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EXECUÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
ACÇÃO CAMBIÁRIA
LETRA DE CÂMBIO
PRESCRIÇÃO
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
Sumário
1 - A prescrição do crédito cambiário não importa a prescrição do crédito subjacente podendo o credor lançar mão de acção contra o seu devedor directo para exigir a prestação extracartular. 2 - No caso de no título não constar referência à causa debendi, tem o exequente o ónus de invocar, no requerimento inicial executivo, sucintamente, os factos que fundamentam o pedido, invocação essa que pode decorrer também da conjugação e da análise do próprio título. 3 - Resultando da letra (prescrita) que ela foi entregue ao banco exequente por via de endosso pelo sacador e sendo alegado no requerimento executivo que essa entrega teve como causa o desconto dessa letra, mostra-se suficientemente invocado o fundamento do pedido executivo contra o descontário.
Texto Integral
Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I-Relatório
1- Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que A [ Banco …,SA ] , move a B ,C e D , veio o co-executado C deduzir oposição à execução, pedindo a respectiva procedência e a consequente extinção da execução.
Alegou, em síntese, que a letra dada à execução venceu-se 31/07/2008 e a acção executiva foi instaurada apenas em 21/10/2011, o que implica que enquanto título cambiário encontra-se prescrita. A invocação de que a dívida tem como causa a que consta da letra de câmbio “reforma da letra de 73 000€ vencida em 2008-04-03” de nada vale como titulo executivo enquanto documento particular, por aquela expressão não configurar a concreta relação subjacente a emissão da letra. Além disso, o adquirente por endosso de uma letra prescrita não pode usá-la como título executivo enquanto documento particular. Além disso, a letra nunca poderia representar um mútuo de dinheiro porque, face ao valor mencionado teria de ser celebrado por escritura pública.
Além disso o oponente nunca solicitou nem obteve do exequente qualquer quantia, nem com ele teve qualquer transacção comercial.
Por outro lado, não tem qualquer dívida com o executado B a quem já pagou a totalidade da dívida referida na letra.
2- A exequente contestou.
Invoca que a letra foi aceite pelo opoente e endossada ao exequente pelo sacador B .Assim, entre a exequente e opoente/aceitante inexiste qualquer relação subjacente, não podendo aquele opor ao exequente/portador quaisquer excepções fundadas nas suas relações com o sacador.
Ao ora exequente, que não se encontra no domínio das relações imediatas com o aceitante, mas ainda assim, invocou a relação material subjacente à emissão da letra: o mútuo consubstanciado no desconto da letra inicial que veio a ser reformada. Mútuo inicial de 83 500€ que resulta, além do mais do extracto bancário do co-executado.
Além disso pelo endosso o exequente tornou-se credor do endossatário e dos demais obrigados pela letra.
A relação material subjacente está explanada no requerimento executivo.
3- Por decisão de 09/04/2014, foi a oposição julgada procedente e os executados absolvidos do pedido executivo.
