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CONVENÇÃO DE LUGANO
COMPETÊNCIA
Sumário
I- Nos litígios aos quais seja aplicável a Convenção de Lugano relativa à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, a determinação da competência internacional dos Tribunais Portugueses e a aferição a validade e eficácia de pactos de jurisdição faz-se à luz da referida Convenção, não sendo aplicáveis as disposições consagradas no Código Processo Civil. II- O pacto atributivo de jurisdição manifestado em cláusula pré-elaborada e inserida em conhecimento de embarque não vincula o destinatário das mercadorias se não resultar provado que o expedidor manifestou por escrito a sua aceitação a tal clausulado e se não se fizer prova de que entre expedidor e transportador se estabeleceu um qualquer uso relativamente ao mesmo pacto, ou que aquele pacto constitui uso do comércio internacional. III- Não se verificando nenhuma das situações referidas em II-, a mera aposição pelo destinatário, de uma assinatura no conhecimento de embarque, com vista à receção da mercadoria não constitui demonstração da comunicação e aceitação do mencionado pacto de jurisdição. Não tendo a ré alegado e provado, nos articulados, a existência de usos com as caraterísticas referidas em II-, o pacto de jurisdição ali mencionado não pode ser considerado válido e eficaz.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I- RELATÓRIO
XL IC…, SE, London, Zurich Branch, com sede em Zurique, Suíça, intentou a presente ação declarativa de condenação com processo comum contra MS… Company, S.A., com sede em Genebra, Suíça, pedindo a condenação desta a pagar-lhe as quantias de € 5.157,61, e USD 18.990,71 acrescidas de juros vincendos sobre as quantias de € 5.139,87 e USD 18.925,38, à taxa de juros comercial desde 3 de Abril de 2017, bem como a quantia de € 2.669,50 acrescida de juros de mora à taxa de juros comercial desde a data da citação até integral pagamento.
Para tanto alega em síntese que[1]:
- Celebrou com a sociedade S…, S.A., com sede em Genebra, Suíça, um contrato de seguro de transporte marítimo, destinado a cobrir os riscos de perdas e danos em mercadorias transportadas por essa via;
- A S…, S.A. comprou à empresa HB… Company, Limited, com sede no Vietname, e revendeu à L… – Comércio de Matérias-primas, Lda dois carregamentos de café, no regime CIF (cost, insurance and freight), o que implicava o transporte da mercadoria vendida por via marítima e a sua entrega no porto de Leixões;
- O referido contrato de seguro destinava-se a cobrir os riscos inerentes ao transporte marítimo das mercadorias do Vietname até ao porto de Leixões.
- O transporte foi titulado por dois conhecimentos de embarque, que foram emitidos à ordem do AA… BANK, N.V., o qual havia financiado a L…, Lda com vista à execução desta operação, e com a menção expressa de notificar esta última quando ocorresse a chegada das mercadorias;
- Assim que a L…, Lda reembolsou o Banco AA…, N.V. da quantia correspondente ao financiamento prestado, este endossou àquela os originais dos dois conhecimentos de transporte, para que a mesma pudesse levantar as mercadorias;
- Aquando da chegada das mercadorias, a L…, Lda verificou que as mesmas se achavam danificadas;
- Apurados os danos mediante as competentes peritagens, a L…, Lda solicitou à autora a entrega da quantia calculada como correspondendo ao prejuízo sofrido, acrescida do montante despendido com as peritagens com vista à avaliação dos danos;
- A autora pagou à L…, Lda os valores por esta solicitados;
- Feito tal pagamento, a autora ficou sub-rogada nos direitos da L…, Lda, pelo que solicitou à ré o reembolso das quantias pagas com vista ao ressarcimento dos danos sofridos por aquela sociedade;
- … porém, a ré declinou a responsabilidade pelos danos sofridos nas mercadorias transportadas.
Citada a ré, a mesma contestou, invocando a exceção dilatória de incompetência internacional dos Tribunais Portugueses por preterição do pacto de jurisdição inserto no clausulado dos conhecimentos de transporte, nos termos do qual se atribuía ao High Court of London and English Law a competência exclusiva para apreciar as causas decorrentes de factos relacionados com o contrato de transporte de mercadorias em referência nos presentes autos. Mais invocou a exceção perentória de limitação da responsabilidade, nos termos do disposto no art. 4º, nº 5 da Convenção internacional para a unificação de certas regras em matéria de conhecimentos de carga, assinadas em Bruxelas em 25-08-1924, bem como dos arts. 1º do DL 37748, de 01-02-1950 e 31º, nº 1 do DL 352/86, de 21-10, decorrendo da referida Convenção a limitação da responsabilidade do transportador à quantia de 100 Libras Esterlinas por volume ou unidade, e dos diplomas nacionais a limitação a € 100.000$00 (também por volume ou unidade). Mais contestou por impugnação.
Terminou, sustentando que o Tribunal deve:
a) Declarar a incompetência absoluta do tribunal e, consequentemente, absolver a ré da instância;
b) Se assim se não entender, julgar a ação improcedente, por não provada, e consequentemente absolver a ré do pedido;
c) No caso de não se decidir conforme requerido em a) ou b), considerar a responsabilidade da ré limitada a € 1.995,20 (€ 498,80 x 4 volumes) ou, se se entender que a Convenção de Bruxelas de 25-08-1924 é aplicável apenas por remissão da cláusula 5.1.b) dos conhecimentos de embarque (e, por conseguinte, com exclusão do seu art. 9º), a 400 libras esterlinas (100 libras esterlinas x 4 volumes);
d) Condenar a autora nas custas do processo.
