ADMISSIBILIDADE DA RECONVENÇÃO
COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
Sumário


SUMÁRIO (da relatora):

I. A dedução de um pedido reconvencional fundado na mesma causa de pedir do pedido do autor, pressupõe que aquela seja entendida à luz da teoria da substanciação, isto é, integrada pelos factos concretos que concretizam a norma ou o instituto jurídicos invocados, não valendo para o efeito a abstracta invocação pelo réu dos mesmos norma ou instituto jurídicos, quando consubstanciados por factos absolutamente diferentes e distintos dos primitivos (arts. 266º, nº 1 e nº 2, al. a), e 581º, nº 4, ambos do C.P.C.).

II. A dedução de um pedido reconvencional fundado no mesmo facto que serve de fundamento à defesa, pressupõe que o facto invocado - como simultâneo fundamento da reconvenção -, a verificar-se, produza efeito defensivo útil, isto é, tenha virtualidade para reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor (arts. 266º, nº 1 e nº 2, al, a), e 576º, nº 1 e nº 3, ambos do C.P.C.).

III. Operando-se a compensação de créditos por declaração de uma parte à outra (art. 848º do C.C.), e vigorando no processo civil o princípio do dispositivo (art. 3º, nº 1 do C.P.C.), o réu está obrigado a invocá-la expressamente, não podendo o Tribunal substituir-se-lhe para esse efeito (arts. 609º, nº 1 e 615º, nº 1, al. e), ambos do C.P.C.); e terá de o fazer com a sua contestação, por ser esse o momento processual próprio, sob pena de preclusão (arts. 583º, nº 1 e 588º, nº 1 e nº 2, ambos do C.P.C.).

Texto Integral


Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.

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I - RELATÓRIO
1.1. Decisão impugnada

1.1.1. Maria (aqui Recorrida), residente no …, em Chaves, propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra M. L. (aqui Recorrente), residente na Urbanização …, em Chaves, pedindo que

· a Ré fosse condenada a restituir-lhe os bens móveis que se encontravam no interior de um armazém à data da sua traditio à mesma (no âmbito de um contrato promessa de compra e venda havido entre ambas), ou bens de igual espécie, ou o respectivo valor pecuniário, de € 188.781,19;

· a Ré fosse condenada no pagamento de uma quantia pecuniária compulsória, nunca inferior a € 1.000,00, por cada dia de não restituição dos referidos bens móveis;

· (subsidiariamente, não sendo a restituição dos bens possível) a Ré fosse condenada a indemnizá-la pela violação do seu direito de propriedade, no montante de € 188.781,19, à luz do instituto da responsabilidade civil extracontratual, acrescidos de juros de mora, contados desde o trânsito em julgado da decisão judicial condenatória até efectivo e integral pagamento;

· (subsidiariamente, não sendo a restituição dos bens possível e falecendo o fundamento anterior) a Ré fosse condenada a restituir-lhe os bens em causa, ou bens semelhantes, ou o seu valor correspondente, de € 188.781,19, à luz do instituto do enriquecimento sem causa, acrescidos de juros de mora, contados desde a data em que aquela obteve o seu enriquecimento injustificado até efectivo e integral pagamento.

Alegou para o efeito, e síntese, que tendo celebrado com a Ré, em 08 de Junho de 2004, um contrato-promessa de compra e venda de parcela a desanexar de um prédio rústico, e armazém nela implantado, com tradição imediata de ambos, não incluiu porém esse acordo os bens móveis que se encontravam no interior do dito armazém, afectos à actividade de construção civil, no valor global de € 188.781,19.

Mais alegou que, vindo o dito contrato-promessa a ser declarado nulo por decisão do Supremo Tribunal de Justiça, desse modo restabelecendo a situação jurídica existente antes da sua celebração, a Ré não lhe restituiu os bens móveis que se encontravam no interior do armazém, o que deveria ter feito há quatro anos, deles se tendo apropriado.

1.1.2. Regularmente citada, a (M. L.) contestou, pedindo que a acção fosse julgada totalmente improcedente, sendo ela própria absolvida dos pedidos formulados; e deduzindo reconvenção, pedindo que

· a Autora fosse condenada a restituir-lhe a quantia global de € 234.807,66 (sendo € 155.000,00 a título de benfeitorias feitas no armazém objecto do contrato-promessa declarado nulo, e € 79.807,66 a título de sinal antes pago no seu âmbito), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos.

Alegou para o efeito, em síntese, encontrarem-se prescritos os pedidos subsidiários formulados pela Autora, já que seria de três anos o prazo previsto para o exercício do direito de indemnização por ela exercido, quer fundado na responsabilidade extracontratual, quer no enriquecimento sem causa.

Mais alegou que, tendo pago à Autora, na data de celebração do contrato promessa de compra e venda de parcela de prédio rustico e armazém, havido entre ambas, a título de sinal, a quantia de € 79.807,66, estaria a mesma obrigada a restituí-la, por força da declaração de nulidade respectiva.

Alegou ainda a Ré já ter restituído à Autora os bens móveis que se encontravam no interior do armazém, impugnando porém que os que ali se encontravam inicialmente fossem os referidos por ela, bem como possuíssem o valor que lhes atribuiu; e tendo-o feito em finais de 2011, ser de considerar a passividade da Autora até à instauração destes autos (surgidos apenas depois dela própria a ter demandado em prévia acção executiva, para que lhe pagasse a quantia de € 79.807,66) como renúncia ao direito de compensação de créditos que agora aqui pretenderia exercer, nos termos do art. 853º, nº 2, in fine, do C.C..
Por fim, a Ré alegou ter realizado no dito armazém diversas obras (que discriminou), para permitir a sua utilização, qualificáveis como benfeitorias, no valor de € 155.000,00.

1.1.3. A Autora replicou, pedindo que se julgassem improcedentes a excepção peremptória de prescrição invocada pela Ré e o seu pedido reconvencional, e reiterando os seus pedidos iniciais.