É do seguinte teor essa decisão:
“1. RELATÓRIO F M veio deduzir oposição à execução que lhe é movida pelo "A", para pagamento da quantia de 73.833,00€, alegando que a letra dada à execução está prescrita, que não foram alegados os factos que constituem a relação subjacente para que pudesse ser considerada como mero quirografo, que mesmo que sejam considerados suficientes existiria nulidade pela falta de forma de mútuo no valor da letra e, finalmente, impugnando a existência de qualquer relação subjacente. A exequente contestou, defendendo que a oposição deve ser julgada improcedente, porquanto, estando no domínio das relações mediatas, o opoente não pode invocar exceções respeitantes à relação subjacente, que o título não foi apresentado como título cambiário, mas como quirógrafo e que a relação material subjacente está de forma clara explanada no requerimento executivo. Posto isto, cumpre apreciar e decidir. * O Tribunal é o competente. O processo é o próprio e não existem nulidades que o invalidem totalmente. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente patrocinadas. Não se verificam outras excepções, questões prévias ou nulidades que obstem à apreciação de mérito e cumpra conhecer. * 2. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO São suscitadas, em síntese, quatro questões pelo opoente, as quais devem ser apreciadas, pela lógica, na ordem que se segue: prescrição do título cambiário; insuficiência do título executivo; nulidade por falta de forma do mútuo que constitui relação subjacente; inexistência de relação subjacente e possibilidade de o opoente se defender no âmbito destas. i) Prescrição do Título Cambiário Esta é uma falsa questão, uma vez que o exequente assume logo no requerimento executivo que a letra, enquanto título de crédito, se encontra prescrita. Trata-se de conclusão evidente, face à data de emissão da letra (30/7/2008) e à data de propositura da execução (21/10/2011), e ao prazo de três anos previsto no artigo 70º da LULL. Face à assunção da prescrição e à identificação do título executivo como “documento particular assinado pelo devedor”, é manifesto que o exequente apresentou a letra como mero quirógrafo, sendo, por essa razão, irrelevante a prescrição do título cambiário. Improcede esta exceção. ii) Insuficiência do Título Executivo Coisa diversa é a de saber se se encontram reunidos todos os pressupostos necessários para que a letra, enquanto quirógrafo, constitua título executivo suficiente. Antes da redação introduzida no NCPC (atual artigo 703º, n.º 1, alínea c) que considera títulos executivos: “Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde quem neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.”), já vingava, maioritariamente, na jurisprudência dos tribunais superiores, a tese que agora o legislador consagrou expressamente. O que importa saber é se, tendo o exequente recebido por endosso a letra, pode a mesma valer como título executivo enquanto quirógrafo e se os factos alegados são suficientes para caracterizar a relação subjacente. E ambas as perguntas merecem resposta negativa. A ratio da admissibilidade do título de crédito prescrito como título executivo enquanto mero quirógrafo consiste no facto de o documento constituir um reconhecimento de dívida, assinado pelo devedor. Contudo, apenas podemos considerar a letra prescrita como um reconhecimento de dívida do opoente/sacado para com o co-executado B/sacador, e não para com o A "Banco…, S.A.", que só “surge” por via de um endosso. Por outras palavras, da letra prescrita não resulta qualquer reconhecimento pelo Opoente de uma dívida para com o A "Banco …, S.A.". Ou seja, o título prescrito usado só pode ser usado como quirógrafo no âmbito das relações imediatas. É que, importa não esquecer que, estando prescrita a letra, o exequente A "Banco…, S.A." não pode invocar transmissão por via de endosso, porquanto está a fazer valer o título como documento particular. Em segundo lugar, sempre soçobraria a pretensão do exequente, porquanto apenas são alegadas conclusões (financiamento prorrogado), e não factos constitutivos da relação subjacente: contrato originariamente celebrado, cuja prorrogação se estaria a fazer através da reforma, sobre o qual nada se sabe. Aliás, não sendo o exequente parte na relação subjacente, sempre tais factos seriam insuficientes sem que fossem também alegados os factos subjacentes ao endosso efetuado, o que também não foi feito. Em suma: o título cambiário só pode servir de título executivo enquanto quirógrafo no âmbito das relações imediatas e com cabal alegação dos factos constitutivos da relação subjacente. Face a isto, conclui-se pela procedência da oposição, não se chegando sequer a conhecer das demais questões suscitadas, não se deixando, contudo, de atentar em como o exequente se contradiz, na sua contestação (artigo 4º a 10º), defendendo que o opoente não se pode defender por exceção por estarmos no âmbito de relações mediatas, apesar de o título ter sido dado à execução como mero quirógrafo… 3. DECISÃO Pelo exposto, julgo procedente a oposição à execução e, consequentemente, absolvo os executados do pedido executivo. Custas pela exequente.”