Notificada da apresentação da contestação, a autora apresentou articulado, no qual se pronunciou sobre as exceções invocadas pela ré na contestação, pugnando pela sua improcedência. Mais concretamente, no que tange à exceção de incompetência do Tribunal, sustentou que o pacto atributivo de jurisdição exclusiva a um tribunal inglês, invocado pela ré não é válido, por não respeitar as regras consagradas nos arts. 94º do CPC, e 25º do Regulamento (UE) nº 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12-12-2012.
Seguidamente, foi proferido despacho dispensando a realização de audiência prévia, seguido de despacho saneador, que julgou procedente a exceção de incompetência absoluta do Tribunal, por preterição de pacto de jurisdição, e consequentemente, declarou o Tribunal Marítimo de Lisboa incompetente para a presente causa, absolvendo a ré da instância.
Inconformada com o decidido no despacho saneador, veio a autora dela recorrer, formulando alegações, que sintetizou nas seguintes conclusões:
1- Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos Artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do Artigo 94.º - Artigo 59.º do C. P. C.
2- No caso dos autos o porto de descarga – Leixões - situa-se em território português, e a sede da L… Comércio de Matérias Primas Lda., destinatária da mercadoria, situa-se também em território português.
3- Ao abrigo do Artigo 4.º alínea f) Da Lei 35/86 de 4 de Setembro o Tribunal Marítimo de Lisboa é competente em razão de matéria para dirimir a presente acção.
4- A lei processual portuguesa admite a modificação das regras gerais sobre a atribuição de competência internacional através de convenção prévia entre as partes, desde que relação controvertida tenha conexão com mais do que uma ordem jurídica – Artigo 94.º n.º 1 do C. P. C.
5- A designação convencional da jurisdição competente pelas partes só é válida desde que se verifiquem cumulativamente os requisitos previstos nas alíneas do n.º 3 do Artigo 94.º do C. P.C.
6- A doutrina e a jurisprudência têm vindo a caracterizar o contrato de transporte como contrato trilateral assíncrono, na medida em que a adesão do destinatário ao contrato é habitualmente posterior ao acordo entre o carregador e o transportador.
7- A mercadoria foi adquirida pela L… – Comércio de Matérias Primas Lda, em regime CIF LEIXÕES.
8- A destinatária da mercadoria, a sociedade L… – Comércio de Matérias Primas Lda, não teve (nem podia ter) qualquer participação na escolha do transportador ou nas negociações das cláusulas do contrato de transporte, nomeadamente na escolha ou aceitação de um Tribunal inglês para dirimir qualquer litígio relacionado com o transporte da mercadoria.
9- Não existe qualquer prova ou evidência de que fosse prática entre as partes, nomeadamente entre o transportador e a destinatária da mercadoria, ou a aqui seguradora, a existência deste tipo de pacto atributivo de competência.
10- Relativamente à cláusula 10.3 inserta no verso dos conhecimentos de embarque não está verificado o requisito essencial do pacto atributivo de competência, o de ter sido celebrado por escrito pelas partes, incluindo a destinatária.
11- Nem a L… – Comércio de Matérias Primas Lda, destinatária da mercadoria, nem a Autora enquanto sub-rogada nos direitos desta, declararam expressamente aceitar tal pacto que atribui competência ao “High Court of London”, jurisdição com a qual nem a destinatária da mercadoria nem o vendedor, a sociedade S… S. A., tem qualquer conexão.
12- A cláusula atributiva de competência inserida no conhecimento de embarque que titula o contrato de transporte só vincula o destinatário da mercadoria se ele dela tiver conhecimento antes da adesão e se a aceitar expressamente por escrito.
13- No caso dos autos não existe qualquer declaração expressa e inequívoca de aceitação de tal cláusula pela destinatária, nem sequer há prova de que a destinatária tinha conhecimento do teor dos conhecimentos de embarque.
14- Tratando-se de uma cláusula não negociada inserida no verso de um conhecimento de embarque, para que a mesma vinculasse validamente a destinatária seria necessário não só alegar e provar que a mesma teve conhecimento do seu teor antes da data da adesão, como também a aceitação expressa e escrita da mesma, o que não se encontra demonstrado nos presentes autos.
15- A falta de redução do acordo escrito torna inválida a atribuição de competência vertida no conhecimento de embarque ao “High Court of London”.
16- O Mmo. Juiz a quo ao julgar no despacho saneador procedente a excepção dilatória de incompetência por violação de pacto atributivo de jurisdição inserto na cláusula 10.3 do verso dos conhecimentos de embarque, declarando internacionalmente incompetente o Tribunal Marítimo de Lisboa, não ponderou devidamente a situação concreta, tendo sido violados o disposto nos Artigos 59.º, 62.º, 63.º 94.º n.º 3, 96.º e 97.º do C. P. C. e Artigo 25.º n.º 1 do Regulamente (EU) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de Dezembro de 2012 e na Convenção de Lugano de 2007 invocada na douta sentença.
Termina pugnando pela revogação da decisão recorrida e, consequentemente, pela improcedência da exceção dilatória de incompetência absoluta, e pelo prosseguimento da causa no Tribunal Marítimo de Lisboa.
A ré apresentou contra-alegações, sintetizadas nos termos das seguintes conclusões:
1. A cláusula 10.3 dos conhecimentos de embarque juntos aos autos encerra um pacto privativo de jurisdição, nos termos do qual a competência para conhecer da acção pertence, exclusivamente, ao Tribunal de Londres.
