ARMA
LICENÇA VENATÓRIA
Sumário

I. A idoneidade para a obtenção de licença para o exercício da actividade venatória reportada no artigo 14 do RJAM exige que o requerente não tenha sido condenado por crime doloso praticado com violência e que não manifeste falta de condições e aptidão para o desempenho daquela actividade.
II. O perigo a acautelar no caso, com a exigência da respectiva autorização e licenciamento não é o de que o portador possa vir a fazer um uso indevido da arma, praticando outros crimes, mas sim a sua capacidade para o desempenho da actividade venatória com todos os pressupostos que a mesma implica.
III. Tendo o requerente sido condenado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, sem a verificação do uso de qualquer tipo de violência e, levando desde a sua libertação uma vida consentânea com o cumprimento das normas sociais, com actividade laboral estável e perfeitamente integrado em família tradicional, praticando há mais de 20 anos a actividade venatória, possuindo a respectiva licença de exercício, não se verificam razões que fundamentem o desabono da idoneidade do requerente para a obtenção da licença de uso e porte de arma de caça, sendo que não é de olvidar o disposto no artigo 30-1 e 4, da Constituição da República Portuguesa sobre os efeitos das penas nos direitos do cidadão (sumario elaborado pela relatora)

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes da 9ª. Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

I-RELATÓRIO.