4-Inconformado, o exequente recorreu dessa decisão, pedindo a respectiva revogação, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1ª- O ora recorrente deu entrada em 21/10/2011 de um requerimento executivo para pagamento de uma letra aceite pelo executado C e endossada pelo sacador, o executado B no montante de 65 000€ emitida em 31/04/2008 e vencida a 31/07/2008.
2ª- Veio o executado C deduzir oposição à execução, alegando para tanto a inexistência de transacção comercial com o exequente, a prescrição da letra dada à execução e, ainda, a inexequibilidade da mesma por falta de invocação da relação material subjacente.
3ª- O apelante contestou defendendo: A não existência com o recorrido de qualquer relação subjacente; a letra dada à execução é um documento particular e não título de crédito e como tal não cabia ao exequente alegar em sede de requerimento executivo a relação material subjacente, bem como que o endosso como negócio unilateral e abstracto consiste em uma nova ordem dada ao sacado ao sacador para que pague o valor indicado no título.
4ª- Em sede de despacho saneador, considerou o tribunal estarem reunidos os elementos necessários à decisão de mérito.
5ª- Na douta sentença recorrida considerou o Exmo. Sr. Juiz a quo que o título cambiário só pode servir de título executivo enquanto quirógrafo no âmbito das relações imediatas e com cabal alegação dos factos constitutivos da relação subjacente, julgando procedente a oposição deduzida e por via dela absolver os executados do pedido executivo.
6ª- Não assiste, contudo, razão ao Exmo. Sr. Juiz a quo.
7ª- De facto a letra dos autos incorpora uma obrigação abstracta, literal, autónoma e de livre circulabilidade, conforme artigo 46º da LULL.
8ª- No caso sub iudice o apelante é legítimo portador da letra por via do endosso efectuado pelo exequente B.
9ª- Como tal o apelante estabeleceu uma relação directa com o referido executado na qualidade de descontador, sendo por conseguinte credor do descontário (o executado B) conforme artº 47º da LULL.
10ª- Ao estabelecer uma relação directa com o executado B encontra-se quanto a este no âmbito das relações imediatas.
11ª- A letra dada à execução embora se encontre prescrita, constitui título executivo porque contém uma promessa duma prestação ou o reconhecimento de uma dívida perante o credor.
12ª- Como tal vale como causa de pedir uma vez que não obstante prescrita faz menção à respectiva relação material subjacente, nos termos da alínea c) do nº 1 do artº 46º do código de processo civil na sua anterior redacção.
13ª- O apelante na qualidade de legítimo portador da letra dada à execução tem, nessa qualidade, o direito de accionar o executado, ora recorrido, C, sacado e aceitante, enquanto devedor principal, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 47º da LULL.
14ª- Conforme resulta também, aliás, do artigo 14º da LULL, pois que o endosso transmite todos os direitos emergentes da letra.
15ª- O aceitante deve o montante titulado, pela promessa directa que fez ao tomador, sendo esta exequível quanto ao sacador/endossante e aceitante.
16ª- A verificação da exequibilidade do título em apreço, afere-se, também, da possibilidade de retirar dos factos alegados no requerimento executivo os direitos que lhe estão subjacentes.
17ª- O título dado à execução é bastante para exercitar o direito literal e autónomo nele mencionado.
18ª- De facto, nos termos do artigo 1º da LULL, a letra dos autos preenche todos os requisitos legalmente exigidos.
19ª- Atenta a natureza da letra dada à execução pode a mesma ser executada enquanto mero quirógrafo, na medida em que nela própria vem identificada a respectiva relação material subjacente.
20ª- O apelante estabeleceu uma relação imediata com o executado B, na medida do endosso efectuado e como legítimo portador da letra tem, nessa qualidade, o direito de accionar também o executado C, resultando, nos termos do artigo 1º da LULL, da letra dos autos os fundamentos do pedido.
