas de 22.03.2016, remetidas para a morada que estes indicaram no contrato, nas quais se discrimina o capital em dívida de €9.665,58, os juros devidos sobre o capital à taxa de 19% no montante de €31.607,52 (contados desde a data do incumprimento – 03.04.1999), o imposto de selo sobre os juros no montante de €1.264,30, assim como as despesas de selagem da livrança dada à execução no valor de €212,69, tudo num total de €42.750,09.
Sustentou também a inexistência de qualquer prescrição, seja de juros, seja de capital, pugnando no final pela improcedência da oposição.
Findos os articulados, após a realização de audiência prévia, veio a ser proferido despacho saneador-sentença, no qual se julgou improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa, mas julgou-se procedente a exceção perentória de prescrição.
É dessa sentença que o embargado ora recorre, apresentando no final das suas alegações de recurso as seguintes conclusões:
A. Atendendo às características da incorporação, literalidade, autonomia e abstração dos títulos de crédito, a livrança como título vale do que dela consta, sendo desnecessária a alegação da relação jurídica subjacente, já que os executados são acionados pelo portador, enquanto subscritores da livrança exequenda e com fundamento apenas na relação cambiária ou cartular.
B. Encontrava-se o ora Recorrente, enquanto Exequente, dispensado de invocar o negócio causal que deu origem à obrigação cambiária, pelo que quanto à invocação pelos Recorridos de questões relacionadas com a relação jurídica subjacente ao título, designadamente da prescrição invocada, é de notar que o ora Recorrente baseou a execução na relação cartular, pelo que, dada a características da literalidade e abstração do título de crédito, as mesmas não relevam para a ação sub judice.
C. Assim, quanto à prescrição, será de atender à data de vencimento do título dado à execução, pelo que não é passível de ser considerada qualquer prescrição da obrigação subjacente ao negócio causal da qual seja suscetível de ser adveniente a extinção da obrigação cambiária.
D. A livrança em branco, quando preenchida pelo portador em conformidade com o convencionado, constitui título regularmente exequível nos exatos termos em que se mostra preenchida; emitida uma livrança em branco, de acordo com o pacto de preenchimento, é com o respetivo preenchimento que nasce a obrigação cambiária, sendo neste momento que se torna eficaz.
E. A este respeito pronuncia-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo 27827/05.4YYLSB-A.L1-8, datado de 19.04.2012, disponível in www.dgsi.pt: “I- O pacto de preenchimento estabelecido é perfeitamente válido e permitia ao exequente apor na livrança a data de vencimento que entendesse, desde que se verificasse o incumprimento nos termos aludidos. II- Termos em que a data, validamente aposta na livrança como data do seu vencimento, constitui assim o termo inicial de contagem do prazo de prescrição, não relevando para esse efeito a data do incumprimento do contrato, que era apenas a causa de que dependia o preenchimento da livrança quanto ao seu vencimento.”
F. Do pacto de preenchimento não resulta que tenha sido convencionado qualquer prazo para o preenchimento da livrança, no que se refere à data do vencimento, a partir do momento em que se verificasse a falta de cumprimento das cláusulas do contrato e determinando o contrato junto aos autos, especificamente a Cláusula 12.2: “o BES fica autorizado pelo Cliente a preencher a livrança com uma data de vencimento posterior ao vencimento de qualquer obrigação garantida e por uma quantia que o Cliente lhe deva ao abrigo do Contrato.”
G. Assim sendo e considerando-se que o prazo de prescrição aplicável à livrança aqui em causa é de três anos, a contar da data do seu vencimento, o mesmo começa a correr a partir do momento em que o direito podia ser exercido, nos termos do disposto no art.º 306.º CC, pelo que o pacto de preenchimento assim estabelecido é válido e permitia ao ora Recorrente apor na livrança a data de vencimento que entendesse, desde que se verificasse o incumprimento nos termos aludidos.
H. Nestes termos, a data, validamente aposta na livrança como data do seu vencimento, constitui assim o termo inicial de contagem do prazo de prescrição, não relevando para esse efeito a data do incumprimento do contrato ao qual serviu de garantia, que era apenas a causa de que dependia o preenchimento da livrança quanto ao seu vencimento.
I. Porém, não assiste qualquer razão aos Recorridos quanto á aplicação do art.º 310.º alínea e) do CC, uma vez que não se verifica a prescrição da obrigação emergente do contrato subjacente à livrança. Com efeito, dos autos resulta que não é essa a dívida na qual se baseia o crédito exequendo – o capital que se peticiona, não corresponde à soma de cada uma das restantes prestações acordadas para a restituição integral do capital, mas, sim, à totalidade do capital em dívida à data do incumprimento, correspondendo ao montante aposto na livrança.
J. O ora Recorrente, em conformidade com o disposto no art.º 781º do CC e face ao não cumprimento atempado das prestações, considerou vencidas todas as prestações vincendas, sendo que o vencimento imediato das prestações restantes, determinou que o plano de prestações previamente acordado contratualmente deixou de estar em vigor, ocorrendo uma perda do benefício do prazo de pagamento contido em cada uma das prestações.
