I - No âmbito de um pedido de indemnização civil enxertado no processo crime, embora o processo civil defina aspectos do regime da acção enxertada, como da definição da legitimidade das partes, é a acção penal que verdadeiramente suporta, orienta e conforma todo o rito processual, marcando definitivamente a cadência de intervenção dos demandantes civis na causa e os principais aspectos de forma a observar no seu desenrolar, sem esquecer a diligência para que conflui todo o processo: a audiência de julgamento.
II - Não incumbe ao STJ na apreciação do pedido de indemnização civil deduzido em processo penal conhecer da existência ou não, de litisconsórcio necessário ou da necessidade de intervirem na lide outros intervenientes. A instância submete-se às regras do processo penal e apenas a indemnização à “dimensão quantitativa e respectivos pressupostos, à lei civil.”
III - Embora a recorrente, enquanto interveniente acessória, possa ter interesse em agir, não tem porém legitimidade para recorrer. O que a recorrente A pretende discutir é a legitimidade passiva – mas como se sabe o CPC não consagrou a tese de Alberto dos Reis – e não se confunde com a legitimidade activa, a qual incumbe a quem tem interesse em demandar ou contradizer, como titular da relação material controvertida, tal como é caracterizada pelo autor.
IV - Acresce que a decisão sobre a excepção de ilegitimidade é uma decisão interlocutória e nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. c), e art. 432.º, n.º 1, al. b), ambos do CPP não é admissível recurso para o STJ. A circunstância de o recurso interlocutório ter subido com o interposto da decisão final não altera em nada a previsão legal, como não altera a circunstância de ter sido apreciado e julgado na mesma peça processual em que o foi o principal.
V - A indemnização deve ter carácter geral e actual, abarcar todos os danos, patrimoniais e não patrimoniais, mas quanto a estes apenas os que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito e, quanto àqueles, incluem-se os presentes e futuros, mas quanto aos futuros só os previsíveis (cfr arts. 562.º, 564 e 569, todos do CC).
VI - A doutrina de perda de chance acolhida no acórdão (da Relação) recorrido ao considerar a probabilidade de sobrevivência da utente às 19h. do dia 30-08-2010 fixada em 50%, na fixação do montante de valor indemnizatório de € 294 510, não afronta o entendimento que vem sendo seguido sobre a matéria, nem torna tal quantitativo desproporcional para o Recorrido pois que é legítimo concluir que as duas situações clínicas possíveis e admissíveis nos autos – uma situação clínica estável, e uma situação clínica de instabilidade hemodinâmica de alto risco de mortalidade – implicariam uma probabilidade de sobrevivência de 50%.
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“Na comarca de Braga, Guimarães –Inst. Local – secção Criminal – J2, processo comum nº 917/11. 7TAGMR, foi proferida sentença, de cujo dispositivo consta o que segue (transcrição):
“IV. Decisão
Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decido julgar a acusação parcialmente procedente, por provada e, consequentemente:
“A) Absolvo a arguida AA, da prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo art.º 137.º n.º 1 do Código Penal, de que vinha acusada.
B) Condeno a arguida BB, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.º 137.º n.º 1 do CP, na pena de 300 (trezentos) dias de multa à razão diária de € 8,00 (oito euros) o que perfaz a quantia de € 2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros) e a que corresponderão, sendo caso disso, 200 (duzentos) dias de prisão subsidiária.
C) Condeno a arguida BB no pagamento das custas criminais, fixando a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.
Mais decido julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização formulado pelo assistente CC, por si e em representação dos seus filhos menores e, consequentemente:
D) Absolvo a demandada AA do pedido.
E) Condeno os demandados BB e Centro Hospitalar ..., E.P.E., no pagamento ao assistente da quantia de € 294.510,58 (duzentos e noventa e quatro mil, quinhentos e dez euros e cinquenta e oito cêntimos) acrescida de juros de mora à taxa legal, desde o trânsito em julgado da sentença até integral pagamento.
F) Condeno o demandante CC e os demandados BB e Centro Hospitalar ..., E.P.E., nas custas cíveis, na proporção de 1/5 e 4/5. “
***
Inconformados com a sentença, interpuseram recurso, a interveniente acessória “DD – Companhia de Seguros S.A”, anteriormente denominada EE – Companhia de Seguros S.A, e, em motivação conjunta, o demandado cível “Hospital --- EPE” e a arguida BB,”
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“Decisão:
Em face do exposto, os juízes desta Relação de Guimarães decidem:
a)Rejeitar, por inadmissibilidade, o recurso da interveniente acessória DD Companhia de Seguros, SA, anteriormente denominada EE Companhia de Seguros, S.A.
b)Negar provimento ao recurso interposto pela arguida/demandada civil BB e pelo demandado civil Hospital ---, EPE.
A interveniente acessória DD – Companhia de Seguros, SA, relativamente ao recurso por si interposto, vai condenada a pagar as custas, bem como, ao abrigo do nº 3 do artº 420º do CPP, a quantia de 3 (3) UCS
Custas criminais a cargo da recorrente arguida BB, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs. – artº 513º, nº 1, do CPP.
Custas cíveis pelos demandados recorrentes.”
- DD – Companhia de Seguros, S.A., apresentando as seguintes:
“Conclusões
1 – Por excerto no processo crime, os lesados deduziram pedido de indemnização contra a arguida BB e contra o Centro Hospitalar ..., E.P.E., invocando para o efeito que FF, sua esposa e mãe, recorreu ao serviço de urgência do Centro Hospitalar ..., E.P.E a fim de receber tratamentos médicos, onde foi atendida pela arguida BB, que no momento ali exercia a sua profissão de médica, ao serviço daquele Centro Hospitalar, em cumprimento de um contrato de prestação de serviços.
2 – Mais alegaram que, a arguida BB violou a legis artis na assistência médica prestada, negligência que causou a morte da FF.
3 – Assim, e com fundamento na responsabilidade civil extracontratual da arguida BB e do Centro Hospitalar ..., E.P.E., reclamaram o pagamento de uma indemnização no montante global de € 1.154.021,16 (valor que, no decurso do processo, reduziu para € 589.021,16) para ressarcimento e compensação de todos os danos que dessa morte advieram para eles demandantes.
4 - A demandada cível BB contestou o pedido de indemnização civil, tendo ali deduzido incidente de intervenção acessória, pelo qual chamou ao pedido de indemnização civil a DD – Companhia de Seguros, S. A. (à data denominada EE – Companhia de Seguros, S. A.). Justificou esse chamamento na existência de um contrato de seguro de grupo celebrado entre esta seguradora e a Ordem dos Médicos, e do qual era beneficiária, através do qual a DD – Companhia de Seguros, S. A. garantiu a responsabilidade civil profissional dos médicos perante terceiros derivada de danos e prejuízos causados no exercício da sua profissão de médicos.
5 - Com esse chamamento, pretendeu a demandada cível BB acautelar, caso viesse a ser condenada a pagar aos lesados alguma quantia, o direito de regresso contra a DD – Companhia de Seguros, S. A., direito esse decorrente daquele contrato de seguro.
6 – A DD – Companhia de Seguros, S.A. contestou o pedido de indemnização civil, alegando, além do mais, que, por imposição do preceituado no artigo 7º, nº 1 do Anexo ao D.L. 67/2007, de 31/12, que aprovou o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, a demandada cível BB carecia de legitimidade passiva para o pedido de indemnização civil,.
7 – Invocou, para o efeito, que aquela médica atuou e praticou o ato alegadamente lesivo ao serviço e sob as ordens do Centro Hospitalar ..., E.P.E., pessoa coletiva de direito público de natureza empresarial, entidade que prestou serviços à malograda FF no exercício de um poder público e sob o domínio de normas de direito público. Em função dessa alegação concluiu e peticionou a absolvição da instância daquela médica demandada BB .
8 - Realizado o julgamento, as demandadas cíveis BB e Centro Hospitalar ..., E.P.E. foram condenados a pagar aos demandantes uma indemnização no montante de € 294.510,58 por danos emergentes e perda de chance obrigação.
9 - Nos termos do disposto no artigo 497º, nº 1 do Código Civil, essa obrigação indemnizatória é uma obrigação solidária.
10 – Na douta sentença proferida pela 1ª instância, mesmo antes de se pronunciar sobre os factos provados e não provados, foi indeferida aquela exceção de ilegitimidade passiva da demandada cível BB invocada pela DD, com o fundamento de que “o que importa apurar, à luz do artº 30 do CPC é se os réus, face ao pedido e à causa de pedir, tal como resultam deduzidos ou configurados pelo autor, têm ou não interesse directo em contradizer, nomeadamente por serem os réus, na perspectiva do autor, titulares passivos da relação material controvertida”, o que, no caso, considerou verificar-se em relação à demandada BB .
11 - Por não concordar com aquela decisão tomada sobre a exceção da ilegitimidade passiva da demandada cível BB , nem com a consequente decisão final que a condenou ao pagamento da indemnização em regime solidário com o Centro Hospitalar ..., E.P.E., a DD interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães.
12 - Nas suas motivações de recurso apresentadas junto do Tribunal da Relação de Guimarães, a DD – Companhia de Seguros, S. A. defendeu que o correto julgamento da exceção de ilegitimidade passiva da demandada cível BB, exigia que aquele tribunal de 2ª instância procedesse, em primeiro lugar, à ampliação da matéria de facto respeitante à natureza e ao conteúdo da relação estabelecida à data dos factos entre aquela médica demandada e o Centro Hospitalar ..., E.P.E. Na verdade, continuou, sabendo-se que o disposto nos artigos 7º, nº 1 e 8º nº 1 e 2 do mencionado Anexo ao D.L. 67/2007 é aplicável às ações ou omissões dos titulares dos órgãos do Estado e demais pessoas coletivas de direito público e seus funcionários ou agentes, mostra-se essencial para a boa decisão da alegada exceção de ilegitimidade passiva da demandada cível BB e da decisão final sobre a procedência ou improcedência do pedido de indemnização civil em relação à mesma, que previamente se determine a que título é que esta médica prestava os seus serviços na urgência do referido hospital e a relação existente entre eles.
13- Com efeito, sobre tal matéria, e não obstante os demandantes cíveis terem alegado (artigos 44º, 48º e 50º do pedido de indemnização civil) que as arguidas atuaram como médicas e ao abrigo de um contrato de prestação de serviços outorgado com o Centro Hospitalar ..., E.P.E. e no exercício dessa função que lhes havia sido confiada por esse Centro Hospitalar, a verdade é que a douta sentença da 1ª instância menciona apenas que a demandada BB exercia funções naquele hospital como médica de medicina geral e familiar (alínea g) dos factos provados).
14- O elo jurídico de ligação entre a demandada BB e o Centro Hospitalar ..., E.P.E., alegou ainda a DD – Companhia de Seguros, S. A., mostra-se fundamental para o correto julgamento da legitimidade ou da ilegitimidade daquela médica no âmbito do pedido de indemnização civil e, designadamente, para a aplicabilidade do regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas.
15- Invocou ainda a DD – Companhia de Seguros, S. A. que o artigo 662º, nº 2, al. c) do Código de Processo Civil prescreve que a Relação deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida na 1ª instância quando considere indispensável a ampliação da matéria de facto. Naquele caso, a situação não carecia de novo julgamento na 1ª instância já que a Relação dispunha de prova documental (que não foi objeto de qualquer impugnação), para suprir essa omissão e decidir de imediato tal ponto de facto em face do disposto no artigo 431º, al. a) do Código de Processo Penal. Na verdade, o alegado no artigo 48º do pedido de indemnização civil (que as arguidas atuaram como médicas e ao abrigo de um contrato de prestação de serviços outorgado com o Centro Hospitalar ..., E.P.E. e no exercício dessa função que lhes havia sido confiada pelo hospital), não foi impugnado pelos demandados e resulta ainda de folhas 38 e do relatório da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (a folhas 204), decorrendo dessa documentação que a arguida BB Tavares exercia efetivamente funções de médica no Centro Hospitalar ..., E.P.E., em regime de contrato de prestação de serviços.
16 - Concluiu que a matéria de facto deveria ser ampliada, dando-se provado que “Em 30/08/2010, a demandada BB exercia funções de médica no Centro Hospitalar ..., E.P.E., em regime de contrato de prestação de serviços e, no exercício dessa função que lhe havia sido confiada pelo hospital, atendeu nesse dia a FF quando esta se deslocou ao serviço de urgência daquele hospital”.
17 - Em face deste facto, e do que resultou provado nas alíneas a), g), h), i), j), s), v), w), ddd), eee), fff) e ggg) da douta sentença da 1ª instância, reclamou a DD que o tribunal de 2ª instância julgasse a demandada cível BB como parte ilegítima e que determinasse a sua absolvição da instância, o que fundamentou nos seguintes pressupostos de direito:
17.1. O Centro Hospitalar ..., E.P.E. é uma pessoa coletiva de direito público de natureza empresarial, integrado no Serviço Nacional de Saúde. Ao prestar assistência médica à malograda FF o Centro Hospitalar ..., E.P.E. agiu no exercício de um poder público e sob o domínio de normas de direito público, apresentando-se como pacífico o entendimento de que “a relação jurídica estabelecida entre o Serviço Nacional de Saúde e o utente é de natureza administrativa” (Ac. do Tribunal Central Administrativo Norte, de 23/09/2015, in www.dgsi.pt, Proc. 00762/11.0BEBRG).