2. Não tendo a A. suscitado a questão da invalidade substantiva da cláusula 10.3 dos conhecimentos à luz da lei inglesa (isto é, da lei do estado do tribunal designado nessa cláusula contratual), nem cabendo apreciar essa questão à luz da lei portuguesa, o tribunal ad quem, para conhecer da excepção da incompetência internacional do tribunal, deverá verificar, meramente, se se encontram preenchidos os requisitos formais de que o art. 23°/1 da Convenção de Lugano de 2007 (idêntico ao art 25°/1 do Regulamento (UE) n° 1215/2012) faz depender a celebração de pacto privativo de jurisdição.
3. Os requisitos previstos nas alíneas a), b) e c) do n° 1 do art. 23° da Convenção de Lugano de 2007 são alternativos.
4. Ambos os conhecimentos de embarque foram emitidos à ordem do banco holandês “AA…”, o qual os transmitiu, por endosso, à “L…”, que, assim, ficou na posse dos respectivos originais e na titularidade dos direitos sobre as mercadorias representadas por esses títulos, o que lhe conferiu legitimidade para, após o desembarque dos contentores no porto de Leixões, reclamar a sua entrega à R., mediante a entrega a esta dos referidos conhecimentos.
5. A reclamação de entrega e o recebimento dos contentores pela “L…” contra a apresentação dos conhecimentos de embarque endossados à sua ordem deixa transparecer a sua adesão aos contratos de transporte marítimo titulados por esses conhecimentos, adesão essa que constitui pressuposto da sub-rogação a favor da A. dos direitos advenientes para a “L…” dos referidos conhecimentos, a cujo exercício se destina esta acção (sendo que a A. aceitou a referida adesão, isto é, a adesão da beneficiária de seguro aos contratos de transporte, ao ter dado por reproduzido, no art. 8° da p.i., o conteúdo dos dois conhecimentos).
6. Com a adesão aos contratos de transporte, a “L…” aceitou todos os seus termos e condições e, consequentemente, os direitos e as obrigações deles resultantes, como decorre, expressamente, da cláusula, em letras maiúsculas, constante da frente dos conhecimentos, e transcrita na alínea c) da fundamentação de facto da sentença recorrida, nos termos da qual os referidos termos e condições, incluindo os do verso dos conhecimentos, sobre os quais foram feitos os endossos, se consideram, para todos os efeitos legais, assinados pelo comerciante.
7. Porque integra uma das cláusulas dos contratos de transporte, é forçoso concluir que o pacto privativo de jurisdição observa a forma escrita e, nos termos da cláusula a que se alude na conclusão anterior, se deve, inclusive, considerar assinado pela Lanço, sendo que, nos termos do nº 1 do art. 23º da Convenção de Lugano de 2007, a assinatura não é requisito da celebração do pacto privativo de jurisdição, como se depreende do seu nº 2.
8. Com a inclusão do pacto privativo de jurisdição na cláusula 10.3 dos conhecimentos, e com a adesão da “L…” aos contratos neles titulados, o requisito formal da alínea a) do nº 1 do art. 23º da referida Convenção ficou preenchido, obrigando, só por si, a concluir que o referido pacto foi celebrado em conformidade com esse instrumento internacional.
9. Além desse requisito, também se verifica o da alínea c) da mesma disposição.
10. Com efeito, a inclusão dos termos e condições contratuais e, entre estes, de uma cláusula de jurisdição no verso dos conhecimentos de embarque constitui um uso no transporte marítimo internacional de mercadorias, que todos os expedidores e recebedores de mercadorias por via marítima conhecem, ou devem conhecer, incluindo a “L…”, que é uma multinacional com longa experiência na comércio internacional de café, na sua expedição marítima e na contratação de transportes marítimos, sendo que, no caso concreto, a referida cláusula até remete para o foro de Londres, onde a representada da A. (isto é, a seguradora inglesa de que a A. é sucursal em Zurich) tem a sua sede, pelo que a eleição desse foro nem, sequer, representa qualquer inconveniente grave para a A..
11. A A. propôs a acção na Jurisdição portuguesa em violação do pacto privativo de jurisdição contido na cláusula 10.3 dos conhecimentos, pelo que o Tribunal Marítimo é incompetente internacionalmente, conforme declarou na sentença recorrida.
Termina pugnando pela improcedência da presente apelação e consequente manutenção da sentença recorrida.
Recebido o recurso nesta Relação, e colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II- QUESTÕES A DECIDIR
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[2]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, está vedado a este Tribunal o conhecimento de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[3].
No caso em análise, a única questão a decidir reside em determinar se os Tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a presente causa, o que implica apreciar a validade e eficácia do pacto de jurisdição invocado pela ré.
III- OS FACTOS
O despacho saneador recorrido considerou provados os seguintes factos:
a) Foi emitido em Hochiminh, Vietname, em 25 de Fevereiro de 2016, um conhecimento de embarque, cuja tradução integral, incluindo o seu verso, se mostra junto com a contestação, no qual foram apostas, designadamente, as seguintes menções:
MS… Company, SA
Conhecimento de embarque N.º …
Expedidor: HB… Company Limited (...);
Consignatário: AA… Bank N.V. (...)
Navio e Viagem: … …
Porto de Carregamento: Ho Chi Minh City
Porto de Descarga: Leixões, Portugal
Detalhes fornecidos pelo expedidor
Número de Contentores, números de selo e Marca: Café Vietname Robusta...