No processo acima identificado foi deduzido pelo requerente E……….., identificado nestes autos, a fls.58, incidente com vista ao reconhecimento da sua idoneidade para a renovação da licença de uso e porte de arma de caça (artºs. 15-2 e 14-3 e 5 do RJAM).
Neste processado incidental, foi proferida a decisão que lhe indeferiu o pedido formulado e da qual vem interposto o recurso em apreciação nesta Relação.
*
Vejamos o que consta do despacho judicial impugnado:
(transcreve-se)
O arguido E…… veio apresentar, por apenso ao processo n.º 200/12.0JELSB, incidente com vista a que lhe seja reconhecida idoneidade para a obtenção de licença de uso e porte de arma de caça (classe C), conforme requerimento de fls. 2 a 7 que aqui se dá por integralmente reproduzido.
Conforme resulta dos autos, foram tomadas declarações ao próprio requerente e foi tomada em consideração a documentação junta com o requerimento inicial, bem como aquela que juntou posteriormente, assim como a informação da autoridade administrativa de que a pretensão do arguido aí formulada iria ser indeferida.
O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu o parecer junto a estes autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, sustentando que “O requerente E……….. foi condenado, neste processo, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão. Em causa esteve o seu envolvimento na importação, do B…. para Portugal, via marítima, em dois contentores, de avultada quantidade de cocaína (aproximadamente, 500 quilogramas). Em 10.05.2018, o E……… requereu na PSP a renovação da sua licença de uso e porte de arma. No âmbito desse procedimento administrativo (tramitado pelo núcleo de armas e explosivos do Comando Metropolitano de L….. da PSP) foi-lhe transmitida a intenção de indeferir o pedido, por se considerar não ser, em face da dita condenação, merecedor da confiança que o Estado deposita nos portadores de armas de fogo. Por outro lado, o presente incidente judicial de reconhecimento de idoneidade não suspende aquele procedimento administrativo de concessão ou renovação da licença em curso (artº 14º, nº 4, do RJAM)”.
Das declarações prestadas pelo requerente, bem como da documentação junta a este apenso e ao processo principal, resulta, com relevo para a decisão a proferir, que (não sendo feita referência a matéria meramente conclusiva ou inócua para a decisão a proferir – até porque muita da matéria invocada e relacionada com a vida do arguido já se verificava à data da prática do crime e não o impediu de o cometer):
1. O requerente foi condenado, no processo principal, numa pena de 5 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de um crime de tráfico de estupefacientes.
2. O requerente é adepto e praticante da actividade de caça há mais de 20 anos.
3. Para o efeito é titular da carta de Caçador n.º ……, emitida pela República Portuguesa em 27 de Abril de 2016 e válida até 27 de Dezembro de 2020.
4. A Carta de Caçador só habilita ao exercício da caça com todos os meios de caça permitidos desde que acompanhado dos demais documentos legalmente exigidos, nomeadamente, Licença de uso e Porte de Arma quando o seu titular utilizar arma de fogo.
5. Pelo que o requerente foi titular da respectiva Licença para o Uso e Porte de Arma (Classe C), n.º ………, emitida em 11 de Maio de 2013, pelo Ministério da Administração Interna, Direcção nacional da Polícia de Segurança Pública e com validade até 10 de Maio de 2018.
6. Desde que exerce a actividade desportiva de caça, o requerente sempre procedeu às renovações legalmente obrigatórias de ambos os títulos, sem qualquer condicionamento ou impedimento legal.
7. Daí que em 10 de Maio de 2018, o requerente tenha solicitado nova renovação da sua Licença para Uso e Porte de Arma (Classe C), apresentando à entidade competente todos os documentos legalmente exigíveis, designadamente, o Certificado de Registo Criminal.
8. Sucede que, em Julho de 2018, a P.S.P. – Comando Metropolitano de L…..– Área Operacional – Núcleo de Armas e Explosivos, através do Superintendente J……, veio notificar o requerente, no sentido deste se pronunciar sobre a intenção de ser indeferido o seu pedido de renovação da referida licença.
9. O projecto de indeferimento fundamenta-se na falta de idoneidade do requerente, porquanto, o mesmo tem averbado no seu registo criminal a condenação “Em 2014-07-25, já transitada em julgado, foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a uma pena de prisão de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses (NUIPC: 200/12.0JELSB).”
