PODERES DE REPRESENTAÇÃO
HIPOTECA
NULIDADE DO NEGÓCIO
Sumário

1. Perante hipótese em que alguém, arrogando-se poderes de representação dos autores – poderes que não tinha –, vendeu a outrem um quinhão hereditário a que os autores tinham direito em herança ilíquida e indivisa, de que faz parte um prédio urbano e este, por seu turno, vendeu o prédio assim (supostamente) adquirido à sociedade aqui ré, I. Lda, que deu esse prédio como garantia de pagamento de um empréstimo concedido pela entidade bancária ora ré, por via da constituição de uma hipoteca, conclui-se que não foram os verdadeiros proprietários – os autores – a iniciar a cadeia de negócios nulos, não tendo tido qualquer intervenção nos negócios celebrados, mormente no primeiro negócio inválido, que foi celebrado por um falso procurador;

2. Assim, num sistema de registo meramente declarativo, como é o nosso, não é de convocar a aplicação do disposto no art. 291º do Cód. Civil, cuja proteção “apenas opera quando o verdadeiro titular do direito dá origem à cadeia de negócios que vai culminar com a aquisição onerosa de terceiro adquirente de boa fé”.

Texto Integral

Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa  

I RELATÓRIO
Ação: Declarativa, com forma de processo comum.
Autores/apelados: MANUEL M. e MANUEL D.

Incidente de Habilitação
Na sequência do óbito dos autores, foram habilitados para prosseguir no seu lugar MARIA R., GRACINDA D., MARIA C., MARIA M., LUIZ M., JOÃO M., MÁRCIA M., JOSÉ M., ROGÉRIO M.  e FILOMENA M. – cfr. fls. 458-464.

Réus
I. – SOCIEDADE IMOBILIÁRIA, LDA.;
CAIXA... (apelante)

Pedido
Seja declarada nula e de nenhum efeito a escritura de hipoteca outorgada entre a 1ª e a 2ª ré sobre o prédio urbano sito na Calçada ..., freguesia de Santos-o-Velho, descrito na 3ª CRP de Lisboa sob o nº x;
Seja declarada a ineficácia da escritura da referida hipoteca em relação aos autores;
Seja declarada a nulidade do registo da mesma hipoteca a favor da 2ª ré resultante da Ap. 11 de 20 de Março de 2007;
Seja determinado o cancelamento do mesmo registo.

Causa de pedir
Os autores são co-titulares de direitos de propriedade sobre o imóvel em causa, enquanto herdeiros de Maria da Luz F. e Felismina M., o qual foi registado a favor da 1ª ré em consequência de negócio nulo, tendo a hipoteca constituída sobre o mesmo consubstanciado a oneração de bem alheio.

Contestação
Regularmente citadas para contestar, no prazo e sob a cominação legal, as rés fizeram-no, em tempo, nos termos constantes de fls. 449-450, a 1ª e de fls. 102-103, a 2ª, invocando a tutela do registo de “terceiros de boa fé” e concluindo pela improcedência da ação.

Julgamento
Foi realizada audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador e dada a palavra para alegações aos ilustres mandatários das partes.
Em 06-12-2017 proferiu-se sentença que conluiu como segue:
“Pelo exposto, julgo a presente ação procedente e, consequentemente, decido:
- declarar nula a escritura de hipoteca outorgada entre a 1ª e a 2ª Rés sobre o prédio urbano sito na Calçada ... e Rua ..., freguesia de Santos-o-Velho, descrito na CRP de Lisboa sob o nº x, e ineficaz em relação aos Autores;
- declarar a nulidade do registo da hipoteca a favor da 2ª Ré, determinado o cancelamento do mesmo.
Custas pelas Rés, dispensando-se o pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Registe e notifique”

Recurso
Não se conformando a Caixa ...apelou, formulando as seguintes conclusões:
“I. Ao contrário do defendido pelo tribunal a quo, é aplicável ao caso sub judice o disposto no artigo 291.º do Código Civil.
Assim,
II. Sendo a ré apelante, terceiro de boa fé para efeitos do artigo supra referido,
III. Tendo adquirido o seu direito real de garantia a título oneroso,
IV. E, beneficiando de registo de aquisição anterior (período superior a 3 anos) ao registo da presente acção de nulidade,
V. Não lhe poderá ser oponível a nulidade da aquisição a favor da 1.ª ré.
VI. Devendo manter-se, em consonância, o registo da hipoteca a seu favor.
VII. Assim, s.m.o., a sentença em crise viola, entre outros, o artigo 291.º do Código Civil.
Nestes termos, face ao supra alegado, deve ser dado provimento ao presente recurso, assim se fazendo justiça”.
 
Foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre apreciar.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO
O tribunal de primeira instância deu por provada a seguinte factualidade:
1. Os autores intentaram ação declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra Carlos M., Filomena M., Rogério M., Maria M. e marido, Manuel R., e I. – Sociedade Imobiliária, Lda., a qual correu termos sob o nº 41/08.0TBTMR do 2º Juízo do Tribunal de Tomar.
2. Foi proferida sentença, já transitada, com o seguinte dispositivo:
“Declaro ineficaz em relação aos autores a compra e venda, celebrada por escritura pública outorgada em 07.02.1997, através da qual o Dr. José C., na qualidade de procurador de Manuel M. e Felismina M., declarou vender, pelo preço de 4.000 contos, que declarou receber, a Maria M., casada com Manuel R., e Arminda M., casada com Carlos M., os quinhões hereditários a que têm direito na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de Maria da Luz F.;
Declaro nula e de nenhum efeito, em relação aos réus Carlos M., Filomena M., Rogério M., Maria M. e Manuel R. e I., Sociedade Imobiliária, Lda., a compra e venda outorgada por escritura pública outorgada em 28.02.2007, através da qual M., Filomena M., Rogério M., Maria M. e Manuel R.  declararam vender a I., Sociedade Imobiliária, Lda., que declarou comprar, os seguintes prédios:
- Pelo preço de € 450.000,00 o prédio urbano, sito na Calçada... e Rua..., freguesia de Santos-O-Velho, descrito na 3ª CRP de Lisboa sob o nº x';
- Pelo preço de € 50.000,00 o prédio urbano, sito na Rua ... freguesia de Alcântara, descrito na 6ª CRP de Lisboa sob o nº x''; Tribunal Judicial de Tomar
Condeno a ré I. – Sociedade Imobiliária, Lda. a restituir à herança ilíquida e indivisa aberta por morte de Maria da Luz F. aqueles prédios urbanos, librés de pessoas e bens e, em relação ao autor Manuel D., a restituir a à herança aberta por óbito de Felismina M., os direitos na herança ilíquida e indivisa a que aquela terá direito por óbito de Maria da Luz F. e da qual fazem parte os mesmos prédios urbanos;
Declaro nulos e de nenhum efeito os registos de aquisição efectuados na respectiva Conservatória do Registo Predial sobre os mesmos prédios com base nos referidos negócios de compra e venda dos quinhões hereditários dos prédios em causa, concretamente, os seguintes:
I – Quanto ao prédio urbano descrito na 3ª CRP de Lisboa sob o nº x:
Ap. 2, de 03 de Março de 1997 inscrição da transmissão da posição de herdeiros da apresentação 24, de 11 de Dezembro de 1996 e por isso registada a aquisição a favor de Maria M. casada com Manuel R., Arminda M. casada com Carlos M., efectuada por Manuel M. e Felismina M.;
- Ap. 8, de 29 de Dezembro de 2006 inscrição da transmissão de posição na apresentação 24, de 11 de Dezembro de 1996 e por isso registada a aquisição, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária, a favor de Carlos M., Filomena M. e Rogério M., por óbito de Arminda M. (casada com Carlos M.);
- Ap. 20 de 08 de Fevereiro de 2007 inscrição a favor de “I., Sociedade Imobiliária, Lda.”, da aquisição, por compra a Maria M. e marido, Carlos M., Filomena M. e Rogério M., do prédio urbano sito na Calçada ...;
II – Quanto ao prédio urbano descrito na 6ª CRP de Lisboa sob o nº x'':
- Ap. 27 de 05 de Março de 2007 inscrição a favor de “I., Sociedade Imobiliária, Lda.”, da aquisição, por compra, a Maria M. e marido, Carlos M., Filomena M. e Rogério M., do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia de Alcântara;
Determino o cancelamento de todos estes registos.
Absolvo os réus do restante pedido.”

