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MOBILIDADE FUNCIONAL
CUMULAÇÃO DE FUNÇÕES
MUDANÇA DE CATEGORIA
RETRIBUIÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
DUPLA FILIAÇÃO
Sumário
I. O período máximo em que o trabalhador pode ser sujeito a mobilidade funcional é de dois anos, findo o qual adquire o direito à nova categoria (art.º 120.º, n.º 5, a contrários sensu, do Código do Trabalho de 2009). II. A existência de um diferencial retributivo entre categorias profissionais é facto constitutivo do direito do trabalhador em situação de mobilidade funcional ser retribuído pela mais elevada, cabendo-lhe os ónus da alegação e prova (art.º 342.º, n.º 1 do CC). III. No domínio dos CT de 2003 e de 2009 vale a regra da dupla filiação, de acordo com a qual as CCT´s só vinculam os seus subscritores ou inscritos nas respectivas associações de classe (art.os 552.º, n.º 1 do CT de 2003 e 496.º, n.º 1 do de 2009). IV. Essa filiação é facto constitutivo do direito do trabalhador, cabendo-lhe os ónus da alegação e prova (art.º 312.º, n.º 1 do CC).
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa I - Relatório.
AAA intentou a presente acção declarativa com, processo comum, contra BBB, S. A., pedindo que a ré seja condenada a pagar ao autor, a título de créditos salariais a quantia de € 43.742,80, acrescida de juros legais vencidos já no valor de € 6.605,80 o que perfaz a quantia global de € 50.927,00.
Para tanto, alegou, em síntese, que:
• foi celebrado acordo entre a ré e o autor, ficando este isento de horário de trabalho, e pagando-lhe a ré uma remuneração a título de isenção de horário de trabalho.
• a ré deveria ter posto à sua disposição, com o pagamento do subsídio de férias de cada ano, a quantia devida a título de isenção de horário de trabalho o que nunca fez. Mais, entre Maio de 2013 e Junho de 2015 o autor não recebeu qualquer quantia a título de isenção de horário de trabalho, porquanto a ré denunciou unilateralmente, o que aquele entende que não pode fazer, o acordo da isenção de horário de trabalho estipulado.
• retomou depois o pagamento em Julho de 2015, mas em quantia inferior à anteriormente acordada entre as partes, pelo que entende o autor que a ré lhe deve a diferença de valores.
• no dia 17 de Maio de 2004 a ré o nomeou para exercer as funções de responsável técnico do centro e com as de responsável de qualidade, além das funções de inspector, no entanto, o autor pelas diversas funções que desempenhava – inspector, responsável técnico de Centro e Responsável de Qualidade – nunca recebeu qualquer acréscimo remuneratório, embora entenda que tal é devido.
Citada a ré, foi convocada e realizada audiência de partes, na qual as mesmas não quiseram acordar sobre o litígio que as divide.
Para tal notificada, a ré contestou, por impugnação, alegando que:
• a isenção de horário de trabalho é, por natureza, uma situação reversível, podendo cessar por iniciativa unilateral de qualquer das partes, tal como constava dos acordos celebrados e tal como sucedeu no caso em que a ré denunciou, legitimamente, os tais acordos, pelo que nada deve a este título.
• quanto a acréscimos salariais também nada deve a ré porquanto o autor sempre auferiu uma remuneração mensal superior à estipulada na lei e demais legislação aplicável, pelo que tendo o seu salário valor superior ao salário de inspector mais acréscimo por funções de director técnico nada mais lhe é devido.
Proferido despacho saneador, foi julgada a instância válida e regular, fixado o objecto do processo e os temas de prova, dispensada a selecção da matéria de facto, admitidas as provas arroladas pelas partes e designada a data para realização da audiência de julgamento.
Realizada a audiência de julgamento, a Mm.ª Juiz preferiu a sentença, na qual julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:
a) condenou a ré a pagar ao autor a quantia a título de isenção de horário de trabalho devida com o pagamento do subsídio de férias, pago em momento em que vigorava o acordo de isenção de horário de trabalho; e
b) a título de acréscimo remuneratório pelo desempenho de funções de Director técnico/Director da qualidade no período em que esteve nomeado para tal e de facto as exerceu;
c) absolveu a ré do demais peticionado pelo autor.
