RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário

I - As indemnizações devidas pelo responsável civil e pelo responsável laboral em consequência de acidente, simultaneamente de viação e de trabalho, assentam em critérios distintos e têm uma funcionalidade própria, não sendo cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento total do prejuízo causado ao lesado/sinistrado.
II - Esta concorrência de responsabilidades configura uma solidariedade imprópria ou imperfeita, podendo o lesado/sinistrado exigir, alternativamente, a indemnização ou ressarcimento dos danos a qualquer dos responsáveis, civil ou laboral, escolhendo aquele de que pretende obter em primeira linha a indemnização, sendo que o pagamento da indemnização pelo responsável pelo sinistro laboral não envolve extinção, mesmo parcial, da obrigação comum, não liberando o responsável pelo acidente.
III - A indemnização devida ao lesado/sinistrado a título de perda da sua capacidade de ganho, mesmo no caso do autor ter optado pela indemnização arbitrada em sede de acidente de trabalho, não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional, porquanto estamos perante dois danos de natureza diferente.
IV - A indemnização fixada em sede de acidente de trabalho tem por objeto o dano decorrente da perda total ou parcial da capacidade do lesado para o exercício da sua actividade profissional habitual, durante o período previsível dessa actividade e, consequentemente, dos rendimentos que dela poderia auferir.
V - A compensação do dano biológico tem como base e fundamento a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da actividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa actividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual.
VI - Neste campo, relevam apenas e tão só as implicações de alcance económico e já não as respeitantes a outras incidências no espetro da qualidade de vida, mas sem um alcance dessa natureza, não sendo, por isso, de ter em conta, em sede de indemnização por dano biológico, as implicações na vida sexual do lesado, que devem ser ponderadas, antes, em sede de danos não patrimoniais.
VII - O montante da indemnização por danos não patrimoniais deve, nos termos do disposto no art. 496.º, n.º 4 do CC, ser fixado segundo o critério da equidade, tendo-se em atenção as circunstâncias referidas no art. 494.º do mesmo diploma, com exceção da referência à situação económica do lesado, por constituir violação do princípio da igualdade, consignado no art. 13.º da CRP.

Texto Integral

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL



I – Relatório


1. AA, instaurou a presente ação com processo comum contra a ré BB - Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe, a título de indemnização pelos danos sofridos em consequência de acidente de viação de que foi vítima no dia 12 de dezembro de 2013, quando era transportado gratuitamente no veículo ligeiro de mercadorias Opel Corsa, com a matrícula ...-LM-..., as seguintes quantias:

     - € 174 827,68 a título de dano biológico ou corporal;

     - € 20 000,00 a título de dano moral complementar;

     - € 20 000,00 a título de dano moral futuro;

     - € 20 000,00 a titulo de violação do direito de personalidade.


Alegou, para tanto e em síntese, que o referido acidente ficou a dever-se a culpa do condutor do veículo ...-LM-..., seguro na ré, que, ao Km 54 da IC 19, junto à localidade de …, Ourém, iniciou a ultrapassagem a vários veículos e passou a circular pela metade esquerda da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha (Ourém-Tomar). E porque, nesta faixa, surgiu o veículo de matrícula ...-JJ-..., o condutor do ...-LM-..., ao retomar a metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, embateu frontalmente com o ...-JJ-..., indo depois embater no veículo de matrícula …-JP-…, que circulava nesta mesma faixa, no sentido Ourém –Tomar.


2. Citada a Ré, contestou, sustentando serem os montantes indemnizatórios reclamados manifestamente elevados.


3. Realizado julgamento, foi proferida sentença que julgou  parcialmente procedente a ação e, em consequência, condenou a Ré BB - Companhia de Seguros S.A., a pagar ao Autor AA, as seguintes quantias:

     a) € 80.000,00 (oitenta mil euros) a título de dano biológico;

     b) € 40.000,00 (quarenta mil euros) a título de danos morais;

     c) Juros de mora vincendos sobre as quantias referidas nas alíneas anteriores, contados desde a data da prolação da sentença até pagamento integral.

    

4. Inconformada com esta decisão, dela apelou o autor para o Tribunal da Relação de …, tendo a ré interposto recurso subordinado, na sequência do que foi proferido em 07.12.2017, acórdão que julgou parcialmente procedente o recurso do autor e improcedente o recurso da ré e, consequentemente, revogou parcialmente a sentença recorrida no que concerne ao montante dos danos não patrimoniais, condenando a ré, para além do fixado a esse título (€ 40.000,00), a pagar a quantia de € 20.000,00 ao autor, acrescida de juros à taxa legal contados desde a data da sentença em 1ª instância, até efectivo e integral pagamento, mantendo o demais fixado na sentença recorrida.

 

5. Inconformada com esta decisão, interpôs a ré recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1 - A decisão recorrida violou o preceituado nos artigos 496°, n°s 1 e 3,562°, 563° e 564° do CC, bem como o preceituado no artigo 9o da Portaria n° 377/2008, de 26.05 (alterada pela Portaria n° 679/2009, de 25.06).

2 - Com efeito, o acidente dos autos configura um acidente simultaneamente de viação e de trabalho, encontrando-se o Autor a receber, na sequência da sentença proferida no processo de acidente de trabalho uma pensão anual e vitalícia por uma elevada incapacidade que lhe foi reconhecida, com IPATH.

3 - Conforme consta da sentença proferida em primeira instância nestes autos, veio o Autor através de requerimento de fls. 354 (Refª 24784044) optar pela indemnização arbitrada pelo Tribunal de Trabalho em vez da indemnização reclamada no que tange a danos patrimoniais futuros.

4 - Neste contexto, considera-se que tal indemnização já abarca o ressarcimento pelo dano biológico, devendo o mesmo considerar-se inacumulável com o decorrente da perda da capacidade de ganho.

5 - É pacífico na jurisprudência e na doutrina que as indemnizações por acidente que seja simultaneamente de viação e de trabalho não são cumuláveis, mas sim complementares até ao ressarcimento total do prejuízo sofrido, neste sentido, vide designadamente Ac. Relação de … de 05.07.2005, Proc. n° 1946/05; Ac. Relação do … de 30.04.2013, Proc. n° 347/10.8TBBGC.P1; Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.2012, Proc. n°40/08.1TBMMV.C1.S1 todosdisponiveisemwww.dqsi.pt

6 - No sentido da inacumulabilidade se pronunciou o AC.RP de 23-03-2015, nos termos do qual "(…) pois as situações de «incapacidade permanente absoluta» e «incapacidade para a profissão habitual», é que justificariam a exclusão de indemnização do dano biológico, na medida em que aquelas são situações de incapacidade grave e a indemnização atribuída já incluiria o dano biológico."

7 - Também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.04.2012, P° n° 3075/2TBPBL.C1.S1, afirmou que «como tem entendido a jurisprudência maioritária deste Supremo o dano biológico não tem que ser ressarcido autonomamente.»

8 - E finalmente, destaque-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.01.2012, P° n° 220/2001-7.S1, que decidiu que, no caso aí em julgamento, em que o A. pedia, «para além da indemnização pela IPP e ainda que contendo-a [a fixação de] indemnização por dano biológico, não procedia esta sua pretensão em obter indemnização autónoma e acrescida com base no dano biológico.

9 - Ora, atento o enquadramento legal e a jurisprudência citadas, afigura-se que o tribunal Recorrido andou mal ao fixar uma indemnização por dano biológico no caso concreto dos autos em que o Autor já se encontra a auferir uma pensão anual e vitalícia decorrente do acidente de trabalho, pela qual optou e que contempla uma elevada incapacidade com uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual.

10 - Mas caso se considere que existem danos enquadráveis no conceito mais vasto de dano biológico que não estão contemplados na indemnização por acidente de trabalho, como também tem vindo a ser considerado pela jurisprudência, entendendo-se que se mantém fundamento para arbitrar um valor a este título, necessariamente se terão de selecionar com muito maior critério os factos que o permitem quantificar.

11 - Não fazendo qualquer sentido que retirando o dano decorrente do prejuízo sexual, o Tribunal recorrido mantenha, ainda assim, inalterado o montante da indemnização por dano biológico, o que consubstancia, na prática um aumento da mesma.