21ª- Certo é também, que mesmo que não se entenda que o apelante tem o exercício do direito de acção sobre o executado C, o que se refere por mero dever de patrocínio, sempre teria, pelo supra exposto, a presente acção executiva de prosseguir contra o executado C .
*** II- Fundamentação. 1-Objecto do recurso.
É sabido que o objecto do recurso é balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC/13.
Assim, face às conclusões apresentadas, pelo recorrente, é a seguinte as questão que importa analisar e decidir:
- Se o exequente pode obter o pagamento da quantia inscrita em letra de câmbio prescrita. 2- Factualidade relevante.
Com relevância para a questão em causa nos autos, importa considerar a seguinte factualidade:
a)- Em 21/10/2011, o exequente instaurou execução para pagamento de quantia certa, contra B ,C e D, visando o pagamento da quantia de inscrita em letra de câmbio (65 000€), acrescida de juros vencidos (8.833,00 €).
b)- No requerimento executivo escreveu: 1.º - Em 30/04/2008 os Executados reconheceram dever ao Exequente a importância de € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros), tendo entregue (endossado) para o efeito, ao Exequente a letra que se junta. 2.º - A dívida reconhecida tem a causa que se extrai do doc. junto : “Reforma Letra de € 73.000,00 Venc. 2008-04-30”. Ou seja, um financiamento (desconto de letra) cujo pagamento, por via da reforma, foi prorrogado. 3.º -A obrigação exequenda venceu-se em 31/07/2008. (cfr. doc. que se junta). 4.º - Apesar de por diversas vezes interpelados para o fazer, pelos serviços do Exequente, os Executados ainda devem à exequente o capital de € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros). 5º - “ I – Dada à execução uma letra e alegada pelo executado e verificada a prescrição, não mais pode ter força executiva como “ letra “. II – Pode, porém, servir ainda de título executivo como documento particular assinado pelo devedor se do título constar a causa da relação jurídica subjacente. “- cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 1998.06.02, BMJ, 478º, pag. 459. 6º - O documento particular é, assim, título executivo bastante, por força do disposto na alínea c) do art. 46.º do C.P.C. 7º - Além do indicado capital em dívida os Executados devem à Exequente os juros vencidos, contados desde a data de entrada em mora – 31/07/2008 - e vincendos até integral pagamento, à taxa legal em vigor de 4% conforme adiante se discrimina. 8º - O tribunal é territorialmente competente, cfr. n.º 1 do art. 94.º do CPC.
c)- Consta na letra de câmbio que acompanha o requerimento executivo:
Nome e morada do sacador: B…2825-075 Caparica.
Local e data de emissão: Monte da Caparica 2008-04-30
Importância: 65 000€.
Vencimento: 2008-07-31.
Valor: reforma de letra de 73 000€ venc. 2008-04-30.
Assinatura do sacador: uma rubrica ilegível.
No espaço destinado ao aceite, a assinatura manuscrita de C Local de pagamento/domiciliação: (conta) 003600059910000267383 –Banco Y.
No verso, consta a rubrica (ilegível) do sacador e, por baixo do carimbo “Sem Despesas”, outra rubrica do sacador.
3-As questões jurídicas.
3.1-Prescrição da letra: consequências.
É pacífico entre as partes que a letra de câmbio dada à execução se encontra prescrita: o exequente afirma-o expressamente no requerimento inicial executivo.
O artº 70º da LULL estabelece:
“Todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento. As acções do portador contra os endossantes e contra o sacador prescrevem num ano, a contar da data do protesto feito em tempo útil, ou da data do vencimento, se se tratar da letra contendo a cláusula «sem despesas». As acções dos endossantes uns contra os outros e contra o sacador prescrevem em seis meses.”
Do preceito resulta, no que ao caso interessa, que todas as acções contra o aceitante prescrevem no prazo de três anos a contar do vencimento da letra (sobre o vencimento da letra importa ter presente as regras dos artºs 33º a 37º da LULL).