K. Pelo que, deixará de aplicar-se a tal obrigação o prazo previsto no art.º 310.º do CC e encontrar-se-á a mesma sujeita ao prazo ordinário de prescrição de 20 anos, neste sentido tendo decidido o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.04.2016 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no âmbito do processo n.º 589/15.0T8VNF-A.G1, na data de 16.03.2017, cujo teor ora se transcreve: “I- No mútuo bancário, em que o reembolso da dívida foi objeto de um plano de amortização, composto por diversas quotas, que integram uma parcela de capital e outra de juros remuneratórios, que se traduzem na existência de várias prestações periódicas, com prazos de vencimento autónomos, cada uma destas prestações mensais encontrar-se-á sujeita ao prazo prescricional privativo de cinco anos, previsto na al. g), do artigo 310º, do CC. II- Mas se em caso de incumprimento, o mutuante considerar vencidas todas as prestações, ficando sem efeito o plano de pagamento acordado, os valores em divida voltam a assumir em pleno a sua natureza original de capital e de juros, ficando o capital sujeito ao prazo ordinário de 20 anos.”
L. A prescrição pode ser interrompida, nos termos dos art.º 323.º a 327.º do CC, começando o prazo integral a correr de novo a partir da interrupção, nos termos do art.º 326.º do Código Civil. Conforme resulta dos autos, os Recorridos foram interpelados para o pagamento das quantias em dívida decorrentes do contrato de crédito, pelo que em caso de decurso de qualquer prazo prescricional este teria sido certamente interrompido pelo ora Recorrente.
M. Em face do exposto, apenas se poderá considerar que também não operaria a extinção da obrigação cambiária por via da prescrição da obrigação subjacente ao crédito exequendo. Ressalvando sempre que, o prazo prescricional a atender-se com relevância para a presente ação executiva deve ser o que diz respeito à livrança, o qual, nos termos do art.º 70.º e 77.º da LULL, à data da interposição da ação. A este respeito, em caso semelhante, importa atentar no que decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 25.05.2017, proferido no âmbito do processo n.º 4610/14.0T8ENT-A.E1: “Note-se que a presente execução é fundada num título de crédito (livrança), validamente emitida e preenchida, como ficou demonstrado, tendo sido os executados-embargantes que procuraram trazer a discussão jurídica para o plano das relações imediatas, respeitantes ao contrato de concessão de crédito celebrado entre as partes e subjacente ao título dado à execução (designadamente, suscitando a aludida prescrição por referência às prestações de capital e juros devidas em cumprimento desse contrato). Ora, é certo que estamos no domínio das relações imediatas (beneficiário e subscritores da livrança em apreço são, respetivamente, exequente e executados), mas isso não significa que a livrança deixe de valer como tal. Uma livrança constitui, por si, título executivo (como decorrência das características próprias dos títulos de crédito, como são as livranças – literalidade, autonomia e abstração) e dispensa o seu portador de invocar a relação jurídica subjacente, ainda que o seu portador seja parte nessa relação. (...) E, sabendo-se que o prazo de prescrição das livranças é de 3 anos (cfr. Art.º 70.º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, ex vi do art.º 77.º do mesmo diploma), é manifesto que esse prazo não estava decorrido (a contar da data do respetivo vencimento) quando a presente execução foi instaurada. (...)”
N. Por tudo exposto, julga o ora Recorrente por correto o julgamento de direito, posto em causa pelos Recorridos, devendo a decisão proferida pelo tribunal a quo alterar-se no sentido de julgar a exceção invocada improcedente por não provada, já que a douta sentença recorrida, quer na sua fundamentação como na sua decisão, não fez a exata apreciação dos factos e a devida aplicação do direito.
Pede assim que seja alterada a sentença recorrida, prosseguindo a ação executiva os seus posteriores termos.
Os embargantes apresentaram contra-alegações, delas sobrelevando as seguintes conclusões:
1 - Muito bem andou o Tribunal A Quo ao julgar procedente a exceção da invocada prescrição da obrigação do pagamento, aqui em causa, sendo, a sentença prolatada, totalmente justa e, bem fundamentada.
2 - Nos presentes autos, aprecia-se a natureza do crédito ao consumo concedido pela Recorrente, aos Recorridos, consubstanciado no contrato nominado “Contrato ao Consumo BES”, formalizado em 27/06/1997 e, devidamente enformado pelas respetivas “Condições Particulares”.
3 - No âmbito do contrato em causa, estipulou-se:
a) - O reembolso, em 60 meses, do valor do mútuo contratado; a pagar em prestações mensais; iguais e sucessivas; de capital e jutos.
b) - Com a emissão, à data de 27/06/1997 e, a título de garantia, de uma livrança em branco”; mas, cujo preenchimento da mesma (com os Itens obrigatórios, nomeadamente, o valor; a data de vencimento e, elementos de identificação ocorrera, apenas, em 22/03/2016, ou seja, 19 anos depois,
Porém,
4 - Estatui o artigo 310º, al. e), do Código Civil que “Prescrevem no prazo de cinco anos: as quotas de amortização do capital, pagáveis com os juros”; e, assim, na perspetiva dos factos antes relevados, e, mais atendendo à pretensão de reembolso do valor mutuado por parte da Recorrente, invocaram, entretanto, os Recorridos a prescrição da respetiva obrigação.
5 - A legitimidade desta invocação está consubstanciada na concreta situação dos autos, nomeadamente, na natureza do contrato outorgado, este, que enquadra “um acordo entre credor e devedor cristalizado num plano de amortização do capital e dos juros correspondentes, que, sendo composto por diversas prestações periódicas, impõe a aplicação de um prazo especial de prescrição, de curta duração”, não estando, propriamente em causa uma única obrigação pecuniária emergente de um contrato de financiamento ainda que com pagamento diferido no tempo, e, quer quanto aos juros, quer quanto ao respetivo capital mutuado”, a tal não obstando - como muito bem vem referido na fundamentação da douta sentença proferida - a verificação dos efeitos do vencimento imediato das prestações vincendas em caso de incumprimento, como, aliás, estatui o artigo 781º do C. Civil..