3. Em 3 de outubro de 1992, faleceu Maria da Luz F., no estado de solteira, sem testamento ou qualquer disposição de última vontade, sem descendentes, nem ascendentes, tendo ficado a suceder-lhe, como únicos herdeiros os seus irmãos uterinos, Felismina M., solteira; Maria M., casada com Manuel R., em comunhão geral; Arminda M., casada com Carlos M., em comunhão geral; Manuel M., solteiro e seus sobrinhos, estes em representação de seu irmão uterino pré-falecido João M.; Luís Manuel Alves M.; João M.; Márcia M. e José M., todos solteiros.

4. Por escritura pública outorgada em 24 de fevereiro de 1994, no Segundo Cartório Notarial de Tomar, Celeste A., na qualidade de procuradora de João M.; de Márcia M.; de Luís M. e de José Henriques M., vendeu, em nome e representação destes, o seu quinhão hereditário na herança aberta por óbito de Maria da Luz F. a Maria M., Felismina M., Arminda M. e Manuel M..

5. Felismina M. casou com Manuel G. em 1997, sob o regime imperativo da separação de bens.

6. Felismina M. faleceu em 8 de outubro de 2002, no estado de casada com Manuel D., tendo deixado este como seu único e universal herdeiro.

7. Dos bens deixados por óbito de Felismina M. faziam parte os direitos, na proporção de ¼, sobre os prédios urbanos sitos na Calçada... e Rua ..., freguesia de Santos-O-Velho, descrito na 3ª CRP de Lisboa sob o nº x, e na Rua ..., freguesia de Alcântara, descrito na 6ª CRP de Lisboa sob o nº x'.

8. Em 10 de novembro de 1992, Manuel M. e Felismina M. outorgaram procuração a favor de José J., com o seguinte teor: “a quem concedem os mais amplos poderes forenses em direito permitidos com os de substabelecer e ainda poderes especiais para intervir no inventário obrigatório que corre na Comarca de Lisboa, por óbito de Maria da Luz F., podendo aceitar notificações, assinar recibos, acordar, transigir, licitar e tudo o mais que se tome necessário ao referido inventário, incluindo aceitar a respectiva herança. Mais lhe conferem poderes para tratar de todos os assuntos relativos à Conservatória do Registo Predial ou Notarial de Lisboa ou outras podendo assinar requerimentos efectuar pagamentos e recebimentos proceder a quaisquer registos em nome dos mandantes ou em nome da herança de que sejam interessados e ainda em qualquer Repartição de Finanças, Direcção de Finanças ou Bairro Fiscal.
Mais lhe concedem poderes para proceder a depósitos, recebimentos e levantamentos em qualquer Banco comercial em que tenham interesses, nomeadamente no Caixa... Geral de Lisboa, onde poderá proceder a quaisquer actos respeitantes a um cofre que se encontra depositado em nome da inventariada Maria da Luz F. em que os declarantes são interessados.
Mais lhe concedem poderes para tratar de todos os assuntos Associação Lisbonense de Proprietários respeitantes aos prédios que pertenciam a Maria da Luz F., sócia número 19..., podendo decidir sobre a maneira de levantamento das rendas, pagamento (…) de quotas à Associação e ainda sobre a manutenção da herança como sócia da Associação, requerendo, praticando e assinando o que necessário se torne aos indicados fins.”.

9. Por escritura pública outorgada em 07/02/1997, José C., na qualidade de procurador de Manuel M. e Felismina M., declarou vender, pelo preço de 4.000 contos, que declarou receber, a Maria M. casada com Manuel R., e Arminda M., casada com Carlos M., os quinhões hereditários a que têm direito na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de Maria da Luz F..

10. Por escritura pública outorgada em 28/02/2007, Carlos M., Maria Filomena M., Rogério Farinha M., Maria M. e Manuel R. declararam vender a I., Sociedade Imobiliária, Lda., que declarou comprar, os seguintes prédios:
- Pelo preço de € 450.000,00 o prédio urbano, sito na Calçada ..., freguesia de Santos-O-Velho, descrito na 3ª CRP de Lisboa sob o nº x;
- Pelo preço de € 50.000,00 o prédio urbano, sito na Rua ..., freguesia de Alcântara, descrito na 6ª CRP de Lisboa sob o nº x'.