12 - Acresce que, alguns dos factos que o Tribunal recorrido considerou para a quantificação deste dano, são ponderados em sede de acidente de trabalho e foram computados na indemnização por IPP com IPATH.

13 - Ora, a fixar-se um montante indemnizatório por dano biológico, terá o mesmo que ter por fundamento apenas os factos que não são considerados em sede de acidente de trabalho e que são as limitações que não se relacionam com a capacidade de produzir rendimentos e, também, independentemente destes.

14 - A significar que, por recurso a juízos de equidade e procurando evitar duplicação de indemnizações, tal montante terá de ser muito inferior aos € 80.000,00 que foram fixados.

15 - No que respeita à indemnização por danos não patrimoniais e mesmo incluindo no elenco da factualidade que os fundamenta o dano decorrente da limitação na actividade sexual, considera-se que o montante fixado em primeira instância, € 40.000,00, é totalmente ajustado e corresponde à ordem de valores que a jurisprudência recente tem vindo a considerar em casos semelhantes.

16 - Jamais se justificando o incremento de tal verba em mais € 20.000,00.

17 - Devendo o Acórdão recorrido ser revogado em conformidade. Sem prejuízo e subsidiariamente:

DO RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL

18  - A Recorrente considera que, atenta a revogação parcial da Sentença proferida em primeira instância, a decisão proferida pela Relação de … é recorrível, não se enquadrando no preceituado no artigo 671°, n° 3 do CPC.

19 - Em todo o caso, se assim não se entender, o caso em análise admite a interposição de recurso de Revista Excepcional, quer ao abrigo da ai. a), do n° 1 do artigo 672° do CPC, quer ao abrigo da al. c) da mesma norma.

20 - Efectivamente, o acidente dos autos configura um acidente simultaneamente de viação e de trabalho, encontrando-se o Autor a receber, na sequência da sentença proferida no processo de acidente de trabalho uma pensão anual e vitalícia por uma elevada incapacidade que lhe foi reconhecida, com IPATH.

21 - Conforme consta da sentença proferida em primeira instância, veio o Autor através de requerimento de fls. 354 (Refª 24784044) optar pela indemnização arbitrada pelo Tribunal de Trabalho em vez da indemnização reclamada no que tange a danos patrimoniais futuros.

22 - Ainda assim, considerou o Acórdão recorrido que o dano biológico configurava um dano autonomamente indemnizável, que não se confundia com os danos patrimoniais futuros.

23  - Ora, é pacífico na jurisprudência e na doutrina que as indemnizações por acidente que seja simultaneamente de viação e de trabalho não são cumuláveis, mas sim complementares até ao ressarcimento total do prejuízo sofrido, neste sentido, vide designadamente Ac. Relação de … de 05.07.2005, Proc. n° 1946/05; Ac. Relação do … de 30.04.2013, Proc. n° 347/10.8TBBGC.P1; Ac. Do Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.2012, Proc. n° 40/08.1TBMMV.C1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

24 - Entender de outro modo é desrespeitar quanto preceituam as normas dos artigos 562°, 563° e 564° do CC pois, seria indemnizar em duplicado peio mesmo dano e não reconstituir a situação que existiria se não tivesse ocorrido o facto ilícito.

25 - Neste contexto e em reforço do supra exposto, prevê-se no artigo 9o da Portaria n.° 377/2008, de 26 de Maio (alterada pela Portaria 679/2009, de 25 de Junho) - acidentes simultaneamente de viação e de trabalho, que em casos como o dos autos, é inacumulável a indemnização por dano biológico com a indemnização por acidente de trabalho.

26 - Neste mesmo sentido se pronunciou o AC.RP de 23-03-2015, nos termos do qual"(…) pois as situações de «incapacidade permanente absoluta» e «incapacidade para a profissão habitual», é que justificariam a exclusão de indemnização do dano biológico, na medida em que aquelas são situações de incapacidade grave e a indemnização atribuída já incluiria o dano biológico."

27 - Também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.04.2012, P° n° 3075/2TBPBLC1.S1, afirmou que «como tem entendido a jurisprudência maioritária deste Supremo o dano biológico não tem que ser ressarcido autonomamente.»

28 - Ora, atento o enquadramento legal e a jurisprudência citadas, afigura-se que o tribunal Recorrido andou mal ao fixar uma indemnização por dano biológico no caso concreto dos autos em que o Autor já se encontra a auferir uma pensão anual e vitalícia decorrente do acidente de trabalho, peia qual optou e que contempla uma elevada incapacidade com uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual.

29 - O conceito de "dano biológico" tem vindo a ser enquadrado de modos diferentes pela jurisprudência, havendo decisões que o consideram dano moral, como decisões que o consideram dano patrimonial e ainda outras que entendem ser este dano um tertium genus, o que tem (evado à determinação de indemnizações dos mais variados montantes para o ressarcimento deste dano, nomeadamente, como sucede no caso dos autos, nos casos em que o lesado já está a ser indemnizado pelo dano patrimonial futuro, decorrente da IPP com IPATH com que ficou a padecer.

30 - Dada a frequência com que a questão se coloca e atendendo a que existe uma norma (artigo 9o da Portaria n.° 377/2008, de 26 de Maio (alterada peia Portaria 679/2009, de 25 de Junho)) que aponta no sentido da inacumulatividade, afigura-se que está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

31 - No limite, ainda que se considere que o dano biológico pode ter indemnização autónoma, sempre se terá de fundamentar em factos que não sejam considerados na indemnização por dano patrimonial futuro, directamente relacionada com os proventos decorrentes da actividade profissional, sob pena de duplicação de indemnizações.

32 - Ora, não foi isso que sucedeu nos presentes autos, porquanto para computo do dano biológico, quer a Sentença proferida em primeira instância, quer o Acórdão recorrido, socorreram-se de factos que são levados em consideração para a determinação da indemnização por IPP decorrente do acidente de trabalho.

33  - Em concreto, todos os factos respeitantes a limitações físicas directamente relacionadas com a necessidade de esforços acrescidos, bem assim como os factos respeitantes à incapacidade para o trabalho.

O que não pode ser admissível em face das normas referidas e da jurisprudência citada.

34 - Impõe-se assim o máximo rigor na selecção dos factos que fundamentam a indemnização por dano biológico, sendo claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, uma decisão sobre esta selecção e sobre a clarificação do conceito de "dano biológico".

35 - O que se requer, ao abrigo do preceituado na al. a) do n° 1, artigo 672° do CPC.

36 - Por outro lado, o Acórdão recorrido está em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.01.2012, Proc. n° 220/2001.L1.S1, cuja cópia segue em anexo.

37 - No Acórdão-fundamento entendeu-se que estando o Autor a ser já indemnizado por danos patrimoniais futuros com base na IPP fixada, não deveria ser também indemnizado por dano biológico, o qual não deve ser indemnizado autonomamente.

38 - Ao invés, no Acórdão recorrido entendeu-se que a circunstância de o Autor estar já a ser indemnizado pela perda da sua capacidade de ganho no âmbito do processo de acidente de trabalho, não obsta a que seja também indemnizado por dano biológico, não havendo duplicação de indemnizações.

39 - Impõe-se pois, a clarificação desta questão no caso concreto, em que há uma elevada incapacidade reconhecida em sede de acidente de trabalho, com IPATH e, como tal, justificativa da atribuição de uma pensão elevada, que o artigo 9o da Portaria n.° 377/2008, de 26 de Maio (alterada pela Portaria 679/2009, de 25 de Junho) considera que já abrande a indemnização por dano biológico, estabelecendo a inacumulatividade».


Termos em que requer seja julgado procedente o recurso e, em consequência,  seja o acórdão recorrido revogado.


6. O autor respondeu, concluindo as suas contra alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1ª - Não merece a douta decisão recorrida o reparo pretendido pela Recorrente, designadamente por violar o disposto nos Arts. 496º/1/3, 562º, 563º e 564º do CPC, bem como o preceituado no Art. 9º da Portaria nº 377/2008 de 26/5.

2ª – Do elenco exaustivo do danos gravíssimos sofridos pelo A., em consequência deste acidente de viação, foi-lhe fixada uma incapacidade permanente parcial de 39 % e no âmbito do processo de acidente de trabalho uma IPP de 53, 50 % com IPATH (Incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual), bem ilustrativos da gravidade das sequelas causadas por este acidente.

