ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ERRO NA DECLARAÇÃO
IMPUGNAÇÃO
LEGITIMIDADE
Sumário


1) No erro na declaração o ato é anulável e a anulabilidade depende de o destinatário da declaração conhecer ou dever conhecer a essencialidade para o declarante do elemento sobre que incidiu o erro;

2) A escritura de justificação notarial assenta exclusivamente nas declarações do próprio interessado (declarante), pelo que, não existindo declaratário, não pode falar-se no vício referido;
3) Tem legitimidade para instaurar ação de impugnação de escritura de justificação notarial, o interessado que relativamente ao prédio justificado invoque ser titular de direito ou interesse incompatível com o declarado na escritura de justificação;

4) Não é lícito às partes virem invocar a prescrição através da invocação da dúvida sobre a verificação ou não do decurso do respetivo prazo.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) Fernando e mulher Maria vieram intentar ação declarativa, com processo comum, contra Sofia, Diana e Banco X, S.A., onde concluem pedindo que a ação seja julgada procedente por provada e, em consequência que:

1. Se declare que os bens imóveis descritos no artigo 1º da p.i. são bens próprios do autor por os ter adquirido em raiz por partilha subsequente ao óbito de seu pai, José, em 16.03.1979, e em propriedade plena por óbito de sua mãe, Emília, em 10.11.2011;
2. Se declare que o autor é dono e legítimo possuidor dos prédios descritos no artigo 1º da p.i. com a descrição referida no artigo 18º do mesmo articulado;
3. Se anulem parcialmente as declarações do autor e da sua falecida esposa Conceição na escritura de justificação notarial lavrada no 1º Cartório Notarial, a fls. 61 vº a 63, do livro de notas ..., identificada no artigo 22º da p.i., na parte em que declaram ser donos do prédio urbano em causa há mais de 20 anos e tendo-o adquirido por usucapião, por erro nessas declarações;
4. Se declare retificada tal escritura de justificação dela passando a constar que o autor quis dizer e declarar nessa escritura que, por si e seus antepossuidores, é dono da raiz de tal prédio há mais de 20 anos e a adquiriu por usucapião;
5. Se declare retificada tal escritura de justificação dela passando a constar que a falecida mulher do autor, Conceição, quis dizer e declarar que dava o seu consentimento ao autor para fazer tal escritura;
6. Se ordene a retificação do registo de aquisição nº ap. 18 de 1994/12/21, do prédio descrito na Conservatória Predial com o nº ... da freguesia de ..., no sentido de que o sujeito ativo de tal inscrição de propriedade é Fernando S., casado com Conceição, no regime de comunhão de adquiridos;
7. Se condenem as 1ª e 2ª rés a reconhecerem que o autor é dono e legítimo possuidor do prédio supra descrito e a absterem-se de perturbar o seu direito de propriedade a tal prédio;
8. Se condenem as rés na indemnização a favor do autor do montante de €5.000,00.

Subsidiariamente, para o caso de não ser procedente a retificação da escritura e do registo de aquisição por erro, pedem os autores que:

1. Se declare que os bens imóveis descritos no artigo 1º da p.i. são bens próprios do autor por os ter adquirido em raiz por partilha subsequente ao óbito de seu pai, José, em 16.03.1979, e em propriedade plena por óbito de sua mãe, Emília, em 10.11.2011;
2. Se declare que o autor é dono e legitimo possuidor dos prédios descritos nos artigos 1º articulado, com a descrição referida no artigo 18 deste mesmo articulado;
3. Se declare impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura notarial de 21 de outubro de 1994, lavrada no 1º Cartório Notarial, a fls. 61 vº a 63, do livro de notas ..., por o autor e a sua falecida mulher Conceição não terem adquirido o prédio nela identificado, correspondendo ao artigo 22 da desta petição inicial, por usucapião;
4. Se declare nula, ineficaz e de nenhum efeito a escritura de justificação notarial identificada no artigo 22 da p.i. por não serem verdadeiras as declarações dos justificantes;
5. Se ordene o cancelamento do registo de aquisição nº ap. 18 de 1994/12/21, do prédio descrito na Conservatória Predial com o nº ... da freguesia de ...;
6. Se condenem as 1ª e 2ª rés a reconhecerem que o autor é dono e legítimo possuidor do prédio descrito nos artigos 1/18 e a absterem-se de perturbar o seu direito de propriedade a tal prédio;
7. Se condenem as 1ª e 2ª rés na indemnização a favor do autor do montante de €5.000,00.

O réu Banco X, SA, apresentou contestação onde conclui entendendo que caso a ação venha a ser julgada procedente, por provada, com as legais consequências e ordenada a retificação do registo de aquisição ou o seu cancelamento, como pretendido pelo autor, devem, contudo, manter-se todas as garantias hipotecárias constituídas a favor do banco corréu sobre o imóvel referido no artigo 18º do libelo inicial, nos termos do artigo 17º nº 2 e 122º do Código e Registo Predial, com as legais consequências.

As rés Sofia e Diana apresentaram contestação onde concluem entendendo deverem as exceções proceder e improceder a ação; ainda que improcedam as exceções, sempre deverá a ação ser julgada totalmente improcedente e o autor condenado em multa exemplar e indemnização a favor das rés, no montante mínimo de €5.000,00.

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Foi proferido despacho saneador onde se decidiu julgar procedente a exceção de ilegitimidade passiva e absolver da instância as rés Sofia e Diana e, ainda declarar extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide quanto ao réu Banco X.
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B) Inconformado com a decisão veio o autor Fernando interpor recurso (fls. 249 vº e segs) e, subido a esta Relação, foi proferido o acórdão de fls. 274 e seguintes, que decidiu julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida e substituí-la por outra que julgou as rés, herdeiras de Conceição, parte legítima, determinando o prosseguimento dos autos para apreciação das demais questões pendentes.
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Foi elaborado despacho saneador onde se decidiu julgar improcedente a exceção perentória de prescrição arguida pelas rés, foi identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.
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Realizou-se julgamento e foi proferida sentença onde foi decidido julgar a presente ação parcialmente procedente e, em consequência:

a) Declarar como bens próprios do autor por os ter adquirido em raiz por partilha subsequente ao óbito de seu pai, José, em 16.03.1979, e em propriedade plena por óbito de sua mãe, Emília, em 10.11.2011 os seguintes imóveis:

I. Prédio urbano composto de casa de habitação de 1º andar, lojas e rossio de cultivo e árvores de fruta, situada no lugar da ..., freguesia de ..., a confrontar do norte com caminho público, do sul e nascente com bens do casal, e pelo poente com Padre Manuel, inscrita na matriz urbana sob o artigo 8º;
II. Metade de 1/3 parte indivisa de um terreno de olival e vinha, situado no lugar de ..., ..., inscrito na matriz predial sob o art.º 1.159.
b) Declarar que o autor é dono e legitimo possuidor dos prédios descritos em a), por os ter, ainda, adquirido por usucapião com a seguinte descrição: prédio urbano, constituído por casa de habitação, de rés-do-chão, primeiro andar, com logradouro, anexo e alpendre, sito no lugar da ... da mencionada freguesia de ..., com a área coberta de cento e cinquenta e oito metros quadrados, logradouro com a área de quinhentos e vinte e seis metros quadrados, anexo com a área de trinta e seis metros quadrados e o alpendre com a área de cinquenta metros quadrados, a confrontar do norte com Augusto, do sul com a estrada nacional número duzentos e três, do nascente com Augusto e do poente com Isilda, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo oito.
c) Determinar a anulação parcial das declarações do autor e da sua falecida esposa Conceição na escritura de justificação notarial lavrada no 1º Cartório Notarial, a fls. 61v a 63, do livro de notas ..., na parte em que declaram ser donos do prédio urbano em causa há mais de 20 anos e tendo-o adquirido por usucapião, por erro nessas declarações;
d) Determinar a retificação da escritura de justificação id. em c), dela passando a constar que o autor quis dizer e declarar nessa escritura que, por si e seus antepossuidores, é dono da raiz de tal prédio há mais de 20 anos e a adquiriu por usucapião e que a falecida mulher do autor, Conceição, quis dizer e declarar que dava o seu consentimento ao autor para fazer tal escritura;
e) Ordenar a retificação do registo de aquisição ap. 18 de 1994/12/21, do prédio descrito na Conservatória Predial com o nº ... da freguesia de ..., no sentido de que o sujeito ativo de tal inscrição de propriedade é Fernando S., casado com Conceição, no regime de comunhão de adquiridos;
f) Condenar as rés Sofia e Diana a reconhecerem que o autor é dono e legítimo possuidor do prédio supra descrito e a absterem-se de perturbar o seu direito de propriedade a tal prédio;
g) Condenar solidariamente as rés Sofia e Diana no pagamento ao autor de uma indemnização no montante de €2.000,00.
h) Absolver as rés do demais peticionado.
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C) Inconformada com o despacho saneador e com a sentença, veio a ré Diana interpor recurso (fls. 372 vº e segs.) que foi admitido como sendo de apelação, a subir nos próprios autos, com efeito devolutivo (fls. 478).
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Nas alegações de recurso da ré Diana, são formuladas as seguintes conclusões:

a) Da decisão não consta a análise da prova produzida e em que medida a mesma serviu à Juiz para decidir pela fixação da matéria de facto nos termos em que o fez; conforme dispõe o nº 1, alínea b) do artigo 615º do Código de Processo Civil, é nula a sentença sempre que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, sendo que a Sra. Dra. Juiz a quo também não deu cumprimento ao disposto no artigo 607º do Código de Processo Civil, no seu nº 4, o que importa a nulidade da sentença;
b) É nítida e gritante a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, no que diz respeito a duas questões fulcrais, invocadas na contestação e nas alegações orais, em concreto, a caducidade do direito de propor a ação e o abuso do direito por parte do autor;
c) No despacho saneador a Sra. Dra. Juiz “a quo” considerou que não existia prescrição por o prazo respetivo se ter interrompido com a propositura da ação que correu termos no Tribunal Judicial de Viana do Castelo sob o nº 1355/14.5TBVCT-J1, a qual foi proposta em 30 de maio de 2014, porém, a prescrição só se interrompe com a citação e em lado algum se encontra certificada ou mencionada a data das citações nesse processo, sendo que o autor na p.i. também não requereu a citação das rés para poder beneficiar da presunção prevista no nº 2 do artigo 323º, nº 1 do Código Civil;
d) As ações propostas pelo autor, tanto a proposta em 2014, como a proposta em 2016, são ações sujeitas a registo nos termos do artigo 2º e 3º do Código de Registo Predial, mas nenhuma das duas foi registada; as rés são terceiras perante o registo cujo cancelamento ou retificação o autor pretende com a ação (e também já com a anterior), já que nele não intervieram nem são parte, quer como sujeito ativo, quer como sujeito passivo, pelo que não tendo a primeira ação sido registada, não lhes é oponível e tem de considerar-se que o prazo de prescrição se completou na íntegra antes da propositura da presente ação;
e) Nos termos do Código do Notariado (vide artigo 101º) é possível impugnar uma escritura de justificação, porém trata-se de disposição cuja ratio essendi se destina àqueles casos em que terceiros (relativamente aos outorgantes da escritura de justificação) se sentem por ela lesados; na ação de impugnação de escritura de justificação notarial, a legitimidade ativa radica em quem alegar uma qualquer relação ou direito que seja posto seriamente em crise pela justificação notarial do réu, o que não é o caso do autor; logo, não tem o autor legitimidade ativa nem tem cabimento legal o ter lançado mão deste meio processual;
f) O autor/recorrido litiga em claro abuso de direito, conforme previsto no artigo 334º do Código Civil, já que na ação proposta - que é essencialmente uma ação de impugnação de escritura de justificação, pois a procedência dos outros pedidos implica necessariamente fazer “tábua rasa” dessa escritura e do registo predial subsequentemente lavrado - o autor pretende anular ou declarar nula uma escritura que ele próprio outorgou; pretende a ineficácia de algo a que ele mesmo deu azo, apenas porque neste momento essa situação – por ele criada, reitera-se! – deixou de lhe ser proveitosa.
g) A lei não permite que o próprio declarante se desdiga quando se apercebe que a sua declaração lhe deixou de ser vantajosa, ou que invoque nulidades ou causas de anulabilidade que ele próprio provocou.
h) Na linguagem própria do abuso do direito, diz-se inalegabilidade formal ou, simplesmente, inalegabilidade, a situação da pessoa que, por exigências do sistema, não se possa prevalecer da nulidade de um negócio jurídico causada por vício de forma; à partida teríamos, aqui, apenas uma concretização do venire contra factum proprium: num primeiro tempo o agente daria azo a uma nulidade formal, prevalecendo-se do negócio (nulo) assim mantido enquanto lhe conviesse; na melhor (ou pior) altura, invocaria a nulidade, recuperando a sua liberdade. Haveria, como há no caso vertente, uma grosseira violação da confiança com a qual o sistema não poderia pactuar.
i) A locução venire contra factum proprium nulli concidetur tem origem canónica: a ninguém é permitido agir contra o seu próprio ato, pois a coerência da própria atuação está na base de toda a eficácia jurídica. O agente deve ficar adstrito a não contradizer o que primeiro fez e disse.
j) Nos termos do acórdão do STJ 12-Nov-1998: é abuso, por venire, invocar a invalidade atípica do artigo 410º/3 depois de a haver provocado; tal como se diz no acórdão da RLx 20-Mai-1999: é abuso de direito contribuir culposamente para o incumprimento de certa formalidade e depois invocar o vício daí resultante.
k) Desconhecimento ou errado convencimento acerca do efeito de determinada declaração não consubstanciam erro nos termos e para os efeitos dos artigos 251º e 252º do Código Civil e só um destes tipos de erro pode dar lugar à possibilidade de anulação do negócio.
l) O autor é arquiteto e tem estudos superiores, sendo ele próprio que em depoimento de parte esclarece o tribunal que no exercício da sua profissão muitas vezes prepara a documentação e faz todas as démarches necessárias e que antecedem uma escritura de justificação, pelo que não colhe a sua alegação no sentido de que não se teria apercebido que era ele e a esposa que declaravam ser – ambos – donos do prédio na escritura de justificação que agora quer impugnar;
m) Acresce que as recorrentes obtiveram documento que comprova que efetivamente o autor foi acompanhado por advogado na escritura, ou pelo menos, na instrução da respetiva documentação, pelo que não pode agora invocar falta de informação ou errada perceção do que estava a declarar juntamente com a sua esposa; além de que o autor também reconheceu em declarações de parte que foi um advogado que providenciou o registo da escritura.
n) Deverão excluir-se da matéria de facto dada como provada os factos: 3.8, 3.13, 3.14, 3.15 e 3.19, por manifesta falta de prova produzida.
o) Os factos 3.13, 3.14 e 3.15, que se debruçam sobre as vontades reais e declaradas do autor e da sua falecida esposa na escritura de justificação foram considerados provados com base exclusivamente no, e passamos a citar a douta sentença recorrida, “teor das declarações/ depoimento de parte prestados pelo autor Fernando (…)”, o que viola os mais elementares princípios de prova em processo civil;
p) Acresce que, nem a prova por declarações de parte do autor podia ter sido valorada neste aspeto – das reais vontades dos outorgantes – porquanto tal valoração é proibida, de harmonia com o disposto no artigo 394º do Código Civil;
q) Porque nenhuma prova concreta de quaisquer danos morais graves – pois só estes têm a tutela do direito – foi feita em audiência, deverá excluir-se o ponto 3.19 dos factos provados.
r) Deverão corrigir-se, nos termos sobreditos e pelas razões supra aduzidas, os pontos da matéria de facto sob os números 3.1 e 3.16.
s) Finalmente, deverão aditar-se os seguintes pontos à matéria de facto provada, por resultarem da prova produzida em audiência, conforme acima se expôs, e do teor do documento ora junto:
I) O autor é arquiteto, tem formação superior e no exercício da sua atividade costuma tratar da documentação necessária a instruir escrituras de justificação;
II) A escritura de justificação de 21 de outubro de 1994 foi lida em voz alta a todos os presentes, outorgantes e testemunhas;
III) Na instrução documental que antecedeu a escritura, bem como no respetivo registo na Conservatória do Registo Predial, o autor foi acompanhado por advogado;
IV) A composição do prédio atualmente descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... não corresponde à composição do prédio adjudicado em raiz ao autor por meio da escritura de partilha por óbito de seu pai, outorgada em 21 de março de 1985, pois o prédio registado na Conservatória do Registo Predial após a escritura de justificação inclui 1/6 de um prédio rústico que foi adjudicado ao autor em partilha por morte de seu pai, o qual constitui o logradouro da casa e importa um incremento na área global do prédio na ordem dos 400 metros;
v) Pelo menos em 2012, o autor já sabia que o prédio estava registado em nome dele e da esposa, visto que foi nesse ano que expulsou as filhas/rés de casa, devido às divergências com as partilhas.
t) O “direito” de propor a ação para obter a sua declaração de ineficácia ou anulação, caducou, no máximo (porque como se disse, não se admite que o autor não soubesse desde sempre que a casa estava registada em nome do casal) no dia 31 de dezembro de 2013, nos termos do artigo 287º do Código Civil;
u) Ainda que assim se não considere, sempre se dirá que a posse provada nos pontos de facto sob os números 3.6, 3.9 e 3.10 aproveita à mãe das rés, pelo que também ela teria adquirido o direito de propriedade sobre o prédio por usucapião em 2004. É isto que se retira da interpretação a contrario do artigo 1722º, nº 2, alínea b) do Código Civil;
v) Decidindo como decidiu, a sentença recorrida violou, designadamente, o artigo 607º, nº 4 do Código de Processo Civil, os artigos 2º e 3º do Código do Registo Predial, os artigos 70º e 101º do Código do Notariado e os artigos 251º, 252º, 287º, 323º, 334º, 352º, 358º, 394º e 1722º, nº 2 do Código Civil.
Termina entendendo dever a sentença recorrida ser revogada, substituindo-se por outra que declare a ação totalmente improcedente.
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Pelo autor e apelado Fernando foi apresentada resposta onde entende dever manter-se a decisão recorrida.
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Foram colhidos os vistos legais.