Assim sendo, “a responsabilidade pelos cuidados prestados nos seus estabelecimentos rege-se pelo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos” (idem).
17.2. A responsabilidade civil por atos ilícitos é regulada pela lei em vigor ao momento do ato gerador da responsabilidade (artigo 12º, do Código Civil), sendo certo que em Agosto de 2010 (data dos factos respeitantes à demandada BB), o D.L. 67/2007, de 31/12 fixava o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, titulares de órgãos, funcionários e agentes públicos por danos resultantes do exercício da função administrativa, ou seja, por ações ou omissões adotadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
17.3. A médica BB, trabalhando para o referido Centro Hospitalar com base num contrato de prestação de serviços, agindo sob as ordens e direção daquela entidade, apresenta-se, no mínimo, como agente público pois que, recolhendo os ensinamentos do Prof. Marcello Caetano, devem ser entendidas e consideradas como tal, todas as pessoas que “por qualquer título, exerçam actividades ao serviço de pessoas colectivas de direito público, sob a direcção dos respectivos órgãos”.
17.4. De acordo com a regra prescrita no artigo 7º, nº 1 daquele diploma, estando em causa a responsabilidade civil por facto ilícito decorrente do exercício da função administrativa por ações ou omissões cometidas, com culpa leve, pelos agentes das pessoas coletivas de direito público, no exercício daquela função e por causa desse exercício, essa responsabilidade é exclusiva dessa pessoa coletiva.
17.5. Excecionalmente, a lei prevê que caso se verifique uma atuação dolosa ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontrava obrigada, o agente responda em regime solidário com a pessoa coletiva, devendo ser entendida esta última previsão legal (atuação com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontrava obrigada), como um comportamento “temerário em alto e elevado grau”, “altamente reprovável”, “leviano”, “particularmente censurável” ou “totalmente indesculpável”.
17.6. Dos factos provados não resulta que a médica BB tenha atuado com dolo nem com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontrava obrigada, o que, aliás, foi também essa a convicção com que ficou o tribunal como decorre da pena aplicada.
17.7. Assim sendo, a demandada BB carece de legitimidade passiva para ser demandada como responsável civil pelos danos reclamados no pedido de indemnização civil. Na verdade, e como se decidiu no Ac. do STJ de 28/02/2002, “são partes ilegítimas para serem demandados como Réus, os médicos, que participaram no acto gerador dos danos invocados, na acção de responsabilidade civil extracontratual que os lesados moveram também contra um Hospital público” (in, www.dgsi.pt, Proc. 048178).
18 - Sucedeu que o Tribunal da Relação de Guimarães entendeu que a DD –Companhia de Seguros, S. A., porque se apresentava no pedido de indemnização civil com a qualidade e posição de interveniente acessória, não respeitava os pressupostos para recorrer enumerados no artigo 401º, nº 1, al. c) e d) do Código de Processo Penal, pelo que, usando da faculdade prevista no artigo 420º, nº 1 do Código de Processo Penal, rejeitou o recurso interposto pela DD, com fundamento na sua falta de legitimidade parainterpor o recurso.
19 - Mais condenou a DD ao pagamento das custas respeitantes ao recurso por ela deduzido bem como ao pagamento da quantia de três UCS.
20 - O artigo 401º, nº 1, al d) do Código de Processo Penal, sob a epígrafe legitimidade e interesse em agir, determina que têm legitimidade para recorrer “aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código, ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão.”
21 - Interpretando e aplicando a segunda parte desta alínea, o douto acórdão recorrido considerou que a DD – Companhia de Seguros, S. A. não é titular de um direito que resulte direta e imediatamente afetado pela decisão condenatória proferida no pedido de indemnização civil que condenou a sua segurada BB, pois que tal decisão apenas a afeta de “modo estritamente reflexo e indirecto). Em função deste entendimento, concluiu, a DD carecia de legitimidade para recorrer, pelo que o recurso é inadmissível.
22 – Acontece que o fundamento invocado pela demandada cível BB para chamar a interveniente acessória da recorrente foi a existência de direito de regresso sobre a DD – Companhia de Seguros, S. A., enquanto beneficiária de um contrato de seguro nos termos do qual esta seguradora garantiu a responsabilidade civil extracontratual por danos causados a terceiros no exercício da sua profissão de médica.
23 - O artigo 321º, nº 1 e 2 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 3º do Código de Processo Penal, estipula que “o réu que tenha ação de regresso contra terceiro para ser indemnizado pelo prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal” e que “a intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na ação de regresso invocada como fundamento do chamamento.”
24 - Afigura-se lógico que, existindo um terceiro fora da ação a quem possa vir a ser imputado o prejuízo dela decorrente para uma das partes, ele possa ser chamado à lide para, desde logo, defender a sua posição quanto à matéria discutida na ação que lhe possa causar dano.
25 - Daí que seja lícito e legítimo entender que a atividade do interveniente acessório na ação para onde foi chamado “não é a de um simples expectador desinteressado com a sorte da lide, tão-pouco um mero auxiliar do réu, com intuitos filantrópicos ou outros, mas antes a de contribuir para a descoberta da verdade, interessado confesso na não condenação deste último” (Ac. do STJ de 17/04/2008, in www.dgsi,pt, Processo 08ª1109).
26 - Na verdade, a razão suprema que determina o interveniente acessório a lutar na ação é obstar que o réu seja condenado, fazendo-o, de forma perfeitamente legítima, na defesa dos seus interesses.
27 - Assim sendo, a posição processual do interveniente acessório não pode ser entendida como meramente figurativa e sem autonomia em relação à parte que sobre ele exercerá ação de regresso, mas como sujeito processual ativamente interessado na defesa de um direito próprio.
28 - Negar-se ao interveniente acessório a possibilidade de, por si, lutar pela não condenação da parte que o chamou, e que de futuro o irá responsabilizar, é condená-lo a assistir passivamente à violação dos seus direitos por parte de terceiros.
29 – Assim e no caso dos autos, impedir que a recorrente apele a um tribunal superior para reavaliar a (i)legitimidade da sua segurada, que foi condenada a pagar uma avultada indemnização e que poderá exercer contra si ação de regresso para ser reembolsada do valor que pagar, quando existem sérias dúvidas de que essa condenação seja lícita, é condenar de imediato a recorrente a reembolsar a sua segurada, sem que esta tenha possibilidade de discutir questões essenciais sobre a legalidade da obrigação da indemnizar por parte daquela segurada.
30 - Do exposto se conclui que a natureza da posição processual em que a lei coloca o interveniente acessório não permite, salvo o devido respeito, que lhe seja negado a legitimidade para recorrer da decisão final que condenou a parte principal à qual está associado.
31 - Não obstante o douto acórdão recorrido se ter socorrido exclusivamente do regime previsto no artigo 401º do Código de Processo Penal para avaliar a (i)legitimidade da ali recorrente DD – Companhia de Seguros, S.A., a verdade é que não podemos esquecer que estamos perante um recurso de uma decisão em matéria cível, apesar de enxertada num processo de natureza criminal, pelo que a interpretação que se faça daquele artigo 401º deve ser orientada pelo regime paralelo adotado na legislação processual civil (até por remissão do artigo 3º do Código de Processo Penal), regime esse previsto no artigo 631º do Código de Processo Civil.
32 - Ora, o nº 2 desse artigo determina que os recursos podem ser interpostos pelas “pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão”, “ainda que não sejam partes na causa, ou sejam apenas partes acessórias”.
33 - Comentando esta norma, ensina Miguel Teixeira de Sousa que “o artº 680º, nº 2 define o critério material pelo qual se afere a legitimidade para recorrer do terceiro: este sujeito tem de ser alguém que seja directa e efectivamente prejudicado pela decisão, isto é, que seja abrangido pelo caso julgado de uma decisão que lhe seja desfavorável por afectar os seus direitos ou interesses” (in, Estudos sobre o Novo Processo Civil).
34 – Ora, artigo 323º, nº 4 do Código de Processo Civil, incluído na Subsecção I – intervenção provocada, da Secção I – intervenção acessória, estabelece que “a sentença proferida constitui caso julgado quanto ao chamado, nos termos previstos no artigo 332º, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior ação de indemnização”. Conjugando esta disposição com o referido artigo 332º, concluímos que o interveniente acessório é obrigado a aceitar, em qualquer causa posterior, os factos e o direito que a decisão judicial da causa para onde foi chamado tenha estabelecido.
35 - Em comentário a estes artigos (artigos 332º, nº 4 e 341º na versão anterior do código), o Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Salvador da Costa refere que estes efeitos do caso julgado da sentença atuam sobre o interveniente acessório «de modo a que não seja possível nem necessário que na subsequente acção de indemnização proposta pelo réu contra o chamado se voltem a discutir as questões já decididas no anterior processo. Assim, em regra, na nova acção de indemnização em que figure como réu o chamado à intervenção, ele fica vinculado a aceitar a sentença respectiva como prova plena dos factos nela estabelecidos relativamente ao direito definido e no que concerne às questões de que a acção de regresso dependa» (Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 2ª ed., pags. 130 e 131).
36 - Por sua vez, e citando Lebre de Freitas sobre o alcance destas mesmas disposições, o mencionado acórdão deste Supremo Tribunal acentuou que produzindo-se caso julgado perante o interveniente acessório, isso torna indiscutível “os pressupostos do direito à indemnização, a fazer valer em ação posterior, que respeitem à existência e ao conteúdo do direito do autor.”
37 - Não restam, pois, quaisquer dúvidas, de que a DD – Companhia de Seguros, S.A., enquanto interveniente acessória no pedido de indemnização civil, foi direta e efetivamente afetada pela decisão da 1ª instância que julgou a sua segurada como parte legítima para ser demandada no pedido de indemnização civil, bem como pela decisão consequente àquela, que a condenou a pagar uma indemnização.
38 - Isso significa que, sendo a DD – Companhia de Seguros, S.A. impedida de impugnar, por via do recurso, a decisão que a julgou como parte legítima a médica BB, legitimidade essa que deve ser analisada e avaliada nos termos do artigo 7º, nº 1 do Anexo ao D.L. 67/2007, de 31/12, ficará definitivamente vinculada a aceitar a legitimidade da sua segurada e, consequentemente, a aceitar a sua condenação.
39 - Ou seja, a recorrente terá de vinculado a aceitar que a sua segurada, médica ao serviço de uma entidade pública, é parte legítima para ser condenada em ação de responsabilidade civil extracontratual movida contra si e contra essa entidade pública, apesar de não ter sido provado nem julgado que a sua ação ilícita tenha sido exercida com culpa grave, tal como, para efeitos de legitimidade passiva dos funcionários ou agentes públicos, exige aquele artigo 7º, nº 1 do Anexo ao D.L. 67/2007, de 31/12.
40 - Ora, não é esta a correta interpretação que deve ser dada às citadas normas legais, sob pena de violação dos princípios constitucionais de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva consagrados no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
41 - No respeito por esses princípios fundamentais, a recorrente tem todo o direito em pugnar para que essa situação ilícita de ilegitimidade da sua segurada seja julgada pelo tribunal de recurso, e em ver julgada essa ilegitimidade, sob pena de lhe serem vedados os mais elementares direitos à defesa dos seus direitos.
42 – A decisão da 1ª instância, ao julgar como parte ilegítima a demandada cível BB, afeta diretamente a recorrente, dado que esta fica definitivamente obrigada a aceitar aquela decisão por força do caso julgado que a vincula. O mesmo é dizer: quando chegar o momento da ação de regresso, de nada valerá à recorrente invocar que a sua segurada não poderia ter sido condenada na presente ação, por violação do disposto o artigo 7º, nº 1 e 8º nº 1 e 2 do mencionado Anaxo ao D.L. 67/2007. Nada mais lhe restará senão pagar, impedida que foi de pugnar pela absolvição da segurada.
43 - Assim sendo, e sempre com o devido respeito, não podem restar quaisquer dúvidas que a decisão proferida pela 1ª instância e impugnada pela DD perante o Tribunal da Relação, afeta diretamente o direito da recorrente em ver julgada procedente a ilegitimidade da demandada cível BB e, consequentemente, a sua absolvição do pedido de indemnização cível, de forma a evitar tenha de proceder ao reembolso dos valores que aquela venha a pagar.
44 - Encontra-se, assim, respeitado o requisito exigido na parte final da alínea d) do artigo 401º, nº 1 do Código de Processo Penal.
45 – O douto acórdão recorrido violou por erro de interpretação os artigos 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, artigos 321º, 323º, nº 4, 332º, nº 1 e 631º, nº 2 do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 3º do Código de Processo Penal, e artigo 401º, nº 1, al. d) deste último diploma.
