DIVISÃO DE COISA COMUM
DESISTÊNCIA DO PEDIDO
Sumário

I - A desistência do pedido na acção de divisão de coisa comum é permitida por lei, uma vez que, por convenção e com os limites impostos pelo art. 1412º nº 2 do CCiv., o comproprietário pode obrigar-se a não exigir a divisão da coisa, renunciando a esse direito.
II - A autoridade do caso julgado da sentença homologatória da desistência do pedido não poderá ter alcance superior a cinco anos, podendo o desistente renovar o pedido de divisão decorrido esse prazo.

Texto Integral

Processo nº 3616/07-2
Apelação
Varas Cíveis do Porto - .ª Vara, .ª secção - proc. …./04.9 TVPRT
Recorrente – B………., SA
Recorridos – C………. e mulher
D………. e mulher
E………., Ldª
Relator – Anabela Dias da Silva
Adjuntos – Desemb. Antas de Barros
Desemb. Cândido Lemos

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – C………. e mulher F………. intentaram, nas Varas cíveis do Porto, acção especial de divisão de coisa comum, contra os requeridos B………., SA, D………. e mulher G………., H………., Ldª e E………., Ldª, pedindo que se proceda à adjudicação ou venda do imóvel, pagando-se a cada um o valor do seu quinhão.
Para tanto alegaram os requerentes, em síntese, que eles e os requeridos são proprietários do prédio urbano sito na Rua ………., descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 5024 e inscrito na respectiva matriz da freguesia de ………. sob o artº 894.
Os requerentes detêm a quota de ¼ = 25% do imóvel; os requeridos D………. e mulher detêm igual quota de ¼ = 25%; a requerida B………., SA detém 198/400 do prédio, correspondente a 48%; a requerida H………., Ldª detém 1/300 do prédio, correspondente a 1% e a requerida E………., Ldª detém igualmente 1/300 do prédio, correspondente a 1%.
O imóvel em questão é indivisível, por impossibilidade de divisão material, e os requerentes não pretendem manter a situação de compropriedade.

*
Todos os requeridos foram pessoal e regularmente citados e nenhum, em tempo útil, deduziu qualquer oposição ao pedido.
*
A requerida E………., Ldª foi, por apenso, habilitada nos autos como cessionária da quota da requerida H………., Ldª e para em vez dela prosseguir os termos do processo.
*
Depois de arguição de várias nulidades processuais e da respectiva decisão que veio a anular parte do processado, ordenou-se uma 1ªavaliação do imóvel em apreço nos autos, o que foi realizado, conforme fls. 277 dos autos.
Depois, a requerimento das partes, ordenou-se uma 2ª perícia, conforme consta dos despachos de fls 303 e 320.
*
Antes da referida 2ª perícia ser realizada, vieram os requerentes, por requerimento nos autos, declarar que desistiam do pedido neles formulado.
*
Ouvidos os requeridos sobre a pretensão dos requerentes, D………. vieram expressar declarar que a aceitam, mas as requeridas B………., SA e E………., Ldª vieram aos autos manifestar a sua oposição à homologação de tal desistência.
*
Finalmente, o Tribunal “a quo” proferiu decisão homologatória da desistência do pedido.
*
A requerida B………., SA veio então requerer aos autos que fosse admitida a neles intervir na posição activa dos requerentes face à identidade de direitos em causa e à desistência por aqueles apresentada, por interpretação analógica do nº1 do artº 322º do C.P.C., fazendo seu o requerimento inicial dos autos, com as rectificações determinadas pela habilitação da cessionária que correu por apenso.
*
Os demais intervenientes nos autos nada disseram sobre o referido requerimento.
*
Por fim, o Tribunal “a quo” indeferiu o assim requerido por B………., SA.
*
Inconformada com a decisão que homologou a desistência do pedido e com a decisão que lhe indeferiu o supra referido requerimento, delas recorreu, de apelação pedindo que seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos de divisão de coisa comum, e de agravo, a requerida B………., SA.
Posteriormente a recorrente desistiu do referido agravo e juntou aos autos as alegações onde formula as seguintes conclusões:
1ª Os recorrentes demonstraram nos autos vontade de pôr termo à indivisão objecto destes, opondo-se à desistência do pedido e manifestando vontade no prosseguimento dos mesmos.
2ª O direito de pôr termo à divisão, que assiste a qualquer dos com proprietários, tem natureza absoluta, não admitindo a extinção determinada pelo Douto Despacho recorrido (Código Civil, artigo 1412º).
3ª A indisponibilidade de tal direito, consagrada no referido preceito, determina que não seja permitida a desistência do pedido a ele subjacente, em obediência aliás, ao disposto no no 1 do artigo 299º do Código de Processo Civil.
4ª Não é legítimo que um acto unilateral de um dos comproprietários - neste caso, desistência do pedido - limite o direito absoluto de cada um dos restantes de pôr termo à indivisão, nem que os mesmos se vejam obrigados a exercer tal direito em novo processo, perdendo-se todos os actos aqui praticados - com manifestos prejuízos ao nível da celeridade e custos judiciais para todas as partes e violação clara da proibição da prática de actos inúteis consagrada no artigo 137º do Código de Processo Civil.
Acresce que:
5ª A acção de divisão de coisa comum tem de ser proposta pelo comproprietário contra todos os demais com proprietários do imóvel, configurando uma situação de Iitisconsócio necessário, pois só mediante a intervenção de todos os interessados se alcança o efeito útil e normal da acção.
6ª Salvo melhor entendimento, e perante esta circunstância irrefutável, ainda que se admitisse válida a desistência do pedido - o que refuta, não se prescindindo da argumentação anterior -, o Tribunal a quo, apenas a poderia ter considerado relevante para efeitos de custas,ordenando, quanto ao mais - face à vontade de exercer o seu direito absoluto de por termo à indivisão, demonstrada nos autos pela recorrente - o prosseguimento regular dos autos (cfr. no 2 do artigo 298º do Código de Processo Civil).
7ª O Douto Despacho recorrido violou e interpretou erradamente o artigo 1412º do Código Civil e os artigos 28º, 137º, 298º, no 2 e 299º, no 1 do Código do Processo Civil, bem como o princípio da economia processual subjacente ao direito processual aplicável;
8ª A situação em apreço deveria ter sido decidida, ressalvado o devido respeito, num dos seguintes sentidos: inadmissibilidade da desistência do pedido formulada pelos Recorridos ou, caso assim não se entendesse, limitação dos efeitos de tal desistência em sede de custas, determinando-se em qualquer dos casos, o prosseguimento dos autos.
9ª Propugna-se, assim, pela revogação do douto despacho em crise e sua substituição por outro que não admita a desistência do pedido apresentada pelos Requerentes, ora recorridos, ou, subsidiariamente, que a julgue relevante apenas para efeitos de custas, ordenando-se consequentemente e, em qualquer das circunstâncias, o regular prosseguimento subsequente dos autos.
*
Não foram apresentadas contra-alegações.

II – Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Com relevância para o conhecimento do recurso tem-se como assente os factos sumariados no relatório que antecede e aqui se dão como reproduzidos, porquanto é com base neles que haverá de ser apreciada a questão suscitada no âmbito do recurso.

III – Como é comumente sabido, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se que se define e delimita o objecto dos recursos, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, cfr. artºs 664º, 684º nº 3 e 690º nºs 1 e 4, todos do CPCivil.
Vendo, no caso em apreço, as conclusões da recorrente, verifica-se que a questão que importa apreciar é a seguinte:
a) Saber se, na acção de divisão de coisa comum, é legalmente admissível a desistência do pedido?
*
A desistência do pedido, cfr. artº 295º nº1 do C.P.Civil, extingue o direito que se pretendia fazer valer, ou seja, por ela o autor renuncia à própria pretensão apresentada em juízo.
Trata-se de um acto jurídico unilateral praticado pelo autor, em consequência do qual fica extinto o direito material que este pretendia fazer valer.
Para ser admissível a desistência do pedido é necessário que o direito material controvertido não tenha carácter de indisponível, pois se o tiver, e de harmonia com o que se dispõe o nº 1 do artº 299º do C.P.Civil, “não é permitida a desistência que importe a vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis”.
Na verdade, no nosso ordenamento jurídico existem relações jurídicas subtraídas ao domínio da vontade das partes, quer por expressa disposição da lei, quer pela sua própria natureza. Sendo no direito substantivo que se há-de ir averiguar do carácter de indisponibilidade dos direitos em causa.
O Conselheiro Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código Civil”, volume II, 1988, pág. 99, escreve, citando Azzaritti e Scarpello, que: “Um direito deve considerar-se indisponível quando o seu titular não puder privar-se dele por simples acto da sua vontade. Sucede, porém, que muitas vezes a lei não declara explicitamente a indisponibilidade, devendo, nesses casos, o intérprete socorrer-se da disciplina legislativa aplicável à matéria, para concluir se a vontade da lei foi subtrair um determinado direito ao poder de disposição do seu titular, tendo principalmente em conta a valoração complexa dos interesses que a lei teve em vista na atribuição desse direito”.
Sendo certo que direitos subtraídos à disponibilidade das partes são, por regra, aqueles onde predomina o interesse público.
Por via da acção de divisão de coisa comum, o comproprietário que não pretende permanecer na indivisão, exerce em juízo o seu direito de exigir a divisão da coisa, cfr. artº 1412º nº 1 do C. Civil.
Este direito do comproprietário de exigir da divisão da coisa comum pode por ele ser, negocialmente, renunciado por períodos não superiores a cinco anos, sendo-lhe ainda lícito, por nova convenção, renovar tal prazo por uma ou mais vezes, tal é o que resulta da parte final do nº1 e do nº 2 do artº 1412º do C.Civil.
Destarte, o direito do comproprietário exigir a divisão da coisa comum não é um direito de que não possa livremente dispôr pela via negocial, ou seja, um direito indisponível, já que por convenção e com os limites impostos pelo citado nº 2 do artº 1412º do C.Civil, o comproprietário pode obrigar-se a não exigir a divisão da coisa, renunciando a esse direito, ou seja, obrigando-se a permanecer na indivisão.
Ainda de harmonia com a lei substantiva parece não existir qualquer obstáculo a que o pacto de indivisão seja estipulado apenas entre alguns comproprietários; sendo que nada impede que os comproprietários que não tenham subscrito tal convenção, possam, em qualquer momento, fazer cessar a comunhão em relação a todos.
Assim sendo, objectivamente, e de harmonia com o disposto no artº 299º nº 1 do C.P.Civil, a desistência do pedido na acção de divisão de coisa comum, é permitida por lei.