D) As questões a decidir no recurso são as de saber:

1) Se existem nulidades da sentença;
2) Se existe erro na declaração e, havendo, se caducou o direito de o invocar;
3) Se o autor é parte legítima;
4) Se deverá ser alterada a matéria de facto;
5) Se deverá ser alterada a decisão propriamente jurídica da causa.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) I. Factos Provados

3.1. Por escritura pública de habilitação e partilha, lavrada em 21 de março de 1985, no 2º Cartório Notarial, a fls. 22 a 36, do livro ..., o autor adquiriu, por herança de seu pai, José, falecido a 16 de março de 1979, a raiz do prédio urbano composto de casa de habitação de 1º andar, lojas e rossio de cultivo e árvores de fruta, situada no lugar da ..., freguesia de ..., a confrontar do norte com caminho público, do sul e nascente com bens do casal, e pelo poente com Padre Manuel, inscrita na matriz urbana sob o artigo 8º, e metade de 1/3 parte indivisa de um terreno de olival e vinha, situado no lugar de ..., ..., inscrito na matriz predial sob o art.º 1.159.
3.2. Na Conservatória Predial estes prédios, juntamente com outros, estavam descritos com o nº 42.650, a fls. 39 do livro ..., e, como consta da escritura de partilha eram parte a desanexar desse prédio.
3.3. O usufruto do prédio urbano supra descrito ficou reservado para a mãe do autor, Emília, a qual acabou por falecer em 10 de novembro de 2011.
3.4. O autor casou no regime de comunhão de adquiridos com Conceição em 7 de maio de 1977.
3.5. Na referida escritura de partilha a mulher do autor, Conceição, outorgou como 12ª outorgante, e declarou “Que dão a seus respetivos cônjuges o consentimento necessário para efetuarem a presente partilha”.
3.6. O autor por si e seus antepossuidores, desde há 1, 5, 10, 20, 30, 40, 50 e mais anos, todos o reconhecendo como seu legítimo proprietário e sem oposição de quem quer que seja, ali habitando e usufruindo dos referidos prédios, onde pernoita, toma as refeições diárias, recebe amigos, faz a sua vida social, paga as contribuições e impostos devidos, o que sempre foi feito à vista de quem quer que seja, sem oposição de outrem e na convicção de serem os seu legítimo proprietário, com exclusão de outrem.
3.7. Em 1985, o autor e demais comproprietários do prédio rústico identificado no ponto 3.1., dividiram de facto tal prédio, sendo que a parte que ficou a pertencer ao autor, este anexou-a ao prédio urbano ali igualmente identificado.
3.8. Ambos os prédios ficaram unificados em um só e o autor construiu um muro para vedar o que passava a ser só dele e demarcá-lo dos prédios dos vizinhos.
3.9. Todos os atos de posse descritos foram praticados sobre esta unidade predial, pelo autor, pelo menos, desde 1985, e, por si e anteriores possuidores, há mais de 20, 50, 100 anos.
3.10. Desde, pelo menos, o ano de 1984 que o casal constituído pelo autor e Conceição, entretanto juntamente com as respetivas filhas e até ao falecimento daquela, habitou o mencionado prédio, nele recebendo os seus familiares e amigos, pagando as despesas relacionadas com o uso do imóvel e as respetivas contribuições.
3.11. Em 21 de outubro de 1994, o autor e a, então, sua mulher, Conceição, lavraram uma escritura de justificação notarial no 1º cartório, a fls. 61v a 63, do livro ..., na qual declararam “que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do seguinte imóvel, inscrito na matriz em nome dele justificante varão: 1. Prédio rústico tinha uma área inferior à unidade de cultura – Portaria nº 202/70. 2. Prédio urbano, constituído por casa de habitação, de rés-do-chão, primeiro andar, com logradouro, anexo e alpendre, sito no lugar da ... da mencionada freguesia de ..., com a área coberta de cento e cinquenta e oito metros quadrados, logradouro com a área de quinhentos e vinte e seis metros quadrados, anexo com a área de trinta e seis metros quadrados e o alpendre com a área de cinquenta metros quadrados, a confrontar do norte com Augusto, do sul com a estrada nacional número duzentos e três, do nascente com Augusto e do poente com Isilda, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo OITO...”, que “este prédio encontra-se omisso na Conservatória do Registo Predial”, bem como “que possuem o indicado prédio em nome próprio há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu inicio, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com o conhecimento de toda a gente, sendo, por isso, uma posse pública, pacífica, contínua e de boa fé, pelo que adquiriram o referido prédio por usucapião, mas não tendo eles justificantes, dado o modo de aquisição, documento que lhes permita fazer a prova do direito de propriedade a seu favor”.
3.12. Com base nesta escritura foi feita a descrição, do prédio urbano e parte do rústico, na Conservatória Predial que passou a ter o nº ... - ..., e, ainda, foi feito o registo de aquisição do mesmo prédio a favor de Fernando S. e mulher Conceição, casados no regime de comunhão de adquiridos, através da apresentação nº 69 de 1994/12/21.
3.13. As declarações feitas nessa escritura de justificação notarial pelo autor e pela sua mulher, Conceição, não corresponderam ao que quiseram declarar e à sua vontade real.
3.14. A vontade do autor era declarar nessa escritura que era dono e legítimo possuidor da raiz do prédio descrito nessa escritura, por si e anteriores proprietários, com exclusão de outrem, há mais de 20 anos, sem oposição de quem quer que fosse, e que só ele (e anteriores proprietários) estava na posse da raiz de tal prédio há mais de 20 anos e sem qualquer interrupção, de forma pública, pacífica, contínua e de boa-fé.
3.15. Também a vontade declarada nessa escritura pela, então, mulher do autor, Conceição, não correspondeu ao que ela queria declarar; a vontade da Conceição era declarar que dava o seu consentimento ao autor para lavrar tal escritura, uma vez que estava casada com o autor no regime de comunhão de adquiridos e sabia que o bem era próprio do autor.
3.16. Após a morte da mulher do autor, este não incluiu o prédio supra descrito na declaração para imposto de selo, uma vez que tinha a consciência de que tal prédio foi adquirido por ele, era um bem próprio dele, casado que fora no regime de comunhão de adquiridos.
3.17. Estão registadas a favor do réu Banco X, S.A. duas hipotecas sobre o imóvel id. nos autos, com os nºs ap. 69 de 07.01.2005 e ap. 56 de 04.01.2006.
3.18. Quando o autor se propôs a fazer partilha de bens após o óbito da sua esposa e mãe das rés, Conceição, aquelas recusaram-se a excluir da mesma o imóvel id. nos autos, como se recusaram a consentir na retificação da escritura de justificação notarial em conformidade.
3.19. O comportamento das rés causou e causa ao autor, desde há cerca de dois anos, perturbação emocional e ansiedade.

II. Factos não provados

a) A casa descrita nos autos só ficou excluída da relação de bens por óbito de Conceição por razões fiscais, nomeadamente para evitar nova avaliação da casa por parte das Finanças e o consequente agravamento do Imposto Municipal sobre os Imóveis (IMI).
b) Desde 1984 e até à sua morte, que Conceição exerceu sobre o imóvel em sujeito os factos descritos em 3.10. dos factos provados com a convicção de exercer um direito próprio.
c) A casa atualmente existente, por ter sido sujeita a obras de carácter estrutural, não corresponde à que existia, nem em 1984, nem em 1977.
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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
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C) A apelante vem invocar

a) A nulidade da sentença, por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia;
b) A prescrição (questão decidida no despacho saneador);
c) A falta de registo da(s) ação(ões) e suas consequências;
d) A falta de fundamento legal/legitimidade ativa para a propositura da ação;
e) O abuso de direito;
f) A inexistência do erro;
g) A reapreciação da matéria de facto;
h) O direito aplicável à matéria de facto reapreciada (e sem prescindir das questões antes invocadas).