46 – Estas disposições legais devem antes ser interpretadas no sentido de que uma seguradora que garantiu a responsabilidade civil profissional de um médico decorrente de danos causados a terceiros no exercício da sua profissão de médico, não obstante a
qualidade de interveniente acessória num pedido de indemnização civil em que é discutida a responsabilidade civil extracontratual do médico seu segurado por, ao serviço de uma pessoa coletiva de direito público de natureza empresarial que tem como objeto a prestação de cuidados de saúde à população, designadamente aos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde, ter causado a morte de um paciente, tem legitimidade para recorrer das decisões que julgaram como parte legítima aquele médico seu segurado e que o condenaram a pagar uma indemnização por essa morte, nomeadamente, para que a questão da (i)legitimidade desse médico seja julgada por tribunal superior ao abrigo do disposto na Lei 67/2007, de 31/12, pois que essas decisões a prejudicam direta e efetivamente porque constituem caso julgado em relação a essa seguradora, que assim é obrigada a aceitar, em futura ação de regresso movida pela sua segurada, aquelas decisões.
Termos em que, deve o recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, revogar-se o douto acórdão recorrido na parte em que rejeitou, por inadmissibilidade, o recurso da interveniente acessória DD – Companhia de Seguros, S.A. e a condenou ao pagamento das custas do recurso e da quantia de três UCS, ordenando-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação de Guimarães para apreciação do mérito do recurso ali interposto pela DD– Companhia de Seguros, S.A.,
Assim se fazendo JUSTIÇA!
- HOSPITAL ---, EPE, e BB, “não se conformando, vem, ao abrigo do disposto na conjugação do n.º 2 e 3 do artigo 400.º e al. b) do n.º 1 do artigo 432.º, todos do Código do Processo Penal (doravante “CPP”), e ainda o disposto no artigo 672.º do CPC ex vi o disposto no artigo 4.º do CPP1, interpor o presente recurso, que é de REVISTA EXCEPCIONAL, para o Venerando Supremo Tribunal da Justiça, a subir imediatamente, nos próprios autos, e com efeito suspensivo2.
Requerem, pois, nos exatos termos constantes do presente requerimento de interposição de recurso e fundamentação das presentes alegações a sua admissão e ulterior tramitação.
III – CONCLUSÕES
A) O presente recurso de revista excepcional vem interposto do douto Acórdão proferido pelos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães que confirmou a decisão da 1ª instância, condenando a arguida BB pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência p.e.p. pelo artigo 137.º do Código Penal, na pena de 300 dias de multa à razão diária de € 8,00, no total de € 2.400,00,
B) O mesmo Acórdão julgou ainda parcialmente procedente o pedido de indemnização deduzido contra os aqui Recorrentes, condenando-os no pagamento ao Recorrido da quantia de € 294.510,58 (duzentos e noventa e quatro mil, quinhentos e dez euros e cinquenta e oito cêntimos) acrescida de juros de mora à taxa legal, desde o trânsito em julgado da sentença até integral pagamento, e ainda no pagamento das custas cíveis, na proporção de 4/5;
C) A diferença entre a sanção penal e a componente indemnizatória civil é, desde logo, atestatória da flagrante desproporção, injustiça e errada aplicação do Direito;
D) Não podendo conformar-se com o douto Acórdão Recorrido, na parte que respeita à componente da condenação indemnizatória (ou seja, da matéria civil), em que o douto Tribunal da Relação decidiu pela condenação dos ora Recorrentes, no pagamento ao assistente da quantia de € 294.510,58 (duzentos e noventa e quatro mil, quinhentos e dez euros e cinquenta e oito cêntimos), vêm os aqui Recorrentes interpor o presente recurso de revista excepcional, cujos fundamentos materiais e de admissibilidade vão supra melhor descritos.
E) Afigura-se o presente recurso como o meio processual próprio e idóneo para, verificado que esteja um dos pressupostos constantes do disposto no artigo 672.º do CPC, possibilitar-se ao Supremo Tribunal de Justiça - em face dos valores substantivos dirimidos nos autos -, proceder à melhor e mais correta aplicação do Direito, e agir em defesa dos interesses de particular relevância social e em matéria diretamente relacionada com o direito à vida e à saúde dos cidadãos.
F) Não obstante a redução de montantes indemnizatóris arbitrados nos autos, a presente tendência decisória infundamentada como a do Acórdão Recorrido levará inapelavelmente a que surja e cresça exponencialmente uma litigiosidade infundada e perversa, a qual perturbará seguramente uma correcta aplicação do Direito e obtenção de Justiça,
G) Dando origem a toda uma corrente de litigiosidade desprovida de qualquer fundamento atendível (vulgo, ambulance chasers) que prejudicará inclusivamente a natural amplitude dos profissionais clínicos no exercício da sua profissão, bem como o desígnio de melhor prestação de cuidados de saúde possíveis aos cidadãos e utentes, originando um fenómeno social transversal que cumprirá a todo o custo evitar.
H) Assim, estando em causa matéria com elevado grau de complexidade e atento o relevo jurídico da questão que ora se suscita – responsabilidade civil médica – julgamos preenchida a exceção prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, devendo possibilitar-se o acesso à jurisdição do STJ para preservar interesses de ordem geral ligadas à boa aplicação do direito, designadamente em face do carácter paradigmático da situação que extravasa nitidamente os limites do caso concreto, e ameaça transformar-se numa corrente jurisprudencial de efeitos putativamente e transversalmente nefastos.
I) A interposição do presente Recurso de Revista legitima-se ainda, pese embora a sua excepcionalidade, porquanto os Venerandos Desembargadores não só não fizeram uma correcta subsunção dos factos à norma jurídica, como objectivamente incorreram numa errada aplicação do Direito que importa corrigir Superiormente, e que apenas pode ser efetuada através do presente Recurso e da instância dos Venerandos Juízes Conselheiros do STJ.
J) A questão recorrida, mais do que discutir sobre quantum indemnizatório está no epicentro de importantes interesses da comunidade e encontra-se directamente ligada aos direitos à saúde e vida dos utentes e cidadãos, reiterando-se que, pelos fundamentos aqui enunciados e que melhor se desenvolverão, se requer seja o presente Recurso admitido, promovendo-se os ulteriores termos até final, realizando-se a melhor materialização da Justiça.
K) Quanto à fixação do quantum indemnizatório e da questão que cabe apreciar atenta a natural limitação do presente Recurso, o assistente CC, deduziu o pedido de indemnização civil contra as Arguidas AA e BB e ainda contra o então CENTRO HOSPITALAR ..., E.P.E. (actualmente, por força de redenominação operada pelo Decreto-Lei n.º 177/2015, de 25 de agosto, Hospital da ---, EPE.),
L) No qual, alegava inicialmente ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais, que quantificou e peticionava a respectiva condenação dos visados no pagamento da quantia de € 1.154.021,16 (um milhão, cento e cinquenta e quatro mil, vinte e um euros e dezasseis cêntimos), pasme- se!
M) Tal pedido, salvo o devido respeito, não pode deixar de se considerar como irrazoável, despropositado e desprovido de qualquer respaldo jurídico ou de comum bom senso.
N) E assim é, que o Recorrido voluntariamente e sem fundamentação atendível, reduziu o referido pedido formulado nos termos anteriores para um montante de € 589.021,16 (quinhentos e oitenta e nove mil e vinte e um euros e dezasseis cêntimos), o que apenas se concebe através de uma plena consciência do que ora se defende.
O) A Sentença e o Acórdão ora Recorrido, relativamente ao pedido cível deduzido considera que os valores acima descritos são adequados, sem que no entanto se mostre fundamentada por qualquer forma o fundamento e justificação dos danos constantes dos mesmos,
P) Ponderação essa que – mesmo corrigida através da ponderação obrigatória pela natureza do dano por perda de chance - materializa uma incorrecta aplicação do Direito, com a qual não nos podemos conformar.
Q) Não podemos de forma nenhuma desconsiderar que a jurisprudência vigente, no que toca à fixação da matéria de danos em sede de apuramento de putativa responsabilidade civil médica tem vindo a demonstrar-se naturalmente prudente, atenta a complexidade e dificuldade de concretização desta matéria.
R) Existe abundante jurisprudência que limita e baliza as pretensões desproporcionadas e irrazoáveis – ainda que de certo modo naturais e expectáveis -, dos respectivos Autores, e das quais selecionamos as seguintes decisões, melhor descritas e referenciadas na página 10 e ss. Das presentes Alegações de Recurso;
S) Perante tais arestos exemplificativos – todos do Venerando Supremo Tribunal -, fica claramente demonstrada a tendência natural e prudente para a fixação do quantum indemnizatório nos autos e em matéria de apuramento de responsabilidade civil médica direta,
T) Mesmo a tendência atual da jurisprudência vem corrigindo estes valores indemnizatórios – fora de qualquer cenário de perda de chance, note-se -, de forma prudente e manifestamente distante dos considerandos nos autos.
U) Não podendo deixar de se concluir que o mesmo raciocínio e prudência expendidos nestas decisões superiores - de matéria assaz complexa -, deve resultar ajustado e corrigido, em matéria de fixação de danos com base em responsabilidade civil médica, e em aplicação da doutrina da perda de chance, com a proporção arbitrada nos autos.
V) Na realidade, sufragamos o entendimento da doutrina de ANTONIO PEDRO SANTOS LEITÃO11, que melhor ilustra a materialidade da fundamentação do presente Recurso, quando refere que ““... Concluiremos a nossa exposição, fazendo uma breve sistematização ordenada dos pressupostos que devem achar-se cumpridos para que o dano da perda de chance seja ressarcível.
(...) Casuisticamente, deverá depois ser analisada a realidade da chance. Só havendo um reconhecimento transubjetivo da chance será possível reconhecer que a chance tem existência, que a chance é real, e só a partir desse reconhecimento será praticável constatar-se a existência da sua tutela jurídica – que existirá ou não se for preenchido o pressuposto da ilicitude. (Separando-nos do resto da doutrina, consideramos que a seriedade da chance só entrará em jogo não neste momento, mas sim no momento da determinação do valor da chance – e, portanto, da determinação do quantum indemnizatório). Verificados os elementos atrás mencionados, será altura de entrar propriamente no mundo dos pressupostos da responsabilidade civil. (…) Preenchido que esteja o pressuposto da culpa (ou não sendo necessário, caso se esteja perante responsabilidade civil objetiva), cabe constatar que a chance foi realmente perdida, que é como dizer, é necessário afirmar que houve efetivamente a perda de uma chance. Se tiver havido, deverá o dano dessa perda ser considerado um dano patrimonial, na espécie de dano emergente e nunca de lucro cessante. Dever-se-á ter, por isso, como um dano certo.
[11 In “Da Perda de Chance - Problemática do Enquadramento Dogmático / About The Idea of Loss of a Chance -Dogmatic Framework Issue”, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2.º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre), na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Civilísticas Menção em Direito Civil, Coimbra 2016, disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/40891/1/Tese%20-
%20Perda%20de%20Chance1.pdf]
Agora já no plano da causalidade, o juízo de adequação deverá decorrer como se de qualquer outro caso se tratasse. Na determinação da obrigação de indemnização, caso seja possível, por alguma forma, a reintegração da chance na esfera jurídica do lesado, este deverá ser o caminho preferível (e legalmente exigido) a tomar. Caso tal não seja possível (o que sucederá na esmagadora maioria das vezes), então aqui o valor da chance deverá ser encontrado através da multiplicação das probabilidades daquela se vir a materializar pelo valor do benefício perdido ou do prejuízo não evitado. (...)
Vimos que a aplicação da doutrina da perda de chance com base na teoria da causalidade parcial, além de representar um claro afrouxar das necessidades de estabelecimento do nexo de causalidade, é claramente contrária ao espírito da formulação negativa da causalidade, aquela que é adotada pelo ordenamento jurídico português. A aplicação da doutrina de perda de chance pode (e deve) ter lugar, no nosso ordenamento jurídico, através da sua consideração como um dano autónomo, ainda que a sua autonomia seja meramente relativa – porém suficiente para o destacar do dano final. A aplicação da doutrina da perda de chance através do seu enquadramento dogmático no plano do dano não coloca em causa qualquer disposição legal, quer a nível da causalidade, quer a nível de quaisquer outros pressupostos da responsabilidade civil. (…)”
W) Em face do que lapidarmente afirma este autor, facilmente se vislumbra o principal fundamento do nosso desacordo, e tese recursória principal: não obstante a aplicação da doutrina da perda de chance nos autos pela douta exégese dos Venerandos Desembargadores, facto é que os pressupostos da aplicação da mesma (ou seja, aos putativos danos invocados, em tese secundária e reduzida, pelo Recorrido) se afigura flagrante e manifestamente desajustada e resulta numa aplicação do direito perfeitamente errada e violadora do disposto nos artigos 496.º e 566.º, n.º 3 do Código Civil, uma vez que os pressupostos que consubstanciam o ponto de partida desta aplicação do direito – os valores médios indemnizatórios para danos semelhantes praticados na doutrina e jurisprudência nacionais – impunham que a perda de chance (ou de oportunidade, avaliada em 50%), recaíssem sobre valores de partida normais, o que não foi o caso.
X) Concretizando, a hipótese de indemnização por perda de chance nunca poderia conceber-se aplicada aos danos meramente peticionados pelo Recorrido, mas sim corrigida nos valores para níveis aceitáveis e fundados de acordo com as correntes jurisprudenciais e doutrinais dominantes.
Y) O que, a não ter sido feito, consubstancia desde logo uma errada e inaceitável aplicação do Direito, que deve ser revogada pelos Venerandos Conselheiros e substituída para termos equitativos, e Justos.