3ª – A existência de lesões geradoras de incapacidades permanentes, com ou sem repercussão na esfera patrimonial do lesado tem vindo a integrar o conceito de dano biológico – consagrado no sentido de ofensa à integridade física e psíquica, independentemente de dela resultar perda da capacidade de ganho no Art. 3º b) da Portaria 377/2008 de 26/5, designado também por dano corporal, por contraposição a dano material, como acontece no Art. 51º/1 do DL 291/2007 de 21 de Agosto.

4ª – Este dano biológico ou corporal adquiriu autonomia, estando na sua origem o direito à saúde, concretizado numa situação de bem estar físico e psíquico, enquanto direito fundamental de cada indivíduo, constitucionalmente consagrado nos Arts. 24º/1, 25º/1 da CRP, que estabelece o carácter inviolável da vida e integridade física e moral da pessoa humana e no Art. 70º do CC que protege a ofensa ilícita à personalidade física ou moral de cada um.

5ª – A posição do Conselheiro Salvador da Costa in “ Caracterização, avaliação e indemnização do dano biológico “ ensina-nos que – “ Como o dano corporal directo propriamente dito, pela sua natureza imaterial, é insusceptível de avaliação pecuniária, salvo por fição legal, porque não atinge o património do lesado, a conclusão é que deve ser qualificado como não patrimonial.

6ª – No âmbito do dano biológico, não pode, no entanto, deixar de considerar-se a Tabela Nacional para A Avaliação de Incapacidades Permanente em Direito Civil, aprovada pelo DL 352/2007 de 23/10.

7ª - O dano biológico pode projectar-se em duas vertentes :

- por um lado, a perda total ou parcial da capacidade do lesado para o exercício da sua actividade profissional habitual ou específica, durante o período previsível dessa actividade, e, consequentemente, dos rendimentos que dela poderia auferir ;

- por outro lado, a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da actividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa actividade e ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso de tempo de vida expectável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual (conferir Acórdão do STJ de 16.06.2016, no Proc. nº 1364/06.8TBBCL.G1.S2, in www.dgsi.pt )

8ª - Há que lançar mão do critério da equidade, ao abrigo do disposto no art. 566º/3 do CC, dentro dos padrões delineados pela jurisprudência em função do tipo de gravidade das sequelas existentes (Conferir neste sentido AC STJ de 17/02/2015, Proc. nº 3558/04.1TBSTB.E1.S1 e de 13/07/2017, Proc. nº 3214/114TBVIS.C1.S1 e de 04/06/2015, no Proc. Nº 1166/10.7TBVCD.S1, todos in www.dgsi.pt).

9ª - Assim, tendo em conta todo o circunstancialismo acima retratado, em especial a situação em que o A. ficou, consequência das lesões sofridas com o acidente, impeditivas do exercício da sua actividade profissional habitual, considerando ainda a sua expectativa de vida acima dos 70 anos, teve por ajustada e em linha com padrões da jurisprudência a valoração do dito dano biológico, na sua vertente patrimonial, na quantia que lhe foi fixada em 1ª instância de 80 000 €, não se incluindo aqui a indemnização pedida a título de violação do direito de personalidade traduzido no exercício normal e sadio da sexualidade conjugal, pois entendemos que a mesma deve ser valorada contrariamente ao decidido na sentença da 1ª instância como dano não patrimonial (conferir neste sentido o AC STJ de 13.07.2017, Proc.nº 3214/11.4TBVIS.C1.S1).

10ª - Contrariamente ao que vem alegado pela R. Recorrente, a valoração do dano biológico não se pode confundir ou abarcar na indemnização que o A. está a receber em sede de acidente de trabalho, não havendo nenhuma duplicação de montantes, pois a indemnização que está a receber pelo acidente de trabalho corresponde à perda da sua capacidade de ganho.

11ª - A indemnização devida por danos não patrimoniais deve ser fixada equitativamente, tendo em atenção a culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, tal como estipulam os Arts. 496º/3 e 494º do CC.

12ª - Como se diz no AC do STJ de 16.04.1991, BMJ 406º, o Art. 496º do CC, que fixou não uma concepção materialista da vida, mas um critério que consiste em que se conceda ao ofendido uma quantia em dinheiro considerada adequada a proporcionar-lhe alegrias ou satisfações que, de modo algum, contrabalancem as dores, desilusões, desgostos ou outros sofrimentos que o ofensor tenha provocado. “

Tudo isto é conseguido através dos juízos de equidade referidos no Art. 496º/3 do CC.

13ª – Das lesões sofridas no acidente o A. ficou portador duma repercussão permanente na actividade sexual fixável no grau 3, numa escala de 7 graus de gravidade, não conseguindo ter relações sexuais como tinha anteriormente, tendo dificuldade em finalizar o ato sexual.

Neste quadro importa ponderar a repercussão das lesões sofridas pelo A. no domínio da sua actividade sexual que, na sentença proferida, foram tidas em conta em sede do dano biológico.

Atendendo à idade do A. à data do acidente, 45 anos, entendeu-se ser justo e equilibrado fixar-lhe a indemnização por tal dano na quantia de 20 000 € mantendo-se o valor arbitrado em 1ª Instância quanto aos demais danos morais peticionados.

14ª - A orientação uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, no que toca à compensação de danos não patrimoniais, é a de que não podem ser miserabilistas, devendo ser significativas.

15ª - No que se refere ao deficit funcional permanente da integridade física e psíquica, os lesados de acidentes de viação, que fiquem com deficit funcional permanente, devem ser devidamente indemnizados mesmo que não se prove que tenham sofrido prejuízos imediatos nos rendimentos de trabalho.

Os lesados só têm de provar que sofreram IPP. Não precisam de alegar sequer perda de rendimentos.

16ª - A indemnização por danos não patrimoniais visa compensar realmente o lesado pelo mal causado, donde resulta que o valor da indemnização deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico, para assim de intentar compensar a lesão sofrida, proporcionando ao ofendido os meios económicos capazes de fazer esquecer, ou pelo menos mitigar o abalo moral suportado.

17ª - O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado e do titular da indemnização etc. Por outro lado, deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras da boa prudência, de bom senso prático, da justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.

18ª - Os tribunais não estão vinculados, na fixação equitativa dos montantes indemnizatórios a atribuir aos lesados em acidentes de viação, a aplicação das Tabelas plasmadas na Portaria nº 377/2008 de 26 de Maio, alterada pela Portaria nº 679/2010 de 25 de Junho, estas estabelecendo padrões mínimos, a cumprir pelas seguradoras, na apresentação a tais lesados de propostas sérias e razoáveis de regularização dos sinistros, indemnizando o dano corporal.

19ª - O juízo de equidade das instâncias, assente numa ponderação, prudencial e casuística das circunstâncias do caso – e não na aplicação de critérios normativos – deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida – se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.

20ª - A gravidade dos danos é inquestionável. Como tal, justifica-se a concessão ao recorrente de uma satisfação de ordem pecuniária de montante suficiente para, no decurso da sua vida – em princípio, ainda longa – fazer esquecer, para além das dores já sofridas e a sofrer, certamente, as sequelas físicas e psíquicas deixadas pelo acidente.

21ª - O dano biológico pode e deve ser entendido como um dano autónomo, na senda da nossa jurisprudência dominante – AC STJ de 20.5.2010 proc. 103/2002.L1S1 ; AC STJ de 11.11.2010 proc. nº 270/04.5TBOFA.C1S1 ; AC STJ de 06.2.2011 proc. nº 52/06.TBVNC, G1S1 ; AC STJ de 29.3.2012 proc nº 184/04.9TBARC e AC STJ de 02.02.2013 proc nº 1110/07.TVLSB todos in www.dgsi.pt.

22ª - É completamente desajustado ao caso sub-judice o teor das conclusões da Apelante, que, invoca o articulado na Portaria nº 377/2008 de 26 de Maio, para alegar arrojada e levianamente que a Recorrida deveria ter sido absolvida do pedido de indemnização por dano biológico.