Ora, sendo válida uma tal desistência do pedido, quer pelo seu objecto, quer pela qualidade do desistente, o juiz do processo, por sentença de mérito, homologa-a, absolvendo, consequentemente, o réu do pedido.
Como se referiu acima, a desistência do pedido, homologada por sentença, extingue o direito que se pretendia fazer valer, cfr. artº 295º nº1 do C.P.Civil.
A sentença homologatória de tal desistência, transitada em julgado, apresenta-se com a autoridade própria do caso julgado material, cfr. artº 671º do C.P.Civil, nos precisos limites e termos em que julgou.
Logo, se ao comproprietário – autor – não era possível, por uma única convenção, obrigar-se a não exigir a divisão da coisa comum por um prazo superior a cinco anos, cfr. nº 2 do artº 1412º do C.Civil, também a autoridade do caso julgado da sentença homologatória da desistência do pedido que formulou em juízo - não poderá ter alcance temporal superior a cinco anos, ou seja, a extinção/renúncia do seu direito de exigir a divisão da coisa não poderá ter para o desistente outro alcance que não a extinção/renúncia a esse direito por um prazo de cinco anos. Pelo que o próprio desistente pode renovar esse mesmo pedido decorridos cinco anos sobre a data da homologação dessa desistência e, no entretanto, nada impede os demais comproprietários de exigirem em juízo essa mesma divisão, a que aquele desistente se terá de sujeitar, assim como, todos os comproprietário, incluindo o desistente poderão, nesse mesmo entretanto, operar a divisão de coisa comum por um dos quaisquer meios extrajudiciais previstos na lei.
Pelo exposto, concluímos que é legalmente admissível, atento o seu objecto, a desistência do pedido na acção de divisão de coisa comum, improcedendo, consequentemente as respectivas conclusões da apelante.
*
Finalmente, alega a apelante que sendo certo que a acção de divisão de coisa comum tem de ser proposta pelo comproprietário contra todos os demais com proprietários do imóvel, configurando uma situação de litisconsócio necessário, pois só mediante a intervenção de todos os interessados se alcança o efeito útil e normal da acção, consequentemente e de harmonia com o no 2 do artº 298º do C.P.Civil, o Tribunal “a quo”, apenas poderia ter considerado a desistência do pedido formulada pelos autores relevante para efeitos de custas, ordenando, quanto ao mais e face à vontade de exercer o seu direito de por termo à indivisão, demonstrada nos autos pela recorrente, o prosseguimento regular dos mesmos.
O artº 298º do C.P.Civil faz a aplicação directa do que se dispõe no artº 29º do mesmo diploma legal.
E assim porque no litisconsórcio voluntário há uma acumulação de acções, conservando cada litigante uma posição de independência relativamente aos seus compartes, a desistência do pedido que um dos litigantes faça, somente diz respeito à acção que poderia ter proposto separadamente, por isso, apenas se verifica uma redução do objecto do processo.
Diversamente, nos casos de litisconsórcio necessário porque há uma única acção com pluralidade de sujeitos, a desistência que um dos litigantes faça do pedido não produz quaisquer efeitos, quer sobre a relação material controvertida, quer sobre a sua subsistência, apenas relevando para efeitos de desresponsabilização do desistente pelas custas dos actos processuais subsequentes.
No caso dos autos, os autores/desistentes apresentam-se, na presente acção, como única parte activa e não em qualquer situação de litisconsórcio necessário activo, razão pela qual a situação dos autos não é enquadrável no previsto no artº 298º do C.Civil.
Pelo que improcedem as demais conclusões da apelante, confirmando-se a decisão recorrida.

IV – Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem esta secção cível em julgar a presente apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 25 de Setembro de 2007
Anabela Dias da Silva
António Luís Caldas Antas de Barros
Cândido Pelágio Castro de Lemos