Z) É que entende a Recorrente que a mera discussão de valores em causa releva, mas está longe de ser a componente essencial da motivação do presente recurso: a abertura jurisprudêncial de uma tendência desta natureza terá concerteza efeitos transversais nefastos e de contornos imprescrutáveis, cumprindo com a sábia e Superior sindicância validar a correta aplicação do Direito, eliminando-se a desproporcionalidade relativamente aos elementos indiciários constantes da Lei e da jurisprudência para a quantificação indemnizatória deste tipo de danos, a que acrescerá então a ponderação por perda de chance.
AA) Repristinando em suma síntese a matéria nos autos recorde-se que o douto Acórdão Recorrido considerou na fixação do montante a condenar em sede de pedido de indemnização civil uma probabilidade de sobrevivência da utente às 19h do dia 30/08/2010 fixada em 50%, tendo assim e com a aplicação direta ao montante de danos peticionados pelo Recorrido chegado ao valor indemnizatório de € 294.510,58 (duzentos e noventa e quatro mil quinhentos e dez euros e cinquenta e oito cêntimos), valor de que não há história nas decisões jurisprudênciais nacionais de responsabilidade civil médica, e sobretudo baseado em doutrina de perda de chance, que por definição pressupõem uma margem de dúvida na concretização dos pressupostos de responsabilidade civil.
BB) As duas situações clinicas possíveis e admissíveis nos autos – uma situação clinica estável, e uma situação clinica de instabilidade hemodinâmica de alto risco de mortalidade -, implicariam uma probabilidade de sobrevivência de 50%, sendo manifestamente errado imputar um quantum indemnizatório desproporcional ao Recorrido, como resulta do Acórdão Recorrido, ainda mais quando a utente veio a falecer na sequência dum tromboembolismo bilateral maciço que á data do atendimento não era possível vislumbrar ou futurar.
CC) Pelo que, respeitando o sentido da decisão do Douto Tribunal da Relação, deverá ser a aplicação da doutrina de perda de chance corrigida nos seus pressupostos, partindo de valores indemnizatórios médios e razoáveis considerados na proporção dos 50% arbitrados.
DD) Neste sentido, revogando o douto Acórdão Recorrido com os fundamentos que antecedem e todos os demais que os Venerandos Juízes Conselheiros doutamente suprirão, se fará inteira, sã e merecida Justiça!
Termos em que, e nos demais de Direito que os Venerandos Juízes Conselheiros doutamente suprirão, se requer seja admitido o presente recurso e recebidas as respectivas alegações e, considerada a matéria constante das mesmas seja o presente Recurso de Revista Excepcional julgado procedente por provado, revogando-se o Acórdão Recorrido proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, na parte de que se recorre, nos termos peticionados e, decidindo em conformidade, farão os Venerandos Juízes Conselheiros inteira, sã e merecida JUSTIÇA
CONCLUSÕES:
Não se verificam, os fundamentos para admissão do recurso invocados pelos recorrentes, a saber não está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, nem estão em causa interesses de particular relevância social;
O valor da indemnização arbitrado é considerado desajustado, pelos recorrentes, assentando o seu entendimento na prática jurisprudencial; no entanto demonstramos, também, que casos houve em que os Venerandos Juízes Conselheiros deste Tribunal arbitraram indemnizações semelhantes; o acórdão parcialmente transcrito enumera os critérios para a fixação do valor e, em face desses critérios, a indemnização fixada parca por defeito.
Termos em que devem os recursos interpostos pela arguida BB e pelo demandado Hospital ---, EPE, Companhia de Seguros S.A., não ser admitidos, mas, na hipótese de os Venerandos Juízes Conselheiros o considerarem admissível, ser o mesmo julgado improcedente e, em consequência, ser confirmado o douto Acórdão, e, desta forma, farão os Venerandos Juízes Conselheiros aplicar finalmente JUSTIÇA.
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“Recurso da interveniente acessória “DD – Companhia de Seguros, SA” (1122-1149), e de revista excepcional da arguida/demandada civil BB, e demandado civil “Hospital ---, EPE” (1174-1199):
O 1.º dos recursos incide sobre a decisão que rejeitou o recurso interposto por esta interveniente «na parte cível da sentença proferida pela 1.ª Instância…».
O 2.º é de revista excepcional.
Carece, pois, o Ministério Público de legitimidade para emitir parecer no que ao primeiro respeita, por não representar qualquer das partes.”
“Decisão fáctica constante da sentença recorrida (transcrição):
“1. Factos Provados
Com relevância para a boa decisão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:
a) No dia 29 de Agosto de 2010, pelas 22h15m, FF deu entrada no Serviço de Urgência Médico Cirúrgico (doravante SUMC), à data Centro Hospitalar ..., EPE (doravante CHAA) e actualmente Hospital da ---, EPE (alteração operada pelo DL 177/2015 de 25 de Agosto e doravante HSOG), com queixas de cansaço com menos de uma semana de evolução, tosse e após acesso de tosse expectorou com sangue.
b) A arguida AA, médica, a exercer funções no referido hospital de medicina geral e familiar, encontrava-se de urgência no SUMC e, por volta das 00h07m, do dia 30/08/2010, observou a FF, tendo-lhe efectuado um exame objectivo sucinto.
c) A arguida AA determinou a realização de uma radiografia torácica e uma gasimetria, como meio de diagnóstico, o que foi feito.
d) Não obstante os exames realizados, a arguida AA não conseguiu identificar e diagnosticar a situação clinica e estado da FF.
e) Pelo que, apesar dos sintomas apresentados, pelas 1h23m, a arguida AA deu alta para o domicílio à FF sem diagnóstico concreto e com indicação para vigilância e estudo no médico de família se persistência do quadro e caso piorassem os sintomas regressar ao SUMC.
f) Tudo conforme descrito no respectivo relatório completo de episódio de urgência constante de fls. 17 e 18, o qual de dá aqui como integralmente reproduzido.
g) Pelas 12h50m, do dia 30/08/2010, porque o seu estado de saúde se agravou, a FF regressou de novo ao mesmo serviço de urgência SUMC, tendo sido agora assistida pela arguida BB, a exercer funções no referido hospital igualmente como médica de medicina geral e familiar, que lhe efectuou o exame objectivo, avaliando-lhe os sinais vitais, designadamente, a saturação de O2 e requisitou análises e electrocardiograma, conforme resulta do respectivo relatório completo de episódio de urgência constante de fls. 19 e 20, o qual de dá aqui como integralmente reproduzido.
h) Para além dos sintomas que já constavam no relatório de urgência do dia anterior (29.08) a FF queixou-se de falta de forças e desconforto torácico (conforme resulta do respectivo relatório completo de episódio de urgência constante de fls. 19 e 20).
i) Tendo entendido não ser de repetir a radiografia torácica, nem a gasimetria, porque segunda ela, a paciente “não tinha queixas de dispneia, nem os sinais vitais impunham a feitura desse tipo de exame.”.
j) Pelas 19h02m desse dia 30/08, a arguida BB deu alta para o domicílio a FF sem diagnóstico.
k) Entretanto, o estado de saúde da FF voltou a agravar e a mesma deu entrada, de novo, no SUMC, pelas 8h56m do dia 31/08/2010, já em paragem cardio-respiratória.
l) Iniciadas manobras de SAV recuperou ritmo estável às 9h40, após várias paragens cardíacas, e foi transferida para a UCIP onde permaneceu até falecer.
m) Às 10:11 horas do dia 31 foi confirmado o diagnostico de um trombo-embolismo pulmonar na bifurcação das artérias pulmonares direita e esquerda (aquando da sua transferência para a unidade de cuidados intensivos)
n) Acabou por falecer no dia 06/09/2010, devido a falência multiorgânica, em consequência da evolução de trombo-embolismo pulmonar de que padecia.
o) Perante os sintomas que a vítima apresentava, impunha-se, face às mais elementares regras da práxis médica, o estado da ciência médica e protocolos aplicados, a realização de outros exames analíticos, pelo menos, por parte da arguida BB.
p) Assim, face ao seu regresso ao SUMC, às queixas de cansaço, à presença de sangue na expectoração em doente em idade fértil, possivelmente a tomar anti-concepcionais, exigia-se que fosse considerada a possibilidade da expectoração hemoptóica e, por via disso, a realização de exame para determinação dos D-dimeros -produtos específicos da degradação da fibrina por activação da trobólise endógena-, que, quando estão elevados no sangue, em mais de 90% dos casos indiciam a ocorrência de trombo-embolismo pulmonar, mas que podem também quando aumentados, indiciar situações de enfarte do miocárdio, sépsis, gravidez ou qualquer doença inflamatória sistémica.
q) E, bem assim, solicitar a pesquisa de bacilos ácido-álcool resistentes (BAAR) na expectoração, para despiste de tuberculose pulmonar.
r) Para além disso, deveria ter sido solicitada a avaliação da FF por um especialista de medicina interna, uma vez que esta especialidade possui um âmbito interventivo especifico, diferente da medicina geral familiar ou, então, que fosse determinado o seu internamento, tendo em vista o acompanhamento da sua evolução clinica e permitir a realização rápida e atempada de tais exames e a avaliação por médico da especialidade, caso a situação se agravasse, como efectivamente aconteceu.
s) A morte de FF, no dia 06/09/2010, ocorreu por falência multiorgânica, em consequência da evolução de trombo-embolismo pulmonar o qual assim ocorreu por força da falha de diagnóstico das arguidas perante os sintomas apresentados e da falta de tratamento que era na circunstância devido e exigível, pelo menos, pela arguida BB, na qualidade de médica, quando a atendeu no dia 30 de Agosto.
t) Caso tivessem sido efectuados os exames referidos que se impunham, face aos sintomas apresentados e, bem assim, solicitada a intervenção de um especialista de medicina interna, de forma a obter-se o diagnóstico correcto e adequado, em consonância com tais sintomas e, se lhe tivesse sido administrado o correspondente tratamento, a FF teria sido tratada e poderiam ter sido superados os problemas da doença apresentados.
u) Apesar de saber disso e de ter capacidade para agir de maneira diferente, a arguida BB deu alta à FF, que, como não melhorou e se sentiu pior, obrigou-a a dar de novo entrada naquele SMUC, pelas 8h56m do dia 31/08, já em paragem cardio-respiratória.
v) A arguida BB, como médica e apesar dos sintomas apresentados pela doente, no atendimento que efectuou no serviço de urgência na qualidade de médica, não observou as cautelas, os cuidados e diligências que, segundo os conhecimentos e experiência médica, lhe era exigido e de que era capaz, tendente nas circunstâncias concretas do caso, a encontrar o diagnóstico correcto e a ministrar o tratamento adequado na tentativa de evitar a produção da morte da infeliz vítima.
w) Ao não proceder dessa forma, agiu a arguida BB de forma descuidada e desconforme ao que lhe era exigido no momento, assim violando as legis artis.
x) A FF após ter tido alta no dia 30/08 ainda se deslocou à Clinica ..., sendo que aí foi sujeita a consulta médica e marcação de exames, os quais se iriam realizar no dia 31.08.
y) No dia 29.08.2010, FF passou todo o dia a queixar-se de um cansaço anormal, cansaço que a impedia de subir os quatro degraus da entrada da sua residência, pelo que passou grande parte da tarde deitada a descansar.
z) A FF iria regressar ao trabalho nessa semana (inicio do mês de Setembro) após gozo de férias.
aa) No dia 30.08.2010, pelas 8h00, o assistente CC, questionou a sua esposa FF sobre o seu estado de saúde e, como esta referiu estar melhor, saiu e viajou para o Algarve em trabalho.
bb) Sucede que, quando se levantou da cama o extremo cansaço voltou a instalar-se, bem como a dificuldade em respirar, pelo que se dirigiu a casa da sua irmã.
cc) Aí, a FF não se aguentava em pé, e como começou a transpirar muito e a dizer que sentia dores ao respirar, a irmã optou por chamar uma ambulância para transportar a FF novamente às urgências do hospital.
dd) No dia 31.08, mesmo antes da cunhada da FF (GG) ir buscá-la para irem ao Hospital Privado ... (onde entretanto haviam marcado uns exames para a FF fazer), a FF ligou-lhe a dizer que se sentia bastante pior.
ee) A cunhada GG dirigiu-se de imediato para a casa da FF e encontrou-a deitada na cama, sem se conseguir levantar, faltava-lhe o ar, doía-lhe o peito e transpirava muito.
ff) Assustada, chamou de imediato os bombeiros para que, mais uma vez, a transportassem às urgências do hospital.
gg) Durante o período em que aguardavam pelos bombeiros, a FF perdeu os sentidos duas vezes.
hh) Mal os bombeiros levantaram a FF da cama, ela entrou em paragem cardio-respiratória.
ii) A FF deu assim entrada na urgência do hospital pelas 8h56 do dia 31.08.2010, em paragem cardio-respiratória e após entrou em coma e acabou por falecer no dia 06.09.2010 devido a falência multiorgânica.
jj) A FF nasceu no dia ....1973.
kk) Era casada com CC e tinha dois filhos: [...] e [...].