As acções do portador contra os endossantes e contra o sacador prescrevem no prazo de um ano a contar do protesto ou da data do vencimento se houver cláusula “sem despesas”.
É necessário compreender que a prescrição se reporta às acções relativas às obrigações cambiárias e não aos negócios subjacentes. Melhor dizendo, a prescrição do crédito cambiário não importa a prescrição do crédito subjacente.
Por regra, o direito de crédito subjacente tem um prazo de prescrição mais longo. E essa característica deve-se à autonomia do direito cambiário: a prescrição deste não implica a invalidade ou ineficácia do crédito que esteve na base da emissão da letra e dos negócios a ela associados.
Significa isto que apesar da prescrição do crédito cambiário, pode ainda assim o credor lançar mão de acção contra o seu devedor directo para exigir a prestação extracartular (Cf. Pinto Furtado, Títulos de Crédito, 2ª edição, pág. 70 e seg.).
3.2- Os títulos de crédito “prescritos” como títulos executivos.
Extintas as obrigações cartulares por via da prescrição prevista no artº 70º da LULL, o credor das obrigações extracartulares não fica impedido, como vimos, de obter judicialmente a satisfação do seu crédito.
Pois bem, uma desses meios processuais pode ser a acção executiva para pagamento de quantia certa.
No domínio do código de processo civil na versão de 95 – aplicável ao caso face ao disposto no artº 6º nº 3 da Lei 41/2013, de 26/06, que estabelece “O disposto no Código de processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, relativamente aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor.”; ora, tendo a execução sub iudice sido instaurada em 21/10/2011, a plica-se-lhe, por conseguinte, o regime do CPC/95 – relativamente às espécies de títulos executivos, dispunha o artº 46º nº 1, al. c) que à execução podem servir de base: “Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético…”.
Anteriormente à reforma de 95, a al. c) do nº 1 do artº 46º do código de 61 previa que à execução podem servir de base “As letras, livranças, cheques, extractos de factura…e quaisquer outros escritos particulares, assinados pelo devedor, dos quais conste a obrigação de pagamento de quantia determinada…”. Portanto, pela reforma de 95 o legislador terá entendido ser desnecessária a referência expressa às letras livranças e cheques, por se considerarem incluídos na espécie ampla de documentos particulares assinados pelo devedor.
Ora bem, na vigência da versão de 95 do artº 46º nº 1, al. c) do código, a jurisprudência, maioritariamente entendia que o credor podia executar a obrigação extracartular fazendo uso do documento, já sem eficácia cartular, enquanto reconhecimento particular de dívida assinado pelo devedor, nos termos do artº 458º do CC (entre outros, TRP, de 26/01/2000 (Oliveira Vasconcelos); TRP de 16/11/2000 (Norberto Brandão); TRP de 02/04/2001 (Macedo Domingues); TRL de 25/06/2002 (Folque de Magalhães); STJ de 23/01/2001 (Afonso de Melo), www.dgsi.pt). E no caso de no título não constar referência à causa debendi, teria o exequente o ónus de invocar, adequadamente, no requerimento inicial executivo, os factos essenciais constitutivos da relação subjacente, a fim de permitir ao executado o cumprimento do ónus probatório em consequência da dispensa de prova concedida ao credor de acordo com o artº 458º do CC. (STJ, de 07/05/2014, Lopes do Rego).
À luz dessa doutrina, o título de crédito prescrito podia valer como título executivo desde que reunisse os requisitos de exequibilidade dos escritos particulares.