23ª - O mesmo sucedendo quanto aos danos morais, que a Recorrida entende que deve abarcar o dano biológico, o que, é um verdadeiro contrasenso, pois a própria Portaria que invoca nº 377/2008 de 26 de Maio, é peremptória em fazer tal distinção e como tal a abrir caminho para a autonomização destes danos, pelo que, não existe duplicação nenhuma, o que, de resto já se explicitou supra nas considerações tecidas a respeito do Dano Biológico, cuja quantificação deve atender aos factos lesivos reportados supra, mais extensos até que os considerados na decisão Recorrida, no que também se discorda com a parte adversa.

24ª - As sequelas que resultam das lesões sofridas são, em termos de repercussão permanente na actividade profissional, impeditivas do exercício da sua actividade profissional habitual, bem assim como de qualquer outro dentro da sua área de preparação técnico-profissional, que deve ser atendível em sede de apuramento da indemnização por Dano Biológico,

25ª - No processo laboral por acidente de trabalho o Recorrente foi apenas indemnizado pela perda da sua capacidade de ganho, tendo-lhe sido fixada uma pensão anual e vitalícia, a pagar em duodécimos, e o que levou o Recorrente a optar por esta indemnização a título de danos patrimoniais futuros, foi a possibilidade de vir a pedir a reavaliação da sua situação clínica face à gravidade das lesões e sequelas que apresenta causadas por este acidente, que a Recorrida desvaloriza de forma despudorada e leviana».


Termos em que requer seja rejeitado o recurso interposto pela ré ou, caso assim não seja entendido seja negado provimento a tal recurso.


7. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.



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II. Delimitação do objecto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, as únicas questões a decidir respeitam à:


1ª- admissibilidade do recurso de revista;

  

2ª- valoração das indemnizações devidas ao autor  por dano biológico e a título de danos não patrimoniais.



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III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


As instâncias deram como provados os seguintes factos:


1. No dia 12 de Dezembro de 2013, pelas 18h 20m, na IC 19, ao Km 54, junto à localidade de …, do concelho de Ourém, ocorreu um acidente de viação.

2. Na referida via circulava o veículo ligeiro de mercadorias Opel Corsa com a matrícula ...-LM-...  no sentido de marcha Ourém-Tomar, onde o Autor era transportado gratuitamente;

3. (…) e ao chegar aproximadamente ao km 54 iniciou um manobra de ultrapassagem a vários veículos;

4. (...) passando a circular pela metade esquerda da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha (Ourém-Tomar);

5. (…) quando surgiu o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula ...-JJ-..., que circulava por esta via pela sua mão de trânsito, atento o seu sentido de trânsito (Tomar-Ourém)

6.(…) o ...-JJ-... desviou-se para a esquerda para evitar a colisão frontal com o ...-LM-...;

7. (…) que, ato contínuo, ao retomar a sua mão de trânsito pela metade direita da faixa de rodagem, foi colidir frontalmente com o ...-JJ-...

8. (…) e ainda com o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula …-JP-…,que circulava na sua mão de trânsito, pela mesma via e no mesmo sentido de marcha do ...-LM-....

9. O primeiro embate deu-se com o veículo ...-LM-... e o veículo ...-JJ-..., que depois de ter colidido frontalmente com este, ainda foi colidir com a parte dianteira lateral esquerda do veículo …-JP-…;

10. (…) o qual, após o embate, se imobilizou na berma direita da faixa de rodagem à distância de 2,60m, entre a sua parte traseira lateral e o eixo da via.

11. O ...-LM-... ficou imobilizado com a parte traseira lateral esquerda a 0,40m do eixo da via e com a parte lateral esquerda a 2,10m do eixo da via;

12. (…) e à distância de 1 metro entre a parte dianteira lateral esquerda e a parte dianteira lateral direita do ...-JJ-...;

13. (…) o qual, por sua vez, se imobilizou à distância de 3,30m  entre a parte dianteira lateral esquerda e o ponto fixo inalterável – Km54

14. (…) e a 1,20 m entre a parte traseira lateral esquerda e a berma esquerda atento o seu sentido de marcha.

15. O acidente deu-se num local onde a via se apresenta como uma estrada asfaltada com linha contínua,

16. com uma via, com a largura de 7,10m destinada a circulação dos veículos em dois sentidos.

17. Esta estrada estava em bom estado de conservação e o piso estava seco.

18. Em consequência do acidente supra descrito, o Autor ficou ferido tendo sido transportado ao Serviço de Urgência do Hospital de …;

19. (…) onde lhe diagnosticaram as seguintes lesões, causadas pelo acidente:

     - Traumatismo crâneo-encefálico com perda de consciência;

     - Traumatismo da região frontal;

     - Traumatismo do ombro direito;

     - Traumatismo torácico;

     - Traumatismo abdominal;

     - Traumatismo da mão direita;

     - Traumatismo da coluna;

     - Fratura da clavícula direita;

     - Fratura do 2º metacárpio da mão direita;

     - Fratura do esterno;

     - Fratura da coluna lombar – L2 S4;

     - Fratura do cóccix;

     - Perfuração intestinal

20. No Hospital de … foi submetido a:

     - cirurgia abdominal com resseção intestinal e saco de colostomia;

     - sigmoidectomia;

     - resseção de cego;

     - anastomose intestino delgado – intestino groso, NCOP;

     - laparotomia;

21. Ficando internado até 23/12/2013;

22. Teve alta para o domicílio com indicação para usar colete lombar e imobilização do ombro com cruzado posterior;

23. Tendo passado a ser acompanhado pelos Serviços Clínicos da Companhia de Seguros CC, dado tratar-se, igualmente, de acidente de trabalho

24. Em Janeiro de 2014 teve uma trombose venosa profunda do membro inferior esquerdo

25. Em 25 de Fevereiro de 2014, foi submetido a intervenção cirúrgica para encerramento da colostomia e reconstituição do trânsito intestinal

26. Foi submetido a tratamentos de fisioterapia.

27. Por manutenção de queixas lombo-sagradas fez exames complementares de diagnóstico à coluna lombo sagrada;

28. Teve alta da Companhia de Seguros em 18/09/2014.

29. Em consequência das lesões sofridas, o Autor:

   - sofreu dores e incómodos com deslocações a consultas e tratamentos;

   - as limitações físicas deixam-no triste, deprimido e revoltado e causam-lhe angústia e embaraço

   - sente-se socialmente diminuído ao ver-se limitado no desempenho das suas tarefas do dia a dia;

   - tem insónias

30. O Autor ainda sente dores lombos-sagradas e a nível do membro inferior;

31. Tem dores na mão direita

32. (…) tem  dificuldades em entrar e sair do automóvel;

33. Tem diarreias constantes, sendo que numa viagem prolongada tem que usar fraldas;

34. Precisa de ajuda de terceira pessoa para calçar meia elástica;

35. (…) não consegue correr;

36. (…) ajoelha-se com dificuldade;

37. (…) tem dificuldade em subir e descer escadas;

38. Não consegue ter relações sexuais com tinha anteriormente, tendo dificuldade em finalizar o ato sexual.

39. Antes do acidente o Autor praticava desporto, nomeadamente, futebol e ciclismo;

40. (...) gostava de andar de moto e de ira à caça com os amigos e de fazer petiscos aos fins de semana com a família e amigos;

41. Atividade a que já não consegue dedicar-se em virtude das lesões sofridas.

42. Em resultado das lesões sofridas o Autor ficou com as seguintes sequelas:

      Ráquis:

   - limitação na mobilidade da coluna lombar em particular na flexão e na rotação para a esquerda;

   - dor à apalpação dos processos espinhosos e musculatura lombar paravertebral;

   - contractura paravertebral lombar;

     Abdómen:

   - cicatriz acastanhada, não aderente aos planos profundos, longitudinal, que contorna pela esquerda a cicatriz umbilical, medindo vinte e quatro centímetros de comprimento por meio centímetro de largura;

   - cicatriz acastanhada transversal medindo oiti centímetro de comprimento, por meio centímetro de largura;

   - duas cicatrizes nacaradas medindo  dois centímetros de comprimento;

     Membro superior direito:

    - presença de sobrelevação a nível da clavícula em relação com formação de calo osso;

    - cicatriz nacarada oblíqua, na porção distal do 2º metacarpo, medindo um centímetro de comprimento;

     Membro inferior esquerdo:

   - portador de meia elástica até à perna.