Alegou para o efeito, em síntese, ser inexistente a prescrição de direitos invocada pela Ré, uma vez que o armazém onde se encontravam os bens móveis cuja entrega aqui reclama apenas lhe foi restituído no final de 2017, constituindo ainda a sua indevida retenção crime de abuso de confiança agravado, pelo que sempre haveria que considerar o seu mais longo prazo de prescrição, de dez anos.

A Autora impugnou todos os factos alegados pela Ré, em oposição àqueles outros por si aduzidos na petição inicial; e, relativamente ao crédito de € 155.000,00 invocado pela Ré a título de benfeitorias, arguiu a excepção de caso julgado (porque já teria sido objecto de prévia decisão judicial, que identificou), defendeu subsidiariamente ser o mesmo inexistente (por a detenção da Ré do dito armazém ser de má fé, quando realizou as invocadas benfeitorias, sendo as mesmas qualificáveis de voluptuárias), e actuar aquela em manifesto abuso de direito, na modalidade tu quoque (ao pretender prevalecer-se da nulidade de um contrato inválido, quando foi ela própria que lhe deu causa); e, relativamente ao crédito de € 79.807,66, arguiu a excepção de litispendência (por o seu pagamento já se encontrar a ser reclamado no âmbito da prévia acção executiva que lhe moveu).

1.1.4. Dispensada a realização de uma audiência prévia, foi proferido despacho, julgando não verificados os pressupostos substantivos de admissibilidade da reconvenção deduzida, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
A Autora M. L. aduziu reconvenção, peticionando que deve ser a Autora Reconvinda condenada à restituição à ré/reconvinte a quantia global de 234.807,66 €, (155.000,00 € a título de benfeitorias já supra referidas, e dadas como provadas conforme vem sendo alegado, acrescido do valor de 79.807,66 € valor a ser restituído à ré/reconvinte pela nulidade do contrato conforme ditou o acórdão do STJ), tudo acrescido de acrescido de juros de mora vencidos e vincendos.
**
Em conformidade com o preceituado no art.º 266.º/1 e 2 do Código de Processo Civil, o réu, em reconvenção, pode deduzir pedidos contra o autor:

(a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa;
(b) Quando o réu se propõe obter a compensação ou tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;
(c) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.

Nos termos do n.º 3 do citado artigo, não é admissível a reconvenção, quanto ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se a diferença provier do diverso valor dos pedidos ou o juiz a autorizar, nos termos previstos nos n.º 2 e 3 do art.º 37.º, do Código de Processo Civil, com as necessárias adaptações.

A reconvenção prefigura-se, assim, como uma contra-acção declarativa, condenatória constitutiva ou de mera apreciação, intentada em sede de contestação, em que o réu deduz uma defesa-ataque ou uma acção cruzada contra o autor, procedendo-se à ampliação do objecto do processo mediante uma cumulação sucessiva de pedidos (vd. Miguel Mesquita, Reconvenção e Excepção no Processo Civil, Almedina, 2009, p. 99 e seguintes, Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª edição, p. 322 e seguintes e J.P. Remédio Marques, Acção Declarativa À Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 3.ª edição, p. 468 e seguintes).
O exercício do ius reconveniendi estriba-se nos princípios da igualdade de armas e da economia processual, visando a resolução num processo dos litígios reciprocamente pendentes entres as partes (idem).

Noutro plano, a reconvenção não abrange o pedido intentado por um réu contra um co-réu, i.e., entre partes que se situam no mesmo pólo da relação processual, sendo que se afigura linearmente admissível a reconvenção subsidiária, ou seja, aquela que só deve ser apreciada se a defesa por impugnação improceder (vd. Miguel Mesquita, ob. cit., pp. 114-116 e Acórdãos do STJ de 18.4.2006, proc. n.º 06A873 e do TRP de 20.5.2004, proc. n.º 0432573, in www.dgsi.pt ).

Ademais, a admissibilidade da reconvenção postula a efectivação dos pressupostos de conexão material preceituados no n.º 2 do art.º 266.º, do Código de Processo Civil, o cumprimento do requisito processual previsto no n.º 3 do mesmo normativo e a efectivação dos pressupostos processuais gerais aplicáveis a qualquer acção.

Densificando o plasmado no art.º 266.º/2, do Código de Processo Civil, enuncia-se que o réu pode formular pedido contra o autor nos seguintes termos (vd. Antunes Varela, Miguel Mesquita e J.P. Remédio Marques, ob. cit.):

i) o pedido reconvencional pode fundar-se na mesma causa de pedir ou em parte da mesma causa de pedir;
ii) o pedido reconvencional pode fundar-se nos mesmos factos em que o réu fundou uma excepção peremptória, assente numa relação de prejudicialidade-dependência, ou com os quais indirectamente impugna os alegados na petição inicial;
iii) o pedido reconvencional pode ter como fundamento a compensação de créditos, nos termos e para os efeitos contemplados no art.º 848.º/1, do Código Civil;
iv) o pedido reconvencional pode fundar-se no direito a benfeitorias, aplicando-se à situações jurídicas em que o detentor da coisa (v.g., depositário, comodatário, locatário, mandatário) é demandado para entregar a mesma e pode, em sede reconvencional, impetrar a condenação do autor na indemnização das despesas ou de benfeitorias;
v) o pedido reconvencional pode visar o mesmo efeito jurídico a que tende o pedido aduzido pelo autor.

