Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DA ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
POSSE
USUCAPIÃO
ANIMUS POSSESSÓRIO
IGREJA DESACTIVADA
Sumário
I – No âmbito da acção de impugnação da escritura de justificação notarial instaurada pela Fábrica da Igreja de São Mateus da ..., competia à Ré Freguesia de São Mateus o ónus de alegar e provar nestes autos a efectiva verificação de todos os factos constitutivos da aquisição do imóvel em causa por via do instituto da usucapião que invocou na escritura de justificação notarial. II – A mera prática de actos de administração do imóvel, concretamente medidas de conservação e manutenção, não significa nem equivale a uma actuação desse agente (freguesia) - de natureza pública com obrigações de defesa dos interesses da freguesia respectiva – segundo a convicção e o propósito de agir como verdadeiro proprietário do bem deste modo por si intervencionado. III - A prática desses actos não afasta a consciência da Ré de que os mesmos pertencessem a terceira entidade – à Fábrica da Igreja de São Mateus da ... que, por uma questão de gestão dos seus meios económicos, descurou tal conservação, ou ao próprio Estado que, em tempos, fez inscrever em seu nome o imóvel. IV - A Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 7 de Maio de 1940 - alterada pelo “Protocolo Adicional” de 1975 que se limitou a eliminar o seu artigo 24º respeitante à renúncia dos cônjuges, no casamento canónico, de exercerem a faculdade civil de requererem o divórcio – estabeleceu no seu artigo 6º o reconhecimento, pelo Estado à Igreja Católica, em Portugal da propriedade dos bens que anteriormente lhe pertenciam e que estavam na posse do Estado, como templos, paços episcopais e residências paroquiais, salvo se se encontrassem qualificados como monumentos nacionais ou imóveis de interesse público. V – Não se pode afirmar que a Ré tenha agido, na prossecução dessas intervenções, que introduziram inegáveis benfeitorias num espaço histórico, cultural e emblemático da freguesia, no convencimento de ser sua proprietária, com exclusão de qualquer outra entidade. VI - Bem pelo contrário, as duas únicas entidades que poderiam ser vistas e consideradas, ao tempo da realização das intervenções dadas como provadas nos autos, como proprietárias do imóvel seriam a Fábrica da Igreja de São Mateus da ..., por via do funcionamento da regra constante do artigo 6º da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 7 de Maio de 1940; ou o Estado, titular inscrito na respectiva matriz predial, por força do não exercício pela A. do expediente técnico destinado à restituição daquele imóvel mediante o requerimento previsto no artigo 43º do Decreto-lei nº 30.615, de 25 de Julho. VII – Perante o patente desinteresse do Estado em relação a este antigo templo em ruínas, a prova produzida neste processo apenas permite concluir que a Ré quis encontrar um expediente prático e formal para, compensando-se, registar em seu nome, como proprietária, um bem no qual havia efectivamente investido tempo, meios e dinheiro, sem que exista prova segura de que, ao longo do período temporal exigido para a usucapião, alguma vez a Junta de Freguesia de S. Mateus houvesse verdadeiramente tido a séria e efectiva consciência, a real e firme convicção, de que este antigo templo para o rito católico, que tal como a esmagadora maioria das igrejas católicas deveria pertencer à Igreja Católica, afinal de contas era seu.
Texto Integral
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa ( 7ª Secção ).
I – RELATÓRIO.
Intentou a Fábrica da Igreja de São Mateus ...¸ representada pelo respectivo Pároco Teodoro M., residente na Rua Padre Luís .., em Angra do Heroísmo, a presente acção de impugnação de escritura de justificação notarial, contra a Freguesia de São Mateus da ..., com sede na Travessa da Junta, ..., em Angra do Heroísmo.
Alegou essencialmente:
Por escritura de justificação notarial outorgada no Cartório Notarial a 21 de Janeiro de 2011, os representantes da freguesia de São Mateus prestaram declarações onde afirmaram: “Que a freguesia de São Mateus é também dona e legítima possuidora do prédio urbano composto por Igreja Velha abandonada, com duzentos e sessenta e seis metros quadrados, cemitério com novecentos e sessenta e oito metros quadrados, e adro com mil quatrocentos e cinquenta e seis metros quadrados, num total de dois mil seiscentos e noventa metros quadrados, que confronta, de Norte, com Manuel S., de Sul, com Caminho Velho, de Nascente, com Junta de Freguesia, e de Ponte, com António S., localizado no Terreiro, freguesia de S. Mateus da ..., concelho de Angra do Heroísmo, inscrito na respectiva matriz, no Serviço de Finanças de Angra do Heroísmo, sob o artigo 2..., valor patrimonial de € 0,47, ao qual se atribui igual valor. Que este prédio foi ocupado pela Freguesia em data que não se sabe precisar, por volta do ano de mil setecentos e sessenta. Que, assim sendo, a possuidora não dispõe de qualquer título formal para registar os imóveis na Conservatória, nem tendo forma de os obter. Que, assim, desde aquela altura, e sem interrupção, a justificante entrou na posse dos identificados prédios, praticando reiteradamente, com publicidade, os actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, usando os imóveis de acordo com os seus identificados destinos, usufruindo de todas as suas utilidades e suportando os respectivos impostos e encargos, tendo adquirido e mantido a sua posse sem a menor oposição de quem quer que fosse e com conhecimento de toda a gente, agindo sempre forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, tendo por isso uma posse pública, pacífica, contínua e de boa fé, que dura há mais de vinte anos, pelo que adquiriu por usucapião, não tendo, todavia, dado o modo de aquisição, documentos suficientes que lhe permitam fazer prova do seu direito de propriedade. Que, desta forma, os primeiros outorgantes justificam a aquisição dos aludidos imóveis, a favor da freguesia de São Mateus da ..., por usucapião.”.