43. Com sequela das lesões sofridas o Autor é portador de perturbação persistente do humor.

44. Em termos médico-legais, a data da consolidação das leões é fixável em 12/12/2015,

45. (…) o período de Défice Funcional Temporário Total é fixável em 90 dias;

46. (…) o período de Défice Funcionário Temporário Parcial é fixável em 641 dias;

47. (..) o período de Repercussão na Atividade Profissional é fixável em 731 dias;

48. (…) Quantum Doloris é fixável no grau 6/7;

49. (…) o Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 39 pontos, sendo de admitir a existência de dano futuro;

50. As sequelas que resultam das lesões sofridas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual, bem assim como de qualquer outro dentro da sua área de preparação técnico-profissional;

51. Como sequela, em termos médico-legais o Autor ficou com um dano estético, fixável, no grau 3/7

52. (..) a Repercussão permanente nas Atividade Desportivas e de Lazer é fixável em 3/7

53. (…) a Repercussão permanente na atividade Sexual é fixável no grau 3/7

54. O Autor vai precisar de ajudas medicamentosas, ajudas técnicas e tratamentos médicos regulares.

55 Através de contrato de seguro titulado pela apólice nº 000000 0000, a ora Ré assumiu para si a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel de matrícula ...-LM-....

56. No âmbito do processo nº 2015/00255/TM-C de acidentes de trabalho, o Autor foi sujeito a exame de avaliação do dano corporal em direito de trabalho pelo Instituto Nacional de Medicina Legal - Gabinete Médico-Legal e Forense do ... em …, em cujo relatório se concluiu que:

   - A data da consolidação médico legal é fixável em 18/09/2004;

    - Incapacidade permanente fixável em 52,5500%;

   - É atribuído um factor 1,5 uma vez que o doente não é reconvertível em relação ao posto de trabalho;

   - É atribuída IPATH uma vez que as sequelas descritas não são compatíveis com a sua profissão como motoristas de pesados;

   - Há lugar a dependências permanentes que incluem os produtos de apoio pela necessidade de uso diário de meia e contenção elástica grau II na perna esquerda e uso de cinta de contensão lombar.

57. No âmbito do acidente de trabalho e até 26 de Janeiro de 2017, o Autor recebeu da Companhia de Seguros CC – Sucursal em Portugal, a quantia de € 29.387,65;

58. À data do acidente o Autor, tinha 45 anos de idade, exercia a profissão de motorista de pesados e auferia a remuneração anual ilíquida de € 11.199,35.



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3.2. Fundamentação de direito


Conforme já se deixou dito as questões objecto do presente recurso prendem-se com a admissibilidade do recurso de revista interposto pela ré seguradora e com a quantificação da indemnização por dano biológico e por danos não patrimoniais devida ao autor pelas lesões por ele sofridas em consequência de acidente de viação.



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3.2.1. Da admissibilidade do recurso de revista interposto pela ré seguradora. 


Como se colhe do teor das conclusões da recorrente, o objecto do recurso de revista incide sobre o seguinte segmento decisório:

a) condenação da ré no pagamento ao autor da quantia de € 140.000,00, integrando as parcelas de € 80.000,00, a título de dano biológico”; de € 40.000,00, por danos não patrimoniais, e de € 20.000,00 pelas sequelas advenientes para o autor das lesões sofridas pelo autor no domínio da sua atividade sexual.


Ora, a este e respeito, há que ter presente que, na petição inicial, o autor pediu a condenação da ré no pagamento da quantia global de € 353.827,68, assim discriminada:

a) - € 174 827,68 a título de dano biológico ou corporal;

b) - € 20 000,00 a título de dano moral complementar;

c) - € 20 000,00 a título de dano moral futuro;

d) - € 20 000,00 a titulo de violação do direito de personalidade.


Por sua vez, sustentou a ré, na sua contestação, que tendo o autor optado pela indemnização por acidente de trabalho, não se pode cumular a indemnização por dano biológico com a indemnização por perda de capacidade de ganho, sob pena de haver duplicação de indemnizações. Mais sustentou serem excessivos os montantes das indemnizações fixadas em função do dano biológico e dos danos não patrimoniais.


No Tribunal de 1ª instância, foi proferida sentença que, afirmando a possibilidade de cumulação de uma indemnização por dano biológico com uma indemnização por perda de capacidade de ganho ou pensão vitalícia e ainda com uma indemnização por danos morais, desde que não sejam valorados os mesmos elementos, mas entendendo que «o facto do autor não conseguir manter relações sexuais como tinha até então, deve ser levado em conta em sede de dano biológico e não de danos morais » condenou a ré no pagamento ao autor da indemnização de € 120.000,00, assim discriminada:

a) € 80.000,00, pelo dano biológico, nestes se incluindo a repercussão das lesões sofridas pelo autor no domínio da sua atividade sexual, sendo devidos juros de mora vincendos, contados desde a data da prolação da sentença até pagamento;

c) € 40.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora vincendos, contados desde a data da prolação da sentença até pagamento.


Discordando destes valores de € 80.000,00 e de € 40.000,00 fixados à indemnização pelo dano biológico e pelos danos não patrimoniais, respectivamente, apelou o autor para o Tribunal da Relação de … e interpôs a ré recurso subordinado, sustentando ainda que, tendo o autor optado pela indemnização por acidente de trabalho, está a ser ressarcido já o dano biológico.


Pelo Tribunal da Relação de … foi proferido, em 07.12.2017, acórdão que, não obstante ter « por ajustada  e em linha com os padrões da jurisprudência a valoração  do dito dano biológico, na sua vertente patrimonial, na quantia que lhe foi fixada na 1ª instância de € 80.000,00», considerou não ser de incluir neste valor « a indemnização pedida a título de violação do direito de personalidade traduzido no exercício normal e sadio da sexualidade conjugal», por entender que «a mesma deve ser valorada contrariamente ao decidido na sentença da 1ª instância como dano não patrimonial».

Mais considerou que «contrariamente ao alegado pela ré/recorrente, a valoração do dano biológico, não se pode confundir nem abarcar na indemnização que o A. está a receber em sede de acidente de trabalho, não havendo nenhuma duplicação de montantes, pois a indemnização que está a receber pelo acidente de trabalho corresponde a perda da sua capacidade de ganho».

Assim, tendo em conta a factualidade dada como provada e supra descrita nos pontos 38 e 53 e destacando que, mercê das lesões sofridas, o autor « ficou portador de uma repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 3, numa escala de 7 graus de gravidade, não conseguindo ter relações sexuais como tinha anteriormente o autor, tendo dificuldade em finalizar o ato» e « atendendo  à idade do A. à data do acidente, 45 anos de idade» considerou «ser justo e equilibrado fixar-lhe a indemnização por tal dano na quantia, actualizada, de € 20.000,00, a que acrescem juros legais nos termos fixados em 1ª instância».

E, relativamente ao valor dos demais danos morais peticionados, entendeu que o quantitativo fixado de € 40.000,00 mostrava-se justo e equilibrado.

Daí ter decidido, por unanimidade, «julgar parcialmente procedente o recurso do autor, nos termos supra referenciados e, improcedente o recurso da ré e, consequentemente, revogar parcialmente a sentença no que concerne ao montante dos danos não patrimoniais, condenando-se a ré, pra além do já fixado a esse título (€ 40.000,00), a pagar a quantia de € 20.000,00, ao autor, a que acrescem juros à taxa legal contados desde a data da sentença em 1ª instância, até efetivo e integral pagamento, mantendo-se o demais fixado na sentença recorrida»   


Inconformada, de novo, com os valores de € 80.000,00, fixado à indemnização devida a título do chamado dano biológico, e de € 60.000,00, fixado à indemnização por danos não patrimoniais, nestes se incluindo o prejuízo sexual decorrente para o autor das lesões sofridas, interpôs a ré/seguradora recurso de revista do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, pugnando pela fixação da indemnização, devida pelo dano biológico, em montante muito inferior aos € 80.000,00 e da indemnização, devida por danos não patrimoniais, no montante de  € 40.000,00.