Cura-se de uma tipologia taxativa de modificações objectivas da instância por via de reconvenção, demandando-se a determinação da causa de pedir e do pedido subjacentes à acção intentada pelo Autor, os quais delimitam constitutivamente o objecto do processo (vd. Acórdão do TRL de 26.11.2013, proc. n.º 1331.11.0TVLSB-A.L1-7, in www.dgsi.pt).
Assinale-se que “(…) O pedido reconvencional tem de ter a sua génese … na causa de pedir do autor ou no qual se estriba a defesa. Emergindo da causa de pedir da acção, pode figurar-se a mesma causa de pedir (cf. Prof. Anselmo de Castro in "Direito Processual Civil Declaratório" I, 173) nos pedidos principal e cruzado. Se, porém, emerge do facto jurídico em que se estriba a defesa, a situação é buscar uma redução, modificação ou extinção do pedido principal” (vd. Acórdão do TRP de 22.2.2011, proc. n.º 1765/09.0TBVNG-A.P1, in www.dgsi.pt).

Ademais, conquanto a regra geral vigente no processo civil se reconduza à reconvenção facultativa, divisam-se situações residuais de reconvenção necessária por força da lei (vd. art.º 1551.º/1, do Código Civil) e fundamentos tangíveis de reconvenção necessária por força do caso julgado, em que o mesmo cobre o deduzível e o dedutível (vd. Miguel Mesquita, ob. cit., p. 416 e ss.).
No que se atem à admissibilidade da reconvenção em sede das acções de simples apreciação negativa, se o Réu alegar os factos constitutivos do direito impugnado ou negado pelo Autor, o reconhecimento do mesmo não decorre da mera improcedência da predita acção, postulando-se a dedução de um pedido de simples apreciação positiva, o qual reveste, assim, carácter autónomo, passível de ser enxertado na acção de simples apreciação negativa com o jaez de pedido reconvencional (vd. Acórdão do STJ de 23.1.2001, in CJ, 2001, tomo I, p. 77-80, Miguel Mesquita, ob. cit., p. 123-128 e Antunes Varela, ob. cit., p. 323).
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Na situação sub judice, afere-se que o objecto do processo se afigura enformado pela causa de pedir imanente à violação do direito de propriedade brandido pela Autora com referência aos bens móveis referenciados nos arts. 27.º) e 28.º) da petição inicial, a qual se indexa, umbilicalmente, aos pedidos principais/alternativos indicados nas als a) e b) do petitório (pretensão de restituição dos bens vs. pretensão de pagamento do valor dos mesmos) e aos pedidos subsidiários vertidos nas als. c) e d).

Ademais, perscrutando-se os pedidos reconvencionais, afere-se que os mesmos se estribam quer na nulidade do contrato-promessa indicado nos arts. 12.º) a 25.) da contestação (pretensão de restituição do sinal no valor de 79.807,66€), quer na alegada efectivação de benfeitorias no armazém referenciado no art.º 14.º) da contestação (pretensão indemnizatória no montante de 155.000,00€).
Sopesando-se o exposto, atesta-se que o petitório reconvencional extravasa manifestamente os factos jurídicos-constitutivos alegados na petição inicial, porquanto a Autora não aduz qualquer pretensão fundada no sobredito contrato-promessa ou decorrente da nulidade do mesmo, e tampouco formula qualquer pedido concernente ao armazém mencionado pela Ré como objecto de invocadas benfeitorias.

Enfatize-se que o objecto do antedito contrato-promessa conglobava, exclusivamente, a parcela de terreno com a área de 3.962 m2 a destacar do prédio rústico sito na freguesia de Chaves e descrito na CRP sob o n.º ..., incluindo o armazém supra indicado, inexistindo, assim, um nexo de afectação contratual aos bens móveis reivindicados pela Autora (vd. certidão do Acórdão do STJ de fls. 224-234).

Acresce que a reconvenção consignada pela Ré não intenta a exercitação de um direito de compensação, i.e., os pedidos reconvencionais são insusceptíveis de induzir a redução, modificação ou extinção das pretensões formuladas pela Autora.
Em decorrência, conclui-se que sucumbem os pressupostos de conexão material contemplados no art.º 266.º/2, do Código de Processo Civil.

Sublinhe-se, outrossim, que o pedido reconvencional atinente à restituição do sinal no valor de 79.807,66€ foi dirimido com força de caso julgado material em sede da acção de processo ordinário n.º 450/06.9TBCHV (vd. a certidão do Acórdão proferido pelo STJ - fls. 224-234).

Destarte, infere-se que a reconvenção é processualmente inadmissível, configurando uma excepção dilatória atípica ou inominada, que demanda, inexoravelmente, a absolvição dos Autores da instância reconvencional em convergência com o estatuído no art.º 576.º/1 e 2, do Código de Processo Civil.

Pelo supra exposto, julga-se a excepção dilatória de inadmissibilidade da reconvenção totalmente procedente e, consequentemente, absolve-se a Autora Maria da instância reconvencional, em consonância com o prescrito no art.º 576.º/1 e 2, do Código de Processo Civil.
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Custas imputáveis à Ré.
(…)»
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1.2. Recurso
1.2.1. Fundamentos

Inconformada com esta decisão, a (M. L.) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que fosse provido e se revogasse a decisão recorrida.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui reproduzidas ipsis verbis):

1 - A Autora intentou a presente acção contra a aqui R/recorrente peticionando, em suma que a Ré fosse condenada a: “restituir-lhe os bens móveis que se encontravam no interior do armazém à data da traditio do mesmo, ou bens e igual espécie, e que, até à data, ainda não lhe foram restituídos (o que não se admite), ou em alternativa que fosse a ré condenada a pagar à autora a quantia de 188.781,19 Euros, correspondentes ao valor pecuniário dos referidos bens» (o que não se admite), … “e ainda no caso de esta restituição não ser possível ser condenada a pagar à autora a título de indemnização o montante de 188.781,19 Euros, pela violação do alegado direito de propriedade” (o que não se admite) “à luz do instituto da responsabilidade civil extracontratual, ou subsidiariamente ser ré condenada a restituir à autora os bens que integravam o armazém à datada traditio do mesmo”, (o que não se admite) “ou bens semelhantes (o que não se admite), e não sendo tal restituição possível, ou, ainda, não sendo possível a restituição em espécie, o valor correspondente de 188.781,19 Euros, nos termos e ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa”, (o que não se admite).

