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ACIDENTE DE TRABALHO
INTERPRETAÇÃO DE ARTICULADOS
Sumário
Para efeitos de acidente de trabalho, a ocorrência “acidente” prevista na lei, deve ser entendida em termos hábeis, tendo em conta os objetivos desta. Constituirá acidente qualquer “facto”, ainda que não violento, um acontecimento súbito exterior ao lesado, estranho à constituição deste e lesiva do seu corpo.
A petição inicial deve ser interpretada de acordo com as regras consagradas nos artigos 236º e seguintes do Código Civil. O sentido decisivo será aquele que um declaratário normal, dotado da capacidade e diligência do bonus pater familias, colocado na posição do real declaratário, possa inferir, salvo se o declarante não puder razoavelmente contar com tal sentido.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães.
O autor Manuel…, intentou a presente ação com processo especial para efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho contra as rés Sociedade…, LDª, e COMPANHIA DE SEGUROS, SA., pedindo a sua condenação:
a. A pagar ao autor os danos patrimoniais emergentes no valor de € 2.462,22 (dois mil quatrocentos e sessenta e dois euros e vinte e dois cêntimos), acrescido de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva até integral pagamento; b. A pagar ao autor os danos patrimoniais futuros no valor de € 124.473,00 (cento e vinte e quatro mil quatrocentos e setenta e três euros); c. A pagar autor os danos não patrimoniais no valor de € 13.210,00 (treze mil duzentos e dez euros), acrescido de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva até integral pagamento; d. A pagar ao autor todas as despesas, tratamentos e intervenções cirúrgicas que venha a necessitar em razão do evento.
O autor alegou que quando desempenhava funções para a patronal a 22/6/2014, sentiu forte dor no ombro.
Consta da alegação:
“8. O Autor em 22-06-2014, pelas 11 horas, enquanto se encontrava no exercício do seu trabalho sobre ordens e direção da primeira ré a proceder à filmagem duma comunhão em …, sofreu um acidente de trabalho. 9. Quando se encontrava a proceder a filmagens do dito evento, sentiu uma forte dor no membro superior direito, tendo conseguido terminar as filmagens da comunhão em causa com muito esforço e sofrimento. 10. Mais concretamente, rotura na coifa do ombro direito.
A Seguradora contestou negando a existência de acidente. O autor sofria de tendinose do tendão supra espinhoso e a formações geódicas na cabeça do úmero de conotação degenerativa, patologia à qual vinha sendo tratado. No dia não ocorreu qualquer episódio, não interrompendo sequer o trabalho. O simples facto de estar a filmar não provoca por si só uma rutura tendinosa. O facto de padecer de tendinose adequada a ter dor sempre que solicitasse o ombro em carga ou por período longo de tempo, fosse a trabalhar ou noutra atividade.
A ré patronal contestou impugnando a existência de qualquer acidente. Já antes sofria de problemas no ombro, de lesões desportivas. No dia referido as filmagens ocorreram no interior de uma igreja com uma máquina num tripé sem necessidade de manuseamento no ombro. Nunca referiu qualquer dor. Mais tarde procurou um sócio da ré no sentido permitirem a comunicação à seguradora de um acidente, como favor, referindo que a rutura se devera aos esforços num dos últimos treinos de futebol. Refere não ser responsável por qualquer diferença retributiva.
- Considerando-se habilitado a conhecer da questão, e depois de julgar verificada a exceção de ilegitimidade da ré patronal, considerou-se a ação improcedente absolvendo-se as rés dos pedidos.