Descrição da Embalagem e mercadorias. 3x20’ contentor carregamento, estiva e contagem pelo expedidor
Embarcado na data: 25-Fev-2016
b) Foi emitido em Hochiminh, Vietname, em 13 de Março de 2016, um conhecimento de embarque, cuja tradução integral, incluindo o seu verso, se mostra junto com a contestação, no qual foram apostas, designadamente, as seguintes menções:
MS… Company, SA
Conhecimento de embarque N.º …
Expedidor: HB… Company Limited (...);
Consignatário: AA… Bank N.V. (...)
Navio e Viagem: … …
Porto de Carregamento: Ho Chi Minh City
Porto de Descarga: Leixões, Portugal
Detalhes fornecidos pelo expedidor
Número de Contentores, números de selo e Marca: Café Vietname
Robusta...
Descrição da Embalagem e mercadorias. 3x20’ contentor carregamento,
estiva e contagem pelo expedidor
Embarcado na data: 13-Mar-2016
c) Na face de ambos os conhecimentos de embarque está aposto o seguinte texto:
“Na aceitação deste conhecimento de embarque, o comerciante aceita e concorda expressamente com todos os termos e condições, quer sejam impressos, carimbados ou incluídos de outra maneira neste lado ou no verso deste conhecimento de embarque e os termos e condições da tarifa aplicável da transportadora, considerando-se todos assinados pelo comerciante.”
d) Os conhecimentos de embarque estão assinados e carimbados pela Ré na face dos mesmos.
e) Os conhecimentos de embarque mostram-se endossados pelo AA… à L… Comércio de Matérias, no seu verso, sobre as cláusulas.
f) No verso dos conhecimentos de embarque está aposta uma cláusula com o seguinte teor:
“Fica expressamente estabelecido pelo presente que qualquer acção por parte do Comerciante, e salvo qualquer acção pelo Transportador conforme adicionalmente previsto abaixo, será proposta exclusivamente no Supremo Tribunal de Londres e a lei inglesa será exclusivamente aplicada, ... O Comerciante concorda em não propor acção em nenhum outro tribunal ...”.
Não consta do despacho saneador recorrido qualquer elenco de factos não provados.
IV- OS FACTOS E O DIREITO
Como já tivemos oportunidade de referir, a única questão a equacionar e decidir reside em apreciar se os Tribunais portugueses, e mais concretamente o Tribunal Marítimo de Lisboa têm/tem competência internacional para apreciar a presente causa, tendo em consideração a invocação, pela ré, da exceção de incompetência internacional por violação de pacto de jurisdição.
Com efeito, o caráter internacional do litígio dos presentes autos resulta dos seus inúmeros elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras: desde logo as partes, que são duas sociedades comerciais suíças, mas também porque se convoca para a discussão dos autos um contrato de transporte marítimo internacional no qual intervieram, como expedidora uma empresa vietnamita, e como transportadora, a ré. Finalmente, releva a circunstância de a mercadoria ter sido enviada em nome de uma outra empresa, com sede na Holanda.
Como elementos de conexão com a ordem jurídica portuguesa releva a circunstância de a mercadora se destinar a uma empresa portuguesa, a quem o referido banco holandês “endossou” os conhecimentos de embarque, o facto de a mercadoria ter sido desembarcada no porto de Leixões, e a circunstância de a autora alegar terem sido detetados danos na carga, os quais, de acordo com o que o sustentou, foram verificados por perícia realizada no nosso país.
Como é sabido, a matéria da competência internacional dos Tribunais portugueses é regulada nos arts. 59º, 62º, 63º e 94ºdo CPC; contudo, haverá igualmente que ter em conta que a primeira das referidas disposições legais estabelece que “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º“.
Do inciso inicial constante da citada disposição legal que assinalámos com um sublinhado decorre que sendo aplicável um qualquer instrumento de direito europeu ou internacional que regule a matéria da competência internacional dos Tribunais portugueses, ele aplicar-se-á em detrimento das regras do CPC.
E efetivamente sobre esta matéria da competência internacional em conflitos transnacionais regem atualmente o Regulamento (EU) nº 1512/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12-12-2012, mais conhecido como Regulamento Bruxelas I (Reformulado); e a Convenção relativa à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, assinada em Lugano em 30-10-2007 (vulgarmente designada “Convenção de Lugano”) Grosso modo, poderemos dizer que o Regulamento Bruxelas I se aplica aos litígios que oponham partes com domicílio em países da União Europeia, enquanto que a Convenção de Lugano se aplica aos litígios que envolvam sujeitos com domicílio em Estados-Membros da EFTA (European Free Trade Association).
No caso dos presentes autos, como já referimos, os litigantes são duas empresas com sede na Suíça, pelo que a determinação da competência internacional deverá atender ao disposto na Convenção de Lugano.
Como ensina MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[4], “A competência convencional internacional pode ser determinada através de um pacto de jurisdição (…). Esse pacto pode ser, quando considerado pela perspectiva da ordem jurídica portuguesa, atributivo ou privativo.
O pacto é atributivo quando concede competência a um tribunal ou a vários tribunais portugueses; a competência atribuída pode ser concorrente ou exclusiva. (…).
O pacto é privativo quando retira competência a um ou a vários tribunais portugueses e a atribui em exclusivo a um ou a vários tribunais estrangeiros (…).