10. Entende a entidade competente que o requerente “não é merecedor da confiança que o Estado deposita nos portadores de armas de fogo”, tendo em consideração o referido averbamento que consta na certidão de registo criminal.
11. Na sequência de informação solicitada pelo tribunal, aquela mesma entidade informou que o processo administrativo desencadeado pelo arguido irá culminar numa decisão de indeferimento, conforme já comunicado ao mesmo.
12. Para além daquela condenação, o requerente não tem outros antecedentes criminais ou prisionais.
13. O requerente cumpriu quase 2/3 da pena de prisão no Estabelecimento Prisional de S…, tendo sido notificado no dia 24 de Fevereiro de 2016, da decisão do Tribunal de Execução de Penas de Lisboa – Juiz 1, para emissão de mandado para a libertação imediata do arguido, aqui ora requerente, com data de 24 de Fevereiro de 2016.
14. O requerente manteve sempre um comportamento prisional adequado, ocupando o seu tempo em actividades laborais de faxina no referido E.P., revelando consciência crítica, assumindo a prática do crime pelo qual foi acusado, interiorizando o sentido da pena.
15. Não é conhecida a prática posterior de outros crimes por parte do arguido.
16. No presente, o requerente apesar de reformado, mantém-se profissionalmente activo.
17. O requerente retomou a sua vida social após o seu regresso à liberdade.
18. Adepto e praticante de caça desportiva, desde há mais de 20 anos, o requerente gostaria de continuar a poder praticar, carecendo, com efeito que a sua licença seja renovada.
Cumpre, assim, decidir.
De acordo com o disposto no artigo 15.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, as licenças C e D só podem ser concedidas a maiores de 18 anos que, para além do preenchimento de outros requisitos legais, sejam consideradas pessoas “idóneas”.
Como decorre do disposto no n.º 2 do artigo 14.º, por remissão do n.º 2 do artigo 15.º deste diploma legal, é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão da licença de uso e porte de arma a circunstância de ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou condenação judicial pela prática de um crime.
Todavia, pode ser reconhecida idoneidade ao requerente da licença de uso e por porte de arma, mesmo antes do cancelamento definitivo da inscrição da condenação penal no seu certificado de registo criminal, mediante parecer fundamentado elaborado pelo Ministério Público e homologado pelo juiz do tribunal da última condenação (vide artigo 14.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro).
Dos dispositivos legais acima expostos resulta que se deve presumir a falta de idoneidade para a obtenção de licença de uso e porte de arma em relação aos cidadãos que tenham sido condenados pela prática de um crime enquanto permanecer a inscrição dessa condenação no seu registo criminal, ao mesmo tempo em que se exige um especial cuidado no reconhecimento dessa idoneidade por parte do tribunal da última condenação, enquanto não ocorrer o cancelamento definitivo dessa condenação.
Isto significa, como princípio geral, que o legislador pretendeu afastar da concessão da licença de uso e porte de arma todos os cidadãos que tenham sido condenados pela prática de um qualquer crime, independentemente da sua natureza pessoal ou patrimonial, quer estejam, quer não estejam relacionados, muito em particular, com a detenção proibida de armas, por forma a obstar que os agentes da prática de crimes tenham acesso legítimo a armas, através da concessão da correspondente licença, para a prossecução da sua actividade delinquente.
O princípio geral da proibição do reconhecimento da idoneidade ao sujeito que foi condenado pela prática de um crime mantém-se enquanto perdurar a inscrição dessa condenação no certificado de registo criminal, ou seja, enquanto, nos termos da lei, não for determinado o cancelamento definitivo dessa inscrição, de acordo, actualmente, com o artigo 11.º da Lei n.º 37/2015, 05 de Maio (Lei da Identificação Criminal).
Todavia, este princípio não assume natureza absoluta, admitindo-se que circunstâncias, por exemplo, relacionadas com a natureza ou com a gravidade do crime ou com a personalidade do agente, justifiquem o reconhecimento de idoneidade para a obtenção de licença de uso e porte de arma, mesmo antes do cancelamento definitivo da inscrição da condenação penal no certificado de registo criminal do requerente.
Nestes casos, o legislador impôs especiais cuidados de ponderação decorrentes da existência de um “parecer fundamentado” do magistrado do Ministério Público, que mereça a concordância por parte do juiz do tribunal da última condenação.