2 - Ora, o que se encontra aqui em causa na presente demanda, (e que a Ré deduziu na sua contestação/reconvenção), não é só o alegado direito de propriedade da Autora sobre os bens que estariam dentro do armazém à data da traditio do mesmo, e sim, também o alegado enriquecimento sem causa da autora (que não se admite), pois o que está subjacente à relação entre as partes é um contrato promessa de compra e venda, que veio a ser declarado nulo, mormente a reposição da situação inicial antes do contrato, atenta a impossibilidade originária da prestação.

3 - Com efeito, a Ré deduziu a sua contestação/reconvenção alegando em suma que o armazém foi devolvido à Autora, bem como todos os bens que ali se encontravam, e que nada lhe deve, bem como vem alegar o seu direito de crédito à compensação peticionando que a Autora seja condenada a pagar-lhe a quantia de 155.000,00 € a título das obras que ali foram realizadas no dito armazém, incrementando o seu valor, acrescida da quantia de 79.807,66 € a que a Autora foi condenada a pagar à Ré a título de sinal e princípio de pagamento do contrato promessa de compra e venda que está na origem do presente litígio, o qual já teve decisão final e trânsito em julgado por acórdão do STJ, num total de 234.807,66 €.

4 - A Ré recorrente não deve nada à Autora recorrida, mormente a quantia que que vem sendo referida, a qual se impugnou veemente, na sua contestação/reconvenção, nem lhe pode restituir o que já restituiu, uma vez que já em finais de 2011 havia deixado o imóvel, nem teve qualquer responsabilidade extracontratual, ou enriquecimento sem causa. É a Autora recorrida quem deve à Ré recorrente a quantia de 79.807,66 €, aliás, tal como consta da decisão do acórdão do STJ. Se atentarmos, as obras que foram consideradas quer pelo Tribunal de 1ª Instância, quer pelo Tribunal da Relação, e são aquelas constantes do acórdão do STJ, e para as quais se remete, e que orçaram na quantia de 155.000,00 (cento e cinquenta e cinco mil euros).

Assim, a Autora é devedora à Ré da quantia total de 234.807,66 € (duzentos e trinta e quatro mil oitocentos e sete euros e sessenta e seis cêntimos, ou seja 155.000,00 € + 79.807,66 €), daí o que foi reclamado em sede de reconvenção, a qual não foi admitida e da qual agora se recorre.

5 - Ora, o Meritíssimo Juiz a quo fundamenta a inadmissibilidade do pedido reconvencional com base nesta alínea a), quando na verdade esta alínea a) deveria fundamentar a sua admissão, pois o que existiu verdadeiramente, e alegado pela R/Recorrente, foi a realização de obras de melhoramento, no dito armazém e já supra descritas, sendo que a autora teria um enriquecimento ilícito, pois iria beneficiar das benfeitorias já realizadas pela R/recorrente, tratando-se assim de um enriquecimento sem causa. Não estamos pois em domínios distintos, a causa de pedir é a mesma, existindo assim uma conexão perfeita entre aquilo que é requerido pela Autora e o que é demandado pela Ré no pedido reconvencional. Mas, mesmo que assim não fosse, mesmo que estivéssemos em domínios jurídicos distintos, em que as causas de pedir fossem diferentes, ainda seria de admitir o pedido reconvencional desde que houvesse conexão entre eles.

6 - A reconvenção é uma acção inserida noutra e por isso pode ser distinta a causa de pedir numa e noutra acção, tendo ainda assim de existir uma certa conexão entre ambas. O pedido reconvencional não, que se mover exactamente dentro da mesma causa de pedir invocada para a acção.

7 - Entende-se que com a alteração do preceito do novo CPC, o que o legislador quis foi precisamente dar a possibilidade ao réu de alegar um contracrédito em relação ao autor e que fosse possível fazê-lo dentro do mesmo processo, sem intentar nova acção judicial, ou seja, ao réu foi dada a possibilidade de invocar um contracrédito em relação ao autor e o reconhecimento desse contracrédito deverá ser feito em reconvenção, podendo o réu ver submetida à avaliação do juiz esse seu direito que invoca impedindo de se obter decisões em que se perdesse o efeito útil.

8 - Dada a alteração da redacção do CPC, parece que o legislador quis resolver a divergência acima mencionada, decorrendo agora que a compensação de créditos deve ser sempre concluída através de um pedido reconvencional, até porque se trata de uma reclamação autónoma que ultrapassa a mera defesa, mesmo quando não excede o montante do crédito peticionado pelo autor. A compensação deverá ser desencadeada em sede de reconvenção, mesmo quando o crédito pedido pelo réu não excede o do autor, desde que o processo onde é suscitada admita tal articulado, como é o caso da presente.

9 - Portanto, face ao exposto, deveria ter o Tribunal a quo decidido no sentido de admitir a reconvenção com fundamento na alínea a) e b) do artigo 266º, n.º 2 do CPC. No entanto, e mesmo que assim não se entendesse, sempre teria o Meritíssima Juiz a quo de admitir a reconvenção com o fundamento vertido na alínea c) do artigo 266º, n.º 2 do supra citado diploma legal.

10 - Salvo o devido respeito, o Meritíssimo Juiz a quo, não interpretou/aplicou correctamente, ao não admitir a reconvenção formulada pela Ré, violando assim as normas constantes dos artigos 266º, n.º 2, a), b) e c) e artigo 6º e 547º do CPC.
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1.2.2. Contra-alegações

A Autora (Maria) contra-alegou, pedindo que o recurso fosse julgado improcedente, mantendo-se o despacho recorrido.

Concluiu as suas contra-alegações da seguinte forma (aqui reproduzidas ipsis verbis):

I. O despacho a quo não merece a censura que lhe é assacada pela Apelante, devendo ser mantido qua tale, afigurando-se inatacável o mérito de julgamento.

