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CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA
ELEMENTOS TÍPICOS DO ILÍCITO
ARTº 153º
Nº 1 E 155º
Nº 1
AL. A) DO CP
Sumário
I) Para se poder afirmar a prática de um crime de ameaça tem de se saber, inequivocamente, que crime é anunciado.
II) Para se concluir pela prática de um crime de ameaça, mais do que o tempo verbal (presente, futuro, ou outro…) usado nas expressões proferidas, importa analisar o contexto em que são ditas, para se aferir se são adequadas a prolongar no tempo a sensação de insegurança, medo ou intranquilidade, ou se, pelo contrário, se esgotam na iminência da adoção de conduta ilícita.
Texto Integral
Acordam, em Conferência, os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.
I
O Ministério Público na primeira instância interpôs recurso da decisão instrutória que pronunciou, para julgamento em processo comum e Tribunal singular, o arguido G. M., pela prática de um crime de ameaça agravado p.p. artigo 153º, nº 1 e 155º nº 1 alínea a) do Código Penal.
São as seguintes as conclusões do recurso:
1. A douta decisão proferida nestes autos a 1 de Março de 2018, pronunciou o arguido G. M. do crime de ameaça agravado, previsto e punido pelos artigos 153°, nº 1 e 155º, n.° 1, al a) do Código Penal. 2. Porém, a prova produzida em inquérito e em instrução, nomeadamente as declarações do assistente e das testemunhas Eduardo, Manuel e José, todas consideradas pelo Mmº JIC, são suficientes para concluir pela inexistência de indícios da prática pelo arguido do crime de ameaça que lhe foi imputado no RAI. 3 Efetivamente, dos depoimentos dessas testemunhas e do assistente resulta ter existido uma agressão ou “barafunda” inicial (objeto de outro processo), mas que acabou por se prolongar com a tentativa feita pelo arguido de continuar a agredir o assistente. 4. Desses depoimentos resulta ainda que o arguido atirou ou tentou atirar pedras em direção ao assistente ou à casa deste. 5. E foi no decurso da situação descrita nas conclusões 3 e 4 que o arguido terá dirigido ao assistente as ameaças descritas no ponto 111º do RAI. 6. Tais ameaças dizem respeito, sem qualquer dúvida, a um mal iminente, que começa e acaba ali, e que, felizmente, não aconteceu. 7. E isso resulta não só do significado literal das expressões utilizadas ("vou-te matar", "vou-te atirar da casa abaixo", "vou dar cabo de ti", "eu vou arrebentar-te a casa toda", "eu vou-te arrebentar todo"), como também do facto de o arguido ter atuado de imediato com eventual intenção de praticar parte delas e, de momentos antes, já ter agredido o assistente. 8. Para haver crime de ameaça, o mal anunciado tem que ser futuro, não podendo, pela sua iminência, confundir-se com uma tentativa de execução do respetivo ato violento que a ameaça encerra. 9. Das expressões mencionadas no art. 111º do RAI só a última - "eu vou ser a tua sombra"- configura uma atitude que se prolonga no tempo, mas não subsumível a um concreto crime, pelo que também não era suscetível de preencher o tipo contido no art. 153º do CP. 10. Poderia ainda colocar-se a questão de saber se a conduta do arguido configurava atos de execução de um crime que o arguido pretendia cometer (homicídio, ofensa à integridade física ou dano), existindo tentativa. 11. Porém, para tal seria necessário que o arguido tivesse decidido cometer um desses crimes, isto é, seria necessário que esses atos de execução fossem de um crime cuja realização foi pensada e desejada pelo agente. 12. Não se indicia que o arguido tenha sequer pensado em efetivamente matar ou destruir a casa ou qualquer bem do assistente, sendo certo que, como concluiu o Mm.° JIC, não ficou indiciado que ele lhes tivesse arremessado paralelos. 13. Deveria, ainda equacionar-se uma tentativa de (nova) ofensa à integridade física na medida em que o arguido depois da primeira agressão terá novamente tentado aproximar-se do assistente para lhe bater, intenção não concretizada graças à intervenção das testemunhas Eduardo e Manuel. 14. A lei não pune a tentativa criminosa relativamente a crimes puníveis com pena de prisão não superior a três anos, como acontece com o crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º do Código Penal, pelo que também por este crime o arguido não poderia ser pronunciado.