Ora, a chamada Igreja Velha da freguesia de São Mateus, pertence à paróquia de São Mateus desde remotos tempos.
Não sendo verdade que a Ré a tenha ocupado, nem antes, nem depois de 1760.
A Igreja de São Mateus foi concluída em 1700, sendo igreja paroquial até 28 de Agosto de 1893, data em que um furacão a atingiu e destelhou, levando a que a vila se deslocasse mais para o interior, onde se construiu a nova igreja.
Por razões de diversa ordem, a paróquia não procedeu à reconstrução da Igreja, não tendo, contudo, por esse facto esta deixado de lhe pertencer, e não tendo também ela perdido a sua natureza de Igreja, de imóvel, prédio urbano, aliás, como é descrito na escritura de justificação.
Alegou a Ré, como causa de aquisição da Igreja de São Mateus, a ocupação.
Ora, a ocupação é um dos modos de aquisição da propriedade e vem regulada nos artigos 1318º a 1324º, do Código Civil, respeitando apenas a coisa móveis ou animais, que, em consequência, cai no domínio da ilicitude, constituindo, assim, acção praticada ao arrepio da lei, e como tal, não são meios legítimos de adquirir.
De resto, já era esta a posição da lei na vigência do Código de Seabra.
Do explanado pelos representantes da Ré nas declarações da Sr.ª Notária não resulta, nem podia resultar porque não exercidos, a existência de quaisquer actos materiais susceptíveis de estabelecer uma relação possessória entre a Ré, através dos seus representantes, e a igreja em causa.
Com efeito, não é verdade que a justificante tenha usado o imóvel em causa de acordo com o seu identificado destino.
A Ré não celebrou missa na igreja, não realizou baptizados, não fez catequese, não praticou no prédio em causa, nem podia praticar ética, legal ou constitucionalmente, quaisquer actos de conteúdo religioso e/ou apostólico, e como tal não pode alegar que usufruiu de todas as suas utilidades.
Tal como é falso também que tenha suportado os respectivos impostos e encargos, pois o prédio está isento de imposto.
A justificante nunca adquiriu nem manteve qualquer posse sobre o imóvel e a Autora nunca teve necessidade de se opor a quaisquer actos da Ré que nunca ofereceu perigo de se querer apropriar da Igreja Velha, sendo, por isso, uma enormidade o alegado pela justificante ao descrever como tendo ocorrido, que não ocorreram, os caracteres da posse que podem levar à usucapião.
Aliás, é facto público e notório, conhecido na freguesia de não só, que a Igreja Velha é património da Igreja, pelo que, só com imponderação se poderia dizer que a Ré alegou exercer sobre ela, pois que não exerce nem nunca exerceu, os direitos próprios de proprietário.
Na verdade, e bem na substância, o que agora se pretendeu e pretende fazer mais não é do que repetir o confisco de bens da Igreja Católica realizado de forma global em inícios do século passado pelos Governos da I República, só que agora efectuado por forma subtil e ardilosa, recorrendo a expedientes legalistas e formais, para camuflar a flagrante ilegitimidade.
Conclui pedindo ao Tribunal que, julgando pela sua procedência, decida:
a) ser considerado impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura de 21 de Janeiro de 2011, referente à invocada aquisição pela Ré, por usucapião, do prédio urbano inscrito no artigo 231º da freguesia de São Mateus da ..., Concelho de Angra do Heroísmo;
b) declarar ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, por forma a que não se possa através dela registar quaisquer direitos sobre o prédio acima referido;
c) ordene a imediata comunicação à Notária Joana Pinheiro, com cartório notarial na Rua de Jesus, n.º 30, 9760-748, freguesia de Santa Cruz, Praia da Vitória, a pendência da presente acção;
d) ordene o cancelamento de eventual e qualquer registo, se entretanto feito, operado com base do documento impugnado.
Regular e pessoalmente citada, a Ré deduziu contestação.
Alegou essencialmente:
A chamada «igreja velha» foi o 2º templo paroquial da freguesia de S. Mateus, construído no século XVIII para substituir a anterior, arruinado pelas investidas do mar.
A 1ª igreja, já referida por Gaspar Frutuoso nas «Saudades da Terra» (VI, cap. III, p. 33), tinha, como a 2ª, a frente sobre a costa marítima, ficando-lhe a capela-mor implantada onde hoje está o adro da que lhe sucedeu, e que, por seu turno, em 23 de Agosto de 1893, muito danificada por uma tempestade com ventos ciclónicos, ficou inutilizável para o culto, ameaçando ruína e com o caminho de acesso ao respectivo adro parcialmente destruído.
Esta 2ª «igreja velha», afastada do mar apenas mais uns metros do que a anterior, foi substituída em 1911 pelo actual templo, em construção desde 1895, já distante daquele lugar e sem os seus riscos (Pedro de Merelim, «As 18 paróquias de Angra – sumário histórico», Angra, 1974, pp. 311-318).
A paróquia não recuperou a igreja velha depois de destelhada pelo ciclone ali referido.
Manteve porém na sua posse até a abandonar por lhe haver perdido a propriedade por força da «Lei da Separação da Igreja do Estado», de 20 de Abril de 1911.
Esta lei, decretada pelo Governo Provisório da República e ressalvada pelo art. 80º da Constituição de 1911, confiscou para o Estado português «todas as catedrais, igrejas e capelas, bens mobiliários e imobiliários que têm sido ou se destinavam a ser aplicados ao culto público da religião católica e à sustentação dos ministros dessa religião e de outros funcionários, empregados e serventuários dela, incluindo as respectivas benfeitorias e até os edifícios novos que substituíram os antigos» (art. 62º).