II. Impõe-se, pois e sem mais, a manutenção da decisão recorrida, uma vez que a pretensão (e fundamento para a mesma) manifestada pela Apelante não poderia ser mais descabida e esvaziada de fundamento jurídico e fáctico.

DA (NÃO) IDENTIDADE DAS CAUSAS DE PEDIR:

III. Em sede de Despacho Saneador, o Tribunal a quo decidiu no sentido de que o petitório reconvencional extravasa manifestamente os factos jurídico-constitutivos alegados na petição inicial, ora Apelante, não aduziu qualquer pretensão fundada no contrato-promessa celebrado entre as partes ou decorrente da nulidade do mesmo,

IV. nem tão pouco a Autora (ora Apelada) formulou qualquer pedido concernente ao armazém onde invoca que realizou as benfeitorias,

V. pelo que só pôde a reconvenção ser julgada processualmente inadmissível.

VI. Ainda assim, veio a Apelante invocar, a título principal, que a causa de pedir dos presentes autos é a mesma do seu pedido reconvencional, pelo que deveria a Reconvenção ter sido admitida ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 266.º do Código de Processo Civil.

VII. Sucede que as pretensões deduzidas não se reportam ao mesmo facto jurídico, não existindo qualquer identidade de causas de pedir.

VIII. A causa de pedir que sustenta todos os pedidos da Apelada, principal e subsidiários, como decidiu e bem o douto Tribunal a quo, é a violação do seu direito de propriedade no que respeita aos bens móveis que indicou na Petição Inicial.

IX. Já assim não se verifica no que respeita ao pedido reconvencional peticionado pela Apelante…

X. Efectivamente, a causa de pedir de tal pedido reconvencional corresponde à nulidade do contrato-promessa declarada pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão datado de 16 Novembro de 2012, e bem assim à alegada efectivação de benfeitorias no armazém objecto do referido contrato (e nunca nos bens móveis que se encontravam no seu interior…).

XI. Conforme é assim possível constatar, os pedidos das partes assentam em causas de pedir distintas, não existindo qualquer conexão entre si.

XII. De facto, enquanto o facto jurídico que serve de fundamento à acção é a violação do direito de propriedade da Apelada no que aos bens móveis respeita,

XIII. o facto jurídico que serve de fundamento à defesa é a alegada entrega integral do armazém e de todo o equipamento que compunha o mesmo à data da celebração do contrato.

XIV. Fácil é assim de verificar que estamos perante factos jurídicos distintos e, por consequência, causas de pedir diferentes,

XV. pelo que a Reconvenção é totalmente inadmissível no presente caso com fundamento do disposto na alínea a) e b) do n.º 2 do artigo 266.º do Código de Processo Civil,

XVI. tendo, neste conspecto, decidido bem o douto Tribunal a quo quando julgou a mesma processualmente inadmissível.

DO NÃO EXERCÍCIO DE QUALQUER DIREITO DE COMPENSAÇÃO:

XVII. Noutro prisma, em momento algum na sua Contestação a Apelante invocou que com a dedução do pedido reconvencional pretendia que fosse operada qualquer compensação de créditos.

XVIII. Com efeito, o que a Apelante peticionou é que lhe fosse restituído o valor das benfeitorias que alegadamente realizou, bem como o montante devido pela nulidade do contrato, e nunca que fosse operada qualquer compensação de eventuais créditos!

XIX. A Apelante encontrava-se adstrita a invocar na sua Reconvenção todos os meios e fundamentos de que dispunha para reconvir, ficando impedida de reservar para momento ulterior do processo outros argumentos ou fundamentos para o seu pedido reconvencional, e muito menos pode esperar fazê-lo num momento em que improcederam os fundamentos fácticos e legais ab initio invocados.

XX. Em síntese, a Apelante em nenhum momento ao longo da sua Reconvenção arguiu a existência de créditos com o fito de invocar os efeitos da compensação de créditos, peticionando-a, limitando-se apenas a mencionar a existência (errada) de uma causa de pedir similar que sustentasse o seu pedido reconvencional de “benfeitorias” e “quantias devidas pela nulidade do contrato”.

XXI. Admitir-se agora que a Apelante se socorra agora de um pedido reconvencional sustentado numa compensação que não exerceu e da qual não se socorreu para fundamentar o seu pedido reconvencional em sede de Reconvenção, é permitir uma subversão de um dos princípios basilares do direito processual civil: o princípio da estabilidade da instância.

XXII. Permitir uma pronúncia oficiosa do juiz destinada à apreciação de pedidos que a parte oportunamente não formulou, significaria aplicar o princípio inquisitório para além dos limites consagrados na lei processual civil, violando as disposições dos artigos 264.º e 265.º, n.º 3 e alterando a razoabilidade e adequação entre os dois princípios (dispositivo e inquisitório) que, com o devido e magnânimo respeito, deve imperar no exercício do poder jurisdicional.

XXIII. Portanto, os argumentos ora utilizados pela Apelante nas suas Alegações – designadamente o pedido reconvencional sustentado na alínea c) do n.º 2 artigo 266.º C.P.C. maxime compensação de créditos - não poderão ser valorados, o que desde já se requer para todos os efeitos legais,

XXIV. uma vez que a Apelante não exerceu qualquer direito de compensação, seja de que forma fosse, na sua Reconvenção.

AINDA ASSIM, CASO SE ENTENDA ESTARMOS PERANTE CAUSAS DE PEDIR SIMILARES E/OU CASO SE ENTENDA TER SIDO EXERCIDO PELA APELANTE QUALQUER DIREITO DE COMPENSAÇÃO (O QUE APENAS POR MERO DEVER DE PATROCÍNIO SE CONCEBE):
DO CASO JULGADO DAS “BENFEITORIAS” E DA LITISPENDÊNCIA

DO VALOR PETICIONADO PELA NULIDADE DO CONTRATO:

XXV. A Apelante deduz o seu pedido reconvencional sustentando que a ora Apelada é alegadamente devedora à reconvinte da quantia total de 234.807,66 Euros (duzentos e trinta e quatro mil oitocentos e sete euros e sessenta e seis cêntimos) referente ao valor das alegadas benfeitorias (obras realizadas) acrescido do valor de 79.807,66 € (valor a ser restituído à ré/reconvinte pela nulidade do contrato conforme ditou o acórdão do STJ)”,.