É claro que, como o carácter atributivo ou privativo do pacto de jurisdição é definido em relação à ordem jurídica portuguesa, a validade de um desses pactos não é vinculativa para os tribunais de ordens jurídicas estrangeiras. Assim, a validade do pacto que atribui competência aos tribunais portugueses não é vinculativa para os tribunais de ordens jurídicas estrangeiras. Assim a validade do pacto que atribui competência aos tribunais portugueses não significa que os tribunais estrangeiros afectados deixem, ipso facto, de se considerar competentes., tal como a privação da competência internacional dos tribunais portugueses não a atribui necessariamente aos tribunais estrangeiros. São possíveis, por isso, situações em que o pacto atributivo origina um conflito positivo entre a competência internacional dos tribunais portugueses e dos estrangeiros e outras em que um pacto privativo cira um semelhante conflito negativo.”
No caso vertente foi invocado um pacto de jurisdição inserto numa cláusula aposta nos dois conhecimentos de embarque invocados nos presentes autos.
O teor de tal cláusula é o seguinte:
“Na aceitação deste conhecimento de embarque, o comerciante aceita e concorda expressamente com todos os termos e condições, quer sejam impressos, carimbados ou incluídos de outra maneira neste lado ou no verso deste conhecimento de embarque e os termos e condições da tarifa aplicável da transportadora, considerando-se todos assinados pelo comerciante.”
Importa então apreciar se tal pacto de jurisdição é válido e eficaz.
Fá-lo-emos à luz das disposições da Convenção de Lugano que regem esta matéria, uma vez que, dispondo o referido instrumento de Direito internacional sobre a matéria da competência internacional, não será aplicável o disposto no art. 94º do CPC - Neste sentido, reportando-se ao Regulamento Bruxelas I (na sua versão anterior à reformulação, ou seja, ao Regulamento 44/2001), mas com argumentos inteiramente transponíveis no que diz respeito à Cv. Lugano, cfr. acs. STJ de 11-02-2015 (Gregório Silva Jesus), p. 877/12.7TVLSB.L1-A.S1, e de 04-12-2016 (Lopes do Rego), proc. 536/14.6TVLSB.L1.S1. Em sentido idêntico, v. tb. RUI PEREIRA DIAS, “Pactos de jurisdição: autonomia privada e internacionalidade” in Cadernos de Direito Privado, nº 55, julho-setembro 2016, pp 47-74.
Na verdade, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia há muito vem assinalando que o conceito de pacto de jurisdição presente na Convenção de Bruxelas de 1968 relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em matéria civil e comercial, e que “transitou” para o Regulamento Bruxelas I (44/2001), mais tarde reformulado e republicado como Regulamento 1512/2012 é um conceito autónomo daquele que se acha consagrado no Direito interno de cada Estado-Membro, e que a análise da validade e eficácia dos pactos de jurisdição com efeitos sobre litígios aos quais sejam aplicáveis os referidos instrumentos jurídicos se deve fazer exclusivamente com referência aos mesmos – vd. entre outros os acórdãos Powell Duffryn, de 10-03-1992 (p. C-214/89), Castellettii, de 16-03-1999 (p. C-159/97), e Refcomp, de 07-02-2013 (p. C-543/10)[5].
Contudo, tal entendimento poderá ter sido ultrapassado pelo menos em parte, no que toca aos litígios aos quais seja aplicável o Regulamento Bruxelas I (Revisto), na medida em que o art. 25º deste Regulamento ressalva a possibilidade de o pacto de jurisdição ser nulo nos termos da lei doméstica aplicável.
Seja como for, uma tal ressalva não consta de qualquer disposição da Convenção de Lugano, o que significa que o entendimento consagrado na citada jurisprudência do TJUE se mantém inteiramente aplicável ao caso dos autos.
Assim sendo, na determinação da competência internacional dos Tribunais portugueses relativamente ao caso dos autos não aplicaremos o CPC, nem o disposto no DL 352/86, de 21-10[6].
Vejamos então o que dispõe a Convenção de Lugano em matéria de pactos de jurisdição.
Estabelece o art. 23º da referida Convenção:
“
1. Se as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado vinculado pela presente convenção, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado vinculado pela presente convenção têm competência para decidir qualquer litígio, presente ou futuro, decorrente de determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais são competentes. Essa competência será exclusiva, a menos que as partes convencionem o contrário. Este pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:
a) Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita; ou
b) Em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si; ou
c) No comércio internacional, em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado.
2. Qualquer comunicação por via electrónica que permita um registo duradouro do pacto equivale à «forma escrita».
3. Sempre que tal pacto atributivo de jurisdição for celebrado por partes das quais nenhuma tenha domicílio num Estado vinculado pela presente convenção, os tribunais dos outros Estados vinculados pela presente convenção não podem conhecer do litígio, a menos que o tribunal ou os tribunais escolhidos se tenham declarado incompetentes.
4. O tribunal ou os tribunais de um Estado vinculado pela presente convenção, a que o acto constitutivo de um trust atribuir competência, têm competência exclusiva para conhecer da acção contra um fundador, um trustee ou um beneficiário de um trust, se se tratar de relações entre essas pessoas ou dos seus direitos ou obrigações no âmbito do trust.
5. Os pactos atributivos de jurisdição, bem como as estipulações similares de actos constitutivos de trust não produzirão efeitos se forem contrários ao disposto nos artigos 13.º, 17.º e 21.º, ou se os tribunais cuja competência pretendam afastar tiverem competência exclusiva por força do artigo 22.º”.