Inconformada, a ré interpôs recurso, pedindo que a sentença recorrida seja revogada e substituída por outra que julgue a presente acção parcialmente procedente, com a consequência de se absolver a ré dos pedidos do autor, com excepção da quantia a título de isenção de horário de trabalho devida com o pagamento do subsídio de férias, pago em momento em que vigorava o acordo de isenção de horário de trabalho, absolvendo-se a mesma do demais peticionado pelo Autor, culminando as alegações com as seguintes conclusões:
"I. A decisão recorrida incorre em erro sobre os pressupostos de factos, devendo a matéria de facto ser alterada por este Tribunal Superior uma vez que os factos tidos por assentes e a prova produzida impõem decisão diversa da que foi tomada.
II. Com efeito, não podia o Tribunal a quo dar como provado que o Autor nunca recebeu acréscimo salarial pelo desempenho de funções de director.
III. Na verdade, resulta inequívoco que a 'Fundamentação de Facto' da decisão recorrida — concretamente o facto dado como provado no ponto 21.º — se encontra em manifesta oposição com a matéria confessada e assente entre as partes e a prova documental produzida (e.g. doc. 16 da p.i.).
IV. Pois o que ficou assente por acordo das partes foi que: O autor auferia uma remuneração mensal de € 1.004,00 (art.º 10.º da p.i. e art.º 2.º da contestação coadjuvados pelo doc. n.º 16 da p.i.)
V. A decisão recorrida incorre, assim, em erro sobre os pressupostos de facto.
VI. Nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do C.P.C., a decisão do Tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto deve ser alterada se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
VII. Impugna, assim, a Apelante os factos dados como provados no ponto 21 da Fundamentação de Facto da Sentença recorrida, por estarem em contradição com a prova produzida nos presentes autos, devendo tais factos ser dados como não provados.
VIII. Pelo que, o facto dado como provado no ponto 5 da Fundamentação de facto deverá ser modificado, dando-se como provado o que efectivamente ficou assente entre as partes, ou seja: 21. O Autor pelas diversas funções que desempenhava para além de inspector — responsável técnico de Centro recebia o valor mensal de € 1.004,00.
Acresce que,
IX. A Sentença recorrida volta a incorrer em manifesto erro sobre os pressupostos de facto quando condena a Ré ao pagamento de quantias que, atendendo-se ao facto constante do ponto 23 da matéria de facto dada como provada, não são devidas.
X. Com efeito, tendo ficado assente que o Autor auferia a título de remuneração o valor mensal de € 1.004,00, superior ao somatório do salário previsto no CCT acrescido do valor pelas funções de director, não pode a Sentença recorrida condenar a Ré por acréscimos remuneratórios já satisfeitos na quantia salarial auferida pelo Autor.
XI. Tanto mais quando provado ficou expressamente provado que '23. O Autor auferiu, pelo desempenho da actividade que vinha exercendo de Inspector de Veículos em acumulação com o cargo de Director Técnico, um salário superior à remuneração devida pelo desempenho do cargo e Director, ou seja mais do que o salário de inspector com o acréscimo do exercício das funções de director técnico.' (cfr. ponto 23.º dos factos provados).
XII. Do clausulado dos precedentes CCT’s também não consta nenhum normativo que consagre a obrigatoriedade de se separar o salário de inspector do acréscimo salarial pela acumulação das funções de director técnico.
XIII. Em bom rigor, em parte alguma é exigido que aquelas 2 parcelas sejam processadas separadamente, e de resto o Meritíssimo Juiz a quo também não apoia o decidido em qualquer princípio normativo ou qualquer dispositivo legal vigente.
XIV. E não pode, em caso algum, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso — artigo 9.º, n.º 2, do C. Civil.
XV. A fixação de salários mínimos e acréscimos remuneratórios num CCT visa exactamente garantir ao trabalhador uma remuneração mensal (vencimento + acréscimo) igual ou superior ao fixado na tabela.
XVI. Desiderato este que se mostra integralmente cumprido nos autos ao estar provado e assente que o Autor auferia a remuneração mensal de € 1.004,00.
XVII. E porque assim é e está comprovado nos autos, não tem o Autor direito a receber qualquer quantia para além daquela que lhe era paga mensalmente, a qual já englobava o acréscimo salarial pelo desempenho de funções de director técnico/director de qualidade no período em que esteve nomeado para tal e de facto exerceu.
XVIII. O que aliás está em linha com o determinado no n.º 2 do artigo 258.º do Código do Trabalho que expressamente afirma que: 'A retribuição compreende a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie'.