XXVI. Acontece que não pode a ora Apelante olvidar, tal como certamente não descorou o douto Tribunal a quo e não esquecerão os Meritíssimos Juízes Desembargadores, de que estamos perante uma evidente situação de caso julgado,

XXVII. em que a Apelante peticiona o pagamento das alegadas benfeitorias realizadas no armazém objecto do contrato-promessa outorgado entre as partes, cuja exigibilidade já foi discutida e apreciada com força decisória final pelas entidades jurisdicionais, com força de caso julgado.

XXVIII. Essa questão foi já discutida [sim, ao contrário da relativa aos bens móveis em escrutínio nos presentes autos, esta questão foi mesmo discutida anteriormente] no processo judicial n.º 450/06.9TBCHV que correu termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Chaves e que culminou com a decisão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 15 de Novembro de 2012.

XXIX. Nestes autos a aqui Apelante peticionou o pagamento da quantia de 155.000,00 Euros a título de benfeitorias que alegadamente havia realizado no referido imóvel, tendo decidido o Tribunal de 1.ª instância que:

“Mas também em relação às supostas benfeitorias, não assiste razão à reconvinte.
(…)
Provando que o incumprimento do contrato ocorreu por culpa da segunda outorgante, ora ré, nada tem a reclamar da autora, nos termos do contrato livremente celebrado entre ambas.
Improcedente, pois, a reconvenção, na sua totalidade.”

XXX. Vindo esta decisão a ser confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto, e asseverada pelo Supremo Tribunal de Justiça que acabou por também decidir que:
“Quanto às benfeitorias, radicado o pedido do pagamento do seu valor no clausulado no contrato-promessa, considerando este nulo, não pode o referido pedido proceder”.

XXXI. O pedido apresentado pela Apelante nos presentes autos foi já alvo de uma decisão noutro processo judicial, culminando inclusive na sua improcedência.

XXXII. Portanto, o direito alegado pela Apelante no que ao pagamento das supostas benfeitorias respeita, foi já alvo de uma decisão judicial a qual, nos termos e pelos motivos supra expostos, deverá ser respeitada, não devendo o douto Tribunal a quo efectuar qualquer outro julgamento sobre esta questão.

XXXIII. É assim forçoso concluir-se que estamos perante uma situação em que se verifica a excepção dilatória do caso julgado, tomando em consideração a reconvenção apresentada pela Apelante, no que ao pagamento das alegadas benfeitorias realizadas respeita, mais não é do que uma mera repetição dos autos supra referidos.

EM PARALELO,
XXXIV. A título reconvencional a Apelante também peticiona a quantia de 79.807,66 Euros respeitante ao valor devido pela nulidade do contrato,

XXXV. Montante este cujo pagamento coercivo a Apelante se encontra actualmente a exigir na acção executiva que corre actualmente termos no Juízo de Execução de Chaves, sob o processo n.º 875/17.7T8CHV, mediante o Requerimento Executivo por si apresentado, e no qual figura como título executivo o já referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.

XXXVI. Verifica-se, pois, clara e grosseiramente a excepção do caso julgado e de litispendência, motivando dessa forma a absolvição da ora Apelada da instância reconvencional respeitante ao pedido de pagamento das alegadas benfeitorias e ao valor peticionado pela nulidade do contrato-promessa (79.807,66 Euros), nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 278.º e do n.º 2 do artigo 576.º do Código de Processo Civil o que desde já se invoca para todos os efeitos legais,

XXXVII. pelo que, uma vez mais, não merece daqui qualquer censura a decisão do Tribunal a quo de não considerar o pedido reconvencional da ora Apelante.

CONCLUINDO-SE,
XXXVIII. É axiomático que o despacho em sindicância não merece qualquer censura, devendo manter-se tal qual como foi proferido, mantendo-se, por consequência, a decisão de considerar inadmissível e totalmente improcedente a reconvenção apresentada pela Apelante, e consequentemente manter a absolvição da Apelada da instância reconvencional.

XXXIX. Não assistindo, portanto, qualquer razão à Apelante, não se podendo assim dar provimento à presente apelação, pelo que só poderá improceder o presente recurso, devendo manter-se intocável a decisão do Tribunal a quo.

XL. Estas são, pois, Excelentíssimos Senhores Desembargadores, as questões que aqui foram submetidas a douta e superior decisão, confiando a Apelada na ponderação, na experiência, no discernimento, e, sobretudo, no superior sentido de Justiça de Vossas Excelências que melhor ajuizarão do íntegral acerto do Despacho a quo.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, nº 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº 2, in fine, ambos do CPC).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

Mercê do exposto, 01 única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal:

· Questão única - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação do Direito, ao considerar não verificados os pressupostos substantivos de admissibilidade da reconvenção ?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para a apreciação da questão enunciada, encontram-se assentes (mercê do conteúdo dos próprios autos) os factos já discriminados em «I - RELATÓRIO», que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Reconvenção - Pressupostos de admissibilidade

Lê-se no art. 266º, nº 1 do C.P.C. que «o réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor».
«A reconvenção, consistindo num pedido deduzido em sentido inverso ao formulado pelo autor, constitui uma contra-acção que se cruza com a proposta pelo autor (que, no seu âmbito, é réu, enquanto o réu nela toma a posição de autor - respectivamente, reconvindo e reconvinte» (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2014, p. 517). Esta admissão de contra-pedidos é fundada em razões de economia processual, já que o réu escusa de propor uma acção autónoma para fazer valer a sua pretensão.