Cumpre pois aferir, se no caso vertente se verificam os requisitos de validade e eficácia do pacto de jurisdição invocado pela ré e ora requerida.
A citada disposição consagra dois requisitos de que dependem a validade e eficácia de um pacto de jurisdição: um positivo e outro negativo.
O requisito positivo resultará da verificação de uma das três situações descritas no nº 1, que contém uma enumeração claramente alternativa (é esse o sentido inequívoco que resulta da utilização da palavra “ou”, no final das três alíneas desse nº 1).
O requisito negativo resulta da não verificação de qualquer das situações mencionadas no nº 5.
Assim, e no que diz respeito ao requisito positivo consagrado na al. a) do nº 1, estipula tal alínea que o pacto atributivo de jurisdição deverá ser celebrado “por escrito ou verbalmente com confirmação escrita”.
Ora, no caso que nos ocupa, importa atender à concreta configuração do contrato em que foi inserta a cláusula que consubstancia o pacto de jurisdição.
Com efeito, de acordo com o alegado pela autora na petição inicial, o pano de fundo subjacente a tal clausulado é um contrato de transporte internacional de mercadorias por via marítima, outorgado entre uma empresa vietnamita, a HB… Company Limited (expedidora), e uma empresa suíça, a MS… Company, S.A, (armador / transportadora), tendo como destinatário o AA…, N.V., que endossou os conhecimentos de depósito à L…, Comércio de Matérias Primas, Lda, a quem se destinavam as mercadorias.
Como refere FRANCISCO COSTEIRA DA ROCHA[7], “(…) o contrato de transporte é um contrato triangular. (…) O contrato celebrado entre carregador e transportador não pode atingir o seu escopo sem a intervenção do destinatário, sem que o destinatário adira ao contrato. Por esta razão se afirma que o contrato de transporte nasce bilateral, mas potencialmente trilateral. (…)
O destinatário não é parte desde o início, porém desde o início existe a expectativa de que intervirá como parte. O contrato de transporte apresenta-se como um contrato inicialmente bilateral (celebrado entre carregador e transportador), aberto à adesão do destinatário; é celebrado na expectativa da adesão in itinere do destinatário. (…)”.
Mais refere o mesmo autor[8]: “(…) a adesão do destinatário reveste-se de importância fulcral. Esse é o elemento que introduz o destinatário no contrato de transporte; nesse momento, o destinatário aceita a proposta contratual formulada pelo carregador ou pelo transportador, tornando-se parte no contrato. O destinatário, inicialmente um terceiro, com a adesão ao contrato deixa de o ser, assumindo direitos e obrigações. (…)
Não há, pois, que estranhar ou questionar se, por força do contrato de transporte, podem ser impostas obrigações ao destinatário. Não faz sentido olhar com precaução ou suspeita o instituto, pois dele não resulta qualquer limitação ao princípio da relatividade dos contratos.”
Finalmente, diz o autor citado[9] que “Em França, onde tal concepção se consolidou, a Cour de Cassation vem entendendo que a adesão do destinatário se verifica no momento e com a recepção das mercadorias pelo destinatário: o destinatário com a recepção da mercadoria tornar-se-ia parte no contrato, podendo invocar a responsabilidade contratual do transportador; (…)
“A recepção da mercadoria pelo destinatário foi já considerada uma presunção da adesão do destinatário e, também, entendida como uma declaração tácita da sua adesão ao contrato de transporte. Aquele comportamento concludente do destinatário revelava indirectamente a sua vontade. (…)
Por outro lado, atendendo a qualquer uma daquelas caracterizações da recepção da mercadoria a adesão do destinatário pode externar-se por via de outros comportamentos para além da recepção.
Seja, por exemplo, a detenção do documento do transporte. seja a interposição de uma acção fundada no incumprimento contratual contra o transportador inadimplente. A relevância destas três situações como forma de externar (ao lado da recepção da mercadoria) a adesão está patente nos arts. 15º, § 4 e 54º, § 3, alínea b) das RU-CIM.”.
É neste contexto que importa aferir dos requisitos de validade do pacto de jurisdição invocado nos presentes autos consagrados no art. 23º da Convenção de Lugano.
No que respeita ao requisito da al. a), verificamos que resultou demonstrado que a cláusula foi aposta no verso dos conhecimentos de embarque, e que no rosto dos mesmos documentos consta a referência de que “Na aceitação deste conhecimento de embarque, o comerciante aceita e concorda expressamente com todos os termos e condições, que sejam impressos, carimbados, ou incluídos de outra maneira neste lado ou no verso deste conhecimento de embarque e os termos e condições da tarifa aplicável da transportadora, considerando-se todos assinados pelo comerciante”. Mais ficou demonstrado que os conhecimentos de embarque foram assinados e carimbados pela ré, na sua face, e que foram endossados pelo AA… à L… – Comércio de Matérias Primas, Lda no seu verso, sobre as cláusulas[10].
Assim, da factualidade acima exposta resulta que o conhecimento de embarque foi assinado pelo transportador (a ré), e pelo destinatário (A…).
A posição jurídica do A… transmitiu-se à L… e, ao satisfazer os montantes reclamados por esta, a autora ficou sub-rogada nos direitos invocados na presente ação.
Não obstante, não resultou demostrado que o expedidor tenha assinado os conhecimentos de embarque, nem que o destinatário tenha, por qualquer modo aceite as condições gerais constantes do conhecimento de embarque antes de o transporte das mercadorias ter início.