XIX. Tendo presente os factos efectiva e concretamente provados, não podia o Tribunal a quo condenar a Ré ao pagamento das quantias referidas na alínea b) da Decisão proferida na parte final da Sentença recorrida.
XX. A decisão recorrida viola / faz uma interpretação desacertada do disposto nos artigos 218.º e 258.º, n.º 2, do Código do Trabalho, bem como os artigos 9.º, n.º 2, e 762.º, n.º 1 e 2, do Código Civil e o artigo 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil".
Contra-alegou a ré, pedindo que se negue provimento ao recurso.
Admitido o recurso na 1.ª Instância, nesta Relação de Lisboa foi proferido despacho a conhecer das questões que pudessem obstar ao conhecimento do recurso[1] e a determinar que os autos fossem com vista ao Ministério Público,[2] o que foi feito, tendo nessa sequência a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta sido de parecer que o recurso não merece provimento.
Nenhuma das partes respondeu ao parecer do Ministério Público.
Colhidos os vistos,[3] cumpre agora apreciar o mérito do recurso, cujo objecto, como pacificamente se considera, é delimitado pelas conclusões formuladas pelo apelante, ainda que sem prejuízo de se ter que atender às questões que o tribunal conhece ex officio.[4] Assim, porque em qualquer caso nenhuma destas nele se coloca, importa apreciar:
i. a impugnação da decisão proferida acerca da matéria do facto provado em 21;
ii. a retribuição do acréscimo remuneratório pelo exercício pelo apelado das funções de inspector com as de directo técnico.
*** II - Fundamentos. 1. Factos julgados provados:
"1. No dia 2 de Julho de 1996 o autor celebrou contrato individual de trabalho com a BBB, SA, por tempo indeterminado, e para exercer funções no (…) ou em qualquer outro local onde a BBB, SA, ora ré, tivesse centros de inspecções, mais foi estipulado no contrato que o autor cumpriria horário de trabalho do estabelecimento onde fosse colocado a prestar funções pela entidade patronal.
2. No dia 1 de Abril de 1999, por acordo escrito entre a ré e o autor, foi alterado parcialmente o contrato individual de trabalho, ficando nele a constar que: Dadas as funções de confiança e de responsabilidade que desempenha como inspector de veículos automóveis, ficará isento de horário de trabalho, conforme documento assinado no dia 25 de Agosto de 1999, acordo este que foi confirmado, por escrito, em Novembro de 2004.
3. No dia 1 de Setembro de 2009, o autor foi transferido para a empresa do grupo, (…), SA, ora ré, mediante a celebração de um contrato de trabalho por tempo indeterminado que estipulava que os efeitos do contrato retroagiam ao dia 2 de Julho de 1996 mantendo-se todos os direitos do anterior contrato celebrado com a (…) SA.
4. Mais foi estipulado que o autor exerceria as suas funções no (…) em Lisboa, com a remuneração mensal de € 1.004,65, acrescida de subsídio de alimentação.
5. E, com a duração de trabalho semanal de 40h distribuídas de acordo com o horário de trabalho afixado e em vigor no estabelecimento.
6. Mais foi acordado entre as partes outorgantes do contrato individual de trabalho que o autor gozaria de isenção de horário de trabalho, e receberia uma remuneração mensal por essa isenção.
7. O autor apesar de ter sido transferido da empresa (…) SA para a ora ré continuou a exercer as suas funções no mesmo local e a receber ordens dos mesmos chefes hierárquicos.
8. O autor recebeu, mensalmente, a título de isenção de horário de trabalho, as seguintes quantias:
a. Ano de 1999 – 40 500$50/mês,
b. Ano de 2000 – 33 750,50$/mês,
c. Ano de 2001 - € 149,64/mês,
d. Ano de 2002 – € 153,38/mês,
e. Ano de 2003 - € 162, 58/mês,
f. Ano de 2004 - € 180,36/mês,
g. Ano de 2005 - € 180,36/mês,
h. Ano de 2006 - € 193,20/mês,
i. Ano de 2007 - € 200, 93/mês,
j. Ano de 2008 - € 790,85;
k. Ano de 2009 a Maio de 2013 - € 815,97/mês,
l. Julho de 2015 a Maio de 2016 - € 200,93/mês,
m. Março de 2017 - € 100,47.
9. Nos anos de 1999 a 2016 a ré não pagou qualquer quantia a título de retribuição devida pela isenção do horário de trabalho juntamente com os subsídios de férias.