Aliás, a este enquadramento, mais se oferece a perspetiva interpretativa constante do teor do (i) Acórdão do STJ de 27/03/2014 - processo 189/12.6TBHRT-A.L1.S1) -; e, (ii) do Acórdão da RC de 26/04/2016, relatado por Maria João Areias - in, www.dgsi.pt..
6 - Mais se releva, ainda, que:
a) - Atendendo a que, (i) ou, a contar da data de 03/04/1999, (esta, a data do incumprimento definitivo de pagamento por parte dos Recorridos); ou, a contar da data de Junho de 2002 (esta, a data em que terminaria o acordo de pagamento prestacional no âmbito do mútuo contratado) e, datas estas, a contar das quais se considera ter-se iniciado o decurso do aplicável prazo de prescrição de 5 anos, como tal, bem poderia a Recorrente ter exercido o seu direito de cobrança dentro dos cinco anos subsequentes, o que, não tendo acontecido, então, à data da instauração da presente ação e, em função do que estatui o artigo 306º, nº 1, do Código Civil, dá-se por já prescrita a respetiva obrigação de pagamento.
7 - A verificação da prescrição da obrigação causal abarca também, o respetivo crédito exequendo.
Reiterando-se que,
8 - Ao abrigo do artigo 310º, al. e), do C. Civil “sempre prescreveram, já, as obrigações consubstanciadas nas sucessivas quotas de amortização do capital mutuado ao devedor, originando prestações mensais sucessivas, de valor predeterminado e, englobando os juros devidos”, como e, muito bem, decidiu a douta sentença proferida.
9 - Quanto a tal enquadramento jurídico, específico, mais se oferece o entendimento constante do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo nº 4273/11.5TBMTS-A.P1, de 24 de março de 2014, in www.dgsi.pt, que refere “embora a lei preveja a prevalência do prazo ordinário de 20 anos sempre que sobrevenha um título executivo que reconheça o crédito, tal não é aplicável quando este, uma livrança, tenha sido subscrita em branco pelo devedor e pelo avalista no momento da assinatura do contrato de crédito”; porque, “trata-se de um título anterior, emitido na própria data em que foi outorgado o contrato de crédito ao consumo, e não posterior, como exige a lei para que a dívida fique sujeita ao prazo geral de prescrição”.
Conclusivamente,
10 - Não faz, assim, sentido, neste caso concreto, a afirmação do Recorrente de que o título executivo dos autos - a Livrança - é que determina o fim e os limites da execução.
11 - Quando é certo que, antes do preenchimento da Livrança emitida (que, no caso dos autos, ocorrera só em 15/04/2016 - embora emitida em 27/06/97), a mesma, sempre carecia de eficácia, precisamente, por não ter valor inscrito; não ter data de vencimento escrita; e, nem ter, ainda, outras referências legais obrigatórias, que lhe conferissem, precisamente, eficácia jurídica, pelo que se refuta, in totto, o sentido da explanação argumentativa constante das alegações da Recorrente, (i) quer quanto aos fundamentos invocados, (ii) quer quanto ao âmbito da apreciação da “prescrição da obrigação cambiária”, (iii) quer, ainda, quanto ao âmbito da apreciação da “ alegada prescrição do crédito exequendo.
Pedem assim que se julgue o recurso por improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
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II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Dito isto, em termos sucintos as questões essenciais a decidir prendem-se apenas com a apreciação da exceção perentória de prescrição, quer da obrigação cambiária, quer da obrigação de pagamento de capital e juros da relação subjacente ao título dado à execução.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. O A. intentou a ação executiva de que a presente oposição à execução constitui apenso, contra B. e B’., para cobrança coerciva do montante de €43.094,72, com base na livrança junta a fls.17 da execução, cujo teor se dá por reproduzido.
2. A referida livrança tem o valor de €42.750,09, a data de emissão de 27.06.1997 e a data de vencimento de 15.04.2016, mostrando-se subscrita pelos executados/embargantes.
3. O C. (na qualidade de mutuante) celebrou com os embargantes (na qualidade de mutuários) o “Contrato ao Consumo …”, datado de 27.06.1997 – cuja cópia se mostra junta a fls. 46 e 47 e o teor se dá por reproduzido – “com as seguintes Condições Particulares: Montante (…): 2.668.400$00 Prazo: 60 Meses (…) Amortização: 60 meses Taxa de juro: a taxa de juro anual e nominal será de 17,0000%; a taxa de juro anual de encargos efetiva global inicial (TAEG) será de 18.389% Reembolso: em prestações MENSAIS iguais e sucessivas de capital e juros (…)”
4. A livrança descrita em 1 e 2 foi entregue em branco para garantia do cumprimento das obrigações emergentes do contrato descrito em 3.
5. O exequente remeteu aos embargantes as cartas datadas de 22.03.2016, cujas cópias se mostram juntas a fls. 48 e 51 e os teores se dão por reproduzidos.
Tudo visto, cumpre apreciar.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A questão essencial suscitada na presente apelação tem a ver com o julgamento feito sobre a procedência da exceção perentória da prescrição, que determinou o reconhecimento da extinção da obrigação exequenda e consequentemente a procedência dos embargos de executado.
Fundamentalmente a sentença recorrida relevou que estávamos no domínio das relações imediatas e, portanto, a prescrição da obrigação principal poderia determinar a extinção da obrigação cambiária.