ll) O lesado CC gastou com o funeral a quantia de €2.507,48 (dois mil, quinhentos e sete euros e quarenta e oito cêntimos).
mm) Entre os dias 29.08.2010 a 31.08.2010 a FF viveu numa grande agonia e angustia, sem saber do que padecia, sentindo-se cada vez pior.
nn) Os dois filhos da FF, após a morte desta, necessitaram de apoio psicológico, o qual na presente data ainda se mantém.
oo) Passaram a sofrer de terrores nocturnos, de ansiedade, sentiram-se tristes e deprimidos, sentimentos que ainda hoje manifestam, pelo menos mais acentuados, quando em dias festivos, como o dia da Mãe, os seus aniversários, o Natal, etc.
pp) O filho ... deixou de ter aproveitamento escolar.
qq) O marido da FF, o lesado CC, após a sua morte ficou depressivo e apático, sendo que nos primeiros meses após a morte nem aos seus filhos conseguia valer por não ter força anímica para tal.
rr) Socorreu-se de familiares e amigos para o ajudarem na tarefa de recuperar os menores e cuidarem deles nos primeiros meses apos a morte da FF.
ss) O lesado CC teve de deixar de trabalhar nos primeiros meses após a morte da FF.
tt) A FF trabalhava numa loja de vestuário e acessórios e auferia mensalmente a quantia de €1.930,13 (mil, novecentos e trinta euros e treze cêntimos).
uu) O lesado CC era à data dos factos empresário sendo que, no ano de 2010, para efeitos de IRS declarou a titulo de remunerações ilíquidas a quantia global de €5.128,33 (cinco mil, cento e vinte e oito euros e trinta e três cêntimos).
vv) No inicio do ano de 2010 o lesado encerrou três empresas, nas quais era gerente e renegociou a titulo particular as dividas com Bancos e Estado, sendo que essa renegociação teve por base o salario auferido pela FF.
ww) Nessa altura, o lesado CC criou uma nova empresa, que tinha uma loja aberta no Algarve, onde auferia quantia não concretamente apurada mas não inferior a €500,00, mas tinha de percorrer todo o pais a vender, pelo que, a FF era quem se ocupava da casa e da educação dos dois filhos do casal.
xx) À data dos factos, os dois filhos do casal frequentavam um colégio privado (Colégio do Ave, em Guimarães).
yy) Em Janeiro de 2011 encerrou a loja que tinha no Algarve pois já não podia dedicar-se a ela e com a loja a empresa que era sua também encerrou em Maio desse mesmo ano.
zz) Em 14 Abril de 2011, o lesado CC foi declarado insolvente por sentença proferida no âmbito do processo n.º 1428/11.6TBGMR no então 5.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães.
aaa) Desde o dia em que a FF faleceu e até aos dias de hoje, o lesado e os seus filhos dependem da ajuda financeira dos seus cunhados e da então patroa da FF para custear a escola dos menores e os custos com a sua educação, vestuário e apoio psicológico.
bbb) O filho Manuel João, na presente data, já não frequenta o colégio privado, porquanto o pai não tem rendimentos suficientes que lhe permita custear o mesmo.
ccc) Em Setembro de 2011, o lesado arranjou um novo emprego, onde se encontra até hoje, como vendedor de automóveis e aufere quantia não concretamente apurada mas não inferior a € 600,00 por mês.
ddd) A EE – Companhia de Seguros S.A. celebrou com a Ordem dos Médicos um contrato de seguro de grupo, titulado pela apólice n.º 84.10.0680091, pelo qual garantiu a responsabilidade civil profissional dos médicos perante terceiros, derivada de danos e prejuízos causados no exercício da sua profissão de médicos, desde que exercida de acordo com a legislação vigente, tudo conforme consta da respectiva apólice, das condições gerais, especiais e particulares, que se mostram a fls. 640 a 661 e cujo teor se dá aqui por reproduzido.
eee) Este contrato teve início no dia 01.01.2009 e foi celebrado pelo prazo de um ano, sucessivamente renovável.
fff) O capital seguro para a responsabilidade civil profissional de cada uma dos médicos segurados, convencionado como sendo o valor máximo da prestação a pagar pela demandada por cada período de vigência do contrato, era de €30.000,00 por anuidade e de € 15.000,00 por sinistro.
(Factos relativos à personalidade e condição pessoal do arguido)
ggg) A arguida AA trabalha no Hospital de Leiria auferindo quantia não concretamente apurada mas não inferior a €2.000,00 por mês, sendo que é divorciada e tem um filha a estudar na Universidade e vive em casa arrendada pagando a titulo de renda quantia não concretamente apurada mas não inferior a €300,00 por mês.
hhh) A arguida BB trabalha no Hospital Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães, no âmbito de um contrato de prestação de serviços, sendo que aufere quantia não concretamente apurada mas em média entre €1.500,00 e € 2.000,00 por mês, sendo que é divorciada e tem um filha com 9 anos de idade e vive em casa arrendada pagando a titulo de renda quantia não concretamente apurada mas não inferior a €700,00 por mês.
iii) À arguida AA não são conhecidos antecedentes criminais.
jjj) À arguida BB são conhecidos os seguintes antecedentes criminais:
1. Por sentença datada de 12.09.2011, ao abrigo do processo n.º 46/11.3PTGMR do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, a arguida foi condenada pela prática, em 09.09.2011, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de € 8,00.
*
2. Factos Não Provados
Não resultou provado, com relevância para a decisão a proferir, que:
1. A arguida AA aquando do mencionado em b) dos Factos Provados não cuidou sequer de apurar ou averiguar os antecedentes da própria doente.
2 O mencionado em s) dos Factos Provados era na circunstância devido e exigível pela arguida AA, na qualidade de médica, quando a atendeu no dia 29 de Agosto.
3. A arguida AA, como médica e apesar dos sintomas apresentados pela doente, no atendimento que efectuou no serviço de urgência na qualidade de médica, não observou as cautelas, os cuidados e diligências que, segundo os conhecimentos e experiência médica, lhe era exigido e de que era capaz, tendente nas circunstâncias concretas do caso, a encontrar o diagnóstico correcto e a ministrar o tratamento adequado na tentativa de evitar a produção da morte da infeliz vítima.
4. Ao não proceder dessa forma, agiu a arguida AA de forma descuidada e desconforme ao que lhe era exigido no momento, assim violando as legis artis.
Em primeiro lugar há que apreciar a questão da legitimidade da recorrente DD – Companhia de Seguros S.A, cujo recurso foi admitido por despacho de 11 de Outubro de 2017, embora na decisão ora recorrida de 8 de Maio de 2017, se decidisse:
“a)Rejeitar, por inadmissibilidade, o recurso da interveniente acessória DD – Companhia de Seguros, SA, anteriormente denominada EE Companhia de Seguros, S.A.”
Esta recorrente entende em suma que “ com o devido respeito, não podem restar quaisquer dúvidas que a decisão proferida pela 1ª instância e impugnada pela DD perante o Tribunal da Relação, afeta diretamente o direito da recorrente em ver julgada procedente a ilegitimidade da demandada cível BB e, consequentemente, a sua absolvição do pedido de indemnização cível, de forma a evitar tenha de proceder ao reembolso dos valores que aquela venha a pagar.
44 - Encontra-se, assim, respeitado o requisito exigido na parte final da alínea d) do artigo 401º, nº 1 do Código de Processo Penal.
45 – O douto acórdão recorrido violou por erro de interpretação os artigos 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, artigos 321º, 323º, nº 4, 332º, nº 1 e 631º, nº 2 do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 3º do Código de Processo Penal, e artigo 401º, nº 1, al. d) deste último diploma.
46 – Estas disposições legais devem antes ser interpretadas no sentido de que uma seguradora que garantiu a responsabilidade civil profissional de um médico decorrente de danos causados a terceiros no exercício da sua profissão de médico, não obstante a qualidade de interveniente acessória num pedido de indemnização civil em que é discutida a responsabilidade civil extracontratual do médico seu segurado por, ao serviço de uma pessoa coletiva de direito público de natureza empresarial que tem como objeto a prestação de cuidados de saúde à população, designadamente aos beneficiários do Serviço Nacional de Saúde, ter causado a morte de um paciente, tem legitimidade para recorrer das decisões que julgaram como parte legítima aquele médico seu segurado e que o condenaram a pagar uma indemnização por essa morte, nomeadamente, para que a questão da (i)legitimidade desse médico seja julgada por tribunal superior ao abrigo do disposto na Lei 67/2007, de 31/12, pois que essas decisões a prejudicam direta e efetivamente porque constituem caso julgado em relação a essa seguradora, que assim é obrigada a aceitar, em futura ação de regresso movida pela sua segurada, aquelas decisões.
Termina por pedir que deve revogar-se o douto acórdão recorrido na parte em que rejeitou, por inadmissibilidade, o recurso da interveniente acessória DD – Companhia de Seguros, S.A. e a condenou ao pagamento das custas do recurso e da quantia de três UCS, ordenando-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação de Guimarães para apreciação do mérito do recurso ali interposto pela DD– Companhia de Seguros, S.A.,
Analisando
Por força do princípio da adesão, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei (artº 71º do C.P.P. quer antes, quer depois, da revisão operada pela Lei nº 59/98 de 25 de Agosto).
A dedução do pedido cível em processo penal é pois, a regra, e a dedução em separado a excepção (v. artºs 71º, 72 e 75 do C. Processo Penal), sem prejuízo de, quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem susceptíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal, o tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis. – nº 3 do artº 72º.
Embora o processo civil defina vários aspectos do regime da acção enxertada, como da definição da legitimidade das partes, é a acção penal que verdadeiramente suporta, orienta e conforma todo o rito processual, marcando definitivamente a cadência de intervenção dos demandantes civis na causa e os principais aspectos de forma a observar no seu desenrolar, sem esquecer a diligência para que conflui todo o processo: a audiência de julgamento.
Isto significa que a indemnização é regulada, quantitativamente e nos seus pressupostos, pela lei civil, mas não tratando de questões processuais, que são reguladas na lei adjectiva, isto é, embora deduzida em processo penal, de harmonia com o princípio da adesão (artºs 71º e segs do CPP), subordina-se, porém, na dimensão quantitativa e respectivos pressupostos, à lei civil.”
Não incumbe ao Supremo Tribunal na apreciação do pedido de indemnização civil deduzido em processo penal conhecer da existência ou não, de litisconsórcio necessário ou da necessidade de intervirem na lide outros intervenientes..
Na verdade, como supra se referiu, a instância submete-se às regras de processo penal e apenas a indemnização à “dimensão quantitativa e respectivos pressupostos, à lei civil.”
Em processo penal, como salienta Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição revista, -Almedina, p. 240, nota 8, a propósito de anotação ao artº 72º:
“A adesão justifica-se pela economia de tempos e actos permitida pelo aproveitamento do processo penal, contrariando a finalidade da adesão acrescentar complexidade dos meios de processo civil que seja exclusivamente causada pelo pedido cível; a adesão tem como finalidade auxiliar a reparação dos danos do lesado pelo crime e não dificultar ou adensar a complexidade do processo penal. A alínea f) não impõe a adesão nos casos de haver responsáveis meramente civis[…]”
Por isso, o artº 73.º do CPP, ao versar sobre “Pessoas com responsabilidade meramente civil” considera que:
1 - O pedido de indemnização civil pode ser deduzido contra pessoas com responsabilidade meramente civil e estas podem intervir voluntariamente no processo penal.
2 - A intervenção voluntária impede as pessoas com responsabilidade meramente civil de praticarem actos que o arguido tiver perdido o direito de praticar.
Nesta ordem de ideias se compreende que “A intervenção processual do lesado restringe-se à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos assistentes. “ e que “Os demandados e os intervenientes têm posição processual idêntica à do arguido quanto à sustentação e à prova das questões civis julgadas no processo, sendo independente cada uma das defesas” – nºs 2 e 3 , do artº 74º do CPP.
O acórdão recorrido fundamentou:
“A-O recurso da interveniente acessória DD – Companhia de Seguros, SA, anteriormente denominada EE Companhia de Seguros, S.A.:
Como questão prévia, importa averiguar, oficiosamente, se a interveniente acessória DD – Companhia de Seguros, SA tem legitimidade para interpor recurso da parte cível da sentença recorrida.
A titularidade do direito de recorrer está deferida às pessoas que as várias alíneas do nº 1 do artigo 401º CPP enumeram.
Assim, na parte que ora releva, têm legitimidade para recorrer, nos termos da al. c), «as partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas», e, nos termos da parte final da al. d), «Aqueles que (…) tiverem a defender um direito afectado pela decisão», a que acresce ainda, para que o recurso seja admissível, o interesse em agir (recorrer) – vd. nº 2 do citado preceito.
Com efeito, como escreve Antunes Varela, “Uma coisa é, de facto, a titularidade da relação material litigada, base da legitimidade das partes; outra substancialmente distinta, a necessidade de lançar mão da demanda, em que consiste o interesse em agir.” (negrito nosso) - cfr. Manual de Processo Civil, pág. 172
A legitimidade consubstancia-se, pois, na posição de um sujeito processual face a determinada decisão proferida no processo, justificativa da possibilidade de impugnar através de um dos recursos tipificados na lei, enquanto o interesse em agir consiste na necessidade de apelo aos tribunais para acautelamento de um direito ameaçado que precisa de tutela e só por essa via logra obtê-la.