No caso vertente, verifica-se que o requerente E……… foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão efectiva.
 Quer atendendo à moldura penal abstracta, quer atendendo à pena de prisão que concretamente foi imposta ao ora requerente, estamos longe de conseguir afirmar que este ilícito constitua uma simples ou singela bagatela criminal, com reduzida ou nula gravidade no quadro do nosso ordenamento jurídico.
O tráfico de estupefacientes trata-se de um crime com inequívoca relevância no quadro do nosso ordenamento jurídico, caso se tenha em consideração o bem jurídico protegido (a saúde pública), a moldura penal abstracta (pena de prisão de 4 a 12 anos) e a circunstância de surgir frequentemente associado a outros ilícitos criminais (v.g. roubos, furtos, associações criminosas, detenção de armas).
De igual modo, conforme salienta o Ministério Público a pena de prisão imposta ao arguido, de cumprimento efectivo, constitui reflexo da inelutável gravidade dos factos que foram objecto de julgamento no âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 200/12.0JELSB, caso se tenha em atenção que o arguido esteve envolvido na importação, do B… para Portugal, via marítima, em dois contentores, de avultada quantidade de cocaína (aproximadamente, 500 quilogramas).
Se este conjunto de circunstâncias já indicia falta de idoneidade, também não foram apontados pelo requerente fundamentos suficientemente consistentes e convincentes que levem este tribunal a reconhecer-lhe, neste momento, aptidão, capacidade ou mérito para a obtenção da pretendia licença, por forma a fazer esquecer ou mitigar a condenação criminal que lhe foi imposta (posto que aquilo que invoca é basicamente a mesma situação vivencial que já se verificava à data da prática do crime e que não impediu o arguido de o praticar).
Tão pouco o Digno Magistrado do Ministério Público veio a vislumbrar esses fundamentos sólidos, acabando, conforme acima se deixou enunciado, por emitir parecer fundamentado no sentido de que, no presente momento, não deve ser reconhecida idoneidade ao requerente para a renovação da licença de uso e porte de arma, ao contrário do que exige o n.º 3 do artigo 14.º do citado diploma legal.
Sem desvalorizar a ausência de condenações posteriores ao crime e o esforço (aparentemente sincero) no sentido de se afastar de práticas criminosas e de se inserir, de pleno, na sociedade, nada nos leva a afirmar que se afigure justificado, neste momento, reconhecer a título excepcional idoneidade ao requerente para efeitos de obtenção de licença de uso e porte de arma.
 De igual sorte, os motivos subjacentes ao pedido de obtenção ou de renovação da licença de uso e porte de arma, que se relacionam com a actividade venatória, de carácter lúdico, também não fazem inflectir esta linha de raciocínio, na medida em que em nada se prendem com a actividade profissional do arguido ou com a necessidade de obter sustento para o seu agregado familiar.
Em face do exposto, indefere-se o pedido apresentado pelo requerente E………… para que lhe seja reconhecida idoneidade para efeitos de obtenção de licença de uso e de porte de arma da caça.
Custas do incidente a cargo do requerente, fixando-se no mínimo legal a taxa de justiça.
Notifique.
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É desta decisão que vem interposto o recurso, cuja motivação consta de fls.32 a 49 dos autos, com as conclusões que vão transcritas:
a) Ao não ser dado provimento ao presente Recurso, fica o ora Requerente impedido de exercer uma actividade (caça) que exerce há mais de 20 (vinte) anos.
b) Continuando-se assim a entender, temos que o ora Requerente ao ser impedido de renovar a sua licença de uso e porte de arma por consequência do seu acto, sendo tal impedimento uma penalização acrescida à pena que já cumprida, ou mesmo uma extensão da pena pelo qual foi condenado, o que se entende ser inadmissível, face ao
ordenamento jurídico português.
c) Por um lado, o Requerente ao ver-se privado da sua liberdade durante 5 anos e 6 meses, cumpriu da forma mais gravosa a sua dívida para com a sociedade; arrependido, reconhece o mesmo a gravidade do crime cometido.
d) Por outro, nunca o mesmo foi indiciado ou incriminado por utilização ilícita de armas, não obstante lidar com as mesmas há mais de 20 anos na prática de actos venatórios.
e) Nem tão pouco, o Requerente foi indiciado ou acusado de ter violado as normas que regulam a actividade cinegética.