A igreja nova de S. Mateus abriu ao culto em 4 de Junho de 1911, e 20 dias depois transferiram-se para ela as imagens e o mais que ainda se encontrava na «igreja velha» (P. Merelim, op. cit., p. 317).
Daí por diante, o que restava da «igreja velha» continuou a degradar-se por acção do tempo e falta de manutenção, caindo-lhe o tecto, depois parte da torre, e até desaparecendo a porta que lhe fechava uma saída lateral para o cemitério.
O Estado nada fez para conservar os restos do antigo templo, e apenas 27 anos volvidos promoveu a respectiva inscrição da matriz a seu favor (como «igreja velha abandonada»), juntamente com o adro e o cemitério.
O acesso a este cemitério continuou desde a Lei da Separação a fazer-se por aquele adro, com risco para os cortejos fúnebres, até que, em 1961 a Junta de Freguesia de S. Mateus decidir criar-lhe um acesso menos perigoso por uma entrada a abrir no seu muro oriental depois fechada por um portão de madeira, adquirindo também um terreno contíguo a esse muro para através dele se alcançar directamente a estrada.
Em 1973, a Junta efectuou várias obras de arranjo do cemitério, incluindo um portão de ferro para aquela entrada do lado oriental.
E um arranjo no pavimento de pedra da igreja velha.
Em 1980, a Junta recuperou a chamada «dispensa da igreja velha» a ela anexa do lado oriental, levantando-lhe paredes, pondo-lhe tecto e equipando-a, sempre a expensas suas, com objectos de culto para permitir encomendações segundo o culto católico.
Presentemente, construída que foi pela Junta de Freguesia uma nova Casa Mortuária, tal dependência passou a depósito de material do cemitério.
Face ao abandono a que a «igreja velha» estava votada desde 1911, foi a Junta a única entidade que cuidou da sua preservação, desde logo e gradualmente, restaurando-lhe a porta para o adro (que passou a ser fechada com chave em seu poder), consolidando as paredes subsistentes, limpando o espaço interior, caiando anualmente os muros que subsistiam.
Manteve, a partir de 1984, contactos com a Direcção Regional da Cultura, sob cuja orientação promoveu um projecto de recuperação e em 1995, obtido o subsídio governamental para o «restauro da igreja velha», iniciou as respectivas obras com arranjo do adro e recuperação do relógio de sol e da torre sineira.
Assim, e visto o Estado, único titular da propriedade deste imóvel desde 1911, nunca lhe haver dado qualquer uso e nada fazer para manter a sua ruína, evitando-lhe a completa degradação (docs. 16 a 18),
A Junta da Freguesia R. é que, não «por volta de 1760», mas seguramente desde pelo menos 1961, passou a exercer a posse, como coisa sua sobre o que dele restava como mera dependência do cemitério, para o qual abria.
Pelo que a R. foi, também e desde há pelo menos 50 anos, reconhecida por todos e sem discrepância de ninguém como dona da «igreja velha».
Daí haver sido solicitada autorização à respectiva Junta para, no seu espaço a céu aberto e depois das obras de recuperação de 1994/96, se realizarem dois casamentos.
A Junta também autorizou e patrocinou a realização no mesmo espaço de eventos culturais públicos, nomeadamente uma exposição de fotografia em 1999 e um concerto nocturno de música clássica em 2001.
Bem como autorizou que no seu espaço houvesse festas de aniversário.
Nenhuma entidade canónica, mormente a A., exerceu o direito à restituição daquele imóvel mediante o requerimento referido no artigo 43º do DL 30.615 de 25 de Julho.
Assim, abandonada pela Igreja desde a Lei da Separação, e a partir daí pelo Estado, que nunca dela cuidou ou lhe deu qualquer uso, a ruína que é a chamada «igreja velha de S. Mateus» tem sido como tal possuída e conservada pela R.
E considerada desde há décadas mera dependência do cemitério que, antes da Lei da Separação, era dependência dela, e hoje pertence à freguesia.
Os factos alegados caracterizam uma posse em nome próprio, pública, pacífica, contínua e de boa fé por mais de 30 anos, do espaço físico correspondente ao antigo templo em causa neste processo bem como do cemitério a ele anexo.
E confirmam basicamente a base factual da justificação impugnada nos autos.
Devidamente notificada, a Autora respondeu às excepções invocadas, pugnando pela sua não verificação.
Procedeu-se ao saneamento dos autos conforme fls. 136 a 139.
Realizou-se audiência de julgamento.
Foi proferida sentença que julgou a presente acção procedente e, em consequência, decidiu:
a) Declarar a ineficácia da escritura de justificação notarial outorgada no dia 21 de Janeiro de 2011 no Cartório Notarial perante a notária Joana Pinheiro, lavrada a fls. 9 a 11 do Livro 115 J, e que titulou a aquisição pela Ré, por usucapião, do prédio urbano composto por Igreja Velha abandonada, com duzentos e sessenta e seis metros quadrados, cemitério com novecentos e sessenta e oito metros quadrados, e adro com mil quatrocentos e cinquenta e seis metros quadrados, num total de dois mil seiscentos e noventa metros quadrados, que confronta, de Norte, com Manuel S., de Sul, com Caminho Velho, de Nascente, com Junta de Freguesia, e de Ponte, com António S., localizado no Terreiro, freguesia de S. Mateus da ..., concelho de Angra do Heroísmo, inscrito na respectiva matriz, no Serviço de Finanças de Angra do Heroísmo, sob o artigo 231º;
b) Determinar o cancelamento do registo de aquisição por usucapião do imóvel acima identificado a favor da Ré, e todos os que, com base nele, foram realizados (cfr. fls. 157 a 190).