Um desses requisitos, de ordem material, exigia a enunciação concreta e determinada da relação causal ou subjacente à obrigação exequenda, ou seja, a indicação de um acto jurídico em virtude do qual alguém se tenha constituído na obrigação de pagar determinada quantia a outrem, feita no título de crédito (prescrito) ou, então, indicada no requerimento executivo (Cf., entre outros, STJ de 04/12/2007 (Mário Cruz), STJ de 28/04/2009 (Serra Baptista); STJ de 05/07/2007 (Fonseca Ramos) todos em www.dgsi.pt). Exigia-se ainda, enquanto pressuposto material, que o valor do reconhecimento da dívida apenas poderia valer no âmbito das chamadas relações imediatas (Cf. TRL 18/06/2008 (Rosário Gonçalves). Portanto, prescrita a acção cambiária da letra, esta não podia continuar a valer como título executivo entre o aceitante e o portador que a recebeu a título de endosso (TRL, de 18/06/2008, (Rosário Gonçalves), TRP, de 25/05/2000, Mário Fernandes; STJ, de 27/11/2007 (Santos Bernardino), todos em www.dgsi.pt).
Também a doutrina maioritária seguia esta solução (Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 2ª edição, 1997, pág. 53 e segs; Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum, 2000, pág. 72 e seg.; Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 6ª edição, pág. 34 e seg. Lopes do Rego, Comentários ao CPC, vol. I, pág. 82 e seg.; Abrantes Geraldes, Títulos Executivos, pág. 62; Pinto Furtado, Títulos de Crédito, 2ª edição, pág. 72 e segs; no mesmo sentido parece ser a opinião de Rodrigues Bastos, Comentários ao CPC, vol. I, 3ª edição, pág. 102).
Em sentido contrário outra doutrina e jurisprudência entendiam que, prescrito o título de crédito, não pode ele valer como documento particular com força executiva em face do artº 458º do CC porque, quem o subscreve, não está a emitir um reconhecimento de dívida nos termos desse normativo, mas pretende vincular-se de acordo com as normas relativas ao título de crédito que emite ou subscreve (Cf. Rui Pinto, A Ação Executiva, 2018, AAFDL, pág. 200; Lopes-Cardoso, Manual da Acção Executiva, 3ª edição, pág. 72).
Quanto a nós, salvo melhor entendimento, concordamos com a doutrina e jurisprudência maioritárias supra referidas.
Com efeito, a subscrição de um documento, ainda que fisicamente com o aspecto gráfico de um título de crédito (letra de câmbio), não pode deixar de ser entendido como a subscrição de um documento particular. O conceito de documento particular tem sede no direito civil, mormente artºs 362º do CC.
Além disso, no caso das letras de câmbio, elas encerram o reconhecimento da obrigação pecuniária, visto que enunciam uma ordem de pagamento (“pagará”) que é dada por determinada pessoa (sacador) a outra (sacado) em favor de um terceiro (tomador) (Cf. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, Letra de Câmbio, 1975, pág. 20).
Portanto, prescrita a acção cambiária inerente à emissão de uma letra de câmbio, ainda assim não pode deixar de ser tida como documento particular que encerra uma declaração de vinculação a pagar uma determinada quantia monetária nela inscrita; o mesmo é dizer, o reconhecimento de uma dívida pecuniária.
No entanto, o reconhecimento dessa obrigação de pagamento, prescrita a acção cambiária, subsiste entre quem nela se vinculou como devedor e perante quem nela consta como credor. Ou seja, “desaparecendo” os direitos de créditos cartulares, resta a relação subjacente substantiva e, por isso, não pode o portador da letra invocar uma relação creditória contra um “devedor” com quem não teve relação de crédito substantiva causal da emissão da letra.
Assim, o exequente não pode invocar contra o executado, como causa debendi, uma obrigação que teria apenas por fundamento uma relação cartular que desapareceu por efeito da prescrição da acção cartular.
Aliás, a reforma de 2013 do código de processo civil optou pela solução que vemos defendendo, pondo desse modo termo à divergência existente na doutrina e na jurisprudência sobre a questão. Assim, os títulos de crédito quirógrafos servem de base à execução desde que os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo (artº 703º nº 1, al. c) do CPC/13), devendo o exequente expor “…sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo…” (artº 724º nº 1, al. e) do CPC/13).