Isto é, a discordância da apelante abrange a matéria de facto e a matéria de direito, quer do ponto de vista material, quer adjetivo.

E, por isso passar-se-á a conhecer das invocadas nulidades e demais matéria de exceção (dilatória), para, de seguida, se reapreciar a matéria de facto que, em abstrato, poderá condicionar a decisão das questões jurídicas para, finalmente, se conhecer destas.
Quanto à invocada nulidade por falta de fundamentação, estabelece o artigo 615º nº 1 alínea b) NCPC que é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Se atentarmos na sentença recorrida é manifesto que a mesma não padece da referida nulidade, como decorre da simples leitura da mesma, da sua fundamentação de facto e de direito, que existe, antes acontecendo que a apelante discorda da fundamentação de facto e de direito, simplesmente a discordância não é sinónimo de inexistência, mas de não aceitação da mesma, o que apenas poderia justificar a alteração da decisão, mas nunca a nulidade da mesma que, assim, improcede.
Diz ainda a apelante que a sentença é nula por omissão de pronúncia (artigo 615º nº 1 alínea d) NCPC).
Alega a apelante que foram invocadas várias exceções na contestação, nomeadamente a caducidade, tendo a apreciação da mesma sido relegada, no despacho saneador, para a sentença final e, nesta, nada se diz quanto a essa questão.

Alega ainda a apelante que as rés invocaram, na contestação, o abuso de direito – que obstava à apreciação do mérito da causa – por parte do autor, que devia ser apreciado no despacho saneador e não foi ou na sentença que, igualmente, não apreciou tal questão.
Importa apenas esclarecer que, ao contrário do que é sugerido pela apelante, o abuso de direito constitui uma exceção perentória – e não dilatória –, por importar a absolvição total ou parcial do pedido (cfr. artigo 576º NCPC e, nomeadamente, o Acórdão STJ nº 02A2958, de 24/10/2002).

No que se refere à caducidade, a mesma decorrerá, de acordo com o alegado na contestação das rés Sofia e Diana, do facto de, ainda que tivesse havido erro que, na opinião das contestantes, não ocorreu, o seu direito a arguir a anulabilidade caducou ao fim de um ano após a cessação do erro – artigo 287º Código Civil.

E a questão da caducidade não foi efetivamente apreciada, quer no despacho saneador, quer na sentença – cfr. ponto 4.ii, a páginas 361 a 365 em que se aprecia o erro na declaração – pelo que não poderá haver dúvida que existe uma omissão de pronúncia e, como tal, a sentença é nula (artigo 615º nº 1 alínea d) NCPC).
Apreciando a questão da caducidade dir-se-á que a sentença recorrida apreciou a questão do erro na declaração, a que se refere o artigo 247º do Código Civil, embora não o tenha feito, como se impunha, quanto à eventual caducidade do direito de anulação do erro.

Vejamos.

O artigo 247º do Código Civil estabelece que quando, em virtude de erro, a vontade não declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.
Ora, o invocado vício é gerador de anulabilidade, invalidade esta que só pode ser arguida pelas pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, no prazo de um ano a contar da cessação do vício que lhe serve de fundamento (artigo 287º nº 1 Código Civil) e é sanável mediante confirmação (artigo 288º Código Civil).

No entanto, como muito bem referem os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, no seu Código Civil anotado, Volume I, 3ª Edição, em anotação ao artigo 247º, o ato é anulável … e a anulabilidade depende de o destinatário da declaração conhecer ou dever conhecer a essencialidade para o declarante do elemento sobre que incidiu o erro.

Nas referências feitas na sentença recorrida quanto aos requisitos de procedência da anulação das declarações constantes da escritura de justificação notarial, na sua apreciação jurídica, não obstante os tenha enunciado, não os aplicou, como se impunha, de acordo com o regime legal vigente.

É que, conforme se referiu, não basta o dissídio entre a vontade real e a declarada, sendo também necessário que o erro seja essencial e que declaratário conhecesse a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.

Sucede que, no caso da justificação notarial que, como muito bem se refere no Acórdão do STJ de 19/02/2013, no Processo nº 367/2002.P1.S, relatado pelo Conselheiro Moreira Alves, in www.dgsi.pt, a escritura de justificação assenta exclusivamente nas declarações do próprio interessado, acrescentando nós que não existe declaratário e, não existindo este, não faz sentido aceitar-se que o declaratário conhecesse a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro, que é uma das exigências legais, situação que a sentença referida ignorou.

Isto é, decorre do exposto que não estão verificados todos os requisitos que a lei impõe, para que possa proceder o erro na declaração, nos termos do disposto no artigo 247º Código Civil e, assim sendo, improcede a arguida anulação, uma vez que inexistindo o referido vício, não se pode falar na caducidade do direito a invocá-lo.

No que respeita à falta de registo da ação, conforme se refere no Acórdão da Relação de Guimarães de 14/09/2017, no processo 546/14.3TBBGC.G1, relatado pela Desembargadora Lina Castro Baptista, em www.dgsi.pt, a falta de registo da ação (petição inicial) neste momento processual, em que já existe decisão final na 1ª Instância e em que estamos a proceder ao julgamento em 2ª Instância, não tem qualquer utilidade prática, apenas terá agora utilidade o registo da decisão final da causa, com trânsito em julgado, o qual deverá ser levado a cabo oportunamente, pelo que improcede a pretensão da apelante.
*
Vem ainda a apelante invocar a falta de fundamento legal/legitimidade ativa para a propositura da ação.