11. Pela ap. 20 de 08 de fevereiro de 2007 foi inscrita a favor de “I., Sociedade Imobiliária, Lda.”, a aquisição, por compra, do prédio urbano sito na Calçada Marquês de Abrantes, 16, tornejando para a Travessa dos Pescadores, nºs 1, 1-A, 1-B, 3 e 5 e Rua do Merca Tudo, 7, freguesia de Santos-OVelho, descrito na 3ª CRP de Lisboa sob o nº x.

12. Sobre o prédio urbano sito na Calçada ..., mantém-se inscrita uma hipoteca a favor da Caixa ...resultante da Ap. 11 de 20 de Março de 2007 e que serve para garantia de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir pela Sociedade “I.” até ao montante de € 370.300,00.

13. Pela Ap. 24, de 11 de dezembro de 1996, foi inscrita a aquisição a favor de Felismina M., Maria M. casada com Manuel R., Arminda M. e Manuel M. a aquisição sem determinação de parte ou direito, por sucessão legítima e cessão de quinhões hereditários, relativos à herança de Maria da Luz F., do prédio descrito na 3ª CRP de Lisboa sob o nº x.

14. Pela Ap. 2, de 03 de março de 1997, foi inscrita a transmissão de posição da apresentação supra e registada a aquisição a favor de Maria M. casada com Manuel R., Arminda M. casada com Carlos M., efetuada por Manuel M. e Felismina M..

15. Pela Ap. 8, de 29 de dezembro de 2006, foi inscrita a transmissão de posição na apresentação supra e registada a aquisição, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária, a favor de Carlos M., Filomena M. e Rogério M., por óbito de Arminda M. (casada com Carlos M.).

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635º e 639º do novo CPC [  ] – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
No caso, impõe-se apreciar apenas se se mantém operante e eficaz, relativamente aos autores, a hipoteca constituída pela ré I. – Sociedade Imobiliária Lda, a favor da ré Caixa ..., pese embora na ação que anteriormente correu termos com o nº nº 41/08.0TBTMR do 2º Juízo do Tribunal de Tomar, se tenha declarado a ineficácia relativamente aos autores da escritura de compra e venda realizada em 07-02-97 e a nulidade da escritura de compra e venda realizada em 28-02-2007, sendo que foi com base e na sequência destes negócios, o último dos quais a ré I. – Sociedade Imobiliária Lda teve intervenção na qualidade de compradora, que foi por esta constituída tal hipoteca, incidindo sobre o prédio urbano descrito na 3ª CRP de Lisboa sob o nº 686, para garantia de pagamento de empréstimo concedido pela entidade bancária àquela sociedade.

