INSOLVÊNCIA
IMÓVEL
FIEL DEPOSITÁRIO
INSOLVENTE
Sumário

- Em processo de insolvência, apreendido um imóvel para a massa insolvente, deve ser constituído fiel depositário do mesmo o Insolvente que nele tenha a sua habitação, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 15ºº, n.º 1, do CIRE e 756º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil.
- E só com fundamento justificado poderá proceder-se à sua substituição (artigo 761º do Código de Processo Civil).
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no artigo 663º, nº 7, do CPC).

Texto Integral

Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

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I. RELATÓRIO:
No âmbito do processo de insolvência que corre termos no Juízo do Comércio da Comarca de Lisboa Oeste, Sintra, J4, em que, por sentença de 23.10.2017 foi declarado insolvente JOÃO J., sentença na qual foi determinada a apreensão dos bens do Insolvente, nos termos do disposto nos artigos 36º, al. g) e 150º, n.º 1 do CIRE.
Foi elaborado auto de apreensão da fração autónoma designada pelas letras “AE” correspondente ao 5º andar direito, letra B, com arrecadação no piso 7, do prédio urbano sito na Rua..., freguesia de Rio de Mouro, concelho de Sintra, descrito na 2ª Conservatória de Registo Predial de Sintra sob o n.º X... e inscrito na matriz respetiva sob o artigo Y..., do qual consta cópia a folhas 44 destes autos.
Por requerimento de 19.02.2008 veio o Sr. Administrador da Insolvência informar que, tendo comunicado ao Insolvente que deveria entregar-lhe as chaves do imóvel, atenta a decisão de liquidar o bem apreendido, o mesmo recusou a entrega, alegando que, não tendo ocorrido a venda do imóvel, o Insolvente continua a ser o respetivo depositário, solicitando que o Tribunal se pronunciasse sobre se deveria insistir-se na entrega ou aceitar a pretensão do Insolvente.
Foi então proferido o despacho de 13.03.2018, com o seguinte teor:
“Prescreve o art. 149º, do CIRE que, proferida a sentença declaratória de insolvência, procede-se à imediata apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente.
O poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador de insolvência diligenciar no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário, sem prejuízo de, nos casos em que haja demonstração que o imóvel constitui casa de habitação do insolvente ou é objeto de arrendamento validamente celebrado, poder ser fixado prazo razoável para entrega (o suficiente para permitir uma alternativa habitacional e tendo em conta a programação da venda), ficando designados o insolvente ou o arrendatário depositários (devendo as rendas ser entregues à massa insolvente) – art. 150º, do CIRE.
A competência para a realização da apreensão cabe ao administrador de insolvência, de harmonia com as disposições contidas no art. 149º e 150º, do CIRE, podendo inclusivamente diligenciar pela entrega coerciva, nos termos previstos na al. c), do n.º4, do referido preceito legal.
Ora, no caso concreto a insolvência foi declarada em 23 de outubro de 2017, devendo a apreensão dos bens suscetíveis de integrarem a massa insolvente ser iniciada nessa data. Acresce que estando em curso a liquidação do ativo a permanência dos insolventes no imóvel é suscetível de prejudicar a concretização da venda.
Por isso, o tempo decorrido afigura-se mais do que suficiente para a averiguação de quaisquer eventuais alternativas habitacionais.
Pelo exposto, deve proceder-se à apreensão efetiva dos bens integrantes da massa insolvente, sem prejuízo de o administrador de insolvência poder fixar prazo derradeiro para a ocorrência da entrega, objetivamente razoável para que os insolventes realizem a mudança de residência.
Notifique.”
Inconformado com a decisão assim proferida, veio o Insolvente interpor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
“I - Os nºs 1 e 2 do artigo 756º do Código de Processo Civil (aplicável por imposição do próprio CIRE) contêm uma excepção à regra geral de nomeação de fiel depositário (seja agente de execução ou administrador de insolvência). Essa excepção é, precisamente, a de ser constituído fiel depositário o proprietário ou o arrendatário de bem imóvel, sempre que este imóvel seja a sua casa de habitação efectiva.
II - O imóvel não foi vendido. Mantém-se, pois, propriedade do insolvente, sendo que este é o seu depositário, por ali ser a sua efectiva e única habitação.
III - O imóvel em causa constitui a (única) casa de habitação efectiva do insolvente, que a adquiriu exactamente com esse propósito (conforme consta da respectiva escritura de aquisição, junta aos autos) e que ali reside ininterruptamente desde então.