Conforme resulta, aliás, da própria jurisprudência citada pela apelante, nomeadamente quando se refere que tem legitimidade para instaurar ação de impugnação de escritura de justificação notarial, o interessado que relativamente ao prédio justificado invoque ser titular de direito ou interesse incompatível com o declarado na escritura de justificação, o autor e apelado tem legitimidade para vir intentar a presente ação e, aliás, decorre do anterior acórdão proferido nestes autos, a fls. 286, onde se refere que tal como se extrai do relatório já supra enunciado, em causa nos autos está a propriedade do imóvel descrito pelo autor em 1º e 18º da p.i. que este invoca ser da sua única titularidade – como bem próprio ao contrário do que ficou a constar em escritura de justificação notarial que por esta via pretende assim ver parcialmente anulada e retificada por erro nas declarações; ou quando assim se não entenda, declarada nula e ineficaz por as declarações nela contidas não corresponderem à verdade e sempre declarado ser o autor marido o único proprietário de tal prédio, pelo que improcede a pretensão da apelante.
*
No que se refere à decisão da matéria de facto, a apelante discorda da decisão dos pontos 3.8, 3.13, 3.14, 3.15 e 3.19 dos factos provados entendendo que deverão considerar-se como não provados.

Refere-se nos mesmos:

3.8. Ambos os prédios ficaram unificados em um só e o autor construiu um muro para vedar o que passava a ser só dele e demarcá-lo dos prédios dos vizinhos.
3.13. As declarações feitas nessa escritura de justificação notarial pelo autor e pela sua mulher, Conceição, não corresponderam ao que quiseram declarar e à sua vontade real.
3.14. A vontade do autor era declarar nessa escritura que era dono e legítimo possuidor da raiz do prédio descrito nessa escritura, por si e anteriores proprietários, com exclusão de outrem, há mais de 20 anos, sem oposição de quem quer que fosse, e que só ele (e anteriores proprietários) estava na posse da raiz de tal prédio há mais de 20 anos e sem qualquer interrupção, de forma pública, pacífica, contínua e de boa-fé.
3.15. Também a vontade declarada nessa escritura pela, então, mulher do autor, Conceição, não correspondeu ao que ela queria declarar; a vontade da Conceição era declarar que dava o seu consentimento ao autor para lavrar tal escritura, uma vez que estava casada com o autor no regime de comunhão de adquiridos e sabia que o bem era próprio do autor.
3.19. O comportamento das rés causou e causa ao autor, desde há cerca de dois anos, perturbação emocional e ansiedade.

Quanto ao ponto 3.8., refere a apelante que na sentença se diz que se teve em consideração para a sua prova, o depoimento do autor, o qual foi corroborado pelas testemunhas aí indicadas… mas a verdade é que só o autor falou disto e o depoimento do autor só pode valer para produzir prova contra si mesmo, podendo ser valoradas as suas declarações desde que sejam confirmadas por outras provas.

Vejamos.

Conforme aí se pode ler no Acórdão da Relação de Guimarães de 29/05/2014, processo nº 2797/12.6TBBCL-A.G1, “atualmente, e perante o que dispõe o artº. 466º do C.P.C. vigente, é inequívoco que as declarações de parte sobre factos que lhe sejam favoráveis devem ser apreciadas pelo tribunal, segundo a sua livre convicção.”

Como se escreveu no Acórdão desta Relação de Guimarães de 12/01/2017, no processo nº 3037/13.6TJVNF.G1, o depoimento do apelado – declarações de parte – tem de ser apreciado objetiva e criticamente…

As declarações de parte, contêm sempre um risco de parcialidade decorrente da posição da mesma na lide e no manifesto interesse que a mesma tem na decisão da causa, pelo que a apreciação de tais depoimentos deve ter sempre em conta tal situação.”

Fazer depender a avaliação de um facto, unicamente, das declarações de uma parte sem a necessária confirmação de outros meios de prova relevantes, dificilmente se justificará, uma vez que a parte, tendo um interesse direto na causa, normalmente, confirma as posições por si assumidas nos articulados, que lhe são favoráveis.

Cremos bem que a relevância das declarações de parte se poderá justificar pela possibilidade de poder vir a fornecer elementos relevantes para a apreciação da prova, particularmente se forem confirmados por outros elementos probatórios relevantes.

Afigura-se-nos, assim, que, por si só, as declarações de parte da apelante não podem, em princípio, justificar a alteração da matéria de facto indicada que, assim, se manterá.”

Mas não obstante o exposto, não está o tribunal impedido de, em conformidade com a sua livre apreciação da prova, considerar como provados factos unicamente com recurso às declarações de parte, embora deva ter os cuidados acima apontados.

De qualquer forma, cumpre notar que o facto em questão foi considerado provado não só por força das declarações do apelado, mas também dos depoimentos das testemunhas M. M. e M. C., estas irmãs do autor e tias das rés, bem como João, Olga, Teresa, Regina, M. G. e Carlos, este último cunhado do réu (irmão da falecida Conceição) e tio das rés, conforme resulta da fundamentação da matéria de fato da sentença, pelo que se manterá o facto em questão.

No que se refere aos pontos 3.13., 3.14. e 3.15., afigura-se-nos assistir razão à apelante na medida em que os mesmos se baseiam unicamente nas declarações do apelado e não se vê que seja legalmente justificável que através unicamente das suas declarações, seja possível sustentar a prova da matéria que consta dos referidos pontos (cfr. o que anteriormente se referiu a este propósito) e a motivação da decisão de facto constante da sentença, ao dizer que relativamente ao ato notarial em causa, foram ainda ouvidos aqueles que no ato participaram como testemunhas, quais sejam João, M. G. e Regina, os quais – tal como supra se expendeu – pese embora tivessem a noção de que o bem em causa fora herdado pelo autor, confirmaram as declarações prestadas pelos então justificantes, sem efetivamente terem noção do respetivo teor, limitando-se de resto a fazer o favor que lhes foi pedido (!), ou das implicações das mesmas, uma vez que daqui decorre claramente que as testemunhas, sobre a matéria em questão nada sabem.

Pelo exposto, os factos em questão terão de ser considerados como não provados.

No que se refere ao ponto 3.19., o que decorre das próprias declarações do apelado é que o mesmo se sentiu incomodado com a situação e do depoimento das testemunhas resulta, quanto à testemunha M. C., que o apelado (seu irmão) se sentiu triste, tendo a testemunha Olga (que não foi considerada na motivação da decisão de facto) referido que a situação das filhas causou perturbação ao apelado, “que está a passar um mau bocado”, tendo a testemunha M. M. referido que o apelado está a passar por um mau bocado, está a sofrer com a situação.