Ora, como bem assinalou o TJUE no acórdão Tilly de 19-06-1984 (proc. C-71/83)[11], ao assinar o conhecimento de embarque, o destinatário sucede nos direitos do expedidor sobre a mercadoria, e fica vinculado aos termos do contrato de transporte; mas para que se considere vinculado a um pacto de jurisdição constante do clausulado daquele documento terá que ser feita prova de que o expedidor se vinculou a tais cláusulas, e que o fez por escrito (vd. parágrafos 16 e 17).
No caso vertente não resultou provado que o expedidor tenha assinado os conhecimentos de embarque, tal como não resultou provado que tenha manifestado por escrito a sua adesão àquelas cláusulas.
Assim sendo, desde já concluímos que não se verifica o requisito consagrado na al. a) do nº 1 do art. 23º da Cv. Lugano.
Não obstante, sempre se dirá que outras considerações reforçam esta conclusão.
Com efeito, como já se apontou, o destinatário das mercadorias transportadas por via marítima não é parte inicial no contrato de transporte marítimo. Ele torna-se parte desse contrato por adesão ao mesmo, quando as mercadorias chegam ao seu destino, sendo que essa adesão é condição sine qua non para que as mesmas mercadorias lhe sejam entregues.
Ao aceitar o contrato, a declaração de vontade do destinatário reporta-se ao recebimento das mercadorias, que aliás é feito com as reservas inerentes à oportuna verificação do seu estado.
Quando recebe as mercadorias, o destinatário está, pois, a praticar um ato imprescindível ao cumprimento do contrato que celebrou com o fornecedor das mercadorias.
Outro aspeto importante reside também na circunstância de por vezes o expedidor ser entidade diversa daquela que contratou com o destinatário. É aliás o que corresponde à alegação da autora no caso dos autos, visto que como alegou a autora, a mercadoria transportada foi fornecida à L… pela S…, S.A., mas foi expedida por uma empresa vietnamita a quem a S… adquiriu tal mercadoria para a revender à L…[12].
Isto apenas para dizer que não obstante o teor da cláusula que contém o pacto de jurisdição e do valor que o clausulado atribui à assinatura do conhecimento de embarque, não podemos considerar que ao assinar o mesmo o destinatário fique vinculado a tal cláusula.
Como se afirmou no recente acórdão deste Tribunal e Secção de 22-01-2019 (Luís Filipe Pires de Sousa), p. 395/14.9TNLSB.L1[13], “É certo que o conhecimento de carga assume uma função tridimensional: serve de recibo de entrega ao transportador de uma certa e determinada mercadoria nele descrita, prova o contrato de transporte firmado entre carregador e transportador e as condições do mesmo, representa a mercadoria nele descrita sendo negociável e transmissível de acordo com o regime geral dos títulos de crédito (CALVÃO DA SILVA, Estudos de Direito Comercial, 1996, p. 53). Todavia, estas características substantivas e intrínsecas do conhecimento de carga não se projetam em declaração (ficta) de aceitação, mesmo tácita, do destinatário no que tange a um pacto atributivo de jurisdição, tanto mais que tal cláusula é meramente acessória e eventual”.
As mesmas considerações são, a nosso ver transponíveis para o caso concreto, ainda que a cláusula em análise refira expressamente o destinatário, na medida em que, atendendo a que no momento em que o mesmo toma conhecimento do teor do conhecimento de transporte já não tem qualquer poder ou liberdade de negociar essa cláusula, e não pode recusar-se a assinar tal documento porque se o fizer não recebe a mercadoria e consequentemente incumpre as obrigações decorrentes do contrato que celebrou com o expedidor ou fornecedor da mercadoria.
Tal só não será assim se for alegado e provado que antes de o transporte das mercadorias ter início o destinatário declarou por escrito aceitar o pacto de jurisdição, ou se, posteriormente, em documento autónomo e por si assinado, emitir tal declaração – em sentido aproximado ao exposto cfr. ac. STJ 19-11-2015 (Lopes do Rego), p. 602/13.5TJVNF.G1.S1.
Termos em que, também por esta razão, concluímos que no caso em apreço não se mostra preenchido o requisito da al. a) do nº 1 do art. 23º da Cv. Lugano.
Vejamos agora se se mostra preenchida uma das demais alíneas do nº 1 do art. 23º da Cv. Lugano.
A al. b) refere a possibilidade de o pacto de jurisdição resultar dos “usos que as partes estabeleceram entre si”, ao passo que a al. c) refere a possibilidade de, “no comércio internacional”, tal pacto resultar dos “usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos, e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado“.
A nosso ver, os usos a que se reportam as als. b) e c) supra referidas têm de ser objeto de alegação e prova, cabendo o respetivo ónus à parte que pretende prevalecer-se do pacto de jurisdição e consequentemente invocar a exceção de incompetência do Tribunal: o réu.
No que diz respeito à al. b) nada consta do elenco de factos provados, nem sequer foi alegado pela ré.
No tocante aos usos a que se refere a al. c), não cremos que os mesmos constituam matéria que dispense alegação e prova (art. 412º, nº 2 do CPC), na medida em que na doutrina e jurisprudência colhemos ecos contraditórios quanto à sua existência e contornos. Na verdade, enquanto uns se reportam a uma certa frequência da inclusão de pactos de jurisdição atribuindo competência exclusiva ao High Court of London, que é o foro indicado na cláusula a que se reporta o caso dos autos (vd. Yvonne Baatz, ob. cit.), outros mencionam que o que é corrente é a prática de submeter os litígios emergentes do transporte marítimo ao foro da sede do transportador [cfr. acs. RL 21-05-1998 (Ferreira Mesquita), p. 0006762[14], RL 08-10-2009 (Granja da Fonseca), p. 47/08.9TNLSB.L1-6, e RL 22-01-2019 (Luís Filipe Pires de Sousa)[15]], no caso uma empresa com sede na Suíça.