f) E, se a finalidade da pena visa a prevenção da prática futura de crimes e a ressocialização do condenado, entende-se que, no caso sub judice, perante o bom comportamento do Requerente durante o cumprimento da pena de prisão (efectiva e condicional), a reintegração do mesmo na família e na sociedade, o seu arrependimento e a sua consciência crítica ao assumir a prática do crime pelo qual foi acusado, interiorizando o sentido da pena, são elementos significativamente determinantes aquando da avaliação do reconhecimento pelo Tribunal, da idoneidade do mesmo.
g) Também, não se pode seguir o entendimento do Tribunal a quo, quanto ao fundamento de que a prática de actos venatórios, de carácter lúdico, do Requerente, não fazerem inflectir na linha de raciocínio do Tribunal, na medida em que nada se prendem com a actividade profissional do arguido, aqui ora Requerente, ou com a necessidade de obter sustento para o seu agregado familiar.
h) Na verdade, a importância da realização de atividades de lazer proporcionam a ativação das dimensões socio-afetivas, motoras e cognitivas da vida das pessoas bem como a sua satisfação com a vida e bem-estar geral, confirmando, por conseguinte, a relevância da prática das atividades de lazer na promoção do envelhecimento bem-sucedido, o que deverá importar no caso concreto, atenta a idade do Requerente e o seu arrependimento quanto ao cometimento do crime anteriormente cometido, perante a família e a sociedade onde se encontra inserido, o que, não obstante não ter
pesado na tomada de decisão, não passou despercebida ao Tribunal a quo.
i) O Requerente, ao longo de mais de 20 anos, manteve sempre uma postura cívica de grande respeito no âmbito do manuseamento das armas, nunca tendo por isso havido qualquer registo de infracção ou actos ilícitos com armas de fogos, cometidos por si.
j) A actividade da caça é uma actividade lúdica para o Requerente, não devendo ser o efeito da pena prolongado ao ponto de ver retirada a possibilidade do exercício de actos venatórios com arma de fogo.
k) O Requerente encontra-se reformado sendo a actividade venatória a única actividade lúdica que abraça, não sendo razoável que lhe não seja reconhecida a idoneidade possuir e usufruir de uma arma de fogo destinada exclusivamente à caça, quando jamais ao longo de toda a sua vida se serviu da mesma para outros fins que não fossem a prática de actos venatórios.
l) Por último, reiterando o arrependimento sincero do Requerente quanto à prática do crime cometido, salienta-se, todavia, a postura do mesmo, enquanto praticante caçador e amigo da natureza, cuja actividade não se cinge exclusivamente à prática de actos venatórios com o intuito de matar animais, mas também a um trabalho permanente em prol da defesa e promoção do ordenamento cinegético defendendo a caça como factor de desenvolvimento rural e de manutenção da diversidade biológica.
Nestes termos e nos demais de Direito aplicável, requer -se ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa que:
a) Seja dado provimento ao presente Recurso;
b) Seja revogado o despacho sobre o Recurso em apreço, e substituído por outro que reconheça a idoneidade ao Requerente para efeitos de renovação de licença e uso de porte de arma de Classe C2.
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Em resposta, o Mº.Pº. produziu as alegações que constam de fls. 52 a 55 dos autos, concluindo:
(transcreve-se)
Em conclusão, dir-se-á que:
- o RJAM faz depender a concessão de licença de uso e porte de armas de caça, entre o mais, da idoneidade do requerente;
- de acordo com o RJAM, deve presumir-se a falta de idoneidade em relação aos cidadãos que tenham sido condenados pela prática de um crime (enquanto permanecer a inscrição dessa condenação no seu registo criminal);
- no caso em apreço, verifica-se que o recorrente foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, devido ao seu envolvimento, no decurso do ano de 2012, na importação, do B….. para Portugal, via marítima, em dois contentores, de avultada quantidade de cocaína (aproximadamente, 500 quilogramas);
- a acentuada gravidade de tal ilícito (por se tratar de tráfico com dimensão internacional e altamente organizado) e o modo empenhado como o recorrente se envolveu na sua prática, são dados que atestam uma probidade/integridade (do recorrente) diminuída;
- o que compromete o seu reconhecimento como alguém merecedor da confiança que se deposita nos cidadãos a quem se consente o uso e porte de armas de fogo;
 