3.3- O caso dos autos.
3.3.1- Quanto ao executado/apelado,C.
No caso dos autos, verifica-se que entre o exequente e o executado/aceitante da letra, C, não existe qualquer relação substantiva em termos de constituir o apelante credor do apelado. Não existe, entre eles, qualquer relação imediata como, de resto, o apelante reconhece no ponto 3 das suas conclusões. O exequente/apelante, portador da letra apenas se poderia arrogar credor do aceitante se a acção cambiária não se encontrasse prescrita.
Assim, face ao que se expôs é fácil concluir que a letra não pode servir de base à execução da quantia nela inscrita contra o apelado e, as razões invocadas pelo apelante nos pontos 13º, 14º, 15º, 17º e 20º, 2ª parte, das conclusões do recurso, não têm fundamento jurídico face à prescrição da acção cambiária.
Sem necessidade de outras considerações, resta concluir que a decisão recorrida se mostra correcta quanto ao executado/apeladoC.
3.3.2-Quanto ao executadoB.
Subsidiariamente, no ponto 21º das conclusões, o exequente/apelante pretende que a acção executiva prossiga contra o executado B.
Terá razão?
Explanámos a nossa posição quanto à possibilidade de executar letra de câmbio prescrita: serve de base à execução desde que os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo devendo o exequente expor sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo.
Pois bem, no caso dos autos, no título apresentado à execução, a letra de câmbio prescrita, consta no espaço destinado ao valor “Reforma de letra de 73 000€”.
Além disso, resulta do título que o sacador, B, entregou/transmitiu a letra, por endosso, ao exequente (endosso em branco, porque não identificou o endossatário – artº 12 § 3º da LULL).
É sabido que o endosso é um negócio cambiário que efectiva a circulação da letra. Trata-se de um negócio unilateral abstracto que no fundo tem por conteúdo uma nova ordem dada por um portador da letra ao sacado (ou aceitante, depois do aceite) para que pague, não a ele, endossante, mas a outra pessoa, o endossatário; e encerra também uma promessa de que ele, endossante, pagará a letra se o sacado (aceitante) não a pagar. Assim, o endosso responsabiliza o endossante pelo aceite e pelo pagamento da letra (Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Títulos de Crédito, 1990, AAFDL, pág. 121).
No fundo, o endosso é um novo saque, que difere do primeiro apenas por ser este a criar a letra.
No entanto, prescrita a acção cambiária, como já se enfatizou, todos os direitos cartulares cessam e, a pessoa a quem foi entregue a letra (antes endossatário) apenas pode exigir o pagamento da quantia nela inscrita com base na relação substantiva que foi causa da entrega do título.
Ora, vimos que na letra apenas se refere “Reforma de letra de 73 000€”.
Em termos simples, a reforma de uma letra resulta de um pagamento parcial da letra inicialmente emitida. Consiste em substituir uma letra velha por outra nova, tendo por finalidade diferir o pagamento da obrigação constante da letra renovada. Substitui-se uma letra anterior sem que tenha ocorrido o seu pagamento integral (Cf. Abel Delgado, Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, anotada, 6ª edição, pág. 230 e seg.).
Mas a reforma da letra decorre, em princípio, entre o sacado/aceitante e o sacador. Embora se possa admitir que um portador da letra que a receba por endosso possa condescender em receber, igualmente por endosso, (do sacador) uma nova letra de reforma de quantia anterior, aceite pelo sacado.
Seja como for, no caso dos autos, não resulta do título a causa da entrega/endosso ao exequente pelo sacador.
Portanto, à luz da posição que defendemos, a menção, na letra, da expressão “Reforma de letra de 73 000€” não é suficientemente individualizadora/concretizadora da causa substantiva que terá estado na génese da entrega da letra pelo sacador ao exequente.
E será que no requerimento executivo foram alegados os factos que fundamentam o pedido de pagamento coercivo (execução) sobre o B?