10. No dia 27 de Abril de 2013 a ré informa o autor que, por decisão unilateral, denunciava o acordo da isenção de horário de trabalho estipulado no contrato individual de trabalho celebrado em 1999, denúncia esta que produziria efeitos a partir de 1 de Maio de 2013.
11. O autor no dia 17 de Maio de 2004 foi nomeado pela sua entidade patronal, (…) SA, para exercer as funções de responsável técnico do centro e com as de responsável de qualidade, além das funções de inspector.
12. No dia 27 de Novembro de 2008, a ré nomeou o autor para, além de exercer as funções de inspector, acumular as funções de responsável técnico do centro e as funções de responsável de qualidade do centro do (…).
13. No dia 20 de Janeiro de 2012, a ré nomeou o autor para, além de exercer as funções de inspector, acumular as funções de director técnico do centro do (…).
14. No dia 31 de Julho de 2012, a ré nomeou o autor para, além de exercer as funções de inspector, acumular as funções de Director Técnico e de responsável da Qualidade do centro do (…).
15. No dia 16 de Agosto de 2012, a ré nomeou o autor para, além de exercer as funções de inspector, acumular as funções de Director Técnico do centro do (…).
16. No dia 25 de Julho de 2013, a ré nomeou o autor para, além de exercer as funções de inspector, acumular as funções de Director Técnico do centro do (…).
17. No dia 12 de Janeiro de 2015, a (…)SA nomeou o autor para, além de exercer as funções de inspector, acumular as funções de Director Técnico do (…).
18. No dia 4 de Janeiro de 2016, a (…) SA nomeou o autor para, além de exercer as funções de inspector, acumular as funções de Director Técnico do centro do (…).
19. No dia 29 de Junho de 2017, a (…) SA nomeou o autor para, além de exercer as funções de inspector, acumular as funções de Director Técnico do centro do (…).
20. Pese embora o autor não trabalhasse para a (…) SA desde Setembro de 2009, foi ela que o nomeou para exercer várias funções num centro onde exercia as funções de inspector, nomeadamente as de chefia.
21. O autor pelas diversas funções que desempenhava para além de inspector – responsável técnico de Centro e responsável de qualidade – nunca recebeu qualquer acréscimo remuneratório.
22. O autor denunciou o contrato de trabalho individual com a ré, com efeitos a 31 de Julho de 2017.
23. O autor auferiu, pelo desempenho da actividade que vinha exercendo de Inspector de Veículos em acumulação com o cargo de Director Técnico, um salário superior à remuneração devida pelo desempenho do cargo de Director, ou seja mais do que o salário de inspector com o acréscimo do exercício das funções de director técnico.
24. O autor acordou com a ré o regime da isenção de horário de trabalho, na modalidade de não sujeição aos limites máximos do período normal de trabalho, acordo de Isenção de Horário de Trabalho que foi reduzido a escrito em Setembro de 2009 e onde consta expressamente que «O presente acordo vigora até que uma das partes o denuncie.»
25. Em 27/04/2013 foi comunicado ao autor a denúncia do Acordo de Isenção de Horário de Trabalho que com este havia celebrado.
26. Em meados de 2015 decidiram as partes celebrar novo Acordo de Isenção de Horário de trabalho, no qual as partes convencionaram que «O presente acordo vigora até 30 de Abril de 2016, podendo ser renovado por acordo escrito das partes.»
2. Factos julgados não provados:
A. A sociedade (…) S.A. dedica-se à actividade de inspecção periódica de veículos automóveis.
B. A referida sociedade, no dia 1 de Julho de 1995, celebrou com o autor um contrato de trabalho a termo certo, pelo prazo de um ano, para este exercer as funções de Inspector Chefe de Veículos no Centro de Inspecção Periódica no (…), ou em qualquer outro Centro de Inspecção de Automóveis que a (…) SA possuísse em território português, com um vencimento mensal de 90.000$00. (doc. n.º 1)
C. Em Julho de 1995 o autor celebrou um contrato individual de trabalho com a firma (…) Lda., entidade para quem prestou funções como inspector de veículos automóveis até 30 de Junho de 1996.
D. O autor iniciou o exercício das suas funções no Montijo durante seis meses e seguidamente em Viseu, local onde exerceu também as funções de substituto do director técnico do centro de inspecções.
3. Motivação da decisão.
(…) 4. A apelação. 4.1. A impugnação da decisão da matéria de facto.