Nestes termos e nos demais de direito, requer-se a V. Exas. Senhores Juízes Desembargadores que seja dado provimento ao presente recurso e, em consequência, deverá o arguido ser não pronunciado da prática do crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 153° e 155°, n,° 1 al a) do Código Penal.
Porém, V.as Ex.as, decidirão como sempre, o que for de JUSTIÇA
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Em resposta ao recurso o assistente defendeu a manutenção da decisão recorrida e o arguido aderiu aos argumentos do recorrente.
O Ministério Público junto desta instância reiterou a posição assumida pelo Ministério Público junto da primeira instância.
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Cumpre decidir, colhidos que foram os vistos legais e realizada Conferência.
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II
Tendo em conta que os poderes de cognição do Tribunal da Relação estão delimitados pelas conclusões do recurso, temos que a questão a decidir é a de saber se as expressões “vou-te matar”, “vou-te atirar a casa abaixo”, “vou dar cabo de ti”, “vou-te arrebentar a casa toda”, “ vou-te arrebentar todo” , “eu vou ser a tua sombra” ditas num contexto de um conflito com agressão física, respeitam a um mal iminente, confundindo-se com uma tentativa de execução de ato violento ou, antes, anunciam um mal futuro e, nessa medida, são suscetíveis de levar ao preenchimento do tipo de crime de ameaça, na forma agravada p.p. artigo 153º, 155º, nº 1, alínea a) do Código Penal.
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A decisão que pronunciou o arguido proferida em primeira instância, na parte que agora interessa, é a seguinte:
(...) Nos termos do disposto no artigo 153º n.º 1, do Código Penal, pratica o crime de ameaça quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
O crime de ameaça é um crime contra a liberdade pessoal (liberdade de decisão e de ação), que vê na paz jurídica individual uma condição da sua realização.
O conceito de ameaça requer a verificação de três características essenciais: anúncio de um mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente.
O mal ameaçado, que tanto pode ser de natureza pessoal como patrimonial, tem de configurar, em si mesmo, um facto ilícito típico contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor. E tem de ser futuro; não pode, pela sua iminência, confundir-se com uma tentativa de execução do respetivo ato violento.
Por último, a concretização futura do mal depende, ou aparece como dependente, da vontade do agente. Após a revisão de 1995 do Código Penal, o crime de ameaça deixou de ser um crime de resultado e de dano, passando a ser um crime de mera ação e de perigo. Exige-se apenas que a ameaça seja suscetível de afetar a paz individual ou a liberdade de determinação, não sendo necessário que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afetada a liberdade de determinação do ameaçado.
O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação é objetivo-individual: objetivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é suscetível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do homem comum); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das sub-capacidades do ameaçado).
O tipo subjetivo requer o dolo que exige (mas basta-se) com a consciência (representação e conformação) da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado.
De acordo com a matéria de facto tida supra por suficientemente indiciado, o arguido, nas circunstâncias de tempo e lugar, e depois de terem ocorrido prévias agressões entre aquele e o assistente, proferiu, dirigindo-se a este, as expressões descritas 111º do requerimento de abertura da instrução.
Analisadas tais expressões e o circunstancialismo em que foram proferidas é legítimo concluir que as mesmas transmitem uma mensagem ameaçadora.
Acresce que, tais expressões são ainda suscetíveis de causar no destinatário, o assistente, medo e intranquilidade quanto a uma efetiva concretização do mal transmitido, que não tem necessariamente de ser concretizado no momento em que a ameaça foi proferida.
Dito de outra forma, as expressões proferidas pelo arguido transmitem uma intenção de vir a concretizar a ameaça no tempo futuro, ainda que próximo.
Mostra-se pois indiciariamente preenchido o tipo legal do crime em apreço, e na forma agravada por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 155., do Código Penal.