Ora, se o próprio apelado, interessado direto na causa refere que a situação lhe causa incómodos e se os testemunhos indicados não se mostram suficientemente impressivos, afigura-se-nos que a matéria em causa terá de ser reponderada e considerar-se como provado apenas que:

3.19. O comportamento das rés causou e causa ao autor, desde há cerca de dois anos, incómodos.
*
Entende ainda que deverão corrigir-se os pontos 3.1 e 3.16, devendo o facto 3.1 ter a seguinte redação, por resultar da escritura de partilha lavrada em 21 de março de 1985:

3.1. Por escritura pública de habilitação e partilha, lavrada em 21 de março de 1985, no 2º Cartório Notarial, a fls. 22 a 36, do livro ..., por óbito de José, falecido a 16 de março de 1979, foram adjudicados ao autor, a raiz do prédio urbano composto de casa de habitação de 1º andar, lojas e rossio de cultivo e árvores de fruta, situada no lugar da ..., freguesia de ..., a confrontar do norte com caminho público, do sul e nascente com bens do casal, e pelo poente com Padre Manuel, inscrita na matriz urbana sob o artigo 8º, e metade de 1/3 parte indivisa de um terreno de olival e vinha, situado no lugar de ..., ..., inscrito na matriz predial sob o art.º 1.159.
Entende a apelante que só esta redação está em consonância com a escritura, porque pela escritura o autor não adquiriu, foi-lhe adjudicada a raiz de tais prédios em partilha e tem razão, motivo pelo qual se procederá à retificação pretendida.
Quanto ao facto sob o ponto 3.16 – “Após a morte da mulher do autor, este não incluiu o prédio supra descrito na declaração para imposto de selo, uma vez que tinha a consciência de que tal prédio foi adquirido por ele, era um bem próprio dele, casado que fora no regime de comunhão de adquiridos.”
Entende a apelante que a redação deste facto deve manter-se apenas até “imposto de selo”, sendo eliminado o resto da frase.
E tem razão, na medida em que a única fundamentação para acrescentar a expressão que se pretende eliminar resulta das declarações do autor e apelado e pelas mesmas razões acima expostas não só não podem servir para fundamentar a sua inclusão, como também se mostra irrelevante para boa decisão da causa, motivo pelo qual o referido ponto passará a ter a seguinte formulação:
3.16 – “Após a morte da mulher do autor, este não incluiu o prédio supra descrito na declaração para imposto de selo.”
*
Por último, entende a apelante que se deverão, ainda, aditar os seguintes factos:

a) O autor é arquiteto, tem formação superior e no exercício da sua atividade costuma tratar da documentação necessária a instruir escrituras de justificação;
b) A escritura de justificação de 21 de outubro de 1994 foi lida em voz alta a todos os presentes, outorgantes e testemunhas;
c) Na instrução documental que antecedeu a escritura, bem como no respetivo registo na Conservatória do Registo Predial, o autor foi acompanhado por advogado.
d) A composição do prédio atualmente descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... não corresponde à composição do prédio adjudicado em raiz ao autor por meio da escritura de partilha por óbito de seu pai, outorgada em 21 de março de 1985, pois o prédio registado na Conservatória do Registo Predial após a escritura de justificação inclui 1/6 de um prédio rústico que foi adjudicado ao autor em partilha por morte de seu pai, o qual constitui o logradouro da casa e importa um incremento na área global do prédio na ordem dos 400 metros;
e) Pelo menos em 2012 o autor já sabia que o prédio estava registado em nome dele e da esposa, visto que foi nesse ano que expulsou as filhas/rés de casa, devido às divergências com as partilhas.
Quanto a esta pretensão, carece a apelante de razão, na medida em que se mostra juridicamente irrelevante, pelo que se indefere a pretensão da apelante.
*
Pelo exposto, a matéria de facto apurada passará a ter a seguinte formulação

I. Factos Provados

3.1. Por escritura pública de habilitação e partilha, lavrada em 21 de março de 1985, no 2º Cartório Notarial, a fls. 22 a 36, do livro ..., por óbito de José, falecido a 16 de março de 1979, foram adjudicados ao autor, a raiz do prédio urbano composto de casa de habitação de 1º andar, lojas e rossio de cultivo e árvores de fruta, situada no lugar da ..., freguesia de ..., a confrontar do norte com caminho público, do sul e nascente com bens do casal, e pelo poente com Padre Manuel, inscrita na matriz urbana sob o artigo 8º, e metade de 1/3 parte indivisa de um terreno de olival e vinha, situado no lugar de ..., ..., inscrito na matriz predial sob o art.º 1.159.
3.2. Na Conservatória Predial estes prédios, juntamente com outros, estavam descritos com o nº 42.650, a fls. 39 do livro ..., e, como consta da escritura de partilha eram parte a desanexar desse prédio.
3.3. O usufruto do prédio urbano supra descrito ficou reservado para a mãe do autor, Emília, a qual acabou por falecer em 10 de novembro de 2011.
3.4. O autor casou no regime de comunhão de adquiridos com Conceição em 7 de maio de 1977.
3.5. Na referida escritura de partilha a mulher do autor, Conceição, outorgou como 12ª outorgante, e declarou “Que dão a seus respetivos cônjuges o consentimento necessário para efetuarem a presente partilha”.
3.6. O autor por si e seus antepossuidores, desde há 1, 5, 10, 20, 30, 40, 50 e mais anos, todos o reconhecendo como seu legítimo proprietário e sem oposição de quem quer que seja, ali habitando e usufruindo dos referidos prédios, onde pernoita, toma as refeições diárias, recebe amigos, faz a sua vida social, paga as contribuições e impostos devidos, o que sempre foi feito à vista de quem quer que seja, sem oposição de outrem e na convicção de serem os seu legítimos proprietários, com exclusão de outrem.
3.7. Em 1985, o autor e demais comproprietários do prédio rústico identificado no ponto 3.1., dividiram de facto tal prédio, sendo que a parte que ficou a pertencer ao autor, este anexou-a ao prédio urbano ali igualmente identificado.
3.8. Ambos os prédios ficaram unificados em um só e o autor construiu um muro para vedar o que passava a ser só dele e demarcá-lo dos prédios dos vizinhos.
3.9. Todos os atos de posse descritos foram praticados sobre esta unidade predial, pelo autor, pelo menos, desde 1985, e, por si e anteriores possuidores, há mais de 20, 50, 100 anos.
3.10. Desde, pelo menos, o ano de 1984 que o casal constituído pelo autor e Conceição, entretanto juntamente com as respetivas filhas e até ao falecimento daquela, habitou o mencionado prédio, nele recebendo os seus familiares e amigos, pagando as despesas relacionadas com o uso do imóvel e as respetivas contribuições.
3.11. Em 21 de outubro de 1994, o autor e a, então, sua mulher, Conceição, lavraram uma escritura de justificação notarial no 1º cartório, a fls. 61v a 63, do livro ..., na qual declararam “que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do seguinte imóvel, inscrito na matriz em nome dele justificante varão: 1. Prédio rústico tinha uma área inferior à unidade de cultura – Portaria nº 202/70. 2. Prédio urbano, constituído por casa de habitação, de rés-do-chão, primeiro andar, com logradouro, anexo e alpendre, sito no lugar da ... da mencionada freguesia de ..., com a área coberta de cento e cinquenta e oito metros quadrados, logradouro com a área de quinhentos e vinte e seis metros quadrados, anexo com a área de trinta e seis metros quadrados e o alpendre com a área de cinquenta metros quadrados, a confrontar do norte com Augusto, do sul com a estrada nacional número duzentos e três, do nascente com Augusto e do poente com Isilda, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo OITO...”, que “este prédio encontra-se omisso na Conservatória do Registo Predial”, bem como “que possuem o indicado prédio em nome próprio há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu inicio, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com o conhecimento de toda a gente, sendo, por isso, uma posse pública, pacífica, contínua e de boa fé, pelo que adquiriram o referido prédio por usucapião, mas não tendo eles justificantes, dado o modo de aquisição, documento que lhes permita fazer a prova do direito de propriedade a seu favor”.
3.12. Com base nesta escritura foi feita a descrição, do prédio urbano e parte do rústico, na Conservatória Predial que passou a ter o nº ... - ..., e, ainda, foi feito o registo de aquisição do mesmo prédio a favor de Fernando S. e mulher Conceição, casados no regime de comunhão de adquiridos, através da apresentação nº 69 de 1994/12/21.
3.16. “Após a morte da mulher do autor, este não incluiu o prédio supra descrito na declaração para imposto de selo.”
3.17. Estão registadas a favor do réu Banco X, S.A. duas hipotecas sobre o imóvel id. nos autos, com os nºs ap. 69 de 07.01.2005 e ap. 56 de 04.01.2006.
3.18. Quando o autor se propôs a fazer partilha de bens após o óbito da sua esposa e mãe das rés, Conceição, aquelas recusaram-se a excluir da mesma o imóvel id. nos autos, como se recusaram a consentir na retificação da escritura de justificação notarial em conformidade.
3.19. O comportamento das rés causou e causa ao autor, desde há cerca de dois anos, incómodos.