Por outro lado, considerou que estava subjacente à emissão da livrança dada à execução um contrato de mútuo, que se encontrava em incumprimento por parte dos mutuários desde 3/4/1999, tendo-se vencido nessa data todas as prestações vincendas, nos termos do Art. 781.º do C.C. e cláusula 8.ª do contrato. Mais julgou que, nesse caso, as prestações de amortização do crédito ficavam subordinadas ao prazo prescricional mais curto de 5 anos estabelecido no Art. 310.º al. e) do C.C.
Nestes pressuposto, quer se contassem os 5 anos desde a data do incumprimento dos executados (3/4/1999), quer se contassem do termo final do contrato de mútuo (junho de 2002), a obrigação estaria sempre prescrita, sendo inócua a interpelação para pagamento constante da carta de 22 de março de 2016. Pelo que, extinta a obrigação principal, extinta estaria também a obrigação cambiária.
A Recorrente veio nas alegações de recurso sustentar que invocou apenas na ação executiva a relação cambiária, tendo o seu pedido por base uma livrança entregue em branco, com autorização de preenchimento. Pelo que, tendo sido cumprido o pacto de preenchimento e vencendo-se a livrança a 15/4/2016, não teria decorrido o prazo prescricional de 3 anos previstos no Art. 70.º “ex vi” Art. 77.º da L.U.L.L..
Quanto à prescrição do crédito exequendo, considera que não se aplica ao caso o disposto no Art. 310.º do C.C., porque as prestações venceram-se todas, nos termos do Art. 781.º do C.C. e de acordo com o convencionado. Pelo que, à dívida total aplica-se apenas o prazo prescricional de 20 anos, sendo que a interpelação para pagamento pela carta de 22 de março de 2016 interrompeu a prescrição, fazendo correr novo prazo (Art.s 323.º a 327.º do C.C.).
Os Recorridos vieram sustentar, no essencial, a mesma posição que decorre da sentença recorrida, defendendo a aplicação ao caso do prazo prescricional mais curto de 5 anos (Art. 310.º al. e) do C.C.), que a tal não obsta o disposto no Art. 781.º do C.C., sendo que a obrigação causal se extinguiu por prescrição contada desde o alegado incumprimento datado de 3/4/1999, ou, em qualquer caso, do termo do contrato de mútuo verificado em junho de 2002. Pelo que, no momento em que a livrança foi preenchida a obrigação causal já se mostrava extinta.
Cumpre assim apreciar, tendo em atenção o direito aplicável.
Temos de partir da constatação de que o exequente deu à execução uma livrança subscrita pelos executados, nos termos literais da qual resulta que os mesmos se obrigaram a pagar ao sacador, ou à sua ordem, o valor de €42.750,09, tendo essa obrigação data de vencimento de 15 de abril de 2016.
Inquestionavelmente que a livrança é um título de crédito e, como tal, pode servir de título executivo (Art. 703.º n.º 1 al. c) do C.P.C.), sendo que o exequente configurou a sua pretensão inicial como uma típica ação cambiária de natureza executiva.
Enquanto títulos de crédito, as livranças gozam das suas características típicas, como sejam a incorporação, literalidade, abstração, autonomia, legitimação e circulabilidade (Vide: Ferrer Correia in “Lições de Direito Comercial”, LEX, pág.s 433 e ss; e Pinto Furtado in “Títulos de Crédito”, pág.s 27 e ss).
Nos títulos de crédito a obrigação incorpora-se no próprio título, sendo o direito de crédito cambiário um direito cartular, porque compenetrado com o documento. É a titularidade do documento que decide da titularidade do crédito, e a transferência e o exercício dos direitos assim titulados dependem da posse legítima do respetivo documento (Art.s 14.º, 21.º, 38.º, 39.º I e II, 50.º, 51.º e 77.º da L.U.L.L.).
A caraterística da literalidade põe em relevo que a existência, validade e subsistência da obrigação cambiária não pode ser contestada com auxílio a elementos estranhos ao título, sendo que o conteúdo, extensão e modalidades da obrigação cartular são os que a declaração documentada objetivamente define.
A abstração exprime a ideia de que a declaração aposta no título dá forma a um novo direito, o direito cartular, despregado da relação fundamental. O negócio jurídico cambiário pode preencher diversas funções económico-jurídicas, não tendo uma causa própria, legalmente típica e é independente da causa que, em cada caso concreto, vise. É um modelo em que pode ser moldada qualquer substância.
A autonomia caracteriza-se pelo facto de as exceções decorrentes de convenções extra-cartulares em geral e a exceções causais podem ser oponíveis no domínio das relações imediatas, mas não ao nível das relações mediatas (Art. 17.º e 77.º da L.U.L.L.). O mesmo princípio se aplica na consideração da relação entre o possuidor e o título no caso de haver uma sucessão de transmissões cambiárias. Desde que se verifique que o último possuidor tenha adquirido a posse do título de forma legítima e de boa-fé, não relevam as irregularidades anteriores na cadeia sucessiva de transmissões (Art. 16.º e 77.º da L.U.L.L.).
A legitimação é uma decorrência dos princípios anteriores, representando a ideia de habilitação decorrente da posse do título para o exercício dos direitos cambiários (legitimação ativa), tendo como reverso que se o devedor cumprir a obrigação perante aquele que se apresentar como legítimo possuidor do título fica desobrigado da sua prestação (legitimação passiva).
A circulabilidade traduz a ideia de afastamento das regras de transmissão de direitos de crédito entre vivos, nomeadamente dos formalismos e requisitos estabelecidos nos Art.s 577.º e 588.º do C.C..
No caso dos autos estamos no domínio das relações imediatas. Ou seja, a livrança dada à execução não foi objeto de qualquer ato de transmissão, traduzindo a obrigação cartular a expressão documentada e titulada duma relação contratual subjacente entre os mesmos sujeitos jurídicos.