Segue-se a pronúncia, para julgamento em processo comum e perante Tribunal Singular, do seguinte teor:
(…) Indiciam suficientemente os autos que:
1 - No dia 01/08/2013, pelas 18:00 horas, na Rua (…), Guimarães, o arguido dirigiu-se ao assistente Orlando e, na sua presença e com ar ameaçador, disse-lhe: “vou-te matar, vou-te atirar a casa abaixo, vou dar cabo de ti, eu vou-te arrebentar a casa toda, eu vou-te arrebentar todo, eu vou ser a tua sombra”. 2 - O arguido tinha prévio conhecimento que as palavras que proferiu e dirigiu ao assistente eram aptas e adequadas a atentar contra a sua liberdade de ação e integridade física, provocando-lhe efetivamente um sentimento de insegurança, intranquilidade e medo, afetando a sua paz individual. 3 - Fazendo-o fundadamente crer que, em momento futuro, lhe daria a morte, atentaria contra a sua integridade física ou danificaria a sua moradia, cujo valor é superior a €20.400,00. 4 - O arguido apenas cessou a sua conduta com a intervenção da Guarda Nacional Republicana, que foi chamada ao local. 5 - O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Pelo exposto, incorreu o arguido na prática de um crime de ameaça agravado, previsto e punido pelo artigo 153, nº 1 e 155º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal. (...) *
Vejamos então se a decisão recorrida deve ser revogada como pretendem o recorrente e o arguido ou, antes, deve ser mantida como defendem o assistente.
Preceitua o nº 1 do artigo 153º do Código Penal que “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.”
Dispõe o art. 155º do mesmo código que:
“1. Quando os factos previstos nos artigos 153º a 154º - C forem realizados:
a) Por meio de ameaça com a prática do crime punível com pena de prisão superior a três anos, ou b) (…) c) (...) d) (…) e;(…) o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias (…), nos casos dos artigos 153º e 154-C (…)
Como bem é dito na decisão recorrida, o bem jurídico protegido é a liberdade de decisão e de ação. A ameaça ao provocar um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afeta, naturalmente, a paz individual que é condição de verdadeira liberdade.
São elementos constitutivos do crime de ameaça, o anúncio feito pelo agente à vítima de que pretende infligir-lhe um mal que constitua crime e que esse anúncio seja adequado a provocar nesta medo ou inquietação ou perturbar a sua liberdade de determinação.
Exige-se, portanto, que a ameaça constitua forma adequada à produção de medo, inquietação ou prejuízo da liberdade de determinação do ofendido. Mas não se exige que, em concreto, o ofendido tenha sentido medo, ou se tenha sentido inquietado ou prejudicado na sua liberdade de determinação. Significa que o tipo não comporta qualquer resultado. É um crime de mera ação e de perigo.
O crime de ameaça só ganhou autonomia na generalidade dos ordenamentos jurídicos do século XIX, a partir do entendimento de que nem sempre é verdadeira a expressão popular “cão que ladra não morde”. De facto uma ameaça séria quase sempre acarreta uma perturbadora inquietação do ânimo do ameaçado.
Como diz Nelson Hungria in Comentários ao Código Penal volume VI, 182, citando Carrara: “o homem intimidado deixa de estar integrado na plenitude da sua autonomia volitiva (…) o temor suscitado pela ameaça faz com que ele se sinta menos livre, abstendo-se de muitas coisas que, sem isso, teria tranquilamente praticado, ou realizado outras que se teria abstido”.
Este entendimento levou a que, noutras legislações se deixasse de exigir que o mal ameaçado constituísse crime e se passasse a exigir que apenas fosse causador do mal injusto e grave.
O nosso legislador andou em sentido contrário. Restringiu o conteúdo da ameaça à prática de crime. Não basta que o mal ameaçado seja injusto, grave, importante. Tem de ser crime, mas também não pode ser qualquer crime. Não pode ser um crime de difamação, por exemplo, como não pode ser um crime patrimonial de valor não considerável.
Assim sendo, não há dúvida de que para se dizer que ocorreu uma ameaça com a prática de um crime tem de se saber, inequivocamente, de que crime se trata.
Entende o recorrente que as expressões vou-te matar, vou-te atirar a casa abaixo, vou dar cabo de ti, vou-te arrebentar a casa toda, vou-te arrebentar todo, vou ser a tua sombra, quer pela sua literalidade, quer pelo facto de o arguido ter atuado de imediato com eventual intenção da praticar parte delas e de, momentos antes, já ter agredido o assistente, não configuram, um anúncio de mal futuro, nem tentativa de crimes de homicídio, ofensa à integridade física ou dano, porque não pensados ou desejados pelo arguido, pelo que não deveria o arguido ser pronunciado como o foi.