Relativamente à categoria tipificada na al. c) do nº1 do artº 401º, do CPP, o Prof. Germano Marques da Silva expende que “ As decisões proferidas contra cada uma das partes civis são tanto as que absolvem ou condenam em quantia inferior ao pedido – proferida contra quem pede – como as que condenam o responsável civil em quantia superior à que admitiu como devida – proferida contra o condenado». – vd pag. 316
De salientar, ainda, por não despiciendo, que é no artigo 73 º do CPP que se mostra regulada a legitimidade passiva da relação processual civil enxertada no processo penal – com excepção do arguido; a legitimidade activa é regulada, por sua vez, no nº 1 do artº 74º.
Mais problemática é a determinação dos contornos de legitimidade traçados pela alínea d) do nº 1 do artº 401º do CPP, designadamente na sua parte final ao permitir o recurso àqueles que «tiverem a defender um direito afectado pela decisão».
Comentando esta expressão, Manuel Simas Santos e M. Leal Henriques dizem que «É necessário que o prejuízo causado ao recorrente, pela decisão, seja directo e efectivo e não meramente eventual» (negrito nosso) - vd. Código de Processo Penal Anotado, 2ª ed., Editora Rei dos Livros, II volume, pág. 681.
Ainda a propósito do mesmo segmento, escreve-se no ac. da Relação do Porto de 27/10/1993, que « (…) não pode tal expressão ser portadora de um significado tão amplo que inclua entre os contemplados com o direito ao recurso todos os que, ainda que de forma indirecta ou longínqua, possam ser afectados com a decisão», concluindo-se que « (…) a expressão em causa haverá de sofrer uma interpretação restritiva consonante com o apontado propósito legislativo, ou seja o de que o direito afectado pela decisão o seja de forma frontal e directa» (negrito nosso) - vd. CJ, Ano XVIII, tomo IV, pág. 263 e ss
In casu a AXA-Portugal Companhia de Seguros Vida, S.A, agora denominada DD – Companhia de Seguros, SA, figurou na acção cível conexa com a acção penal objecto dos presentes autos exclusivamente na veste de parte acessória, na sequência da suscitação do seu chamamento pela arguida /demandada civil ..., e que foi admitido.
O papel do interveniente acessório provocado é, por força do preceituado no artº 321º do Código de Processo Civil [CPC], o de mero auxiliar na defesa do réu que o chamou, cingindo-se a sua participação processual «à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento», e cabendo-lhe, nas fases subsequentes à respectiva citação, por força do artº 323º, nº 1, do CPC, o estatuto de assistente definido no artº 328º, do mesmo Código, sendo que o assistente apenas é considerado «substituto processual» do assistido na específica situação prevista no artº 329º deste Código.
Comentando o anterior artigo 330º do CPC - actual artº 321º, Lopes do Rego expende o seguinte: “ Na base de tal configuração está a ideia de que a posição processual que deve corresponder ao sujeito passivo da relação de regresso, conexo com a controvertida - e invocada pelo réu como causa de chamamento – é a de mero auxiliar da defesa, tendo em vista o seu interesse indirecto ou reflexo na improcedência da pretensão do autor, pondo-se, consequentemente, a coberto de ulterior e eventual acção de regresso ou de indemnização contra ele movida pelo réu da causa principal”.
Mas, assim sendo, prossegue a mesmo Autor, “ não deve ser tratado como “parte principal”, o seu papel e estatuto reconduzem-se, pois, ao de auxiliar na defesa, visando com a sua actuação processual – não obstar à própria condenação, reconhecidamente impossível – mas produzir a improcedência da pretensão que o autor deduziu no confronto réu- chamante ”.- (negrito nosso) – cfr. Comentários ao Código de Processo Civil, págs 252 e ss.
De onde se conclui que o interveniente, em incidente de intervenção acessória provocada, não é sujeito da relação material controvertida no processo, já que não é contra ele, mas contra o réu, requerente no chamamento, que é formulado o pedido da acção, razão porque a proceder, é o réu e não o chamado, que é condenado – neste sentido, entre outros, Ac. STJ de 21/03/2006, CJ/STJ 2006, tomo I, pág. 141.
Aqui chegados, podemos concluir que a recorrente não reúne a qualidade mencionada na alínea c) do nº 1, do artº 401º, do CPP [“parte civil”] para poder recorrer da parte cível da sentença, uma vez que não é sujeito passivo na relação processual civil enxertada nos presentes autos, o mesmo é dizer, não é arguido nem responsável meramente civil [vd. artº 73º do CPP] e, consequentemente, não há sequer que falar em decisão contra si proferida.
Por outro lado, e salvo o devido respeito por opinião adversa,[1] a sua legitimidade para recorrer também não encontra arrimo na alínea d) do nº 1, do artº 401º do CPP, por não ser titular de um «direito» que resulte directa e imediatamente afectado pela decisão condenatória respeitante ao pedido de indemnização civil formulado nos autos. Dito por outras palavras, a decisão condenatória proferida contra a demandada civil ... não tem incidência directa e imediata na sua esfera jurídica, apenas podendo relevar, de modo estritamente reflexo e indirecto, no âmbito de uma futura e eventual acção de regresso.
Deste modo, o recurso da Interveniente Acessória DD – Companhia de Seguros, SA não é admissível.[2]
Não devia por isso, face ao disposto no artº 414º, nº 2, do CPP, ter sido admitido.
Tendo-o sido, deve agora ser rejeitado, nos termos do artº 420º, nº 1, alínea b), do CPP.”
O “Conceito de legitimidade” é dado pelo artº 26º do Código de Processo Civil que dispõe:
1. O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer.
2. O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3. Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida.
O Artigo 74.º do CPP, dispondo sobre “Legitimidade e poderes processuais”, refere:
1 - O pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente.
2 - A intervenção processual do lesado restringe-se à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos assistentes.
3 - Os demandados e os intervenientes têm posição processual idêntica à do arguido quanto à sustentação e à prova das questões civis julgadas no processo, sendo independente cada uma das defesas.
Há assim desde logo a retirar deste nº 3 que os intervenientes “têm posição processual (idêntica à do arguido) “quanto à sustentação e à prova das questões civis julgadas no processo”, e com autonomia na defesa (independente cada uma das defesas)
O interveniente “pode arrolar testemunhas em número não superior a 10 ou a 5, consoante o valor do pedido exceda ou não a alçada da relação em matéria cível.” Nº 2 o art79º do CPP
O Código de Processo Civil (CPC), no seu CAPÍTULO III refere-se à “Intervenção de terceiros”, cuja SECÇÃO Ise refere à “Intervenção principal”, desdobrando-se na SUBSECÇÃO I sobre “Intervenção espontânea” Artigo 311.º a 315º (art.º 319.º a 324º, do CPC 1961), e na SUBSECÇÃO II sobre “Intervenção provocada”- arts 316º a 320º(art.º 325.a 328º, do CPC 1961)
Referindo-se à “Intervenção provocada”, o Artigo 316.ºdo CPC (art.º 325.º CPC 1961), ao determinar o seu Âmbito, dispõe
1 - Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
2 - Nos casos de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do artigo 39.º.
3 - O chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este:
a) Mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida;
b) Pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.
A Ageas como litisconsorte voluntário foi chamada pela demandada BB, por esta ter interesse atendível em a chamar à lide, como sujeito passivo da relação material controvertida, uma vez que a demandada poderia exercer contra ela direito de regresso assumindo a Ageas a co-titularidade do direito de indemnização invocado pelo autor, face ao contrato de seguro celebrado entre a demandada e a interveniente.
Na verdade, como dispõe o Artigo 317.º do CPC(art.º 329.º CPC 1961), sobre a “Efetivação do direito de regresso”
1 - Sendo a prestação exigida a algum dos condevedores solidários, o chamamento pode ter por fim o reconhecimento e a condenação na satisfação do direito de regresso que lhe possa vir a assistir, se tiver de realizar a totalidade da prestação.
2 - No caso previsto no número anterior, se apenas for impugnada a solidariedade da dívida e a pretensão do autor puder de imediato ser julgada procedente, é o primitivo réu logo condenado no pedido no despacho saneador, prosseguindo a causa entre o autor do chamamento e o chamado, circunscrita à questão do direito de regresso.
Aliás, conforme Artigo 319.º (art.º 327.º CPC 1961)
1 - Admitida a intervenção, o interessado é chamado por meio de citação.
2 - No ato de citação, recebem os interessados cópias dos articulados já oferecidos, apresentados pelo requerente do chamamento.
3 - O citado pode oferecer o seu articulado ou declarar que faz seus os articulados do autor ou do réu, dentro de prazo igual ao facultado para a contestação, seguindo-se entre as partes os demais articulados admissíveis.
[…]
Por sua vez, o Artigo 320.º (art.º 328.º CPC 1961) é peremptório sobre o Valor da sentença quanto ao chamado, determinando que “A sentença que vier a ser proferida sobre o mérito da causa aprecia a relação jurídica de que seja titular o chamado a intervir, constituindo, quanto a ele, caso julgado.”
Mas a SECÇÃO II do citado capítulo referente à “Intervenção acessória”contempla na SUBSECÇÃO I a “Intervenção provocada” determinando o Artigo 321.º (art.º 330.º CPC 1961)o seu “Campo de aplicação”
1 - O réu que tenha ação de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que o terceiro careça de legitimidade para intervir como parte principal.
2 - A intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na ação de regresso invocada como fundamento do chamamento.
Constando os termos subsequentes do Artigo 323.º (art.º 332.º CPC 1961)
1 - O chamado é citado, correndo novamente a seu favor o prazo para contestar e passando a beneficiar do estatuto de assistente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 328.º e seguintes.
[2 - Os assistentes gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres que a parte assistida, mas a sua atividade está subordinada à da parte principal, não podendo praticar atos que esta tenha perdido o direito de praticar nem assumir atitude que esteja em oposição com a do assistido; havendo divergência insanável entre a parte principal e o assistente, prevalece a vontade daquela.]
[…]
4 - A sentença proferida constitui caso julgado quanto ao chamado, nos termos previstos no artigo 332.º, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior ação de indemnização.
[Artigo 332.º (art.º 341.º CPC 1961)
Valor da sentença quanto ao assistente
A sentença proferida na causa constitui caso julgado em relação ao assistente, que é obrigado a aceitar, em qualquer causa posterior, os factos e o direito que a decisão judicial tenha estabelecido, exceto:
a) Se alegar e provar, na causa posterior, que o estado do processo no momento da sua intervenção ou a atitude da parte principal o impediram de fazer uso de alegações ou meios de prova que poderiam influir na decisão final;
b) Se mostrar que desconhecia a existência de alegações ou meios de prova suscetíveis de influir na decisão final e que o assistido não se socorreu deles intencionalmente ou por negligência grave.]
A intervenção da parte acessória demandada encontra-se pois subordinada à da parte principal, não podendo praticar atos que esta tenha perdido o direito de praticar nem assumir atitude que esteja em oposição com a do assistido; havendo divergência insanável entre a parte principal e o assistente, prevalece a vontade daquela.
A parte principal encontra-se, por sua vez, limitada pela relação jurídica como foi configurada pelo Autor.
A legitimidade não é “uma qualidade pessoal das partes (como a capacidade), mas uma certa posição delas em face da relação material litigada” Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração do Prof. Antunes Varela, Coimbra Editora, Limitada, 1978, p. 85
Segundo o nº 2 deste preceito: - Sem prejuízo do disposto nos artigos 427º e 432º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
E de harmonia com o Artigo 401.ºdo CPP sobre Legitimidade e interesse em agir
1 - Têm legitimidade para recorrer:
a) O Ministério Público, de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido;
b) O arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas;
c) As partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas;
d) Aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código, ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão.
2 - Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.
Uma coisa é a legitimidade e outra o interesse em agir.
Embora a recorrente possa ter interesse em agir, não tem porém legitimidade para recorrer, pelas razões aduzidas pelo acórdão recorrido.
O que a recorrente Ageas pretende é discutir a legitimidade passiva - mas, como se sabe o Código de Processo Civil não consagrou a tese de Alberto dos Reis - e não se confunde com a legitimidade activa, a qual incumbe a quem tem interesse em demandar ou contradizer , como titular da relação material controvertida, tal como é caracterizada pelo autor.
Aliás, a sentença da 1ª instância faz um excurso jurídico pertinente sobre a matéria, indeferindo a excepção suscitada, e que vale a pena transcrever:
“Citados os demandados vieram os mesmos contestar, sendo que a arguida BB deduziu incidente de intervenção acessória provocada da Companhia de Seguros EE – Companhia de Seguros de Vida, S.A., o qual foi julgado procedente.
A Companhia de Seguros apresentou-se igualmente a contestar, invocando, entre o mais, a incompetência material deste tribunal e a ilegitimidade da demandada BB, questões a apreciar na presente decisão.
Entretanto, no decorrer na audiência de julgamento o assistente e demandante civil veio reduzir o pedido para a quantia de €589.021,16 (quinhentos e oitenta e nove mil, vinte e um euros e dezasseis cêntimos). – cfr. fls. 893 e 894.