- e, consequentemente, impede que, para esse efeito, possa ser considerado pessoa idónea.
pelo que deve julgar-se improcedente o presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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Neste Tribunal a Ex.m.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer, no sentido da improcedência do recurso.
 
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Cumpridos os vistos, procedeu-se a conferência.
Cumpre conhecer e decidir.

II- MOTIVAÇÃO.

O âmbito dos recursos encontra-se delimitado em função das questões sumariadas pelos recorrentes nas conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo, no entanto, das questões que sejam de conhecimento oficioso, como se extrai do disposto no artº 412º nº 1 e no artº 410 nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal (e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, em www.dgsi.pt).
No caso, o objecto do recurso situa-se em saber se o recorrente reúne as condições legais exigidas para que lhe possa ser concedida a renovação da licença de uso e porte de arma da classe C para o exercício do acto venatório.
Vejamos a Lei reguladora no caso.
Artigo 15.º do RJAM- Lei 5/2006 de 23.2 na última alteração introduzida pela Lei 50/2013 de 24.7
Licenças C e D
1 - As licenças C e D podem ser concedidas a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:
a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;
b) Demonstrem carecer de licença de uso e porte de arma dos tipos C ou D para a prática de actos venatórios, e se encontrem habilitados com carta de caçador com arma de fogo ou demonstrem fundamentadamente carecer da licença por motivos profissionais;
c) Sejam idóneos;
d) Sejam portadores de certificado médico, nos termos do artigo 23.º;
e) Obtenham aprovação em curso de formação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo.
2 - A apreciação da idoneidade do requerente é feita nos termos do disposto nos n.os 2, 3 e 4 do artigo 14.º
3 - Os pedidos de concessão de licenças de uso e porte de arma das classes C e D são formulados através de requerimento do qual conste o nome completo do requerente, número do bilhete de identidade, data e local de emissão, data de nascimento, profissão, estado civil, naturalidade, nacionalidade e domicílio.
4 - O requerimento deve ser acompanhado do certificado de aprovação para o uso e porte de armas de fogo da classe C ou D.
No que respeita ao conceito da idoneidade, a sua remessa é feita para a disposição do artigo 14 nºs. 2, 3 e 4 daquele diploma legal e, reza assim:
Artigo 14.º
Licença B1
1 - A licença B1 pode ser concedida a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:
a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;
b) Demonstrem carecer da licença por razões profissionais ou por circunstâncias de defesa pessoal ou de propriedade;
c) Sejam idóneos;
d) Sejam portadores de certificado médico, nos termos do artigo 23.º;
e) Obtenham aprovação em curso de formação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo.
2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 30.º da Constituição e do número seguinte, para efeito de apreciação do requisito constante da alínea c) do número anterior é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.
3 - No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação.
4 - A intervenção judicial referida no número anterior não tem efeitos suspensivos sobre o procedimento administrativo de concessão ou renovação da licença em curso.
5 - O incidente corre por apenso ao processo principal, sendo instruído com requerimento fundamentado do requerente, que é obrigatoriamente ouvido pelo juiz do processo, que decide, produzida a necessária prova e após parecer do Ministério Público. 6 - Os pedidos de concessão de licenças de uso e porte de arma da classe B1 são formulados através de requerimento do qual conste o nome completo do requerente, número do bilhete de identidade, data e local de emissão, data de nascimento, profissão, estado civil, naturalidade, nacionalidade e domicílio, bem como a justificação da pretensão.
7 - O requerimento referido no número anterior deve ser acompanhado do certificado de aprovação para o uso e porte de armas de fogo da classe B1.
           