O R. apresentou recurso desta decisão, o qual foi admitido como de apelação (cfr. fls. 217).
Juntas as competentes alegações, a fls. 193 a 199, formulou a R. apelante as seguintes conclusões:
1ª – O prédio composto de «Igreja Velha abandonada com 266 m2, cemitério com 968 m2 e adro com 1456 m2», inscrito sob o art. 231 na matriz urbana de S. Mateus da ..., no concelho de Angra do Heroísmo, foi subtraído à Igreja Católica portuguesa e nacionalizado pelo artigo 62º da chamada Lei da Separação (decreto com força de lei de 20 de Abril de 1911).
2ª – Nacionalizado por este decreto foi todo o património da Igreja católica em Portugal, formado por bens mobiliários, destinados, no presente de então ou no seu futuro, ao culto público da religião católica e à sustentação dos ministros dessa religião e de outros funcionários ou serventuários dela, tendo os efeitos desta medida vindo a ser atenuados pela Concordata entre Portugal e a Santa Sé de 7 de Maio de 1940, que reconheceu à Igreja católica a propriedade dos bens que, afectos ao culto da religião católica, anteriormente lhe pertenciam, salvo os que nessa data se achassem aplicados a serviços públicos ou classificados como monumentos nacionais ou imóveis de interesse público.
3ª – Esses bens nacionalizados em 1911 ficaram declarados, nos expressos termos daquele artigo 62º, pertença e propriedade do Estado e dos Corpos Administrativos, designação ao tempo usada para as hoje chamadas Autarquias Locais.
4ª – No território da recorrente, autarquia que é segundo a sua designação actual – se situavam e situam aquela «Igreja Velha», o seu adro e o cemitério anexo, formando um conjunto – como tal reconhecido pela própria autora no artigo 14º da sua resposta à contestação;
5ª – E sendo que o cemitério, antes dependência da igreja, já então era considerado cemitério paroquial pelos arts. 167º, nº 9, e 171º, nº 4, do Código Administrativo de 1868, vigente por força do decreto do Governo Provisório da República de 13 de Outubro de 1910.
6ª – Inutilizada para o culto na sequência de danos infligidos pela tempestade de 23 de Agosto de 1893, a igreja paroquial de São Mateus da ... – a segunda que esta freguesia teve – privada de quaisquer cuidados de reparação e conservação, ficou exposta a intempéries e vandalizações que depressa a reduziram a uma ruína.
7ª – Da qual, até à Lei da Separação, não cuidou a Igreja Católica, quer através da Diocese, quer da fábrica da Paróquia; nem, desde a vigência dessa lei, cuidou o Estado, totalmente alheado da mesma, cuja degradação avançava a passos largos.
8ª – Cuidou, sim e apenas, a R. recorrente, desde logo e prioritariamente tratando do cemitério e administrando-o como seu (que era) e, com o tempo, tomando medidas de preservação do que restava dessa igreja paroquial, de modo a impedir-lhe a progressiva degradação e mantendo-o até ao presente como ruina de valor histórico, cultural e estimativo para a freguesia, como dependência que continua a ser do cemitério, e espaço a céu aberto para eventos culturais.
9ª – Estes cuidados eram e são próprios de possuidor e administrador do domínio público da freguesia, que a recorrente naturalmente assumiu, tanto da manutenção e melhoria do cemitério como em cuidados de conservação dos restos do antigo templo, já substituído por outro recém-construído em 1911, e nos usos – sempre públicos – que foi dando: ao cemitério para os fins de inumação que lhe eram e são próprios, e à ruína, como espaço de memória histórica e para fins culturais.
10ª – Com isto, a recorrente agiu no pleno exercício das suas funções, no interesse e em benefício público, com acatamento e aprazimento geral.
11ª – Estes factos definem relativamente ao prédio com o art. 231 da matriz urbana de S. Mateus da ..., tanto na parte que é o cemitério da freguesia, como na que é a ruína da antiga igreja desafectada do culto religioso há mais de 100 anos, uma posse em nome próprio, de acordo com, e na medida da, utilidade que uma ou outra conjunturalmente apresentam, e tão pacífica que apenas em Março de 2011, com o início do presente processo suscitou oposição.
12ª – A conveniência de dispor de título de propriedade relativamente àquele prédio, mormente para acesso a apoios públicos a melhoramentos e medidas de conservação, levaram a Junta, como órgão administrativo da recorrente, a verificar no Serviço de Finanças o que aí constava quanto à sua propriedade, descobrindo então que o mesmo fora, em 1938, inscrito na matriz sob o art. 2... e como pertença do Estado.
13ª – Tal inscrição era indevida, por o Estado nada ter feito para dar qualquer uso que o àquele prédio, ou proteger e conservar os restos físicos da antiga igreja paroquial, entretanto reduzida a ruína, limitando-se, nas antevésperas da Concordata de 1940, a promover a inscrição na matriz – onde se achava omisso – o prédio que descreveu como «igreja velha abandonada» com o seu adro e o cemitério subjacente.
14ª – Nenhuma entidade canónica, exercera o direito que tivesse à restituição desse prédio mediante o requerimento referido nos arts. 6º da Concordata de 1940 e 43º do DL 30 615 de 25 de Julho desse ano – e, fora do prazo para esse fim prescrito, decorreria um século sobre a Lei da Separação e 71 anos sobre aquela Concordata para a A recorrida vir pôr em causa, com argumentos que a sentença recorrida acolheu a aqui se procurou rebater, a propriedade da recorrente cuja consistência a escritura de justificação se limitara a reconfirmar.
