EXECUÇÃO DE SENTENÇA
CASA DE PORTEIRO
Sumário

Não se reconduzindo o caso dos autos a uma hipótese de imóvel arrendado para habitação, não poderiam os executados obter o diferimento da desocupação nos termos previstos no nº 1 do art. 864 do CPC; mesmo que se estivesse perante um arrendamento para habitação, não se tratando de resolução por não pagamento de rendas, o Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social não estava sujeito à obrigação de pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento.

Texto Integral

Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I - O Condomínio do Prédio sito na Av. ..., nº ..., C... deduziu execução para entrega de coisa certa contra A... e J....
O título executivo apresentado foi a sentença de 4-12-2015 proferida nos autos de processo comum em que é A. o Condomínio do Prédio sito na Av. ..., nº ..., C... e RR. A... e J... e em que foi decidido:
«a) Reconhecer que o autor é o único e legítimo proprietário da fracção relativa à casa da porteira, que se encontra ao nível do primeiro andar do prédio constituído em propriedade horizontal, sito na Av. Dr. ..., nº ... – C... (...);
b) Condenam-se os réus a restituir à autora, livre de pessoas e bens, a fracção indicada na al. anterior;
c) Condenam-se os réus a pagar ao autor a quantia de 3.000,00 €, acrescida da quantia mensal de 300,00 €, desde Setembro de 2015 até efetiva entrega do prédio».
Naquele processo o A. pedira a restituição do imóvel desocupado de pessoas e bens «por ter caducado o contrato de trabalho que existia entre ambas as partes», bem como a indemnização de 3.000,00 € pela ocupação abusiva do imóvel, acrescida do valor vincendo de 300,00 € mensais, por cada mês de ocupação até à sua restituição definitiva.
Os RR. não ofereceram contestação, na sequência do que foi proferida a supra referida sentença.
Na execução, citados os executados, veio a executada deduzir incidente de diferimento da desocupação do imóvel arrendado para habitação, alegando, em resumo:
A executada desempenhou funções de porteira, tendo no âmbito dessa relação ocupado a casa da porteira através de uma relação de arrendamento estabelecida verbalmente; é portadora de deficiência visual, não tendo condições económicas para proceder à liquidação das rendas; a pensão que aufere não lhe permite arrendar uma casa e, apesar de já ter solicitado habitação social junto do Município, não dispõe de outra habitação.
Concluiu a requerente:
«Deve ser concedido deferimento da desocupação do imóvel arrendado de acordo as exigências de boa fé fixadas no artigo 864º do Código de Processo Civil pelo período de 5 meses e ser a decisão comunicada ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social».
O exequente foi notificado para, em 10 dias, contestar o incidente, nada tendo dito.
Em 8-3-2018 foi proferida decisão do seguinte teor:
«Face à ausência de contestação considero provados os factos alegados no requerimento de incidente de diferimento de desocupação.
Considerando que a Executada A... é portadora de deficiência visual e que não tem possibilidades económicas para suportar uma renda e nos termos do artº 864º do NCPC defiro ao requerido diferimento da desocupação do local arrendado por um período de cinco meses.
Custas pelo Exequente.
Registe e Notifique e comunique-se ao Fundo de Socorro Social do Instituto de
Gestão Financeira da Segurança Social».
Apelou o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:
1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho a fls…, de 08-03-018, o qual decreta o diferimento da desocupação do local arrendado, por um período de cinco meses, nos termos do art.º 864.º do C.P.C. e determina a notificação/comunicação do citado despacho, ao Fundo de Socorro Social (FSS), pelo que, atendendo o previsto no art.º 865 .º n.º 3 do C.P.C, só se poderá concluir que condena o dito Fundo, no pagamento das rendas correspondentes ao período de diferimento
2. Da conjugação do preceituado no art.º 864.º n.ºs 1, 2 al.a) do C.P.C e n.º 3 do mesmo preceito, resulta que são pressupostos/ requisitos cumulativos de intervenção do FSS os a seguir discriminados:
- que o contrato de arrendamento tenha por fim a habitação;
- que a resolução do contrato de arrendamento tenha por fundamento o não pagamento de rendas;