2. Invoca a apelante que os arestos citados na decisão recorrida não abonam em favor da solução preconizada na sentença, ao contrário do que entendeu o Meritíssimo Juiz.
Vejamos, então, as hipóteses analisadas nos arestos em causa, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
Situação em apreço no acórdão do STJ de 21-06-2007, proferido no processo: 07B1847 (Relator: Salvador da Costa):
A proprietária do prédio (aí identificada por ré BB), vendeu a nua titularidade deste aos autores, em 14-01-1993, não tendo o comprador registado a aquisição na CRPredial;
A mesma proprietária (BB) vendeu posteriormente (em 9 de agosto de 1995) o mesmo prédio aos réus aí identificados como EE) e outros, tendo estes procedido ao registo de aquisição;
Assim, a aquisição da fração foi inscrita na CRPredial, sucessivamente, a favor da ré BB pela ap. nº 11 de 06-07-89 e a favor dos réus EE) e outros pela ap. nº25 de 10-08-1995.
Ou seja, estamos perante situação em que o proprietário do imóvel transmite o mesmo direito – com a particularidade do 1º contrato incidir apenas sobre a nua titularidade – duas vezes, existindo um conflito entre os dois adquirentes, numa relação triangular [  ].
Situação em apreço no acórdão do STJ de 16-11-2010, proferido no processo: 42/2001.C1.S1(Relator: Garcia Calejo):
Os proprietários do prédio (aí identificados por FF e CC), venderam o prédio aos autores, em 16-07-90, não tendo os autores registado na CRPredial essa aquisição;
Esse prédio estava registado na CRP a favor de FF e de CC, pela ap.nº7 de 06-07-88;
E pela ap. nº 23 de 30-07-99 mostra-se inscrita a aquisição do mesmo a favor do CC por transmissão do quinhão hereditário por sucessão legítima de FF;
Pela ap. nº 1 de 17-02-2000 mostra-se inscrita a constituição de uma hipoteca sobre esse prédio, a favor de uma entidade bancária, também demandada no processo, para garantia de um empréstimo concedido pela mesma ao CC.
Ou seja, estamos perante situação em que foi constituída uma hipoteca sobre um prédio que não estava no património do devedor (CC) à data da sua constituição, tendo este (CC) aproveitado a circunstância dos autores terem um direito que adquiriram mas não registaram, inscrevendo então a seu favor a aquisição da totalidade do imóvel no registo [  ].
Situação em apreço no acórdão do STJ de 29-03-2012, proferido no processo: 2441/05.8TBVIS.C1.S1 (Relator: Helder Roque):
Os autores (AA, BB, CC, DD, EE e FF) intentaram ação contra os réus GG e a Caixa Geral de Depósitos (CGD), arrogando-se a propriedade de um imóvel que se encontrava inscrito na matriz em nome dos autores [  ];.
O réu GG outorgou, em 07-04-2003 escritura de justificação alusiva ao prédio indicando que o mesmo lhe foi vendido, verbalmente, por KK, que por seu turno o havia adquirido por compra verbal aos referidos titulares inscritos;
E contraiu um empréstimo com a constituição da hipoteca junto da ré CGD;
O prédio está registado na CRPredial a favor do réu GG pela apr. 00 de 22-05-2003, e está onerado com a referida hipoteca voluntária, registada pela ap. 00 de 25-11-2003;
A ação deu entrada em 01-06-2005 e foi registada em 13-02-2006.
Ou seja, estamos perante ação em que o réu logrou fazer inscrever um prédio na CRP, a seu favor, para assim beneficiar da presunção derivada do registo, com base numa escritura de justificação que foi celebrada para obviar à circunstância de inexistir forma válida de transmissão (escritura pública de compra e venda), sendo que ficou provado que nunca foi realizada qualquer venda verbal mas sim mero contrato promessa de compra e venda relativamente ao qual nunca foi celebrado o contrato definitivo. O réu não dispunha de documento para prova do seu direito obtendo por via da escritura de justificação notarial a primeira inscrição, nos termos do art. 116º, nº1 do Cód. do Registo Predial (CRP)– justificação notarial para o estabelecimento do trato sucessivo [   ].
Feita esta análise, afigura-se-nos que o caso em apreço não tem inteira similitude com qualquer das hipóteses analisadas nesses arestos, sem prejuízo de poder aderir-se a algumas considerações de natureza jurídica aí formuladas, o que porventura terá motivado a citação desses arestos na decisão recorrida.
O que se tem no presente processo é uma hipótese em que alguém, arrogando-se poderes de representação dos aqui autores – poderes que não tinha –, vendeu a outrem um quinhão hereditário a que os autores tinham direito na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de Maria da Luz F., de que faz parte um prédio urbano descrito na CRP sob o nº 686; este, por seu turno, vendeu o prédio assim (supostamente) adquirido à sociedade aqui ré, I. Lda, que deu esse prédio como garantia de pagamento de um empréstimo concedido pela entidade bancária ora ré, a Caixa Económica Caixa... Geral, por via da constituição de uma hipoteca.