Vejamos se assim é:
Começando pelas expressões que respeitam à prática de crimes contra a vida ou integridade física “vou-te matar”; “vou dar cabo de ti”; “vou-te arrebentar todo” não há dúvida de que, da literalidade das expressões, não se tira, automaticamente, o anúncio de mal futuro, concretamente o anúncio de um crime de homicídio, o qual é punido com pena de prisão superior a 3 anos (artigo 131º do Código Penal).
O verbo ir, nas expressões vou ou vou-te, está expresso no presente do indicativo, o que poderia indiciar iminência na adoção de conduta ilícita e não a vontade de a praticar no futuro.
Diferente seria, como lembra o recorrente, citando Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense ao Código Penal, 1999, I, 348 a expressão “hei-de te matar” (ou, no caso, arrebentar todo, dar cabo de ti…) que tem, de forma automática, imanente uma noção de futuro.
Ocorre, contudo, que a diferença entre as expressões, o sentido com que são proferidas, vai para além dos tempos verbais usados, até porque quem ameaça, seguramente, não está à procura de ser gramaticalmente irrepreensível.
A conclusão sobre se as expressões em causa se esgotam no momento em que são proferidas, ou se são adequadas a prolongar no tempo a sensação de insegurança, medo, intranquilidade, que lhe está inerente, há-de resultar de todo o contexto em que são proferidas.
Analisando os depoimentos de quem assistiu ao conflito testemunhas Manuel, Eduardo e José resulta indiciado que, após agressões físicas, o arguido foi impedido de voltar a agredir fisicamente o assistente, até à chegada da GNR. E foi neste contexto de impossibilidade de retomar as agressões físicas que proferiu as expressões em apreço. Isto é, naquele momento estava esgotada a sua possibilidade de agredir, por estar a ser impedido, por terceiros, de se aproximar fisicamente do assistente.
Não era iminente, portanto, qualquer outra agressão.
Assim sendo, neste contexto, as expressões ditas com foros de seriedade e repetidas - porque significando a mesma coisa, embora com uso de diferentes palavras – projetavam uma intenção para o futuro e, nessa medida, tinham a potencialidade de, claramente, dar a entender a quem se dirigiam, que o conflito não iria acabar ali e daquele modo...
No mesmo sentido veja-se o Ac. Relação de Guimarães de 09/10/2017 in www.dgsi.pt: “ A expressão “vou-te matar”, utilizada e repetida por 3 vezes com foros de seriedade, embora usada no presente de indicativo, não deixa de assumir também na linguagem corrente, uma usual projeção de futuro, na medida em que não indica o momento exato da ação anunciada. Sendo, por isso, perfeitamente adequada a integrar o conceito de ameaça, sempre que as demais circunstâncias do caso não excluam esse entendimento”.
O mesmo se diga das expressões que respeitam à prática de crimes contra bens patrimoniais de considerável valor “vou-te atirar a casa abaixo” e “vou-te arrebentar a casa toda”.
Mais uma vez o uso do presente do indicativo não significa que a ação se esgote naquele concreto momento. Até porque destruir uma casa – e nessa medida praticar um crime de dano qualificado, punido com pena de prisão superior a 3 anos ( art. 213º do CP), - sem que ali estivessem quaisquer instrumentos que o permitissem, teria sempre de ser um propósito de futuro.
Finalmente diga-se que a expressão “vou ser a tua sombra”, não constituindo por si mesma qualquer tipo de crime, como bem diz o Ministério Público, não deixa, esta sim, de clara e literalmente, confirmar que o conflito iria perdurar no tempo, sublinhando que o anúncio dos crimes consubstanciado nas demais expressões não se esgotaria naquele momento de exasperação.
Tanto basta para que se possa concluir que não merece, por tanto, censura a decisão recorrida que pronunciou o arguido G. M. pela prática de um crime de ameaça na forma agravada p.p. artigo153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a) do Código Penal e que, assim, se mantém.
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III - DECISÃO
Em face do exposto decide-se negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o recorrente.
Notifique.