- que a falta do pagamento das rendas se deva a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento de inserção social;
3. Nos termos do previsto no art.º 864.º n.º 3 do C.P.C :“No caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste.”
4. Sucede que, do douto despacho ora recorrido e do requerimento inicial do incidente, não resultam, salvo melhor opinião, preenchidos todos os requisitos/pressupostos cuja verificação cumulativa é condição necessária para a intervenção do FSS.
5. No despacho ora recorrido não é referida qual a alínea do art.º 864.º n.º2, em função da qual foi decretado o diferimento de desocupação do local arrendado, nem se poderá tal concluir do seu teor.
6. Do requerimento inicial do incidente e documentos anexos, remetidos pelo Tribunal, a solicitação do ora recorrente parece, à priori, resultar a carência económica da executada, uma vez que que a mesma auferia em 2017, uma pensão de velhice no valor mensal de € 382,46 (trezentos e oitenta e dois euros e quarenta e seis cêntimos) e litiga com benefício de apoio judiciário.
7. Ainda assim, desconhece-se quais os rendimentos do marido com quem vive e qual o valor da renda aplicável ao imóvel.
8. Não resulta do requerimento inicial do incidente e documentos anexos ao mesmo, que esteja em causa um contrato de arrendamento, propriamente dito.
9. Conforme resulta do alegado em sede do requerimento inicial do incidente, a executada era porteira e o imóvel em causa nos autos era a casa de função (casa de porteira).
10. Nos termos do estabelecido na Base XI - remuneração do trabalho, do Regulamento de trabalho para os porteiros de prédios urbanos, “ A remuneração dos trabalhadores abrangidos por esta portaria será satisfeita uma parte em dinheiro e outra em prestações não pecuniárias (n.º1) e “ as prestações não pecuniárias são constituídas pelo alojamento…”
11. Ou seja, dada a antiga profissão da requerente e em função de tão escassos elementos, o FSS desconhece e não tem obrigação de conhecer se estava em causa a resolução de um contrato de arrendamento para habitação.
12. Com efeito, em função dos escassos elementos disponíveis e atenta a ex- profissão da executada, o que parece resultar é que a entrega do imóvel, dos autos poderá decorrer, não de uma situação de cessação de um contrato de arrendamento mas da cessação do contrato de trabalho de porteira.
13. Pelo que, nos termos expostos só se poderá concluir que não resultam verificados os pressupostos/requisitos cuja verificação cumulativa é condição necessária para a intervenção do FSS, nomeadamente, não parece resultar que esteja em causa um contrato de arrendamento (para habitação) e sem prescindir, caso se entenda que se está perante um contrato de arrendamento para habitação, não resulta verificado que a resolução do mesmo tivesse por base a falta de pagamento de rendas.
Não foram deduzidas contra alegações.
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II - São as conclusões da alegação de recurso, no seu confronto com a decisão recorrida, que determinam o âmbito da apelação, salvo quanto a questões de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo. Face ao teor das conclusões de recurso temos como questão que se coloca a de se estão verificados os pressupostos de que a lei faz depender a intervenção do FSS, desde logo um contrato de arrendamento para habitação e a resolução do mesmo por falta de pagamento de rendas.
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III – Os factos a ter em consideração são os que decorrem do relatório supra.
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IV – 1 - Sob a epígrafe «Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação» dispõe o art. 864 do CPC:
«1 - No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
2 - O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
3 - No caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste». 
Consoante decorre do nº1 do artigo em referência – e, desde logo, da sua epígrafe – o regime nele previsto apenas tem lugar nos casos de imóveis arrendados para habitação.
O nº 3 prevê que quando seja deferido o incidente por carência de meios económicos do executado, em caso de resolução do contrato de arrendamento por não pagamento de rendas, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando sub-rogado nos direitos do senhorio.