As arguidas AA e BB apresentaram contestação escrita e indicaram prova testemunhal (cfr. fls. 445 e ss. e 426 e ss.).
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, a qual decorreu com cumprimento das pertinentes formalidades legais nas várias sessões.
Após o despacho que recebeu a acusação e designou data para julgamento, não sobreveio qualquer nulidade, excepção, questão prévia ou incidental que cumpra conhecer e que obste à apreciação do mérito, com excepção da incompetência material deste tribunal e da ilegitimidade da demandada BB, invocadas pela chamada Companhia de Seguros EE – Companhia de Seguros de Vida, S.A., as quais se apreciam nos termos seguintes:
- Entende a chamada que o presente tribunal é incompetente em razão da matéria uma vez que o CHAA, E.P.E. era, à data da propositura do pedido de indemnização civil, uma pessoa colectiva de direito público de natureza empresarial, tendo por objecto principal a prestação de cuidados de saúde à população, designadamente aos beneficiários do serviço nacional de saúde, sendo então competente o tribunal administrativo.
O assistente respondeu pugnando pela competência do presente tribunal comum porquanto estar em causa um pedido de indemnização civil fundado na violação de deveres de cuidado da parte das arguidas no decurso da assistência médica que conduziu à morte da esposa do assistente e dai a responsabilidade das demandadas não esta configurada como sendo uma censura a actos no exercício de poderes de natureza pública mas sim de natureza médica.
Segundo os artigos 40.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei 62/2013, de 26 de Agosto) e 64.º do NCPC, as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais.
Assim, a atribuição de competência a tribunal de jurisdição especial depende da verificação de um duplo pressuposto: - o objecto da acção e a existência de uma norma específica atributiva de competência à jurisdição especial.
Daí que a competência dos tribunais comuns seja genérica ou residual, cabendo-lhes conhecer de todas as causas que não estejam atribuídas por lei a alguma jurisdição especial.
No presente caso, o autor apresentou o seu pedido nos tribunais comuns, ao passo que o réu Estado Português defende a competência dos tribunais administrativos.
A competência da jurisdição administrativa encontra-se prevista e regulada nos art.ºs 212.º, n.º 3 da Constituição da República e nos artigos 1.º e 4.º do actual ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro.
Nos termos do art.º 212.º n.º 3, da CRP “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Dispõe o art.º 1.º n.º 1 do actual ETAF que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
E o art.º 4.º do ETAF concretiza o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal definido em termos gerais pelo art.º 1.º n.º 1, quer de forma positiva, enumerando o objecto dos litígios sujeitos a tal jurisdição (efectuada no n.º 1), quer de forma negativa, enumerando determinados litígios de natureza administrativa, cuja apreciação é expressamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal (nos seus n.ºs 2 e 3).
Entre outras questões que, não relevam no caso dos autos, nos termos da alínea h), do n.º 1, do citado art.º 4.º do actual ETAF, cabe aos Tribunais Administrativos a competência para a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: “Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público” (n.º 1, alínea h)).
Mas a competência dos tribunais administrativos é limitada pelos n.ºs 2 e 3, do mesmo artigo que, no que ao caso dos autos interessa, excluem do âmbito da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de:
- “Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal” - n.º 2, alínea b);
- “Actos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões” - n.º 2, alínea c);
- Fica igualmente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: “A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso” – n.º 3, alínea a).
Assim, a citada alínea h) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF, atribui aos tribunais administrativos a competência para julgar todas as acções de indemnização fundadas em responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público.
In casu, estão em causa actos praticados por duas médicas, as quais prestam serviços médicos, no âmbito de contratos de prestação de serviços, no CHAA, E.P.E., actos esses de natureza médica que foram praticados no exercício da sua profissão naquele serviço de urgência, pelo que entendemos que têm natureza jurisdicional.
Em suma, este tribunal é competente em razão da matéria.
*
- Por outro lado, invoca a chamada a ilegitimidade da demandada BB alegando, em síntese, que o CHAA, E.P.E. agiu no exercício de um poder público e sob o domínio de normas de direito público, sendo que, em obediência ao disposto no n.º 1 do art.º 7.º e 8.º do DL 67/2007 de 31/12, a presente acção deveria ter sido instaurada apenas contra o CHAA, E.P.E., já que não foi alegado que a demandada BB tivesse praticado qualquer acção ou omitido qualquer comportamento de forma dolosa ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontrava obrigada e justificativo do regime de solidariedade previsto no n.º 1 do art.º 8.º daquele diploma.
O assistente, mais uma vez, veio pugnar pelo indeferimento de tal pretensão alegando que, tanto na acusação proferida pelo Ministério Publico como no pedido de indemnização civil se descrevem todos os factos ocorridos, bem como a forma negligente como a demandada BB atendeu a doente, elucidando-se ainda os actos médicos que a mesma deveria ter praticado e não praticou.
A ilegitimidade constitui uma excepção dilatória nominada, conducente à absolvição do réu da instância, ao abrigo do disposto nos art.ºs 278.º n.º 1 alínea d), 576.º n.ºs 1 e 2, 577.º n.º 1 alínea e) e 578.º, todos do NCPC.
A legitimidade, enquanto pressuposto processual, exprime a relação entre a parte no processo e o objecto deste (a pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o.1
[1 José Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 1999, pág. 51].
Sobre a legitimidade regem os art.ºs 30.º e seguintes do NCPC, estabelecendo o seu n.º 1 que o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer.
De resto, os titulares do interesse relevante para efeitos de legitimidade são, em princípio, os sujeitos da relação jurídica material controvertida, não a efectiva, mas a que o autor formulou na petição inicial, nos seus precisos termos, em conformidade com o n.º 3 do citado art.º 30.º do NCPC. Na verdade, o que se pretende é que na lide estejam as partes titulares do litígio, dessa forma se salvaguardando o princípio do contraditório e a certeza de que a decisão proferida a final vinculará os verdadeiros sujeitos da relação jurídica controvertida.
A propósito da questão de saber que situação jurídica ou relação material controvertida é aquela por que se afere a legitimidade processual, pronunciaram-se, em sentidos divergentes, Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães. Para este, aquela consubstancia-se na relação alegada pelo autor, enquanto que, para Alberto dos Reis, a relação material controvertida é a efectivamente existente, ou seja, a determinada pelo Juiz após a contestação deduzida pelo réu.2 ~
[2 Alberto dos Reis, in Código do Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª Edição, Coimbra Editora – 1980, p.73. ]
Na verdade, e em conformidade com o que acima se referiu, a solução normativa consagrou a tese defendida por Barbosa de Magalhães (cf. art.º 30.º n.º 3 do NCPC).
Assim, o que importa apurar, à luz do art.º 30.º do CPC é se os réus, face ao pedido e à causa de pedir, tal como resultam deduzidos ou configurados pelo autor, têm ou não interesse directo em contradizer, nomeadamente por serem os réus, na perspectiva do autor, titulares passivos da relação material controvertida.
No caso sub judice, a Companhia de Seguros EE, Companhia de Seguros de Vida S.A. foi admitida como interveniente acessória nos termos do disposto no art.º 321.º do NCPC, ou seja, a mesma só responde perante a demandada BB e em virtude da relação contratual que entre ambas intercede.
Destarte, resulta manifesto que o tribunal já decidiu quer da legitimidade da demandada BB quer da chamada para intervir nos autos, não interessando nesta sede decidir da efectiva e concreta responsabilidade daquela (questão de mérito).
Pelo exposto, indefiro a arguida excepção.”
A excepção suscitada pela recorrente Ageas, seria sempre de indeferir.
Acresce, por outro lado, que a decisão sobre a excepção de ilegitimidade, é uma decisão interlocutória,
O artº 432º nº 1 al. d) do CPP, refere que:
Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça: “De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores”, que, não sendo decisões interlocutórias, são decisões finais.
Porém, resulta do artº 400º nº 1 al. c) do CPP, que não é admissível recurso: De acórdãos proferidos em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objecto do processo,”
«Conhecer do objecto do processo», “é afinal, conhecer do mérito ou fundo da causa”– Pereira Madeira, Código de Processo Penal comentado, p. 1251, nota 4.
O STJ só conhece dos recursos das decisões interlocutórias do tribunal de 1.ª instância que devam subir com o da decisão final, quando esses recursos (do tribunal do júri ou do tribunal colectivo) sejam directos para o STJ e não quando tenham sido objecto de recurso decidido pelas Relações.
A circunstância de o recurso interlocutório ter subido com o interposto da decisão final não altera em nada a previsão legal, como não a altera a circunstância de ter sido apreciado e julgado na mesma peça processual em que o foi o principal. (v. Ac. deste Supremo de 21-06-2007, Proc. n.º 1581/07 - 5.ª Secção).
É irrecorrível, conforme estabelece a al. c) do n.º 1 do art. 400.º, por referência à al. b) do art. 432.º, ambos do CPP, a decisão da Relação tomada em recurso que, tendo absoluta autonomia relativamente às demais questões suscitadas, não pôs termo à causa por não se ter pronunciado sobre a questão substantiva que é o objecto do processo. Para efeito da recorribilidade, mostra-se indiferente a forma como o recurso foi processado e julgado pela Relação, isto é, se o recurso foi processado autonomamente ou se a decisão se encontra inserida em impugnação da decisão final (v. o Ac. deste Supremo, de 09-01-2008, Proc. n.º 2793/07 - 3.ª, e o Ac. de 21-05- 2008, in Proc. nº 414/08- 5ª)
Este entendimento respeita a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição e encontra-se em perfeita sintonia com o regime traçado pela Reforma de 1998, e mantido na Reforma de 2007, para os recursos para o STJ: sempre que se trate de questões processuais ou que não tenham posto termo ao processo, o legislador pretendeu impedir o segundo grau de recurso, terceiro de jurisdição, determinando que tais questões fiquem definitivamente resolvidas com a decisão da Relação. (v. Ac. deste Supremo, de 19-6-08 proc.2043 - 5ª)
A Lei 59/98, de 25-08, introduziu um fundamento novo de irrecorribilidade das decisões da Relação que não ponham termo à causa; a Lei n.º 48/2007, de 29-08, ampliou o âmbito da irrecorribilidade das decisões da Relação que não conheçam, a final, do objecto do processo
O propósito da Lei 48/2007, escreve Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1002), foi o de alargar a irrecorribilidade a todos os acórdãos proferidos em recurso pelas Relações que ponham termo à causa mas não conheçam do mérito do pleito. (v. Ac. deste Supremo e desta Secção de 12-6-08 proc.1782/08)
As Leis posteriores, não alteraram a situação.
De acordo com o entendimento já expresso por este Supremo Tribunal, decisão que põe termo à causa é aquela que tem como consequência o arquivamento, ou encerramento do objecto do processo, mesmo que não se tenha conhecido do mérito. Em última análise, trata-se da decisão que põe termo àquela relação jurídica processual penal, ou seja, que determina o terminus da relação entre o Estado e o cidadão imputado, configurando os precisos termos da sua situação jurídico-criminal.
Verifica-se, assim, sem margem para dúvidas que o recurso interlocutório versava exclusivamente uma decisão de natureza interlocutória e não uma decisão que pusesse fim à causa. Consequentemente, por inadmissibilidade do respectivo recurso, não pode, nem deve, o STJ apreciar qualquer patologia concernente ao mesmo. (v. Ac. deste Supremo e desta Secção de 16-5-08, P 899/08, 3ª)
È pois de rejeitar o recurso interposto pela Seguradora Ageas, nos termos dos artº 420º nº 1, al. b) e 414º, nº 2, do CPP, sendo que conforme nº 3 do referido artº 414. “A decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior.”
Tendo em conta o exposto, uma vez que a alçada da Relação é de 30.000€ conforme artº 31º da Lei nº 52/2008 de 28-08-2008, e Artigo 44.º da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, o valor do pedido e o valor desfavorável para os recorrentes, relativamente à decisão impugnada, verifica-se que a decisão recorrida é passível de recurso para o Supremo.
Dizem em suma os recorrentes que:
Não podendo conformar-se com o douto Acórdão Recorrido, na parte que respeita à componente da condenação indemnizatória (ou seja, da matéria civil), em que o douto Tribunal da Relação decidiu pela condenação dos ora Recorrentes, no pagamento ao assistente da quantia de € 294.510,58 (duzentos e noventa e quatro mil, quinhentos e dez euros e cinquenta e oito cêntimos), vêm os aqui Recorrentes interpor o presente recurso de revista excepcional do STJ.
Quanto à fixação do quantum indemnizatório e da questão que cabe apreciar atenta a natural limitação do presente Recurso, o assistente CC, deduziu o pedido de indemnização civil contra as Arguidas AA e BB e ainda contra o então CENTRO HOSPITALAR ..., E.P.E. (actualmente, por força de redenominação operada pelo Decreto-Lei n.º 177/2015, de 25 de agosto, Hospital da ---, EPE.),no qual, alegava inicialmente ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais, que quantificou e peticionava a respectiva condenação dos visados no pagamento da quantia de € 1.154.021,16 (um milhão, cento e cinquenta e quatro mil, vinte e um euros e dezasseis cêntimos),
Tal pedido, salvo o devido respeito, não pode deixar de se considerar como irrazoável, despropositado e desprovido de qualquer respaldo jurídico ou de comum bom senso.E assim é, que o Recorrido voluntariamente e sem fundamentação atendível, reduziu o referido pedido formulado nos termos anteriores para um montante de € 589.021,16 (quinhentos e oitenta e nove mil e vinte e um euros e dezasseis cêntimos), o que apenas se concebe através de uma plena consciência do que ora se defende.