II. Factos não provados

a) A casa descrita nos autos só ficou excluída da relação de bens por óbito de Conceição por razões fiscais, nomeadamente para evitar nova avaliação da casa por parte das Finanças e o consequente agravamento do Imposto Municipal sobre os Imóveis (IMI).
b) Desde 1984 e até à sua morte, que Conceição exerceu sobre o imóvel em sujeito os factos descritos em 3.10. dos factos provados com a convicção de exercer um direito próprio.
c) A casa atualmente existente, por ter sido sujeita a obras de carácter estrutural, não corresponde à que existia, nem em 1984, nem em 1977.
d) (3.13.) As declarações feitas nessa escritura de justificação notarial pelo autor e pela sua mulher, Conceição, não corresponderam ao que quiseram declarar e à sua vontade real.
e) (3.14.) A vontade do autor era declarar nessa escritura que era dono e legítimo possuidor da raiz do prédio descrito nessa escritura, por si e anteriores proprietários, com exclusão de outrem, há mais de 20 anos, sem oposição de quem quer que fosse, e que só ele (e anteriores proprietários) estava na posse da raiz de tal prédio há mais de 20 anos e sem qualquer interrupção, de forma pública, pacífica, contínua e de boa-fé.
f) (3.15.) Também a vontade declarada nessa escritura pela, então, mulher do autor, Conceição, não correspondeu ao que ela queria declarar; a vontade da Conceição era declarar que dava o seu consentimento ao autor para lavrar tal escritura, uma vez que estava casada com o autor no regime de comunhão de adquiridos e sabia que o bem era próprio do autor.
g) Nas circunstâncias descritas em 3.19., o comportamento das rés tenha causado e cause ao autor, desde há cerca de dois anos, perturbação emocional e ansiedade.
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Quanto à invocada prescrição a mesma não só se mostra prejudicada pelo facto não existir erro mas também se diria que ainda que tal situação se não verificasse – e verifica – sempre estaria interdito à apelante vir invocar a prescrição de um alegado direito, com a necessidade de alegação e prova dos respetivos requisitos, por força do respetivo ónus da prova e, ao mesmo tempo, se limitar a invocar a dúvida sobre a verificação ou não do respetivo decurso do prazo, dado que lhe era imposto que invocasse e justificasse a decurso do respetivo prazo para o exercício do invocado direito, motivo pelo qual sempre improcederia a invocação da prescrição.

Poder-se-á colocar a questão de saber se face ao que consta do ponto 3.6. dos factos provados, não deveria proceder a pretensão do autor de declarar que é dono e legítimo possuidor dos prédios descritos no artigo 1º da p.i., mas não parece que assim seja, dado que a formulação do mesmo não legitima a exclusividade da propriedade de tais bens, antes a estende também aos antepossuidores, sejam eles quem forem.
Diferente seria a situação se da matéria de facto resultasse a exclusividade da propriedade do autor relativamente a atais prédios, o que não sucede.

Do exposto decorre que a pretensão do autor terá de improceder, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas e, em consequência, terá de se julgar a apelação procedente, revogar-se a sentença recorrida e julgar a ação improcedente.
*
D) Em conclusão:

1) No erro na declaração o ato é anulável e a anulabilidade depende de o destinatário da declaração conhecer ou dever conhecer a essencialidade para o declarante do elemento sobre que incidiu o erro;
2) A escritura de justificação notarial assenta exclusivamente nas declarações do próprio interessado (declarante), pelo que, não existindo declaratário, não pode falar-se no vício referido;
3) Tem legitimidade para instaurar ação de impugnação de escritura de justificação notarial, o interessado que relativamente ao prédio justificado invoque ser titular de direito ou interesse incompatível com o declarado na escritura de justificação;
4) Não é lícito às partes virem invocar a prescrição através da invocação da dúvida sobre a verificação ou não do decurso do respetivo prazo.
***
III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente, revogando-se a douta sentença recorrida e julgando a ação improcedente.
Custas pelo apelado.
Notifique.
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Guimarães, 13/09/2018

Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Maria Cristina Cerdeira
2ª Adjunta: Desembargadora Raquel Baptista Tavares