Pois bem, no requerimento executivo o exequente escreveu, (com relevância): 1.º - Em 30/04/2008 os Executados reconheceram dever ao Exequente a importância de € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros), tendo entregue (endossado) para o efeito, ao Exequente a letra que se junta. 2.º - A dívida reconhecida tem a causa que se extrai do doc. junto : “Reforma Letra de € 73.000,00 Venc. 2008-04-30”. Ou seja, um financiamento (desconto de letra) cujo pagamento, por via da reforma, foi prorrogado.
Perante esta alegação, desde já importa sublinhar a irrelevância do ponto 1º face à prescrição das acções cartulares: as relações cartulares desapareceram.
Resta a alegação do ponto 2º, em que o exequente, no fundo, afirma que a entrega da letra ( pelo B) consubstanciou um financiamento: desconto de letra.
Vejamos se esta alegação é bastante para permitir considerar que está suficientemente alegado o fundamento do pedido. Recorde-se que a lei refere, no artº 724º nº 1, al. e) que o exequente deve expor sucintamente os factos que fundamentam o pedido.
O desconto é uma das operações previstas no artº 362º do Código Comercial. No entanto, não é objecto de regulamentação jurídica.
O desconto é um contrato pelo qual “…o banco (descontante, descontador) se obriga a antecipar ao seu cliente (descontário) a importância de um crédito, ainda não vencido e que esse cliente tem sobre terceiro, deduzido no acto da antecipação o juro pelo tempo que falta para vencimento do crédito, o qual é cedido salvo boa cobrança” (José Maria Pires, Elucidário de Direito Bancário, Coimbra Editora, pág. 643).
Desta noção decorre que são elementos essenciais do contrato de desconto: (i) a existência de um crédito sobre terceiro; (ii) não exigibilidade imediata desse crédito (crédito ainda não vencido); (iii) a antecipação pelo banco do pagamento desse crédito; (iv) dedução prévia de juros (prémio do desconto); (v) cessão, salvo boa cobrança, ao banco do crédito descontado (José Maria Pires, Elucidário…, cit., pág. Cit.).
Pois bem, no caso dos autos resultam suficientemente invocados esses requisitos. Na verdade, a letra de câmbio em causa enuncia, literalmente, que o B (sacador) tem um crédito sobre o aceitante (C) que é terceiro face ao contrato de desconto. Além disso, o valor da letra não era ainda exigível; demonstra ainda o desconto, enquanto antecipação do crédito do B sobre o C e a entrega da letra (cessão do crédito) ao banco exequente. O endosso/entrega da letra resulta do contrato, o qual, nas relações endossante/banco produz efeitos independentemente do regime cambiário. Assim, o banco, no caso de incumprimento, tem não só a faculdade de exercer o direito cambiário contra todos os subscritores, se a acção cambiária não prescrever, mas também a de demandar o endossante com fundamento no contrato – acção causal. (José Maria Pires, Elucidário…cit., pág. 645).
Recorde-se o teor do Assento 17/94 (DR 279, I Série –A, de 13/12/94) “O contrato de desconto bancário tem natureza formal, para cuja validade e prova é exigido a existência de um escrito que contenha a assinatura do descontário, embora tal escrito possa ter a natureza de documento particular.”
Por conseguinte, a letra vale enquanto documento particular – como tínhamos visto.
Perante o que se demonstrou, somos a entender que o exequente tem razão quanto à pretensão de prosseguimento da execução contra ao executado B.
O recurso procede parcialmente.
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III-Decisão.
Em face do exposto acordam na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência, ordenar o prosseguimento da execução contra o executado B.
Custas: pelo exequente/recorrente, reduzidas a metade, face à procedência parcial do recurso.
Lisboa, 10/01/2019
Adeodato Brotas (Relator)
Gilberto Jorge (1º Adjunto)
Maria de Deus Correia (2ª Adjunta)