O apelante sustenta não estarem verificados os pressupostos/requisitos cuja verificação é condição necessária para a intervenção do FSS, nomeadamente, que esteja em causa um contrato de arrendamento para habitação; bem como, caso assim se entendesse, não resulta verificado que a resolução do mesmo tivesse por base a falta de pagamento de rendas.
Em nosso entender assiste-lhe razão.
A execução na dependência da qual teve lugar o pedido de diferimento de desocupação tinha como título executivo uma sentença proferida em acção de reivindicação em que os RR. foram condenados a restituir ao A. a casa da porteira e a pagar uma indemnização pela ocupação abusiva da mesma.
Na acção comum (acção de reivindicação) os RR. não contestaram, não  havendo sido alegada a existência de um qualquer contrato de arrendamento que não foi considerado naquela acção.
Consoante resulta do nº 5 do art. 10 do CPC toda a execução tem por base um título pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva - o título é, de facto, o suporte da execução.
Pressupondo a acção executiva a violação do direito, a finalidade da presente execução insere-se na reintegração do direito de propriedade do exequente com a entrega do imóvel ao mesmo, seu titular.
Não foi suposta a existência de um arrendamento para habitação, pretendendo-se antes a restituição da casa da porteira, na sequência da cessação de um contrato de trabalho; como resulta da base XI da Portaria de Regulamentação de Trabalho para os Porteiros dos Prédios Urbanos, de 2 de Maio de 1975, a remuneração daqueles trabalhadores é satisfeita, em parte, pelo alojamento (prestação não pecuniária). No contexto deste tipo de relações laborais a utilização da casa pela porteira não tem na base uma relação de arrendamento, tratando-se antes de uma parte da remuneração de trabalho.
O contrato de arrendamento pressupõe, por definição, uma “renda”, prestação pecuniária periódica que é contrapartida do gozo temporário do imóvel. Renda inexistente no caso dos autos – assim, a sentença que constitui título executivo condenou os ora executados a satisfazerem uma determinada quantia pela ocupação abusiva do imóvel.
Deste modo, não resulta dos autos que nos encontremos perante um caso de imóvel arrendado para habitação – logo, não se trata de hipótese em que os executados pudessem obter o diferimento da desocupação nos termos previstos no nº 1 do art. 864 do CPC.
Isto sem pôr em causa que em outras circunstâncias, que não apenas as de existência de um arrendamento para habitação, também se possam verificar “razões sociais imperiosas” que justificassem um diferimento – todavia a lei limitou ao arrendatário habitacional ([1]) o direito a, nas situações específicas nela previstas, obter o diferimento da desocupação
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IV – 2 - De qualquer modo, mesmo que entendêssemos que havia existido um arrendamento para habitação, indubitavelmente não estamos perante uma resolução por não pagamento de rendas.
O nº 3 do art. 864 faz recair sobre o Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social o pagamento ao senhorio das rendas correspondentes ao período de diferimento, no caso de diferimento com base na alínea a) do nº 2. Esta reporta-se à resolução por não pagamento de rendas, em que a falta desse pagamento se deva a carência de meios do executado.
No caso que nos ocupa não nos encontramos perante uma resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas – como acima mencionámos, estamos perante uma execução de sentença proferida em acção de reivindicação em que foi determinada a entrega do imóvel ao proprietário do mesmo e o pagamento de uma indemnização pela ocupação abusiva.
Pelo que concluímos que a apelante não está obrigada ao pagamento de quaisquer rendas.
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V – Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida na parte em que determina a intervenção do Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.
Custas pelos apelados.
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Lisboa, 21 de Fevereiro de 2019

Maria José Mouro
Jorge Vilaça
Vaz Gomes

[1] E ao insolvente, nos termos previstos no nº 5 do art. 150 do CIRE.