Ou seja, no caso ora em análise, não foram os verdadeiros proprietários – os autores – a iniciar a cadeia de negócios nulos, não tendo tido qualquer intervenção nos negócios celebrados, mormente no primeiro negócio inválido, que foi celebrado por um falso procurador, pelo que, como se referiu no acórdão de 19-04-2016, proferido no processo 5800/12.6TBOER.L1-A.S1 (Relator: Maria Clara Sottomayor), num sistema de registo meramente declarativo, como é o nosso [   ], não é de convocar a aplicação do disposto no art. 291º do Cód. Civil, cuja proteção “apenas opera quando o verdadeiro titular do direito dá origem à cadeia de negócios que vai culminar com a aquisição onerosa de terceiro adquirente de boa fé” [  ].
Partilha-se, pois, o entendimento sufragado no referido aresto, em que, a propósito do âmbito de proteção do art. 291º do Cód. Civil, se refere:
“Contudo, esta proteção opera apenas quando o verdadeiro titular do direito dá origem à cadeia de negócios que vai culminar com a aquisição onerosa de terceiro adquirente de boa fé.
A aquisição a non domino prevista no art. 291.º, n.º 1 do Código Civil não permite que, através da intervenção de um terceiro que obtenha um registo falso ou baseado em títulos falsos, fique sanada a nulidade negocial derivada da cadeia transmissiva assim gerada, pois tal solução seria equivalente a admitir a expropriação do verdadeiro titular que não terá meios para se aperceber da fraude por não ter praticado qualquer negócio jurídico que desse origem à cadeia de negócios inválidos (Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo…ob. cit., p. 481).
Sendo assim, dentro da lógica de um registo meramente declarativo, o art. 291.º do Código Civil não protege o terceiro adquirente que beneficia dos requisitos do n.º 1, caso não tenha sido o verdadeiro proprietário a iniciar a cadeia de negócios nulos, como parte do primeiro negócio inválido”.
3. Para funcionar a proteção conferida pelo art. 291.º, a cadeia de negócios inválidos tem que ser iniciada pelo verdadeiro proprietário, não estando abrangida no seu âmbito de aplicação a situação em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro” [   ].
Discorda-se, pois, da posição da apelante expressa nas alegações de recurso, quando considera que é de aplicar o referido preceito legal, sendo pois irrelevante factualidade alusiva á data de instauração da presente ação e registo da mesma.
Salienta-se que na contestação apresentada a ré apelante nunca convocou a aplicação deste normativo, mas sim do disposto no art. 17º do Cód. do Registo Predial (CRP), como se indicou [  ].
Ora, também nessa sede (aquisição tabular) não tem razão, porquanto da conjugação do disposto nos arts. 5º, nº4 [  ], 6º, nº1, 7º e 17º, nº2 [  ] do CRP, resulta que devem considerar-se terceiros, para efeitos de registo, apenas aqueles que adquiriram do mesmo transmitente direitos incompatíveis entre si; estamos, então, no âmbito da relação triangular a que já se aludiu, sendo que não é esse, manifestamente, o caso em apreço, ponderando que a ré entidade bancária adquiriu o seu direito por força do negócio celebrado com a ré I. Lda.
Retoma-se o que foi referido na sentença proferida no processo 41/08.0TBTMR (cfr. os números 1 e 2 da factualidade dada por assente), relativamente à ré I. Lda, também demandada nesse processo e que temos por correto, assim se compreendendo o contexto em que os presentes autos surgiram:
“Porém, no caso vertente, os autores e a ré I. Lda. não são terceiros, para efeitos registrais, pela simples razão de que não adquiriram os respetivos direitos de um autor comum – os autores são titulares de um direito a uma herança ainda indivisa; a ré I. Lda comprou aos co-herdeiros dos autores e demais co-réus, nesta acção, dois imóveis pertencentes á mesma herança.
Do mesmo modo, a ré I. ,Lda, não é terceiro para efeitos de aplicação do art. 291º do CC, porque o conceito de terceiro para essa norma pressupõe um conflito entre o primeiro alienante e o último subadquirente, o que não ocorre no caso dos autos, porque aquela ré não alienou a quem quer que seja os imóveis que comprou em 28 de Fevereiro de 2007.
Acresce que a nulidade resulta da venda de coisa alheia apenas se aplica na relação entre alienante e adquirente, e não no que se reporta ao dono daquela, perante o qual a mesma é ineficaz, ou seja, insusceptível de produzir efeitos sobre o seu património, por não poder actuar-se, juridicamente, a transferência do seu direito real, razão pela qual, no que se refere aos autores, o art. 291º do CC também não tem aplicação.
Por último, a situação sub judice também não se integra no âmbito da previsão contida no art. 17º, nº2 do Código de Registo Predial, porque a ré I. Lda ao adquirir os imóveis aos seus co-réus, não os vendeu a terceiro de boa fé após o seu registo, tal como ilustrado nas alíneas H) a N) da matéria assente.