Contudo, exige-se para o efeito que haja uma conexão entre o primitivo objecto processual (da acção pendente) e o novo objecto processual (da reconvenção), já que «seria inadmissível que ao réu fosse lícito enxertar numa acção pendente uma outra acção que com ela não tivesse conexão alguma» (José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume III, Coimbra Editora, p. 99).
Compreende-se, por isso, que se leia no nº 2 do art. 266º citado que a «reconvenção é admissível» quando:

. «o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa» (al. a)
«Neste primeiro caso, o pedido reconvencional encontra a sua base de sustentação num acto jurídico que faz já parte do processo, pois foi para aí levado pelas alegações do autor, na petição, ou do próprio réu, na defesa» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2014, Almedina, p. 181).

A lei autoriza nesta hipótese a dedução de um pedido reconvencional fundado: «na mesma causa de pedir - ou em parte a mesma caus de pedir - que o pedido do autor»; e «nos mesmos factos - ou parcialmente os mesmos factos - em que o próprio réu funda uma excepção peremptória ou com os quais indirectamente impugna os alegados na petição inicial» (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2014, p. 517-8).

Precisa-se, porém, que se pressupõe naquela segunda hipótese que o facto invocado (como simultâneo fundamento da reconvenção), a verificar-se, produza «efeito defensivo útil», ou seja, tenha virtualidade para reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor (Jacinto Rodrigues Basto, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Almedina, p. 27).

Logo, «não basta a existência de forte conexão entre as causas de pedir da acção e da reconvenção para que possa entender-se que o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa» (Ac. do STJ, de 05.05.1994, César Marques, Processo nº 085413, in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem).

Por fim, dir-se-á que importa também distinguir entre o mero efeito natural e necessário da alegação defensional, que apenas tira proveito completo dessa mesma alegação (em que o pedido final de procedência das excepções alegadas não constituiu qualquer pedido reconvencional), e a verdadeira pretensão autónoma formulada contra ao autor (em que o pedido final de absolvição do réu pressupõe a prévia dedução de um pedido reconvencional).

. «o réu se propõe tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida» (al. b)

Este pedido reconvencional pode surgir numa acção de reivindicação de um prédio, onde o réu tenha feito obras de conservação (arts. 216º, 1273º e 1275º, todos do C.C.), numa acção de despejo, em cujo arrendado o arrendatário tenha realizado obras (art. 1046º do C.C., e art. 29º do NARAU), ou numa acção em que seja pedida a restituição de uma coisa depositada e o réu depositário pretenda que o autor depositante lhe pague as despesas de conservação da coisa (art. 1199º do C.C.).

. «o réu pretende obter o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor» (al. c)

Precisa-se que, operando-se a compensação de créditos por declaração de uma parte à outra (art. 848º do C.C.), e vigorando no processo civil o princípio do dispositivo (art. 3º, nº 1 do C.P.C.), o réu está obrigado a invocá-la expressamente, não podendo o Tribunal substituir-se-lhe para esse efeito (arts. 609º, nº 1 e 615º, nº 1, al. e), ambos do C.P.C.); e terá de o fazer com a sua contestação, por ser esse o momento processual próprio, sob pena de preclusão (arts. 583º, nº 1 e 588º, nº 1 e nº 2, ambos do C.P.C.).

Precisa-se ainda que, face à actual redacção do preceito em análise, se vem entendendo que, não estando o crédito do réu ainda reconhecido, este terá obrigatoriamente que operar a dita compensação por meio de reconvenção (e não, como antes se admitia, face ao art. 274º do anterior C.P.C., indiferentemente por meio de reconvenção ou da arguição de pertinente excepção), por se pretender sujeitar a sua pretensão à estrutura de uma causa.

(Neste sentido, Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2014, Almedina, Junho 2014, p. 186 e 187, ou Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Volume I, 2013, Almedina, Outubro de 2013, p. 236-7. Na jurisprudência, Ac. da RP, de 08.07.2015, Carlos Querido, Processo nº 19412/14.6YIPRT-A.P1, Ac. da RC, de 07.06.2016, Fonte Ramos, Processo nº 139381/13.2YIPRT.C1, ou Ac. da RG, de 27.04.2017, António Beça Pereira, Processo nº 10412/16.2YIPRT.G1. Em sentido contrário, José Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, p. 124-132, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2014, p. 520-522, ou Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Volume I, 2ª edição, Coimbra Editora, Novembro de 2015, p. 240-1, este último para a hipótese do réu ter escolhido deduzir a compensação do seu crédito por excepção por não pretender que o mesmo seja reconhecido com força de caso julgado.)

. «o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter» (al. d)
«Aqui, instaurada a ação pelo autor com determinado objectivo, o réu não só se defende do pedido, impugnando ou excepcionando, como, em manifesta atitude e contra-ataque, formula uma pretensão autónoma cujo conteúdo corresponde precisamente ao pedido do autor, se bem que em sentido inverso» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2014, Almedina, Junho 2014, p. 188).

Contudo, a «exigência de identidade do efeito não impede que um dos pedidos vise a sua constituição no processo, enquanto no outo se afirma que ele pré-existia, podendo, por exemplo, reconvir-se, em acção de reivindicação, com o pedido de execução específica do contrato-promessa de venda ao réu do bem reivindido. A identidade do efeito pode ser meramente parcial: o réu pede a declaração de propriedade sobre uma parte do bem reivindido ou o reconhecimento dum usufruto sobre ele, a anulação parcial do contrato ou a separação de pessoa e bens» (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2014, p. 519-520.

Referem-se, aqui, os pressupostos materiais de admissibilidade da reconvenção.