(…)
Assim sendo, não se conhecerá da impugnação da decisão proferida sobre a matéria daquele facto 21, restringindo-se o conhecimento às demais questões suscitadas no recurso. 4.2. A retribuição do acréscimo remuneratório.
A apelante pretende que a sentença não podia condená-la a pagar ao apelado um acréscimo remuneratório pelo exercício cumulativo das suas funções de inspector com as de director técnico tendo em conta que se provou em 23, que "o autor auferiu, pelo desempenho da actividade que vinha exercendo de Inspector de Veículos em acumulação com o cargo de Director Técnico, um salário superior à remuneração devida pelo desempenho do cargo de Director, ou seja mais do que o salário de inspector com o acréscimo do exercício das funções de director técnico".
Vejamos.
Conforme se infere dos factos provados 11. e 12., o apelado foi sucessivamente nomeado pela (…) e pela apelante, em 2004 e 2008, para exercer, em cumulação com as funções contratadas de inspector, as de responsável técnico do centro com as de responsável de qualidade, mas desconhece-se por quanto tempo foi feita essa nomeação e durou o correspondente exercício; sendo certo, no entanto, que no Código do Trabalho de 2003 não havia prazo legalmente estabelecido para que isso acontecesse.[5]
E se é verdade que se desconhece esse circunstancialismo, também é certo que sabemos que a nomeação para o exercício dessas funções não teve solução de continuidade uma vez que se provou que o apelado, continuando a exercer as funções inicialmente contratadas com a apelante, foi depois nomeado para também exercer outras mas não essa,[6] pelo que é legítimo concluir que tal ocorreu temporariamente e, naturalmente, por período de tempo desconhecido.[7]
A situação enquadra-se na mobilidade funcional a que se refere o n.º 1 do art.º 314.º do Código do Trabalho de 2003, vigente ao tempo daqueles factos,[8] uma vez que a apelante encarregou temporariamente o apelado de exercer funções não compreendidas na actividade contratada, não implicando com isso uma modificação substancial da sua posição, embora lhe conferisse direito a perceber da empregadora a remuneração devida aos trabalhadores dessa categoria profissional caso fosse superior.[9]
Já no que concerne ao exercício cumulado das funções contratadas de inspector com as de director técnico a solução terá que ser necessariamente algo diferente: é que, como se alcança dos factos provados 13. a 19. e 22, houve uma solução de continuidade na nomeação para o seu exercício até praticamente a cessação do contrato por denúncia do apelado e, por conseguinte, o caso terá que ser enquadrado na mudança de categoria. É que, como se depreende dos n.os 3 e 5 do art.º 120.º do Código do Trabalho de 2009, agora o vigente, tendo em conta o tempo dos factos, a lei fixa em dois anos o período máximo de vigência da ordem do empregador para a alteração do exercício de funções pelo trabalhador, findo o qual este adquire o direito à nova categoria. É certo que a lei o não diz apertis verbis mas isso depreende-se, a contrários sensu, do citado n.º 5 do art.º 120.º do Código do Trabalho de 2009 pois que aí se refere que tal não acontece quando as funções são exercidas temporariamente.[10]
Sendo certo, de qualquer modo, que os ónus da alegação e da prova da existência de um diferencial retributivo acrescido entre essas categorias corria por conta do apelado trabalhador, posto que se trata de um facto constitutivo do direito por ele ajuizado (n.º 1 do art.º 342.º do Código Civil).
Mas esta não foi a solução da sentença, que se decidiu por condenar a apelante a pagar ao apelado o acréscimo a que se referem os CCT para o sector, quer os celebrados entre a ANCIA — Assoc. Nacional de Centros de Inspecção Automóvel e a FETESE — Feder. dos Sind. dos Trabalhadores de Serviços e outro, quer entre a ANCIA — Associação Nacional de Centros de Inspecção Automóvel e o SETACCOP — Sindicato da Construção, Obras Públicas e Serviços Afins — Alteração salarial e outras (em ambos os casos no respectivo Anexo II).[11]
Porém, como bem refere o apelante, não se provou que esta fosse subscritora desses CCT como ela e o apelado fossem deles filiados, quando, como é sabido, tanto no domínio do Código do Trabalho de 2003, como no de 2009, vale a regra da dupla filiação, de acordo com a qual aqueles só vinculam os seus subscritores ou inscritos nas respectivas associações de classe.[12] Sendo certo que, enquanto facto constitutivo do seu direito, cabia ao trabalhador / autor os ónus da alegação e prova desses factos, nos termos do art.º 312.º, n.º 1 do Código Civil.[13]
Ora, conforme se provou, "o autor auferiu, pelo desempenho da actividade que vinha exercendo de Inspector de Veículos em acumulação com o cargo de Director Técnico, um salário superior à remuneração devida pelo desempenho do cargo de Director, ou seja mais do que o salário de inspector com o acréscimo do exercício das funções de director técnico"[14] e, assim sendo, a esse título nada mais lhe é devido. É que, não tendo o apelado observado os ónus da alegação e prova dos factos que eventualmente lhe poderiam conceder direito a perceber do apelante qualquer acréscimo de retribuição face ao que resultava do exercício da actividade de inspector de veículos, naturalmente que a acção não poderia proceder.