Nesta sequência, impõe-se declarar a nulidade da escritura de compra e venda celebrada em 28 de Fevereiro de 2007, nos termos da qual Carlos M., Filomena M., Rogério M., Maria M. e Manuel R. declararam vender a I., Sociedade Imobiliária, Lda., que declarou comprar, os seguintes prédios:
- Pelo preço de € 450.000,00 o prédio urbano, sito na Calçada ..., freguesia de Santos-O-Velho, descrito na 3ª CRP de Lisboa sob o nº x;
- Pelo preço de € 50.000,00 o prédio urbano, sito na Rua, freguesia de Alcântara, descrito na 6ª CRP de Lisboa sob o nº x''.
(…)
Já quanto ao pedido formulado em d) da petição inicial o desfecho da causa, não poderá ser o mesmo.
Esse pedido é o de que a ré I. – Sociedade Imobiliária Lda seja condenada a restituir os mesmos prédios livres de pessoas, bens, ónus, encargos e quaisquer responsabilidades, designadamente quanto ao prédio urbano sito em Santos-O-Velho, (…) descrito na 3ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº x da freguesia de Santos o Velho, expurgando-o da hipoteca constituída a favor da Caixa...
A este propósito provou-se que pela ap. 20 de 08 de Fevereiro de 2007 mostra-se inscrita a favor de “I., Sociedade Imobiliária, Lda.”, a aquisição, por compra a Maria M. e marido, Carlos M., Filomena M. e Rogério M., do prédio urbano sito na Calçada..., freguesia de Santos-O-Velho, descrito na 3ª CRP de Lisboa sob o nº x (alínea H) da matéria assente) e que sobre o prédio acima descrito mostra-se inscrita uma hipoteca a favor da Caixa..., resultante da ap. 11 de 20 de Março de 2007 e que serve para garantia de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir pela Sociedade “I.”, até ao montante de € 370.300,00 (alínea I) da matéria assente).
Quanto a esta hipoteca a mesma deveria ser cancelada, ou, pelas mesmas razões já invocadas a respeito das nulidades dos registos de aquisição efectuados com base nas escrituras descritas em F) e G) da matéria assente, porque a hipoteca, nas relações inter réus é nula e é ineficaz em relação aos autores e porque a Caixa... não pode ser considerada terceiro de boa fé, para efeitos de registo.
Dispõe o art. 715º do Código Civil que só tem legitimidade para hipotecar quem puder alienar os respetivos bens.
Por conseguinte, só os titulares de direitos a que estejam associados poderes de disposição sobre os bens por ela onerados é que têm legitimidade substantiva para celebrarem contratos de hipoteca, na posição jurídica de garantes, tal como aconteceu com a ré I. Lda, em relação à Caixa...
(…)
 No caso vertente, a hipoteca foi constituída sobre um imóvel que não estava no património do devedor, à data da respectiva constituição, o que vale por dizer, do seu registo. Por isso, se traduziu numa oneração de bens alheios, por falta de legitimidade substantiva, por parte da ré I. Lda.
Assim, por força da remissão contida no já citado art. 939º do CC., para o regime da compra e venda, esta hipoteca é nula entre a ré I. Lda e a Caixa..., que a acordaram e ineficaz para os autores.
Mas nem por isso se segue que a acção possa ser julgada procedente, quanto ao pedido de condenação da I. Lda a expurgar a hipoteca.
Desde logo, porque a expurgação da hipoteca, pelo menos no sentido técnico – jurídico previsto no art. 721º do CC só pode ter lugar quando o adquirente não seja pessoalmente responsável pelo cumprimento das obrigações garantidas pela hipoteca, o que não é o caso da Ré I. Lda.
Depois, e sobretudo, porque a Caixa ...devia ter sido demandada na presente acção, como forma de assegurar a sua legitimidade processual, bem assim, a possibilidade de a questão da validade e eficácia da hipoteca ser debatida e apreciada, nos presentes autos.
“Um terceiro não pode ver postos em causa os seus direitos (com os seus registos a serem declarados nulos por arrastamento da declaração de nulidade do registo da aquisição por usucapião…) numa sentença/acórdão proferido numa acção em que não foi demandado” (Ac. da Relação de Coimbra de 24.05.2011. (…)
Por estas razões, a acção terá que ser julgada improcedente, no que se refere ao pedido formulado em d) da petição inicial, no que se refere à condenação da ré I. Lda a restituir os imóveis que comprou em 28.02.2007, livres da hipoteca constituída a favor do Caixa... Geral”.
Conclui-se, pois, que não tem fundamento legal a defesa apresentada pela ré apelante.
Assim, porque não foi suscitada pela apelante qualquer outra questão, mais não resta senão concluir pela improcedência das conclusões de recurso.
                                                        *
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
Lisboa,

Isabel Fonseca

Maria Adelaide Domingos

Ana Isabel Pessoa