15º – A aquisição da propriedade por usucapião, ligada à intenção, manifesta no caso sub judice, de destinar a coisa possuída a usos públicos, como vem sucedendo ao prédio em causa, é meio idóneo para suprir a afectação expressa e conferir carácter dominial à coisa possuída, conforme a passagem citada (supra, nº 20) de pág. 924 do «Manual de Direito Administrativo».
16ª – E esses usos têm sido correntes: quanto ao cemitério, pelo menos desde a Lei da Separação; quanto à ruína do que fora a 2ª igreja paroquial de S. Mateus, pelo menos desde a intervenção conservatória de 1961 (supra 2, J).
17. A sentença recorrida violou, assim, os artigos 66º do decreto com força de lei de 20 de Abril de 1911, 202º, nº 2, 1266º, 1268º, 1287º, 1289º, 1294º e 1296º do Código Civil
18ª – Pelo que deve ser revogada, absolvendo-se a recorrente do pedido, com as consequências legais.
Contra-alegou a Ré., pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.
II – FACTOS PROVADOS.
A. A chamada «igreja velha» foi o segundo templo paroquial da freguesia de S. Mateus, construído no século XVIII para substituir a anterior, arruinado pelas investidas do mar.
B. A primeira igreja tinha, como a segunda, a frente sobre a costa marítima, ficando-lhe a capela-mor implantada onde hoje está o adro da que lhe sucedeu.
C. E que, por seu turno, em 23 de Agosto de 1893, muito danificada por uma tempestade com ventos ciclónicos, ficou inutilizável para o culto, ameaçando ruína e com o caminho de acesso ao respectivo adro parcialmente destruído.
D. Esta 2ª «igreja velha» foi substituída em 1911 pelo actual templo, em construção desde 1895.
E. A paróquia não recuperou a igreja velha depois de destelhada pelo ciclone ali referido.
F. A igreja nova de S. Mateus abriu ao culto em 4 de Junho de 1911, e 20 dias depois transferiram-se para ela as imagens e o mais que ainda se encontrava na «igreja velha».
G. Daí por diante, o que restava da «igreja velha» continuou a degradar-se por acção do tempo e falta de manutenção, caindo-lhe o tecto, depois parte da torre, e até desaparecendo a porta que lhe fechava uma saída lateral para o cemitério.
H. O Estado nada fez para conservar os restos do antigo templo, e apenas 27 anos volvidos promoveu a respectiva inscrição da matriz a seu favor (como «igreja velha abandonada»), juntamente com o adro e o cemitério.
I. O acesso a este cemitério continuou, desde 1911, a fazer-se por aquele adro, com risco para os cortejos fúnebres.
J. Até que, em 1961 a Junta de Freguesia de S. Mateus decidiu criar-lhe um acesso menos perigoso por uma entrada a abrir no seu muro oriental depois fechada por um portão de madeira.
L. Adquirindo, também, um terreno contíguo a esse muro para através dele se alcançar directamente a estrada.
M. Em 1973, a Junta efectuou várias obras de arranjo do cemitério, incluindo um portão de ferro para aquela entrada do lado oriental.
N. E um arranjo no pavimento de pedra da igreja velha.
O. Em 1980, a Junta recuperou a chamada «dispensa da igreja velha», a ela anexa do lado oriental, levantando-lhe paredes, pondo-lhe tecto e equipando-a, sempre a expensas suas, com objectos de culto para permitir encomendações segundo o culto católico.
P. Presentemente, construída que foi pela Junta de Freguesia uma nova Casa Mortuária, tal dependência passou a depósito de material do cemitério.
Q. Foi a Junta a única entidade que cuidou da sua preservação.
R. Desde logo e gradualmente, restaurando-lhe a porta para o adro (que passou a ser fechada com chave também em seu poder), consolidando as paredes subsistentes, limpando o espaço interior, caiando anualmente os muros que subsistiam.
M. Manteve, a partir de 1984, contactos com a Direcção Regional da Cultura, sob cuja orientação promoveu um projecto de recuperação.
N. Em 1995, obtido o subsídio governamental para o «restauro da igreja velha», iniciou as respectivas obras com arranjo do adro e recuperação do relógio de sol e da torre sineira.
O. O Estado nunca lhe deu qualquer uso e nada fez para manter a sua ruína, evitando-lhe a completa degradação.
P. A Junta também autorizou e patrocinou a realização no mesmo espaço de eventos culturais públicos, nomeadamente uma exposição de fotografia em 1999 e um concerto nocturno de música clássica em 2001.
Q. Bem como autorizou que no seu espaço houvesse festas de aniversário.
R. Nenhuma entidade canónica, mormente a A., exerceu o direito à restituição daquele imóvel mediante o requerimento referido no art. 43º do DL 30 615 de 25 de Julho.
Factos Não Provados
O Tribunal a quo considerou como não provados os seguintes factos:
1. A Igreja abandonou a “Igreja Velha”.
2. A Junta da Freguesia R. é que, desde pelo menos 1961, passou a exercer a posse, como coisa sua sobre o que dele restava como mera dependência do cemitério, para o qual abria.
3. Pelo que a R. foi, também e desde há pelo menos 50 anos, reconhecida por todos e sem discrepância de ninguém como dona da «igreja velha».
4. Daí haver sido solicitada autorização à respectiva Junta para, no seu espaço a céu aberto e depois das obras de recuperação de 1994/96, se realizarem dois casamentos.
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.