Inconformado o autor interpõe recurso apresentando as seguintes conclusões:
1. O aqui recorrente não pode jamais e em tempo algum conformar-se com a, aliás Douta, Decisão proferida, já que esta não fez boa aplicação da justiça, porque encerra um conjunto de destacáveis erros de direito, que uma sentença não pode conter. 2. Ora, conforme refere a sentença que agora se recorre “o requerente tem que demonstrar a ocorrência do evento que configura o acidente, uma vez que a simples constatação da lesão no local e no tempo de trabalho não faz presumir a existência no acidente de trabalho”. 3. Contudo, apesar da alegação deficiente por parte do Autor, certo é que o Ilustre Juiz a quo interpretou corretamente que o acontecimento que provocou a dor e que a mesma é resultante de “um esforço físico”. 4. Assim, o Tribunal a quo, conhecendo a profissão do aqui recorrente, sabendo que, conforme o alegado na PI e na resposta dos presentes autos, o mesmo carregou ao ombro, ao longo de toda a cerimónia, uma câmara com mais de 2KG, e percecionou de imediato que o nexo causal: por força o esforço físico contínuo no tempo e lugar de trabalho o Autor, sentiu uma dor, que permitiu percecionar a lesão no ombro direito. 5. Ora, o peso, os movimentos e o esforço físico ao longo de toda a cerimónia provocaram a lesão que causou as dores referidas na PI, que 10 dias mais tarde se revelou uma rutura da coifa do ombro direito. 6. Aliás, conforme refere o Ilustre Juiz a quo “O acidente é definido habitualmente com um acontecimento súbito, ainda que não necessariamente instantâneo, que é exterior ao lesado e lesivo do seu corpo.”, pelo que o esforço físico ao longo de várias horas com peso sobre o ombro são os elementos que espoletaram o evento e a dor o que o permitiu percecionar o acidente de trabalho. 7. Portanto, conforme o acórdão do STJ citado na sentença, estão reunidos os elementos necessários para a verificação de um acidente de trabalho: Ocorrência no local e tempo de trabalho; e Nexo de causalidade entre o evento e a lesão; 8. De referir ainda que, apesar da dor não constituir a lesão em si, é a mesma que permitiu ao Autor, aqui recorrente, percecionar a lesão e correlacionar a mesma com o evento, com o local e com o tempo de trabalho. 9. Assim, com o devido respeito que é muito e é merecido ao Tribunal a quo, o aqui recorrente, não pode ser prejudicado pela errónea e deficiente interpretação que não resulta provado a existência de um acidente de trabalho. 10. Aliás “em processo do trabalho pode produzir-se prova sobre factos não articulados que o tribunal considere interessarem à boa decisão da causa (Ac. RC de 25/2/93, BMJ 424°-747). I- No processo laboral, pode deduzir-se prova sobre factos não articulados que o tribunal considere relevantes para a boa decisão da causa. II - Assim, o juiz pode servir-se de factos não articulados pelas partes para conhecer as questões que lhe foram colocadas, fazendo-o no uso de um poder que a lei objetiva laboral lhe confere (Ac. RL de 29/1/97:BTE, 2ª Série, nºs 7-8-9/98, pág. 1048). “ 11. Portanto, o Juiz ao decidir sem a realização da audiência de julgamento, não pode conhecer da prova testemunhal, que seria imprescindível para ele conhecer factos indispensáveis para o conhecimento da verdade e boa decisão da causa. 12. A douta decisão recorrida violou entre outros o disposto no art. 342.º, n.º1 do Código Civil.
Em contra-alegações sustenta-se o julgado.
Neste tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Em primeira instância foi considerada a seguinte factualidade:
1. O autor exercia a atividade de profissional de fotografia, com a categoria profissional de oficial, como trabalhador da primeira ré; 2. O autor auferia a retribuição anual de € 9.807,00 (€ 640,00*14 + € 3,50*11); 3. A responsabilidade por acidentes de trabalho com o autor estava transferida para a segunda ré por contrato de seguro válido e eficaz; 4. Este contrato de seguro cobria a retribuição anual de € 9.807,00 (€ 640,00*14 + € 3,50*11); 5. O autor nasceu no dia 31 de março de 1974.
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Conhecendo do recurso:
Nos termos dos artigos 635º, 4 e 639º do CPC, o âmbito do recurso encontra-se balizado pelas conclusões do recorrente.
Porque levantada a questão, importa saber se da alegação do autor resulta invocação de um “acontecimento súbito que provocou uma lesão”, seja, se o autor não alegou qualquer acontecimento que provocou a dor que sentiu.
Da alegação do autor consta:
“ Quando se encontrava a proceder a filmagens do dito evento, sentiu uma forte dor no membro superior direito…”
O artigo artº 8, nº 1, da Lei nº 98/2009, dispõe.
“ É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte “.
Por sua vez o artigo 19º da mesma lei prescreve que; “ A lesão constatada no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo anterior presume-se consequência de acidente de trabalho”.
O normativo dispensa ao requerente a prova relativa ao nexo de causalidade entre o acidente e a lesão. O requerente deve contudo demonstrar a ocorrência do evento em si.