Convirá relembrar, porque isso se revela de interesse para o caso, que a característica da abstração dos títulos de crédito não legitima a conclusão de que a obrigação subjacente se extinguiu por novação, nos termos dos Art.s 857.ºe ss do C.C., por força da sua substituição pela obrigação cambiária.
Na verdade, a obrigação cambiária existe em paralelo com a obrigação causal subjacente, até porque para existir novação como causa de extinção duma obrigação era necessário que a vontade de contrair uma nova obrigação em substituição da antiga fosse expressamente manifestada (Art. 859.º do C.C.), o que claramente não sucede no caso concreto, dado que a livrança foi entregue precisamente para “caucionar” ou “garantir” a obrigação principal, conforme ficou consignado no contrato de fls 46 e 47. Pelo que, a assunção das obrigações cartulares pelos executados foi feita no pressuposto necessário da subsistência do vínculo emergente da obrigação visada garantir.
Como ensinava Ferrer Correia (in Ob. Loc. Cit., pág.s 441 a 442), continua a valer a doutrina resultante do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de maio de 1936, segundo a qual a prescrição a que se refere o Art. 339.º do Cód. Comercial não abrange a obrigação constante da letra, o que tem vindo a ser interpretado no sentido de que extinta a obrigação cambiária por prescrição, pode ainda reportar-se o credor à obrigação fundamental e com base nesta acionar o devedor (No mesmo sentido: Pinto Furtado, in Ob. Loc. Cit. pág. 72).
Foi esta orientação doutrinária, que mereceu acolhimento jurisprudencial, que veio a ter forma de lei no Art. 703.º n.º 1 al. c) do C.P.C. vigente, ao reconhecer força executiva aos títulos de crédito, mesmo que quirógrafos, desde que os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.
Decorre do exposto que, não só subsiste a relação creditória subjacente à emissão do título de crédito, como no caso concreto a obrigação cambiária tinha por função servir de garantia de cumprimento da obrigação creditória subjacente.
Neste caso, estando nós no domínio das relações imediatas, em que o sacador e os subscritores do título são, simultaneamente, o credor e os devedores da obrigação principal original extra-cartular, não tem aplicação o Art. 17.º, 1.ª parte, da L.U.L.L..
No domínio das relações imediatas o devedor pode livremente deduzir qualquer meio de defesa, incluindo os decorrentes da invalidade, ineficácia ou extinção da obrigação causal (Vide: Ferrer Correia in “Lições de Direito Comercial”, LEX, pág.s 461 e ss; Pinto Furtado “Títulos de Crédito”, pág. 75; e Abel Delgado in “Lei Uniforme das Letras e Livranças Anotada”, 6.ª Ed., pág. 108).
Por isso, mesmo que a livrança tenha sido emitida com data de vencimento a 15 de abril de 2016, que tal possa respeitar o pacto de preenchimento e, por força disso, não tenha ocorrido a prescrição da obrigação cambiária propriamente dita, atento o disposto no Art. 70.º n.º 1 “ex vi” Art.77.º da L.U.L.L., mesmo assim a eventual extinção da obrigação principal, causal e subjacente ao título pode arrastar consigo a necessária extinção da obrigação cambiária, tal como foi defendido na sentença recorrida com base na jurisprudência consolidada e incontrovertida constante do citado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/4/2016 (relatado por Maria João Areias e disponível em www.dgsi.pt).
Passando assim agora à questão da extinção da obrigação causal subjacente à emissão da livrança, temos que ela decorre de contrato de mútuo titulado pelo documento de fls 46 e 47.
O documento de fls 46 é uma carta do D. data de 27/06/1997, assinada por este, a informar o executado B. que o seu pedido de empréstimo foi deferido nas seguintes condições: «Montante: 2.668.400$00; prazo: 60 meses; amortização: 60 meses; taxa de juro: (…) 17,0000%; (…) (TAEG) (…) 18,389% (…). Reembolso: em prestações mensais iguais e sucessivas de capital e juros (…)»
O documento de fls 47 é o “duplicado” do mesmo documento, desta feita assinado pelos executados sobre as respetivas estampilhas fiscais.
No verso de ambas essas folhas desse documento constam as “condições gerais do crédito ao consumo”.
Como se pode constatar da sua leitura, trata-se de crédito ao consumo, ou seja estamos perante um contrato de mútuo bancário celebrado em 27/6/1997, para garantia do cumprimento do qual os executados entregaram uma livrança em branco, aí logo se declarando «autorizar o seu preenchimento pelo Banco (…) pelo montante que compreenderá o saldo em dívida, comissões, juros remuneratórios e de mora» (cfr. fls 46 e 47).
Em face do teor das cartas de 22 de março de 2016 remetidas aos executados (cfr. doc.s de fls 48 a 54), o contrato não foi cumprido pelos mutuários e encontrava-se já então em contencioso. Assim, é aí declarado que esse contrato foi “denunciado”, exigindo agora o pagamento «da totalidade do valor do contrato, incluindo o montante dos valores em atraso e o montante do capital em dívida até ao final do contrato, acrescido de despesas extrajudiciais incorridas». Mais se informou que iriam preencher a livrança, discriminando o valor em dívida pelas seguintes parcelas:
- €9.665,58 de capital;
- €31.607,52 de juros devidos desde 03-04-1999 à taxa de 19%;
- €1.264,52 de imposto de selo sobre os juros;
- €212,69 de selo da livrança.