São as seguintes as questões jurídicas que importa dilucidar:
Falta de prova dos factos constitutivos do direito de propriedade adquirido por usucapião pela Ré Freguesia de São Mateus sobre o imóvel descrito na escritura de justificação notarial. Animus possessório. Igreja desactivada. Passemos à sua análise:
A presente acção reveste a natureza de acção de impugnação de escritura de justificação notarial em que foi interveniente a ora Ré.
Este tipo de escritura constitui, como se sabe, um expediente formal destinado à regularização da situação cadastral de imóveis, face à desconformidade entre o que consta do respectivo registo e a titularidade de direitos que haja ocorrido, originariamente, por via do instituto da usucapião em favor do interveniente no acto.
Trata-se, assim, de uma justificação de direitos em função da declaração unilateral do respectivo interessado, o que, como se compreende, comporta sempre naturais riscos que a lei tenta prevenir por via da possibilidade de instauração da acção de impugnação da justificação notarial, a qual, neste contexto, reveste a natureza de acção de simples apreciação negativa.
Em obediência e conformidade com o acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2008, de 4 de Dezembro de 2007 (relator Azevedo Ramos), publicado no Diário da República nº 63, Iª Série, de 31 de Março de 2008: “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116º, nº 1, do Código de Registo Predial e 89º e 101º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem puderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7º do Código de Registo Predial”.
Assim sendo, competia à Ré Freguesia de São Mateus o ónus de alegar e provar nestes autos a efectiva verificação de todos os factos constitutivos da aquisição em seu favor do imóvel em causa, por via do instituto da usucapião que invocou na escritura de justificação notarial, nos termos gerais do artigo 1287º do Código Civil.
Em 1ª instância, considerou o juiz a quo que a Ré não havia logrado produzir tal prova.
Nas suas conclusões de recurso, sustenta a apelante que:
O facto ter cuidado da igreja paroquial de S. Mateus da ..., tratando prioritariamente do cemitério, que administrou, e assumindo medidas de preservação do que restava da igreja, impedindo a progressiva degradação e mantendo-a como dependência do cemitério, define relativamente ao prédio com o art. 231 da matriz urbana de S. Mateus da ..., tanto na parte que é o cemitério da freguesia, como na que é a ruína da antiga igreja desafectada do culto religioso há mais de 100 anos, uma posse em nome próprio, de acordo com, e na medida da, utilidade que uma ou outra conjunturalmente apresentam, e tão pacífica que apenas em Março de 2011, com o início do presente processo suscitou oposição.
Reconheceu, ainda, a Ré que não dispunha de título de propriedade relativamente ao prédio, descobrindo que o mesmo se encontrava, desde 1938, inscrito na matriz sob o artigo 201 como pertencendo ao Estado.
Face ao desinteresse do Estado e das entidades canónicas em cuidar do imóvel, os actos praticados pela ora recorrente, desde pelo menos a Lei de Separação da Igreja e do Estado de 20 de Abril de 1911 quanto ao cemitério e desde, pelo menos, a intervenção conservatória de 1961, relativamente à Igreja de São Mateus, possibilitam-lhe a respectiva aquisição do direito de propriedade sobre tais bens por via da usucapião. Vejamos:
Cumpre, antes de mais, salientar que a ora apelante entendeu não proceder à impugnação da decisão de facto proferida pelo juiz a quo, em conformidade com as especiais exigências expressas no artigo 640º do Código de Processo Civil.
O que equivale a dizer que a decisão de facto fixada em 1ª instância não é modificável, constituindo pois a única materialidade sobre a qual incidirá o inerente e necessário enquadramento jurídico.
Assim sendo, haverá que tomar em consideração que, contrariamente ao alegado pela Ré Junta de Freguesia, não se encontra provado que:
1. A Igreja tenha abandonado a “Igreja Velha”.
2. A Junta da Freguesia R. tenha, desde pelo menos 1961, passado a exercer a posse, como coisa sua, sobre o que dele restava como mera dependência do cemitério, para o qual abria.
3. Pelo que a R. tenha sido, também e desde há pelo menos 50 anos, reconhecida por todos e sem discrepância de ninguém como dona da «igreja velha»,
4. Daí haver sido solicitada autorização à respectiva Junta para, no seu espaço a céu aberto e depois das obras de recuperação de 1994/96, se realizarem dois casamentos.
Ao invés, apenas se encontra provado a este respeito que:
O Estado nada fez para conservar os restos do antigo templo, e apenas 27 anos volvidos promoveu a respectiva inscrição da matriz a seu favor (como «igreja velha abandonada»), juntamente com o adro e o cemitério.
O acesso ao cemitério continuou, desde 1911, a fazer-se por aquele adro, com risco para os cortejos fúnebres.
Em 1961 a Junta de Freguesia de S. Mateus decidiu criar-lhe um acesso menos perigoso por uma entrada a abrir no seu muro oriental depois fechada por um portão de madeira, adquirindo, também, um terreno contíguo a esse muro para através dele se alcançar directamente a estrada.
Em 1973, a Junta efectuou várias obras de arranjo do cemitério, incluindo um portão de ferro para aquela entrada do lado oriental e um um arranjo no pavimento de pedra da igreja velha.
Em 1980, a Junta recuperou a chamada «dispensa da igreja velha», a ela anexa do lado oriental, levantando-lhe paredes, pondo-lhe tecto e equipando-a, sempre a expensas suas, com objectos de culto para permitir encomendações segundo o culto católico.
Presentemente, construída que foi pela Junta de Freguesia uma nova Casa Mortuária, tal dependência passou a depósito de material do cemitério.
Foi a Junta a única entidade que cuidou da sua preservação.