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Dispõe o art. 671º, nº 3 do CPC que « (…) não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1ª instância (…)».


Contempla, pois, este artigo a dupla conformidade das decisões da 1ª e 2ª instâncias, obstativa da admissibilidade do recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.

No caso dos autos o objecto do recurso de revista é, no fundo, o pedido global de indemnização peticionado pelo autor, integrando a indemnização a título da dano biológico e a indemnização por danos não patrimoniais.

Isto porque a sentença da 1ª instância fixou cada uma destas indemnizações, respetivamente, em € 80.000,00, incluindo neste montante o valor do dano das sequelas advenientes para o autor no domínio da sua atividade sexual, por entender ser este dano uma expressão do dano biológico - e em € 40.000,00.

E porque o acórdão recorrido, fixou a indemnização por dano biológico em € 80.000,00, mas excluindo deste montante o prejuízo sexual sofrido pelo autor, por entender, contrariamente ao decido pelo tribunal de 1ª instância, que o mesmo devia ser valorado enquanto dano não patrimonial, razão pela qual, alterou o montante da indemnização global devida a título de danos não patrimoniais para € 60.000,00 (fixou em € 20.000,00 o valor do dano decorrente do prejuízo sexual, mantendo os € 40.000,00 fixados na sentença de 1ª instância pelos demais danos não patrimoniais).

Mas se assim é, dúvidas não restam que as parcelas indemnizatórias de € 80.000,00 e de €40.000,00, fixadas em ambas as instâncias ficam abarcadas pela descaraterização da “dupla conforme”, havendo, por isso, que considerar a impugnação da ré sobre o pedido global de indemnização peticionada pelo autor.

Daí a admissibilidade do recurso de revista interposto pela ré, ficando, deste modo, prejudicada a apreciação da admissibilidade da revista excecional também suscitada pela ré/recorrente.



***



3.2.2. Quanto ao montante indemnizatório por dano biológico sofrido pelo autor em consequência do acidente de viação em causa, persiste a ré em sustentar que, configurando o acidente dos autos, um acidente simultaneamente de viação e de trabalho e tendo o autor optado pela indemnização arbitrada pelo Tribunal de Trabalho, impõe-se considerar que tal indemnização já abarca o ressarcimento pelo dano biológico, devendo o mesmo considerar-se inacumulável com o dano decorrente da perda da capacidade de ganho.


A este respeito, diremos, desde logo, tal como nos dá conta o Acórdão do STJ, de 11.12.2012 (processo nº 40/08.1TBMMV.C1.S1)[2], constituir entendimento uniforme e reiterado da nossa jurisprudência, por um lado, o de que «as indemnizações consequentes ao acidente de viação e ao sinistro laboral – assentes em critérios distintos e cada uma delas com a sua funcionalidade própria – não são cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento total do prejuízo causado».

E, por outro lado, o de que «a responsabilidade primacial e definitiva é a que incide sobre o responsável civil, quer com fundamento na culpa, quer com base no risco, podendo sempre a entidade patronal ou respectiva seguradora repercutir aquilo que, a título de responsável objectivo pelo acidente laboral, tenha pago ao sinistrado».

No dizer do mesmo acórdão, estamos perante a figura da «solidariedade imprópria ou imperfeita», podendo o lesado/sinistrado «exigir, alternativamente, a indemnização ou ressarcimento dos danos a qualquer dos responsáveis, civil ou laboral, escolhendo aquele de que pretende obter em primeira linha a indemnização», sendo que «o pagamento da indemnização pelo responsável pelo sinistro laboral não envolve extinção, mesmo parcial, da obrigação comum, não liberando o responsável pelo acidente»[3].

De esclarecer, contudo, que a indemnização devida ao lesado/sinistrado a título de perda da sua capacidade de ganho, mesmo no caso do autor ter optado pela indemnização arbitrada em sede de acidente de trabalho, não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional[4], porquanto estamos perante dois danos de natureza diferente.

Com efeito, enquanto a primeira indemnização tem por objeto o dano decorrente da perda total ou parcial da capacidade do lesado para o exercício da sua actividade profissional habitual, durante o período previsível dessa actividade e, consequentemente, dos rendimentos que dela poderia auferir, a compensação do dano biológico tem como base e fundamento «a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da actividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa actividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expectável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual»[5].

Dito de outro modo e nas palavras do Acórdão do STJ, de 10.10.2012 (processo nº 632/2001.G1.S1)[6] « (…) a compensação do dano biológico tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou conversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar; quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas.

Na verdade, a perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediata e totalmente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado - constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades de exercício profissional e de escolha e evolução na profissão, eliminando ou restringindo seriamente a carreira profissional expectável – e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição -, erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuramente acrescidos lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais». 

Assim, «nesta perspectiva, deverá aditar-se ao lucro cessante, decorrente da previsível perda de remunerações, calculada estritamente em função do grau de incapacidade permanente fixado, uma quantia que constitua justa compensação do referido dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente pela capitis deminutio de que passou a padecer (o lesado), bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional ou pessoal».

No mesmo sentido, refere o Acórdão do STJ, de 06.12.2017 (processo nº 1509/13.1TVLSB.L1.S1)[7] que «O dano biológico abrange um espectro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, incluindo a frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer atividades ou tarefas de cariz económico, mesmo fora da atividade profissional habitual, bem como os custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expectáveis».

E porque assim é, importa ainda realçar, na esteira do afirmado no Acórdão do STJ, de 13.07.2017 (processo nº 3214/11.4TBVIS.C1.S1)[8] que, neste campo, relevam apenas e tão só «as implicações de alcance económico e já não as respeitantes a outras incidências no espetro da qualidade de vida, mas sem um alcance dessa natureza», não sendo, por isso, de ter em conta, nesta linha, «as implicações na vida sexual do lesado, que devem ser ponderadas  sim em sede de danos não patrimoniais».

Daí que, perfilhando este entendimento, se considere assistir razão ao Tribunal da Relação ao afirmar que a repercussão das lesões sofridas pelo autor no domínio da sua atividade sexual, deve ser valorada, contrariamente ao decidido na sentença da 1ª instância, como dano não patrimonial.

Ora, no caso dos autos, o que, em sede de dano biológico, resulta da factualidade dada como provada e supra descrita nos pontos 19, 29, 30, 31, 32, 33, 34,35, 36, 37, 42, 49, 56 e 58, é que o autor AA, à data do acidente, tinha 45 anos de idade e exercia a profissão de … e que, em consequência do acidente dos autos, o autor sofreu traumatismo crâneo-encefálico com perda de consciência; traumatismo da região frontal; traumatismo do ombro direito; traumatismo torácico; traumatismo abdominal; traumatismo da mão direita; traumatismo da coluna; fratura da clavícula direita; fratura do 2º metacárpio da mão direita; fratura do esterno; fratura da coluna lombar – L2 S4; fratura do cóccix e perfuração intestinal.

Mais resulta que, em consequência das lesões sofridas, o Autor ainda sente dores lombos-sagradas e a nível do membro inferior; tem dores na mão direita; tem dificuldades em entrar e sair do automóvel, tem diarreias constantes, sendo que numa viagem prolongada tem que usar fraldas; não consegue correr; ajoelha-se com dificuldade; tem dificuldade em subir e descer escadas e ficou, entre outras, com as seguintes sequelas: limitação na mobilidade da coluna lombar em particular na flexão e na rotação para a esquerda; dor à apalpação dos processos espinhosos e musculatura lombar paravertebral e contractura paravertebral lombar. E ficou também com dependências permanentes que incluem os produtos de apoio pela necessidade de uso diário de meia e contenção elástica grau II na perna esquerda e uso de cinta de contensão lombar, precisando de ajuda de terceira pessoa para calçar meia elástica;

E resulta ainda que, mercê de tudo isto, o autor ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 39 pontos, sendo de admitir a existência de dano futuro.

Daí, neste contexto, ter-se por inquestionável que este défice funcional não pode deixar de relevar enquanto  dano biológico, consubstanciado na  diminuição, em geral da qualidade de vida profissional do autor AA, sendo passível de indemnização, pois acarreta-lhe prejuízos incidentes na sua esfera patrimonial, designadamente a frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer atividades ou tarefas de cariz económico, mesmo fora da atividade profissional habitual, bem como os custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas.