Constatamos assim que a referência sobre a idoneidade é descrita como: é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.
Ou seja, é causa indicativa da falta de idoneidade o facto de o requerente ter sido condenado pela prática de um crime doloso cometido com violência.
No caso, particular, o requerente foi condenado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, sendo que, em momento algum dos factos fixados e da condenação se vislumbram circunstâncias integrantes da prática violenta do crime. Não existem referências à utilização ou posse de armas por parte do requerente, na realização do crime pelo qual foi condenado em 5 anos e 6 meses de prisão (cfr. certidão junta a fls.57 a 142 dos autos). Isto é, não se nos afigura que a condenação (a única registada ao recorrente) possa integrar um dos circunstancialismos da previsão legal acima.
Vejamos agora se outras razões devidamente fundamentadas se verificam no caso.
É certo que o recorrente foi condenado por crime grave e cumpriu a respectiva pena de prisão, sem percalços, como resulta da matéria fixada na decisão.
Praticou por mais de 20 anos a actividade venatória, sendo titular de licença válida de uso e porte de arma desde 2013 a 2018, ou seja datas posteriores à prática dos factos pelos quais foi condenado, que datam do ano de 2012. Não consta que tivesse feito uso incorrecto da arma durante esse período em que validamente esteve na sua posse ( consta que foi libertado após o cumprimento dos 2/3 da pena, em Fevereiro de 2016).
Constata-se da matéria assente que leva desde então uma vida consentânea com o cumprimento das normas sociais, com actividade laboral estável e perfeitamente integrado em família tradicional.
Ou seja, não conseguimos encontrar razões que fundamentem o desabono da idoneidade do requerente. Sendo que não é de olvidar o disposto no artigo 30-1 e 4, da Constituição da República Portuguesa sobre os efeitos das penas nos direitos do cidadão.
Como deixamos perceber do exposto, é nosso entendimento que ao valorar apenas a condenação sofrida pelo requerente, se lhe está a “prolongar” o efeito dessa mesma condenação, sendo certo que a lei exige a prática violenta do crime praticado para a verificação da inidoneidade e, no caso isso não ocorreu.
Por outro lado, não vemos na decisão recorrida argumentação atinente a outras circunstâncias exógenas ao crime praticado pelo arguido, que assumam fundada relevância no sentido de se concluir pela não idoneidade do recorrente para que possa renovar (não obter) a licença de uso e porte de arma para o exercício da actividade venatória, pois que, ainda que se trate de uma actividade lúdica (da qual até se pode discordar) ela serve naturalmente o equilíbrio psíquico do seu praticante na satisfação que lhe proporciona.
É que, o perigo a acautelar no caso, com a exigência da respectiva autorização e licenciamento não é o de que o portador possa vir a fazer um uso indevido da arma, praticando outros crimes, mas sim a sua capacidade para o desempenho da actividade venatória com todos os pressupostos que a mesma implica.
A propósito cabe aqui citar o que foi escrito no acórdão da Relação do Porto de 29-04-2015 : Ser idóneo a ter licença de uso e porte de arma de caça exige que se analise não o perigo de cometer um crime com a mesma, mas o facto de ter condições, qualidades, aptidões e competência para desempenhar a actividade lúdica que o uso de tal arma pressupõe.- [1]
E, ainda, o  Ac. TRC de 21-03-2012 : A «idoneidade», a que aludem os artigos 14º a 17º, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, traduzirá a capacidade ou qualidade de alguém para ser titular de licença de uso e porte de arma e de quem se espera que, em caso de concessão, dela faça um uso correspondente aos fins legais.
No pressuposto deste entendimento que temos vindo a manifestar, não encontramos na matéria fixada e, mormente no que respeita à personalidade do recorrente, sinais de risco para o exercício da actividade venatória, que pratica há mais de 20 anos sem incidentes ou incumprimento das regras que a regulam.
Assim, concluímos que a decisão recorrida enfatizou demasiado os antecedentes criminais do arguido- uma condenação com saída em liberdade condicional- não atendendo à redacção da norma acima transcrita na sua globalidade e, não aduzindo fundadamente outras circunstâncias relativas à não idoneidade da personalidade do requerente para fundadamente rejeitar o seu pedido de reconhecimento de idoneidade para a obtenção da renovação da licença de uso e porte de arma para a actividade venatória. Razões pelas quais revogamos a decisão recorrida.

III – DECISÃO.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 9ª. Secção Criminal desta Relação, em conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se a idoneidade do recorrente para obter a (renovação) licença de uso e porte de arma de caça, da classe C.

Sem tributação (artº. 513-1 do C.P.P.).

Notifique.

(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator – artº 94º, nº 2 do C.P.Penal)
                                                                        
Lisboa, 21/02/2019
Relator: Maria do Carmo Ferreira
Adjunto: Cristina Branco

[1] Anotação ao artº. 14 do RJAM da PGDL.