Desde logo e gradualmente, restaurando-lhe a porta para o adro (que passou a ser fechada com chave também em seu poder), consolidando as paredes subsistentes, limpando o espaço interior, caiando anualmente os muros que subsistiam.
Manteve, a partir de 1984, contactos com a Direcção Regional da Cultura, sob cuja orientação promoveu um projecto de recuperação.
Em 1995, obtido o subsídio governamental para o «restauro da igreja velha», iniciou as respectivas obras com arranjo do adro e recuperação do relógio de sol e da torre sineira.
O Estado nunca lhe deu qualquer uso e nada fez para manter a sua ruína, evitando-lhe a completa degradação.
A Junta também autorizou e patrocinou a realização no mesmo espaço de eventos culturais públicos, nomeadamente uma exposição de fotografia em 1999 e um concerto nocturno de música clássica em 2001, bem como autorizou que no seu espaço houvesse festas de aniversário. Apreciando:
Face ao que resultou demonstrado (e não demonstrado) nos autos – e que a ora apelante aceitou enquanto tal – cumpre concluir que a Ré não realizou, desde logo, a necessária demonstração do seu animus possessório relativamente ao imóvel que diz haver adquirido por via do instituto da usucapião, isto é, a convicção de que seria a exclusiva proprietária daquele bem e que, nesse pressuposto básico, terá entendido, durante pelo menos vinte anos, subordinar a coisa (o templo desactivado) à sua discricionária vontade e aos seus ilimitados e incondicionados poderes de facto.
Sublinhe-se, a este propósito, que a desenvolvida, clarividente e convincente fundamentação da convicção por parte do tribunal a quo ao emitir o seu juízo de facto é absolutamente elucidativa relativamente aos reais e concretos motivos que o levaram a concluir que a Ré Freguesia de S. Mateus não agiu na convicção de ser dona da Igreja de S. Mateus, tendo-se, ao invés, limitado a zelar pela conservação e melhoramento daquele espaço, o que fez no âmbito próprio e normal das suas funções autárquicas e de prossecução do interesse público (da freguesia).
Neste mesmo sentido, a mera prática de actos de administração do imóvel, concretamente medidas de conservação e manutenção, não significa nem equivale a uma actuação desse agente - de natureza pública, com obrigações de defesa dos interesses gerais da freguesia respectiva, sublinhe-se – segundo a convicção e o propósito de estar a agir, nessas circunstâncias, como verdadeiro proprietário do bem, deste modo por si intervencionado.
A prática desses actos não afasta, portanto, a consciência da Ré de que os mesmos pertencessem a terceira entidade – à Fábrica da Igreja de São Mateus da ... que, por uma questão de estratégia e de gestão dos seus meios e recursos económicos, descurou tal conservação; ou ao próprio Estado que, em tempos, fez inscrever o imóvel em seu nome, denunciando, assim, publicamente, o seu estatuto de respectivo e único proprietário.
Note-se, a este propósito, que a Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 7 de Maio de 1940 - alterada pelo “Protocolo Adicional” de 1975 que se limitou a eliminar o seu artigo 24º respeitante à renúncia dos cônjuges, no casamento canónico, de exercerem a faculdade civil de requererem o divórcio – estabeleceu no seu artigo 6º o reconhecimento, pelo Estado à Igreja Católica, em Portugal, da propriedade dos bens que anteriormente lhe pertenciam e que estavam na posse do Estado, como templos, paços episcopais e residências paroquiais, salvo se se encontrassem qualificados como monumentos nacionais ou imóveis de interesse público (o que não é o caso).
Assim, após a propriedade deste templo haver sido retirada, logo após a implantação da República portuguesa, da esfera jurídica da Igreja Católica para ingressar na titularidade do “Estado e dos corpos administrativos”, por via do artigo 62º da Lei da Separação das Igrejas do Estado de 20 de Abril de 1911, o mesmo bem regressou, por força desse tratado internacional que vinculou o Estado Português, à titularidade da Igreja Católica, em conformidade e em correspondência com a regra constante do artigo 6º da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 7 de Maio de 1940.
É certo que a Igreja Católica, através da Fábrica da Igreja de S. Mateus da ..., dispondo então de um outro renovado templo para o exercício do seu múnus, para construção do qual suportou um investimento económico muito significativo, descurou a conservação do antigo templo, entretanto em ruínas, do qual praticamente se desinteressou.
E foi precisamente essa a razão que explica e justifica a iniciativa da Ré Freguesia de São Mateus, a partir dos anos 1960, no sentido de cuidar daquele espaço, evitando a inevitável e indesejável degradação, na defesa do interesse da freguesia que representa.
Porém, não foi produzida prova bastante de que essa concreta actuação da Ré tenha sido prosseguida na plena convicção de que o imóvel era afinal sua propriedade, tanto mais que o mesmo se encontrava inscrito na respectiva matriz predial em nome do Estado, certamente em virtude da falta de exercício pela A. do expediente técnico destinado à restituição daquele imóvel mediante o requerimento previsto no artigo 43º do Decreto-lei nº 30.615, de 25 de Julho.
Esta ausência de prova, expressa no elenco dos factos dados como provados e não provados, não foi, como se disse, concludentemente contrariada pela Ré através do expediente processual adequado, concretamente a impugnação da decisão de facto com as exigências estabelecidas no artigo 640º do Código de Processo Civil.
Por este motivo, não se encontra a Ré em condições de adquirir o bem em referência por usucapião, nos termos do artigo 1287º do Cód. Civil, segundo o qual “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”.