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Assente a ressarcibilidade deste dano, impõe-se, agora, enfrentar a questão do cálculo da sua indemnização.

Nesta matéria e com o devido respeito, diremos, desde logo, que não se aceita as bases de cálculo propostas pela ré/recorrente, designadamente que a indemnização deva ser calculada com base no rendimento anual do autor auferido no âmbito da sua atividade profissional habitual e com recurso, às tabelas anexas à Portaria n.º 377/ 2008, de 26.05 (alterada pela Portaria nº 679/2009, de 25.06).

Isto porque, se tem entendido que as referidas tabelas, estabelecidas para efeitos de apresentação aos lesados de proposta razoável de indemnização, nos termos do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21.08, destinam-se a ser aplicadas na esfera extrajudicial, não sendo lícita a sua sobreposição aos critérios legais e de equidade pelo julgador[9].

E porque, tal como nos dá conta o Acórdão do STJ, de 06.12.2017 (processo nº 1509/13.1TVLSB.L1.S1)[10], «neste tipo de situações, a solução seguida pela jurisprudência deste Supremo Tribunal é a de fixar um montante indemnizatório por via da equidade, ao abrigo do disposto no artigo 566.º, n.º 3, do CC, em função das circunstâncias concretas de cada caso, segundo os padrões que têm vindo a ser delineados, atentos os graus de gravidade das lesões sofridas e do seu impacto na capacidade económica do lesado, considerando uma expetativa de vida ativa não confinada à idade-limite para a reforma».

Por tudo isto e tendo em atenção todo o circunstancialismo acima exposto, em especial a situação em que ficou o autor AA em consequência da sequelas sofridas com o acidente, importa considerar que as limitações de mobilidade de que ficou afetado, correspondentes a um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 39 pontos percentuais, a partir da data da consolidação das lesões (12/12/2015), com possibilidade de agravamento, implicam inegável redução da sua capacidade económica geral, mormente para se dispor ao desempenho de outras atividades económicas concomitantes ou alternativas que, presumivelmente, ainda lhe pudessem surgir na área da sua formação profissional, ao longo da sua expetativa de vida.

De considerar ainda que, à data da consolidação das lesões (12/12/2015), o autor tinha cerca de 47 anos de idade, sendo a sua esperança de vida de cerca de 30 anos (atenta ser de 77,4 anos a esperança média de vida estabelecida para os homens).

Daí que tudo ponderado, sem esquecer o quadro jurisprudencial mais recente, de que destacamos o citado Acórdão do STJ, de 13.07.2017 (processo nº 3214/11.4TBVIS.C1.S1)[11], julgamos ser de manter a indemnização, no montante de € 80.000,00,  arbitrada ao autor no acórdão recorrido.



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3.2.3. Quanto ao montante indemnizatório pelos danos não patrimoniais.


Neste capítulo, o Tribunal da Relação manteve a indemnização de € 40.000,00, arbitrada ao autor AA pelo Tribunal de 1ª Instância, mas, incluindo neste tipo de danos o prejuízo sexual decorrente para o autor das lesões sofridas, que valorou em € 20.000,00, alterou o montante da indemnização devida ao autor, a título de danos não patrimoniais, para € 60.000,00.

Pugna, porém, a recorrente/seguradora pela redução do montante fixado, que reputa de excessivo, contrapondo  que essa indemnização seja mantida em  € 40.000,00.



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 Como é consabido e resulta claramente do disposto nos arts. 483º, nº1 e 562º, do C. Civil, pressuposto e requisito essencial da obrigação de indemnizar fundada em responsabilidade civil é que o lesado, titular do direito indemnizatório, tenha sofrido um dano.

Fundamental, porém, é que os danos assumam gravidade, já que o art. 496º, nº1 do C. Civil apenas elege como danos não patrimoniais indemnizáveis os que “pela sua gravidade mereçam a tutela do direito”, o que equivale a dizer que só o dano “grave” constitui pressuposto da obrigação de indemnizar.

Significa isto, no dizer do Acórdão do STJ, de 24.05.2007[12], que, «em sede de compensação por danos não patrimoniais, por não se estar perante a lesão de interesses susceptíveis de avaliação pecuniária, o dano não corresponde a um prejuízo determinado ou materialmente determinável, reparável por reconstituição natural ou através de um sucedâneo em dinheiro, mas a uma lesão de ordem moral ou espiritual apenas indirectamente compensável através de utilidades que o dinheiro possa proporcionar. E que o requisito “dano”, como pressuposto da obrigação de indemnizar, não seja um qualquer prejuízo, mas apenas aquele que se apresente com um grau de gravidade tal que postule a atribuição de uma indemnização ao lesado. Se essa gravidade não concorrer, não pode falar-se de dano não patrimonial passível de ressarcimento».

Mas, não obstante os danos não patrimoniais respeitarem à alteração/depreciação das condições psicológicas e subjetivas da pessoa humana, traduzindo-se em estados de sofrimento ou de dor, física ou moral, provocados por ofensas à integridade física ou moral duma pessoa, importa realçar que  a avaliação da sua gravidade não é feita à luz de factores subjetivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada), aferindo-se, antes, segundo um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em conta as circunstâncias do caso)[13], constituindo, desde há muito[14], orientação consolidada na  jurisprudência que as simples contrariedades ou incómodos apresentam “um nível de gravidade objectiva insuficiente para os efeitos do n.º 1 do art. 496º”.

Daí que, tal como nos dá conta o supra mencionado Acórdão do STJ, na valoração dos danos não patrimoniais, como consequências da conduta do lesante, importe, em primeiro lugar, estabelecer, «como linha de fronteira, a separação entre aquelas que se situam ao nível das contrariedades e incómodos irrelevantes para efeitos indemnizatórios e as que se apresentam num patamar de gravidade superior e suficiente para reclamar compensação».

E, depois, ter presente, como vem sendo entendimento pacífico da jurisprudência[15], que «dano grave não terá que ser considerado apenas aquele que é “exorbitante ou excepcional”, mas também aquele que “sai da mediania, que ultrapassa as fronteiras da banalidade. Um dano considerável que, no seu mínimo espelha a intensidade duma dor, duma angústia, dum desgosto, dum sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna inexigível em termos de resignação”».

Assim, neste domínio estabelece o art. 496º, nº 4 do C. Civil que o montante da indemnização compensação será fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção as circunstâncias referidas no art. 494º, devendo ser «proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta as regras da boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida»[16].

Segundo o Prof. Antunes Varela[17],  deve atender-se, para tanto, «em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do agente), ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado e do titular da indemnização, aos padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, às flutuações do valor da moeda, etc.», sendo, todavia, de afastar, no entendimento  do Acórdão do STJ, de 22.10.2009 (processo nº 3138/06.7TBMTS.P1.S1)[18], que se perfilha, «a referência à situação económica do lesado, por violação do princípio da igualdade, consignado no artigo 13.º da CRP»[19].

E porque um tal «juízo de equidade» das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», tem-se defendido, designadamente nos Acórdãos do STJ, de 05.11.2009 (proc. 381/2009.S1) de 20.05.2010 (proc. 103/2002.L1.S1), de 28.10.2010 (proc. 272/06.7TBMTR.P1.S1), de 07.10.2010 (proc. 457.9TCGMR.G1.S1) e de 25.05.2017 (proc. 868/10.2TBALR.E1.S1)[20], que «tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adoptados, numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados, e, em última análise, o princípio da igualdade».

Deste modo, mais do que discutir e reconstruir a substância do casuístico juízo de equidade que esteve na base da fixação pela Relação do valor indemnizatório arbitrado, em articulação incindível com a especificidade irrepetível do caso concreto, plasmada nas particularidades singulares da matéria de facto fixada, importa essencialmente verificar, num recurso de revista, se os critérios seguidos e que estão na base de tais valores indemnizatórios são passíveis de ser generalizados para todos os casos análogos – muito em particular, se os valores arbitrados se harmonizam com os critérios ou padrões que, numa jurisprudência actualista, devem sendo seguidos em situações análogas ou equiparáveis – em situação em que estamos confrontados com gravosas incapacidades que afectam, de forma sensível e irremediável, o padrão e a qualidade de vida de lesados».