No caso vertente a ré, na sua contestação nada disse quanto a esta matéria, e por isso nada resultou provado.
Só nas contra-alegações veio a ré, pela primeira vez invocar os usos a que se reporta a al. c) (vd. conclusões 9. e 10.).
Fê-lo de forma manifestamente extemporânea, na medida em que os recursos não servem para apreciar questões (de direito ou de facto) novas, mas apenas reapreciar questões já debatidas.
Com efeito, como bem aponta ABRANTES GERALDES[16], “A natureza do recurso como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina uma outra importante limitação ao seu objecto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Segundo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos um modelo de reponderação que vis o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.”
Este entendimento foi igualmente sufragado no ac. STJ de 07-07-2016 (Gonçalves Rocha), p.156/12.0TTCSC.L1.S1, “Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação”. No mesmo sentido, cfr. entre outros, acs. STJ 17-11-2016 (Ana Luísa Geraldes), p. 861/13.3TTVIS.C1.S2, RC 14-01-2014 (Mª Inês Moura), p. 154/12.3TBMGR.C1, e RP 16-10-2017 (Miguel Baldaia de Morais), p. 379/16.2T8PVZ.P1.
Carece, por isso de fundamento a pretensão da ré no sentido de, caso se entenda não ter aplicação a al. a) do nº 1 do art. 23º da Cv. Lugano, se determinar o prosseguimento da causa para produção de prova quanto aos usos referidos na al. c) do mesmo preceito (conclusão 13.), na medida em que se trata de factualidade que nunca foi invocada nos articulados.
Não o tendo sido, cumpre apenas decidir a exceção de incompetência absoluta por preterição de pacto de jurisdição considerando os factos alegados pelas partes nos articulados.
Tal decisão só pode ser no sentido da improcedência da referida exceção, na medida em que não tendo a ré demonstrado a verificação de nenhum dos requisitos positivos da validade de pacto de jurisdição invocado, o mesmo não pode considerar-se aplicável ao caso vertente.
Termos em que se conclui pela procedência do presente recurso, havendo por isso que revogar a decisão recorrida, e determinar o prosseguimento da causa.
V- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção do Tribunal a Relação de Lisboa em julgar a presente apelação procedente, revogando o despacho recorrido, julgando improcedente a exceção de incompetência absoluta decorrente de preterição de pacto de jurisdição, e determinando o prosseguimento da causa, devendo o Tribunal recorrido diligenciar no sentido da realização da audiência de julgamento precedida das diligências que se afigurarem necessárias.
Custas pela apelada (art. 527º n.º 1 do C.P.C.).
[1] A petição inicial foi retificada nos termos constantes do requerimento com a refª 25605778, de 03-05-2017, constante de fls. 140 a 155. [2] Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-116. [3] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 116. [4] “Estudos sobre o novo processo civil”, 2ª Ed., LEX, 1997, p. 125. [5] Todos os acórdãos do TJUE aqui mencionados se acham disponíveis em https://curia.europa.eu/jcms/jcms/index.html. A versão digital do presente acórdão contém hiperligações para os acórdãos do TJUE nela invocados.
Sobre a matéria em apreço cfr. tb. SOFIA HENRIQUES, “Os pactos de jurisdição no Regulamento (CE) nº 44 de 2001”, Almedina, 2006. Analisando a questão no contexto do transporte internacional de mercadorias por via marítima, cfr. tb. Yvonne Baatz, “Enforcing English Jurisdiction Clauses in Bills of Lading”, in Singapore Academy of Law Journal (2006) 18, pp. 727-770, disponível em https://journalsonline.academypublishing.org.sg/Journals/Singapore-Academy-of-Law-Journal-Special-Issue/e-Archive/ctl/eFirstSALPDFJournalView/mid/513/ArticleId/399/Citation/JournalsOnlinePDF; e ainda MARIA DRAGUN-GERTNER, “The Selected Aspects and Jurisdiction Clauses in Bills of Lading under International European and Polish Law”, pp 9-21 disponível em http://journals.pan.pl/Content/93394/mainfile.pdf. [6] Improcedem por isso as conclusões nº 1-, 3-, 4-, 5-, e 16-, na parte em que pugnam pela aplicação destes diplomas, bem como quando sustentam a aplicabilidade ao caso dos autos do Regulamento Bruxelas I (Reformulado). [7]“O contrato de transporte de mercadorias – Contributo para o estudo da posição jurídica do destinatário no contrato de transporte marítimo”, Almedina, 2000, p. 236. [8] Ob. cit, p. 237. [9] Ob. cit., pp. 240-242. [10] Als. c) e f) dos factos provados. [11] Não foi publicada versão portuguesa deste acórdão, razão pela qual se colocou hiperligação para a versão inglesa. [12] Vd. arts. 4º a 6º da petição inicial que, no entanto, a ré impugna por desconhecimento – vd. art. 61º da contestação. [13] Inédito. [14] Texto integral: CJ, tomo III/1998. [15] Inédito. [16] Ob. cit, p. 119. [17] Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.