Conforme sublinha Inocêncio Galvão Telles, in “O Direito”, 121º, pág. 641 e segs.: “a posse que interessa para efeitos de usucapião não é a posse casual, ou seja, a posse conforme com um direito que inquestionavelmente se tem e de que representa simples exteriorização. É a posse formal, correspondente a um direito que comprovadamente se não tem ou que poderá não se ter, mas cujos poderes se exercem como sendo um titular, posse vista com abstracção do direito possuído, algo com existência por si, susceptível de conduzir, pela via da usucapião, à aquisição do direito, caso não se seja já senhor dele”.
Acrescenta o artigo 1251º do Código Civil que “a posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.
Supõe, como se sabe, dois elementos essenciais: o elemento objectivo o corpus e o elemento subjectivo - o animus.
O corpus manifesta-se quando alguém actua sobre uma coisa por forma correspondente ao exercício de determinado direito real, traduzindo-se num verdadeiro poder de facto, correspondente ao exercício, a prática ou possibilidade de prática, sobre a coisa, de actos materiais, externos, virados para o exterior, visíveis por toda a gente.
Já relativamente ao segundo dos mencionados elementos – o animus – o mesmo consiste na circunstância de o sujeito haver tido a intenção de agir como titular do respectivo direito.
Conforme enfatiza Orlando de Carvalho, “Introdução à Posse”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 122º, págs. 68 e 69 e 105, “a vontade de agir como titular de um direito real exprime-se (e «hoc sensu» emerge ou é inferível) em certa actuação de facto; daí que a intenção de domínio não tenha que explicitar-se, já que aquilo que importa é que ela se infira do próprio modo de actuação ou de utilização”.
Nos termos do art. 1252º, n, 2, “em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto (…)”.
Decorre deste preceito que em caso de dúvida, a posse presume-se em quem exerce o poder de facto, isto é, presume-se o exercício do animus naquele que detém o corpus, presunção a que subjaz a dificuldade de provar o dito animus.
Foi neste sentido o decidido no acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Maio de 1996 (relator Amâncio Ferreira), publicado no Diário da República - II Série, de 24 de Junho de 1996, segundo o qual: “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”.
Na situação sub judice, atenta a especial natureza da Ré, entidade autárquica que prossegue finalidades de interesse público no território da sua circunscrição, os simples actos avulsos de mera conservação e melhoramento daquele património por si praticados não são aptos a configurar, com a segurança e certeza exigíveis, um verdadeiro poder de facto, com exclusão da intervenção de outrem sobre o aquele peculiar espaço aberto, sem vedações ou barreiras, que constituía a “igreja desactivada” (digamos assim).
Conforme refere Oliveira Ascensão in “Direito Civil Reais”, página 84, o corpus é uma relação “não material”, mas social, em cujos termos os bens se consideram “em conexão com a esfera de certa pessoa”.
Ora, está aqui em causa um antigo templo religioso a que a Igreja Católica, podendo, entendeu deixar de dar o uso típico a que a generalidades dos templos religiosos se destinam, uma vez que, estrategicamente e no âmbito da gestão dos seus recursos próprios, optou por se empenhar na construção de um outro templo numa área mais interior da freguesia.
De todo o modo, não deixa de estar aqui em causa um templo desactivado que mantém a sua traça e configuração essenciais e que apresenta exteriormente a sua estrutura típica, singular e inconfundível enquanto igreja ao serviço do rito católico.
Neste contexto, não se compreende que actos materiais, compatíveis com a sua específica destinação de igreja católica, poderiam ser prosseguidos assiduamente pela Junta de Freguesia Ré, para além naturalmente das obras de conservação e manutenção exigidas pelo interesse público exigíveis pela defesa deste símbolo histórico e cultural da região.
Muito menos se poderá afirmar que a Ré tenha agido, na prossecução dessas intervenções, que introduziram inegáveis benfeitorias num espaço histórico, cultural e emblemático da freguesia, no convencimento de ser sua proprietária, com exclusão de qualquer outra entidade.
Bem pelo contrário, as duas únicas entidades que poderiam ser vistas e consideradas, ao tempo da realização das intervenções dadas como provadas nos autos, como proprietárias do imóvel seriam a Fábrica da Igreja de São Mateus da ..., por via do funcionamento da regra constante do artigo 6º da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 7 de Maio de 1940; ou o Estado, titular inscrito na respectiva matriz predial, por força do não exercício pela A. do expediente técnico destinado à restituição daquele imóvel mediante o requerimento previsto no artigo 43º do Decreto-lei nº 30.615, de 25 de Julho.
Já a Ré Freguesia de São Mateus não poderia, nestas circunstâncias, ser considerada como proprietária do imóvel – que tinha forçosamente como proprietários uma das duas entidades referidas (Estado ou Fábrica da Igreja).
A mera prova da efectivação de algumas intervenções no edifício em ruínas susceptível não é, por si só, suficiente para levar a concluir que actuou, durante o lapso de tempo necessário à aquisição do imóvel por usucapião, na convicção de ser o seu proprietário, sem lesar o direito de outrem.
Perante o patente desinteresse do Estado e da Igreja Católica em relação a este antigo templo em ruínas, a prova produzida neste processo apenas permite concluir que a Ré quis encontrar um expediente prático e formal para, compensando-se, registar em seu nome, como proprietária, um bem no qual havia efectivamente investido tempo, meios e dinheiro, sem que exista prova segura de que, ao longo do período temporal exigido para a usucapião, alguma vez a Junta de Freguesia de S. Mateus houvesse mantido verdadeiramente a séria e efectiva consciência, a real e firme convicção, de que este antigo templo para o rito católico, que tal como a esmagadora maioria das igrejas católicas deveria pertencer à Igreja Católica, afinal de contas era seu.
Pelo que a presente apelação não poderá deixar de ser julgada improcedente.
IV - DECISÃO: Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo A. apelante.