Mais se referiu nessas cartas que o valor total a pagar pela livrança era de €42.750,09 (cfr. doc.s a fls 48 e 51), o que corresponde à soma das verbas anteriormente mencionadas e ao valor da capital constante da livrança dada à execução.
A primeira questão que se poderia colocar seria a de saber se seria legítimo o preenchimento duma livrança depois de 22 de março de 2016, quando a mesma havia sido entregue em branco, mais de 18 anos antes, em 27/6/1997, sendo que o incumprimento dos executados já datava de 3 de abril de 1999, de acordo com o teor das cartas remetidas pelo exequente e juntas a fls 48 e 51. O que nos coloca de novo no âmbito das exceções típicas da relação jurídica de natureza estritamente cartular.
De facto, pode ser difícil aceitar que o portador legítimo da livrança possa preencher o título de crédito emitido em branco só quando bem lhe aprouver, protelando assim a titulação da dívida ad eternum.
Ainda assim não se nos oferecem dúvidas que, havendo autorização bastante para o efeito, o título de crédito entregue em branco só possa ser preenchido quando haja incumprimento da obrigação, o que pode corresponder a data muito posterior ao prazo de prescrição da obrigação cartular de 3 anos previsto no Art. 70.º n.º 1 da L.U.L.L. se o contássemos da data da subscrição do título.
Realce-se que nunca poderia servir como critério para a prescrição da obrigação cartular a data de subscrição e entrega do título, já que o Art. 70.º n.º 1 da L.U.L.L. manda contar esse prazo da data de vencimento. Pelo que, sendo essa data fixada pelo credor, a questão resume-se à consideração de o portador da livrança ter, ou não, cumprido o pacto de preenchimento nos seus exatos termos.
Mas o protelamento do preenchimento da livrança entregue em branco, bem como a dilação excessiva na fixação da data de vencimento, para evitar a prescrição da obrigação, deve ter-se por comportamento violador do princípio da boa-fé e manifestamente contrário aos bons costumes, caindo na alçada do abuso de direito previsto no Art. 334.º do C.C., correspondendo a uma forma de preenchimento abusivo do título, que escapa ao regime excecional do Art. 10º da L.U.L.L.. Até por nos encontrarmos – relembre-se uma vez mais – no domínio das relações imediatas.
Acompanhamos neste ponto a posição de J. H. Delgado Carvalho (in “Ação Executiva Para Pagamento De Quantia Certa”, 2.ª Ed., pág.s 3879 a 384). Esse comportamento de demora no exercício do direito de ação baseado em título de crédito que gera na contraparte a convicção fundada de que o direito não vai ser exercido, gera uma situação de desequilíbrio entre as partes que se pode reconduzir à figura da “suppressio”, enquanto manifestação do princípio da tutela da confiança, próxima do abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium”.
Sucede que, a aplicação do instituto do abuso de direito está dependente da alegação e prova dos seus pressupostos de facto, o que passa pela verificação dos requisitos do funcionamento da tutela da confiança, que de acordo com Batista Machado são:
- A existência duma situação objetiva de confiança;
- O investimento nessa situação de confiança; e
- A boa-fé da contraparte que confiou (in “Obra Dispersa” Vol. I, pág.s 415 a 418).
Menezes Cordeiro dá desses requisitos um versão ligeiramente diversa, porque mais pormenorizada. Especificamente quanto à figura da “suppressio”, exige um conjunto mais complexo de pressupostos:
- Um não-exercício prolongado;
- Uma situação de confiança, daí derivada;
- Uma justificação para essa confiança;
- Um investimento de confiança; e
- A imputação da confiança ao não-exercente (in ROA, ano 65, Vol. II, Setembro de 2005 texto intitulado “Do abuso do Direito: estado das questões e perspetivas”).
Sucede que, no caso dos autos, nós não temos matéria de facto provada, ou sequer que tivesse sido alegada, que nos permita concluir pela verificação duma situação de tutela da confiança que justificasse a constatação de um caso típico de extinção do direito por “suppressio”.
A constatação de que o incumprimento já se verifica desde 3 de abril de 1999 e que a livrança só foi preenchida depois de 22 de março de 2016, na sequência das cartas de fls 48 e 51, é claramente insuficiente para se concluir que os executados tinham por seguro que o credor não iria exercer o seu direito de crédito.
Nada nos diz que não tivessem existido negociações entre as partes que se prolongaram no tempo e que levaram ao protelamento da situação por razões não exclusivamente imputáveis ao credor.
O que nós poderemos concluir é que, sendo o abuso de direito uma exceção perentória, o ónus de prova dos factos integradores dessa causa impeditiva ou extintiva do exercício do direito do credor competiria sempre aos devedores e embargantes (Art. 342.º n.º 2 do C.C., conjugado com os Art.s 731.º e 729.º al. g) do C.P.C.). Como nada alegaram ou provaram que suportasse semelhante enquadramento jurídico, afastada está a possibilidade da consideração dessa exceção.
Se o pacto de preenchimento foi cumprido, a data de vencimento aposta na livrança deve ser assim o único critério relevante para efeitos da prescrição da obrigação cartular (Art. 70.º n.º 1 da L.U.L.L.).
Feito este excurso e regressando de novo à obrigação subjacente, suscita-se então a questão da prescrição da mesma.
Como referido a obrigação de pagamento a cargo dos executados emerge de contrato de mútuo, no qual foi estabelecido o pagamento fracionado para reembolso do capital financiado.
Na sentença recorrida defende-se que o cumprimento dessas obrigações fracionadas, que incluíam capital e juros, estavam subordinadas ao prazo prescricional de 5 anos, nos termos do Art. 310.º al.s d) e e) do C.C..