A simples constatação de uma perturbação no corpo ou saúde do trabalhador, no tempo e local de trabalho não faz presumir a existência de um acidente de trabalho, não dispensando este da prova da ocorrência que demanda aquelas consequências.
A ocorrência “acidente”, deve ser entendida em termos hábeis, tendo em conta os objetivos da lei. Constituirá acidente qualquer “facto”, ainda que não violento, um acontecimento súbito exterior ao lesado, lesivo do corpo deste. vd. Martinez, Pedro Romano, “Direito do Trabalho”, 2ª Ed., Almedina, 2005, pp. 797 ss..
O evento deve consistir num acontecimento estranho à constituição orgânica da vítima. Assim, o movimento necessário ao desempenho da função, o manejamento e suporte de cargas, constituem neste sentido acontecimentos externos. Questão já diversa é o estabelecimento do nexo de causalidade entre o evento e a doença, já que esta pode derivar não daquele, mas de um processo de deterioração da saúde, com origem interna.
O facto também não tem que ser instantâneo, devendo contudo ser de duração curta e limitada no tempo. Veiga Rodrigues refere que pode tratar-se dum acontecimento que coincida com o dia de trabalho - Acidentes de Trabalho, anotações à Lei 1942, pag 17.
O que importa averiguar é se da alegação do autor, ainda que imperfeitamente expressa, resulta a invocação de um evento no sentido acima referido, enquanto acontecimento exterior ao lesado, capaz de justificar as dores que alega sentiu.
Consta da alegação:
Artigo 9º “Quando se encontrava a proceder a filmagens do dito evento, sentiu uma forte dor no membro superior direito, tendo conseguido terminar as filmagens da comunhão em causa com muito esforço e sofrimento.” E logo no artigo seguinte; “mais concretamente, rotura na coifa do ombro direito.”
A petição deve ser interpretada de acordo com as regras consagradas nos artigos 236 ss do CC. O sentido decisivo do articulado será aquele que um declaratário normal, dotado da capacidade e diligência do bonus pater familias, colocado na posição do real declaratário, possa inferir; salvo se o declarante não puder razoavelmente contar com tal sentido. Assim devem compreender-se os contornos da relação material controvertida, plasmada na petição, de acordo com tais critérios.
O autor refere que sentiu forte dor quando se encontrava a proceder a filmagens. Este artigo da petição, desgarrado, parece não apontar qualquer causa como causante da dor. Sentiu quando se encontrava a fazer filmagens, como podia sentir noutras circunstâncias quaisquer. Contudo, conjugado a referencia a “dor forte” sentida, que parece apontar para dor súbita, com o artigo 10º, onde concretiza que o que sentiu foi “ rotura na coifa…”, a referencia a se encontrar “a proceder” a filmagens, portanto em ato, em ação, em movimento, não pode ser considerada nas circunstâncias em que ocorre a afirmação, como mera referência a circunstanciação inócua do momento em que sente a dor, mas antes como pretendendo significar a concreta circunstância, o evento que determina a rutura, a dor.
O autor não foi feliz na descrição. Entendendo-se que os contornos das circunstâncias em que a ocorrência decorreu não estão claramente definidos, sempre seria caso para convite ao aperfeiçoamento da petição, nos temros dos artigos 6º e 590º do CPC. (anterior 508º do CPC). No nº 4 do artigo 590º alude-se expressamente aos casos de imprecisão na exposição ou concretização da matéria de facto alegada.
No casso presente os RR. interpretaram devidamente a petição, tendo aliás contestado os artigos 9º e 10º referenciados e invocado matéria que contraria a versão de acidente – veja-se a propósito a doutrina que resulta do nº 3 do artigo 186º do CPC.
E não se diga que o autor no recurso clarifica que a rutura apenas se manifestou 10 dias depois. O que o autor refere é que, “ causou dores… que mais tarde se revelou uma rutura”, pretendendo significar que as dores se revelaram ser uma rutura, pretendendo significar a data da deteção de tal facto, que sofrera efetivamente uma rutura.
Consequentemente procede a apelação, devendo prosseguir os autos.
DECISÃO:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão devendo os autos prosseguir.
Custas pela recorrida.
Relator – Antero Veiga
Adjuntos – Alda Martins
Eduardo Azevedo