Deverá, portanto, atender-se a apelação e nesta parte revogar a sentença recorrida e absolver a apelante do pedido.
Uma vez que a circunstância de se não ter conhecido da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto se veio a mostrar irrelevante para a solução jurídica da causa, as custas serão suportadas pelo apelado, pois que ficou vencido in totum (art.º 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
*** III - Decisão.
Termos em que se acorda conceder parcial provimento à apelação e nessa medida:
i.não conhecer da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
ii. revogar a sentença recorrida na parte em que condenou a apelante a pagar ao apelado o acréscimo remuneratório pelo desempenho de funções de Director técnico/Director da qualidade no período em que esteve nomeado para tal e de facto as exerceu;
iii. mantendo-se a mesma na parte remanescente.
Custas pelo apelado (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela I-B a ele anexa).
*
Lisboa, 13-02-2019.
António José Alves Duarte
Maria José Costa Pinto
Manuela Bento Fialho
[1] Art.º 652, n.º 1 do Código de Processo Civil. [2] Art.º 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho. [3] Art.º 657.º, n.º 2 do Código de Processo Civil. [4] Art.º 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. A este propósito, Abrantes Geraldes, Recursos no Processo do Trabalho, Novo Regime, 2010, Almedina, páginas 64 e seguinte. [5] Art.º 314.º do Código do Trabalho de 2003. [6] Facto provado em 13. [7] Neste sentido conclui o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-04-2005, no processo n.º 05S254, publicado em http://www.dgsi.pt. [8] Art.os 3.º, n.º 1 da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto e 14.º, da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro. [9] Art.º 314.º, n.º 3 do Código do Trabalho de 2003. [10] Neste sentido, Pedro Romano Martinez e outros, in Código do Trabalho Anotado, 10.ª edição, Almedina, Coimbra, 2015, páginas 331 e seguinte (anotação de Pedro Madeira de Brito ao art.º 120.º). [11] Descontando o CTT publicado no BTE, n.º 20, 29-05-2018, que foi publicado já depois do contrato ter cessado, por denúncia do apelado, que por isso nunca poderia ser aplicado, a sentença citou o CCT publicado no Boletim do Trabalho e Emprego, 1.ª série, n.º 28, de 29 de Julho de 2007, com rectificação publicada no Boletim do Trabalho e Emprego, 1.ª série, n.º 32, de 29 de Agosto de 2007, e as alterações salariais e outras publicadas nos Boletins do Trabalho e Emprego, 1.ª série, n.os 15, de 22 de Abril de 2009 e 25, de 8 de Julho de 2010 e no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 25, de 8 de Julho de 2014, e n.º 37, de 8 de Outubro de 2016, e revisão global publicada no Boletim do Trabalho e Emprego, n.º 26, de 15 de Julho 2017, todos assinados pela ANCIA e uns também pela FETESE e outros pelo SETACCOP. [12] Art.os 552.º, n.º 1 do Código do Trabalho de 2003 e 496.º, n.º 1 do de 2009. [13] Neste sentido, Pedro Romano Martinez e outros, Código do Trabalho Anotado, 10.ª edição, Almedina, Coimbra, 2015, página 1037 e seguinte (anotação de Luís Gonçalves da Silva ao art.º 496.º). [14] Facto provado 23. É certo que mais que um facto se trata de uma conclusão sobre matéria de facto mas também é verdade que, conforme escreveu Antunes Varela, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 122.º, página 222, em anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08 de Novembro de 1984, "se, porém, algum dos juízos de valor sobre os factos (ou seja, sobre a matéria de facto) for indevidamente incluído no questionário, a resposta do colectivo a esses quesitos não deve ser tida por não escrita, por aplicação do disposto no n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil, visto não se tratar de verdadeiras questões de direito".