Evidentemente que o estabelecimento de prazos prescricionais mais curtos que os 20 anos estabelecidos no Art. 309.º do C.C. visam essencialmente tutelar a posição do devedor.
Manuel de Andrade (in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, 1987, pág. 452) ensinava que o intuito do legislador era: «evitar que o credor deixe acumular os seus créditos a ponto de ser mais tarde ao devedor excessivamente oneroso pagar».
No mesmo sentido Vaz Serra (in BMJ n.º 107 - “Prescrição e Caducidade” - pág.285) dizia que esta prescrição «destina-se a evitar a ruina do devedor, pela acumulação das pensões, rendas, alugueres, juros ou outras prestações periódicas».
Inquestionavelmente que as prestações fracionadas, convencionadas no contrato de mútuo, comportavam em si mesmas o pagamento de juros, como decorre claramente das “condições particulares” na parte que se refere ao “reembolso” (v.g. doc. a fls 46 e 47). Logo, caem no âmbito de previsão do Art. 310.º al. d) do C.C..
Por outro lado, também é evidente que as prestações destinam-se à amortização do capital pagável com juros. Pelo que, essas prestações, nessa parte, caem também no âmbito de previsão da al. e) do Art. 310.º do C.C..
Isso mesmo foi reconhecido na sentença recorrida, louvando-se, e bem, nos acórdãos do S.T.J. de 27.03.2014 (relator: Silva Gonçalves); de 26/09/2016 (Relator: Lopes do Rego); e do Tribunal da Relação de Évora de 21.01.2016 (Relatora: Conceição Ferreira), todos disponíveis emwww.dgsi.pt.
Nunca é de mais repetir as transcrições feitas dessas decisões do Supremo Tribunal de Justiça, donde decorre textualmente: «o débito concretizado numa quota de amortização mensal, em prestações mensais e sucessivas referentemente a um montante de capital mutuado enquadra-se na previsão legal do disposto no art.º 310.º, alínea e), do C. Civil, conforme se retira das considerações explicitadas por Ana Filipa Morais Antunes, insertas nos Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, volume III, página 47, onde expressamente se refere “…na situação prevista no artigo 310.º, alínea e), não estará em causa uma única obrigação pecuniária emergente de um contrato de financiamento, ainda que com pagamento diferido no tempo, a que caberia aplicar o prazo ordinário de prescrição, de vinte anos, mas sim, diversamente, uma hipótese distinta, resultante do acordo entre credor e devedor e cristalizada num plano de amortização do capital e dos juros correspondentes, que, sendo composto por diversas prestações periódicas, impõe a aplicação de um prazo especial de prescrição, de curta duração. O referido plano, reitera-se, obedece a um propósito de agilização do reembolso do crédito, facilitando a respetiva liquidação em prestações autónomas, de montante mais reduzido. Por outro lado, visa-se estimular a cobrança pontual dos montantes fracionados pelo credor, evitando o diferimento do exercício do direito de crédito para o termo do contrato, tendo por objeto a totalidade do montante em dívida (…)
«(…) constituirão, assim, indícios reveladores da existência de quotas de amortização do capital pagáveis com juros: em primeiro lugar, a circunstância de nos encontrarmos perante quotas integradas por duas frações: uma de capital e outra de juros, a pagar conjuntamente; em segundo lugar, o facto de serem acordadas prestações periódicas, isto é, várias obrigações distintas, embora todas emergentes do mesmo vínculo fundamental, de que nascem sucessivamente, e que se vencerão uma após outra» (sic. - Ac. do STJ de 27/03/2014 – Proc. n.º 189/12.6TBHRT-A.L1.S1)
No acórdão do STJ, de 26.09.2016, relatado por Lopes do Rego, por sua vez defende-se que: «Prescrevem no prazo de 5 anos, nos termos da al. e) do art. 310º do CC, as obrigações consubstanciadas nas sucessivas quotas de amortização do capital mutuado ao devedor, originando prestações mensais e sucessivas, de valor predeterminado, englobando os juros devidos. «Na verdade, neste caso – apesar de obrigação de pagamento das quotas de capital se traduzir numa obrigação unitária, de montante predeterminado, cujo pagamento foi parcelado ou fracionado em prestações, - a circunstância de a amortização fracionada do capital em dívida ser realizada conjuntamente com o pagamento dos juros vencidos, originando uma prestação unitária e global, determinou, por expressa determinação legislativa, a aplicabilidade a toda essa prestação do prazo quinquenal de prescrição.»
A este propósito, Menezes Cordeiro (in “Tratado de Direito Civil Português”, I- Parte Geral, Tomo IV, 2005, pág.s 175 a 176) refere que a al. e) do Art. 310.º do C.C. opera nos casos em que se tenha convencionado que o próprio capital iria ser pago em prestações, com juros. Mas depois ressalva que: «pode suceder que, por força do contrato, o não pagamento de uma prestação provoque o vencimento das restantes; pois bem: a prescrição quinquenal apenas se irá aplicando escalonadamente, na medida do plano de pagamento inicial, pois é este o combinado e que as partes têm por referência; podemos acrescentar que na eventualidade do vencimento antecipado, já não se trata de … quotas de amortização».
É fundamentalmente nesta ressalva que a Recorrente sustenta a improcedência da argumentação expedida na sentença recorrida, por considerar que, nos termos do Art. 781.º do C.C. e do convencionado no contrato, tendo-se vencido todas as prestações antecipadamente, não estamos perante “quotas de amortização do capital” ou “juros convencionais”, tal como o Art. 310.º al.s d) e e) do C.C. preveem.