IV- Vale isto por dizer que o insolvente é o depositário do dito imóvel.
V- A circunstância de o insolvente ser o depositário do imóvel e, por consequência, ali continuar a habitar, não representa nenhum prejuízo para a concretização da venda.
VI- O Douto Despacho recorrido violou os artigos 36º g) e 150º nº1 do CIRE e 756º nº1 a) do CPC.
VII- Deve, pois, ser revogado.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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II. Questões a decidir.
É sabido que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objeto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do Novo Código de Processo Civil).
No caso dos autos, em face do teor das alegações do Recorrente importa apreciar e decidir se foi correta a decisão recorrida, ao determinar a apreensão efetiva e entrega ao Sr. Administrador da Insolvência, do imóvel em causa nos autos.        
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III. FUNDAMENTAÇÃO.
Os factos relevantes para o conhecimento do presente recurso constam do antecedente relatório, para o qual se remete.
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Nos termos do disposto no artigo 36º, al. g) do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), a sentença declaratória da insolvência, determina a apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que tenham sido arrestados, penhorados, apreendidos, detidos ou objeto de cessão aos credores, excetuados os que tenham sido apreendidos por virtude de infração de caráter criminal ou de mera ordenação social.
Tal preceito é complementado com o disposto nos artigos 149º e 150º do CIRE.
Assim, por regra, os bens devem ser imediatamente entregues ao administrador da insolvência, para que deles fique depositário, regendo-se o depósito pelas normas gerais e, em especial, pelas que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados – cfr. art. 150º, nº 1 do CIRE.
Tal preceito estabelece, porém, que tal deverá suceder “sem prejuízo” do disposto no artigo 756º, nos 1 e 2 do Código de Processo Civil, no qual se dispõe que se o bem penhorado (apreendido) constituir casa de habitação efetiva do executado (ou no caso do processo de insolvência, o insolvente) é este o depositário.
Trata-se de uma manifestação de salvaguarda de direitos fundamentais de ordem social e familiar (o direito à habitação – artigo 65º da Constituição da República).
Conclui-se desta forma que, sendo embora certo que, em regra, efetuada a apreensão dos bens, o administrador da insolvência fica deles depositário, certo é também que assim não sucede na situações previstas no artigo 756º, ns. 1 e 2 do Código de Processo Civil, em que o depositário é o imposto pelo aludido comando legal.
E apenas com fundamento justificado pode proceder-se à sua substituição, conforme estabelece o artigo 761º do Código de Processo Civil.
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No caso dos autos, o ora Insolvente tem a sua residência no imóvel apreendido, conforme referido na sentença que declarou a insolvência, e que fixou, de resto, a residência do mesmo naquele local.
Pese embora o imóvel se encontre apreendido, o que, como se viu, resulta da própria declaração da insolvência, é o Insolvente o seu depositário, por imposição legal.
Refere-se na decisão recorrida que “estando em curso a liquidação do ativo, a permanência dos insolventes no imóvel é suscetível de prejudicar a concretização da venda”. Trata-se, porém, de afirmação não sustentada em qualquer facto, sendo que não é facto notório ou conclusão necessária que da simples presença do Insolvente no imóvel decorra prejuízo para a venda; pelo contrário, tal presença pode até contribuir para a respetiva manutenção, para a visita de eventuais interessados. Tal prejuízo tem, pois, de alicerçar-se em factos concretos (v.g. recusa em apresentar ou mostrar os bens), que não foram alegados, nem se mostram demonstrados nos autos.
Conclui-se desta forma no sentido de reconhecer razão ao Apelante, devendo proceder plenamente o presente recurso.
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IV. DELIBERAÇÃO:
Pelo exposto, acordam em conceder provimento à apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, decretando em sua substituição que o Insolvente deverá ser mantido como fiel depositário do bem imóvel apreendido a favor da massa insolvente até à data da concretização da compra e venda do mesmo.
Sem custas a apelação (artº 527º, nos 1 e 2 do CPC, ex vi do artº 17º do CIRE).
Registe e notifique.
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Lisboa,

Ana Isabel Mascarenhas Pessoa

Eurico José Marques dos Reis

Ana Maria Fernandes Grácio