De salientar, finalmente, constituir orientação da nossa jurisprudência que a indemnização por danos não patrimoniais não pode ser simbólica nem miserabilista[21], devendo, antes, ser significativa[22] e traduzir a “justiça do caso concreto”, não se devendo, porém, confundir a equidade com a pura arbitrariedade ou com a total entrega da solução a critérios assentes em puro subjetivismo do julgador, tal como se adverte no Acórdão de 10.02.1998[23].

No caso dos autos, importa ter em conta a factualidade dada como provada e supra descrita sob os nºs 19 a 43, 48 a 54, 56 e 58, da qual resulta que:

i) mercê das lesões sofridas em consequência do acidente, ocorrido em 12.12.2013, o autor  foi submetido a cirurgia abdominal com resseção intestinal e saco de colostomia; sigmoidectomia; resseção de cego; anastomose intestino delgado – intestino groso, NCOP; - laparotomia, ficou internado até 23/12/2013 e teve  alta para o domicílio com indicação para usar colete lombar e imobilização do ombro com cruzado posterior.

ii) Em Janeiro de 2014 teve uma trombose venosa profunda do membro inferior esquerdo

iii) Em 25 de Fevereiro de 2014, foi submetido a intervenção cirúrgica para encerramento da colostomia e reconstituição do trânsito intestinal

iv) Foi submetido a tratamentos de fisioterapia.

v) Em consequência das lesões sofridas, o autor sofreu dores e incómodos com deslocações a consultas e tratamentos.

vi) As limitações físicas deixam-no triste, deprimido e revoltado e causam-lhe angústia e embaraço. Sente-se socialmente diminuído ao ver-se limitado no desempenho das suas tarefas do dia a dia. Tem insónias

vii) O autor ainda sente dores lombos-sagradas e a nível do membro inferior. Tem dores na mão direita. Tem dificuldades em entrar e sair do automóvel. Tem diarreias constantes, sendo que numa viagem prolongada tem que usar fraldas. Precisa de ajuda de terceira pessoa para calçar meia elástica.

viii) O autor não consegue correr; ajoelha-se com dificuldade; tem dificuldade em subir e descer escadas;

ix) Não consegue ter relações sexuais com tinha anteriormente, tendo dificuldade em finalizar o ato sexual.

x) Antes do acidente o Autor praticava desporto, nomeadamente, futebol e ciclismo. Gostava de andar de moto e de ira à caça com os amigos e de fazer petiscos aos fins de semana com a família e amigos, atividade a que já não consegue dedicar-se em virtude das lesões sofridas.

xi) Em resultado das lesões sofridas o Autor ficou com as seguintes sequelas:

      Ráquis: - limitação na mobilidade da coluna lombar em particular na flexão e na rotação para a esquerda;- dor à apalpação dos processos espinhosos e musculatura lombar paravertebral; - contractura paravertebral lombar;

     Abdómen: - cicatriz acastanhada, não aderente aos planos profundos, longitudinal, que contorna pela esquerda a cicatriz umbilical, medindo vinte e quatro centímetros de comprimento por meio centímetro de largura;- cicatriz acastanhada transversal medindo oiti centímetro de comprimento, por meio centímetro de largura;- duas cicatrizes nacaradas medindo dois centímetros de comprimento;

     Membro superior direito: - presença de sobrelevação a nível da clavícula em relação com formação de calo osso;    - cicatriz nacarada oblíqua, na porção distal do 2º metacarpo, medindo um centímetro de comprimento;

     Membro inferior esquerdo: - portador de meia elástica até à perna.

xii) Como sequela das lesões sofridas o Autor é portador de perturbação persistente do humor.

xiii)  O Quantum Doloris é fixável no grau 6/7;

xiv) Como sequela, em termos médico-legais o Autor ficou com um dano estético, fixável, no grau 3/7

xv)A Repercussão permanente nas Atividade Desportivas e de Lazer é fixável em 3/7

xvi) A Repercussão permanente na atividade Sexual é fixável no grau 3/7

xvii) O autor vai precisar de ajudas medicamentosas, ajudas técnicas e tratamentos médicos regulares.

xviii) Há lugar a dependências permanentes que incluem os produtos de apoio pela necessidade de uso diário de meia e contenção elástica grau II na perna esquerda e uso de cinta de contensão lombar.

xix)  À data do acidente o Autor, tinha 45 anos de idade.

Ora, ponderando todo este quadro factual à luz dos sobreditos critérios balizadores, não se vê que o critério seguido pela Relação se afaste, de modo significativo, dos padrões que vêm sendo seguidos em casos equiparáveis, pelo que considera-se que não merece censura o estabelecimento de indemnização pelos danos não patrimoniais no valor de € 60.000,00 num caso que, pese embora esteja longe das situações de invalidez, com total degradação do padrão de vida e da autonomia pessoal do lesado, não deixa de evidenciar, pela multiplicidade, extensão e natureza das lesões físicas e psíquicas e pela sua repercussão fortemente negativa e irreversível nas potencialidades pessoais e no padrão futuro de vida do autor, que à data do acidente contava apenas 45 anos de idade, uma onerosidade e gravidade objetiva e subjetiva.

Termos em que improcedem todas as conclusões do recurso interposto pela ré seguradora.


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IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.


Custas a cargo da recorrente.


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Supremo Tribunal de Justiça, 12 de julho de 2018

Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)

Rosa Maria Ribeiro Coelho

João Luís Marques Bernardo

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[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] Acessível in, www. dgsi.pt
[3] Neste mesmo sentido, cfr. Acórdão do STJ, de 19.10.2010 (processo nº 696/07.2TBMTS.P1.S1), acessível in www.dgsi.pt/jstj.
[4] Neste sentido, João António Álvaro Dias, in “ Dano Corporal. Quadro Epistemológico e Aspetos Ressarcitórios”, Almedina, 2001, pág. 272.
[5] Neste sentido, Acórdão do STJ, de 13.07.2017 (processo nº 3214/11.4TBVIS.C1.S1), acessível in www.dgsi.pt/jstj.
[6] Acessível in www.dgsi.pt/jstj.
[7]Acessível in www.dgsi.pt/jstj.
[8]Acessível in www.dgsi.pt/jstj.
[9] Neste sentido, também o Acórdão do STJ, de 04.06.2015 (processo nº 1166/10.7BBVCD.P1.S1), também acessível in www.dgsi.pt/jstj.
[10] Relatado pelo Conselheiro Tomé Gomes assinado pela ora relatora, na qualidade de Juíza Adjunta e acessível in www.dgsi.pt/jstj.
[11] Acessível in www.dgsi.pt/jstj.
[12] Relatado pelo Conselheiro Alves Velho no proc. nº 07A1187 e publicado in www.dgs.pt/jstj.
[13] Cfr. Antunes Varela, in,  “ Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 9ª ed., pág. 628.
[14] Cfr. Acórdão do  STJ,  de 11/5/98 ( proc. 98A1262 ITIJ).
[15] De que é expressão o Acórdão do STJ, de 05.06. 197, in CJ, Ano IV, tomo III, pág. 892.
[16] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in, “Código Civil, Anotado”, 4ª ed. , pág 501.
[17] In obra citada.
[18] Acessível in www. dgsi.pt/jstj.
[19] Neste sentido, ver ainda, em wwwdgsi.pt, os Acórdãos  deste Tribunal de 11.1.2007 e 7.2.2008 bem como  o texto, a tal propósito, de Maria Veloso, em Comemorações aos 35 Anos do Código Civil, III, 542 e  o 12.º princípio da Resolução n.º 7/75, de 14.3. do Conselho da Europa (cujo texto se pode ver em Armando Braga, A Reparação do Dano Corporal na Responsabilidade Extracontratual, 295), citados no referido acórdão.
[20] Todos publicados in www. dgsi.pt/jstj.
[21] Neste sentido, vide Ac. do STJ, de 16.01.1993, in, CJ/STJ, ano I, tomo III, pág. 183.
[22] Neste sentido, vide Ac. do STJ, de 11.10.1994, in CJ/STJ, ano VII, tomo II, pág. 49.
[23] In CJ/STJ, ano 1998, Tomo I, pág. 65.