Sustenta, portanto, que o vencimento antecipado converte a obrigação fracionada em obrigação única, sujeita ao prazo prescricional ordinário de 20 anos estabelecido no Art. 309.º do C.C..
Sucede que, a cláusula 8.ª que determina que o não cumprimento de uma obrigação pecuniária desse contrato tem por consequência o pagamento de todas as restantes em falta, consta das “cláusulas contratuais gerais” que formalmente se apresentam no verso do documento assinado pelos mutuários, o que deveria levar à sua exclusão do contrato singular considerado, nos termos do Art. 8.º al. d) do Dec.Lei n.º 446/85 de 25/10.
Essa exclusão, no caso seria de todo o modo inconsequente, porque sempre teria de ser relevado o disposto no Art. 781.º do C.C..
Sucede que, da aplicação do Art. 781.º do C.C. não resulta que o não pagamento de uma prestação importa o vencimento automático de todas as prestações vincendas.
Como ensinava Antunes Varela (in “Das Obrigações em Geral”, vol. II, pág.s 53 a 54) a propósito do funcionamento deste preceito: «O credor fica, por conseguinte, com o direito de exigir a realização, não apenas da prestação a que o devedor faltou, mas todas as prestações restantes, cujo prazo ainda se não tenha vencido. / Assim se deve interpretar o texto do artigo 781.º, e não no sentido de que, vencendo-se imediatamente, ex vi legis, as prestações restantes, o devedor comece desde esse momento, ao arrepio da doutrina geral do artigo 805.º n.º 1, a responder pelos danos moratórios. / O vencimento imediato das prestações cujo prazo ainda se não vencera constitui um benefício que a lei concede – mas não decreta ela própria – ao credor, não prescindido consequentemente da interpelação do devedor».
Assim sendo, enquanto o credor não faz uso da faculdade conferida pelo Art. 781.º do C.C., todas as prestações vincendas após o incumprimento de uma qualquer anterior, continuarão a vencer-se na data que estiver estabelecida no contrato.
Deixando o credor terminar o prazo que serve de termo final ao contrato de mútuo, sem ter feito uso da interpelação admonitória prévia de que pretende fazer uso da faculdade que o Art. 781.º do C.C. lhe confere, não existe uma prestação “única” em mora, mas sim tantas quantas as que foram incumpridas, às quais acrescem juros sobre o capital de cada uma e desde a data do vencimento respetivo (Art.s 804.º, 805.º n.º 2 al. a) e 806.º do C.C.).
Ora, no caso dos autos, não foi feita prova de que o credor-exequente, aqui Recorrente, tenha feito uso oportuno da faculdade prevista no Art. 781.º do C.C., ou resolvido o contrato de mútuo por incumprimento dos mutuários (v.g. Art. 1150.º do C.C.).
O que se provou foi que interpelou para pagamento das quantias totais que considerou em dívida desde o incumprimento que identificou como tendo ocorrido em 3/4/1999. Mas tal só ocorreu em 22 de março de 2016 (cfr. doc.s de fls 48 e 51), quando o contrato já tinha chegado ao seu termo em junho de 2002! (cfr. doc.s de fls 46 e 47).
Nesse contexto, como é referido pela sentença recorrida, a interpelação para pagamento é inócua. Ou melhor dito, é inconsequente, porque não obsta à prescrição de cada uma das prestações mensais vencidas entre abril de 1999 (data do incumprimento verificado pelo credor) e junho de 2002 (data de vencimento da última prestação do contrato).
Por força dos Art.s 298.º n.º 2 e 310.º al.s d) e e) do C.C., estas prestações estavam efetivamente sujeitas ao prazo prescricional de 5 anos.
O prazo prescricional contava-se do dia de vencimento de cada prestação em falta concretamente considerada (Art. 306.º n.º 1, conjugado com o Art. 805.º n,º 2 al. a) do C.C.) e os devedores invocaram essa causa de extinção da obrigação (Art. 303.º do C.C.), o que legitima a recusa de cumprimento das correspondentes prestações (Art. 304.º n.º 1 do C.C.).
Julgamos que o Art. 307.º do C.C. não tem aplicação ao caso, sendo certo que se o mesmo fosse aplicado relevaria para o efeito a data a partir da qual era exigível a primeira prestação, ou seja o dia 3 de abril de 1999.
A prescrição só interromperia pela citação ou notificação judicial avulsa de ato que exprimisse a intenção de exercer o direito (Art. 323.º n.º 1 do C.C.), não sendo assim as cartas remetidas aos executados em 22 de março de 2016 adequadas a atingir esse desiderato. Aliás, mesmo que o fossem, já corresponderiam a uma interpelação fora de tempo, porque a nessa data já haviam prescrito todas as obrigações dos devedores emergentes do contrato.
Em face de todo o exposto, julgamos que a obrigação subjacente à livrança dada à execução encontra-se efetivamente prescrita e, encontrando-nos no domínio das relações imediatas, a prescrição da obrigação causal determina a necessária extinção da obrigação cartular, já que esta foi constituída apenas para cumprir a função de garantir aquela.
Extinta a obrigação garantida, extingue-se a relação jurídica de garantia que lhe é meramente acessória.
Improcedem assim as conclusões que vão em sentido contrário ao exposto, devendo a sentença recorrida ser inteiramente confirmada, improcedendo a apelação.
V- DECISÃO
Por todo o expostos, acorda-se em julgar a apelação improcedente por não provada, assim se mantendo a sentença recorrida.
- As custas pelo apelante (Art. 527º n.º 1 do C.P.C.).