Contudo, exige-se ainda, relativamente à instância reconvencional, que se mostrem reunidos os devidos pressupostos processuais, nomeadamente a competência absoluta do tribunal (art. 93º do C.P.C.), a compatibilidade de forma de processo, à excepção da diferença resultante de diverso valor (art. 266º, nº 3, do C.P.C.), ou a legitimidade das partes (art. 266º, nº 4 e nº 5, do C.P.C.).
Acrescem a estes os demais e comuns pressupostos processuais, nomeadamente quanto à compatibilidade material dos pedidos deduzidos pelo réu (art. 555º do C.P.C.).
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4.2. Subsunção do caso concreto (ao Direito aplicável)

Concretizando, veio a Ré (M. L.) deduzir contra a Autora (Maria) pedido reconvencional, reclamando a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 79.807,66, a título de restituição do sinal pago em contrato promessa havido entre ambas, declarado nulo, e a quantia de € 155.000,00, a título de benfeitorias feitas no armazém objecto do mesmo acordo.

Ora, relativamente ao pedido reconvencional deduzido, dir-se-á que:

. não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção - no caso, a falta de restituição de bens móveis (material afecto à actividade de construção civil) que se encontravam dentro do armazém objecto do contrato promessa havido entre as partes, mas cuja alegada retenção e indevida apropriação por parte da Ré carece em absoluto de qualquer titulo, pretérito ou actual, que as legitime.

Logo, e tal como a própria Autora desde logo o alegou, a causa de pedir respectiva radica na violação do seu direito de propriedade ou, subsidiariamente, na responsabilidade civil extracontratual (pela prática, pela Ré, de um facto ilícito), ou no enriquecimento sem causa desta (fundando-se o dito enriquecimento obtido sem causa naquelas indevidas retenção e apropriação).

Ora, a Ré invoca, como fundamento do pedido reconvencional que deduziu, quer a nulidade do contrato promessa havido entre as partes (quanto ao pedido de pagamento, pela Autora, da quantia de € 79.807,66), quer a realização de benfeitorias no armazém cuja entrega ambas aceitam que já ocorreu (quanto ao pedido de pagamento, pela Autora, da quantia de € 155.000,00); e, com isso, radica-o em factos de todo estranhos à causa de pedir inicial dos autos (necessariamente entendida à luz da teoria da substanciação - art. 581º, nº 4 do C.P.C. -, como integrada pelos factos concretos que concretizam a norma ou o instituto jurídicos invocados, não valendo por isso a abstracta invocação do enriquecimento sem causa aduzido inicialmente pela Autora para, desacompanhado da factualidade que o consubstancia, justificar a compensação pretendida pela Ré, assente em distintos factos jurídicos por ela invocados para o efeito);

. não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa - no caso, a prescrição do alegado crédito da Autora, bem como a sua alegada inexistência, por impugnação dos factos que lhe estariam subjacentes (nomeadamente, por a Ré já lhe ter restituído todos os bens móveis que se encontrariam no interior do dito armazém, com diferente composição e valor, face aos invocados por aquela), o que é radicalmente distinto da invocação da nulidade de um contrato promessa de compra e venda havido entre ambas, do sinal pago no seu âmbito, e da sua alegada falta de restituição, bem como da realização de benfeitorias no armazém que o tinha por objecto (que, deste modo, exorbitam o núcleo dos factos daquela defesa).

Por outras palavras, a matéria que fundamenta o pedido reconvencional não consubstancia facto extintivo, impeditivo ou modificativo do direito invocado pela Autora: os alegados direitos da Ré à restituição do sinal pago no âmbito do contrato promessa declarado nulo, ou ao pagamento das benfeitorias que alegadamente realizou no armazém dele objecto, ainda que se provassem, seriam inidóneos a condicionarem, ou sequer a influenciarem, o desfecho da pretensão da Autora, isto é, o seu êxito ou falência (podendo aquele ocorrer de forma simultânea com o êxito da prova da reconvenção, lograda fazer pela Ré);

. não foi invocada qualquer compensação de créditos - isto é, pese embora a Ré tenha reclamado, em sede de reconvenção, a condenação da Autora no pagamento da quantia global de € 284.807,66 (€ 79.807,66 + € 155.000,00), certo é que em parte alguma da sua contestação/reconvenção afirmou que se propunha compensar o crédito invocado pela Autora (cuja inexistência negou) com aquele outro que lhe viesse a ser reconhecido.

Ora, operando-se necessariamente a compensação de créditos por declaração de uma parte à outra (art. 848º do C.C.), e vigorando no processo civil o princípio do dispositivo (art. 3º, nº 1 do C.P.C.), não pode o Tribunal substituir-se-lhe agora naquela sua não invocação (arts. 609º e 615ºnº 1, al. e), a contrario, ambos do C.P.C.);

. não reclama a Ré qualquer direito a eventuais benfeitorias, ou a despesas realizadas sobre coisa que aqui está a ser revindicada - que é exclusivamente, recorde-se, os bens móveis (afectos à actividade de construção civil) que se encontrariam no interior do armazém objecto do contrato promessa de compra e venda nulo, e não o dito armazém;

. e não pretende a Ré conseguir em seu benefício o mesmo efeito jurídico que a Autora se propõe obter - repete-se, exclusivamente a restituição dos ditos bens móveis, ou o pagamento do seu valor.

Logo, e tal como correctamente ajuizado pelo Tribunal a quo, mostra-se substantivamente infundada a reconvenção deduzida.
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Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela total improcedência do recurso de apelação interposto pela Ré (M. L.), confirmando-se integralmente o despacho recorrido.
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V - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Ré (M. L.), e, em consequência,

· em confirmar integralmente o despacho recorrido.
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Custas da apelação pela respectiva Recorrente (art. 527º, nº 1 do CPC).
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Guimarães, 10 de Julho de 2018.


Maria João Marques Pinto de Matos
José Alberto Martins Moreira Dias
António José Saúde Barroca Penha