A Sentença e o Acórdão ora Recorrido, relativamente ao pedido cível deduzido considera que os valores acima descritos são adequados, sem que no entanto se mostre fundamentada por qualquer forma o fundamento e justificação dos danos constantes dos mesmos ,Ponderação essa que – mesmo corrigida através da ponderação obrigatória pela natureza do dano por perda de chance - materializa uma incorrecta aplicação do Direito, com a qual não nos podemos conformar. […] não obstante a aplicação da doutrina da perda de chance nos autos pela douta exégese dos Venerandos Desembargadores, facto é que os pressupostos da aplicação da mesma (ou seja, aos putativos danos invocados, em tese secundária e reduzida, pelo Recorrido) se afigura flagrante e manifestamente desajustada e resulta numa aplicação do direito perfeitamente errada e violadora do disposto nos artigos 496.º e 566.º, n.º 3 do Código Civil, uma vez que os pressupostos que consubstanciam o ponto de partida desta aplicação do direito – os valores médios indemnizatórios para danos semelhantes praticados na doutrina e jurisprudência nacionais – impunham que a perda de chance (ou de oportunidade, avaliada em 50%), recaíssem sobre valores de partida normais, o que não foi o caso.
Concretizando, a hipótese de indemnização por perda de chance nunca poderia conceber-se aplicada aos danos meramente peticionados pelo Recorrido, mas sim corrigida nos valores para níveis aceitáveis e fundados de acordo com as correntes jurisprudenciais e doutrinais dominantes.
O que, a não ter sido feito, consubstancia desde logo uma errada e inaceitável aplicação do Direito, que deve ser revogada pelos Venerandos Conselheiros e substituída para termos equitativos, e Justos. […] eliminando-se a desproporcionalidade relativamente aos elementos indiciários constantes da Lei e da jurisprudência para a quantificação indemnizatória deste tipo de danos, a que acrescerá então a ponderação por perda de chance.[…]respeitando o sentido da decisão do Douto Tribunal da Relação, deverá ser a aplicação da doutrina de perda de chance corrigida nos seus pressupostos, partindo de valores indemnizatórios médios e razoáveis considerados na proporção dos 50% arbitrados.
Apreciando:
Considerou o acórdão recorrido:
“V- A quantificação do valor da indemnização:
O tribunal recorrido, socorrendo-se da doutrina da perda de chance, determinou, «considerando o apurado nos factos j) a p), q) e r) e o disposto no artº 566º, nº 3, do CC», em 50% o grau de probabilidade de sobrevivência de FF às 19h do dia 30/08/2010 caso «a demandada BB tivesse realizado a prestação adequada e exigível», e, aplicando a aludida percentagem ao valor global do dano final anteriormente avaliado [€589.021,16], arbitrou a indemnização de €294.510.58 «pelos danos emergentes da perda de chance».
Para fundamentar a determinação da probabilidade de sobrevivência em 50%, o tribunal a quo discorreu, ainda, nos seguintes termos “transcrição):
“ Justificando-se tal percentagem na minha óptica, atendendo à existência de duas situações clinicas possíveis e admissíveis, a saber, uma situação clinica estável (de não alto risco de mortalidade) e uma situação clinica de instabilidade hemodinâmica de alto risco de mortalidade. Esta última sempre implicaria necessariamente uma probabilidade igual ou inferior a 49% e a primeira ainda que seja condicionada a diversos factores (designadamente, idade da doente, existência de doenças associadas e/ou de outra natureza que condicionem a evolução do TEP), cremos que, estando a paciente FF, no segundo dia de atendimento, numa situação clínica estável (de não alto risco de mortalidade), pelo menos 50% de probabilidade de sobreviver, naquele momento, teria.
Contrapõem os Recorrentes, defendendo que «a probabilidade de sobrevivência da utente naquela data e hora, sempre teria que ser inferior a 49% e não igual a 50% como se conclui na douta sentença recorrida, porquanto mesmo nessa data (e repita-se ainda que nesse momento não fosse possível tal conclusão) a utente já se encontrava numa situação clínica de instabilidade hemodinâmica de alto risco de mortalidade, atendendo ao diagnóstico de TEP que resulta confirmado nos autos» - vd. conclusão Y
O argumento aduzido pelos recorrentes para alicerçar a pretensão de que o grau de probabilidade de sobrevivência de FF, às 19h do dia 30/08/2010, teria que ser sempre inferior a 49%, não deixa de surpreender, na medida em que colide frontalmente com a tese recursiva defendida nas conclusões anteriores.
Certo é que, perante o quadro factual provado invocado pelo tribunal recorrido, nenhum fundamento válido se vislumbra para alterar o juízo formulado pelo tribunal recorrido no sentido propugnado pelos recorrentes.
A 1ª instância tinha fundamentado da seguinte forma:
“3. Do pedido de indemnização civil
Conforme acima se deixou já dito, o assistente CC, viúvo, por si e em representação dos seus filhos menores ... e ..., deduziu pedido de indemnização civil contra as arguidas AA e BB e ainda contra o Centro Hospitalar ..., E.P.E., no qual, alegando ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais, com a actuação daqueles – que enunciam –, conclui peticionando a respectiva condenação no pagamento da quantia de €589.021,16 (quinhentos e oitenta e nove mil, vinte e um euros e dezasseis cêntimos).
De acordo com o art.º 129.º do CP a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.
Desde cedo a jurisprudência entendeu que tal norma só determina que a indemnização seja regulada “quantitativamente e nos seus pressupostos” pela lei civil, remetendo para os critérios da lei civil relativos à determinação concreta da indemnização, não tratando de questões processuais, que são reguladas pela lei adjectiva penal - acórdãos do STJ, de 12-12-1984, BMJ 342, 227; de 06-03-1985, BMJ 345, 213; de 13-02-1986, processo nº 38028; de 06-01-1988, BMJ 373, 264; de 12-01-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 181; de 09-06-1996, processo nº 6/95; de 09-07-1997, CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 260; de 14-11-2002, processo n.º 3316/02-5ª; de 24-11-2005, processo n.º 2831/05-5ª; de 07-03-2007, processo n.º 4596/06-3ª; de 29-10-2008, processo n.º 3373/08-3ª; de 25-06-2008, processo n.º 449/08-3ª; de 03-09-2008, processo n.º 3982/07-3ª; de 05-11-2008, processo n.º 3266/08-3ª; de 25-02-2009, processo n.º 3459/08-3ª.
À responsabilidade por ofensas à personalidade física ou moral ou ao direito à vida são aplicáveis os art.ºs 483.º e seguintes do Código Civil.
De acordo com o princípio geral plasmado no art.º 483.º n.º 1, do CC “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”.
Estabelece o art.º 496.º n.º 1 do CC, que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Por sua vez, dispõe o n.º 2 do mesmo artigo que, em caso de morte da vítima, o direito à indemnização por tais danos cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
Por último, estatui o n.º 3 do mesmo preceito legal, que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art.º 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior.
No domínio do Código de Seabra era discutida a questão de saber se o mesmo consagrara a possibilidade de reparação dos danos morais, defendendo Guilherme Moreira e Dias da Silva a insusceptibilidade dessa reparação do dano moral e José Tavares e Cunha Gonçalves, o reconhecimento em termos amplos do direito à indemnização por prejuízos civis, sem excluir os danos morais.12 [12 cfr. a este propósito e da conexão da questão com o § 2º do artigo 34º do Código de Processo Penal de 1929, Manuel Gomes da Silva, in O dever de prestar e de o dever de indemnizar, Lisboa, 1944, volume I, págs. 65 a 74. ]
Danos não patrimoniais são os que afectam bens não patrimoniais (bens da personalidade), insusceptíveis de avaliação pecuniária ou medida monetária, porque atingem bens, como a vida, a saúde, a integridade física, a perfeição física, a liberdade, a honra, o bom nome, a reputação, a beleza, de que resultam o inerente sofrimento físico e psíquico, o desgosto pela perda, a angústia por ter de viver com uma deformidade ou deficiência, os vexames, a perda de prestígio ou reputação, tudo constituindo prejuízos que não se integram no património do lesado, apenas podendo ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo mais uma satisfação do que uma indemnização, assumindo o seu ressarcimento uma função essencialmente compensatória, embora sob a envolvência de uma certa vertente sancionatória ou de pena privada.
Para Manuel Gomes da Silva, loc. cit., pág. 65, dano moral em sentido rigoroso é somente o que atinge bens imateriais e que, portanto, não pode ser apreendido pelos sentidos; mas é preferível tomar aquela expressão num alcance mais amplo, considerando dano moral todo aquele que não for avaliável em dinheiro, ou seja, todo aquele que não for patrimonial, porque os problemas que se levantam acerca do dano moral em sentido estrito suscitam-se de igual modo a respeito de todos os danos insusceptíveis de apreciação pecuniária.
Na definição de Vaz Serra, in BMJ, n.º 83, pág. 69, “dano não patrimonial é o que tem por objecto um interesse não patrimonial, isto é, um interesse não avaliável em dinheiro”.
E para Dario Martins de Almeida, in Manual de Acidentes de Viação, Almedina, 1980, 2ª edição, pág. 267, “dano não patrimonial é todo aquele que afecta a personalidade moral, nos seus valores específicos». E acrescentava, a seguir: “Caprichosamente, a vida empenha-se em fornecer muitos exemplos desta figura jurídica – além da dor física, da humilhação, da angústia de ver um filho entre a vida e a morte, vem a dor moral relacionada com uma alteração estética tanto na mulher como no homem, com a perda da potência sexual, com a diminuição do prestígio, com o forçado e prolongado internamento num hospital.”.
Como expendia Figueiredo Dias, em “Sobre a reparação de perdas e danos arbitrada em Processo Penal”, Almedina, 1972, em publicação autónoma e reimpressão de trabalho publicado, pela primeira vez, como contribuição do Autor para os Estudos «in memoriam» do Prof. Beleza dos Santos que, em 1963, formaram o volume XVI do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, a págs. 38/39, “quanto aos chamados danos morais costuma acentuar-se que eles não comportam, por sua natureza, uma indemnização verdadeira e própria, mas tão só uma satisfação, daí provindo a inaplicabilidade, quanto a eles, dos critérios propostos pela teoria de diferença. Todavia, quando não se queira ver aquela satisfação como um corpo estranho ao instituto da responsabilidade civil, no qual se incrusta, há que atribuir-lhe, também a ela, a única função de colocar, quanto possível, o lesado na situação anterior ao facto lesivo; pelo que o critério de avaliação há-de ser o de procurar rigorosamente determinar uma quantia capaz de possibilitar ao lesado prazeres e alegrias que compensem os danos morais causados. Em suma, pois, quer se trate de danos patrimoniais quer morais a obrigação civil de indemnizar tem como critério determinante da sua extensão, fundamentalmente, - para não dizermos unicamente – o critério do dano”.
Em casos como o presente, de responsabilidade civil conexa com a criminal, aquela tem a sua génese num facto ilícito, sendo um crime a sua fonte, a sua causa, o seu facto constitutivo.
O direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos, a qual constitui uma das finalidades da punição, como decorre do art.º 40.º do CP, a partir da redacção conferida pela terceira alteração do diploma legal citado pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15-03, havendo que olhar aos bens e interesses tutelados nas normas incriminatórias violadas pelo arguido. A conduta integradora de crime é nestes casos concomitantemente geradora de dano civil.
Como assinala o Prof. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, pág. 502 “A indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa compensar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente”.
Referir a indemnização por danos como assumindo um carácter sancionatório/punitivo não faz grande sentido em matéria de acidentes de viação, área que constitui um caso típico de responsabilidade civil, em que por vezes se interpenetram os domínios da responsabilidade criminal e civil, da acção de efectivação de responsabilidade civil conexa com a responsabilidade criminal, desde os tempos do “enxerto cível”, adjectivável nos termos do artigo 67º do Código da Estrada de 1954, ou, em jeito autónomo, em separado, nos termos da acção especial de efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, nos termos do artigo 68º do mesmo Código, até ao sistema de adesão acolhido pelo Código de Processo Penal de 1987, em que a partir de certa altura, o direito da pessoa lesada é exercido em acção directamente interposta apenas contra a empresa de seguros, em que o responsável civil, único demandado, por força das normas adjectivas, não é o próprio lesante, o agente do facto criminoso, de homicídio culposo ou de ofensas à integridade física culposas, o autor do acto lesivo, da violação ilícita do direito de outrem (artigo 483º, n.º 1, do Código Civil), numa perspectiva meramente civilista, mas antes “um substituto”, “um seu representante”, um sucedâneo se se quiser, uma entidade de matriz colectiva, que prossegue o objectivo do lucro, através de uma actividade definida legalmente como de indústria (seguradora), para quem foi “transferida” esta espécie de responsabilidade, estando-se perante situações em que, na composição do litígio, o condenado no pagamento da indemnização emergente da conduta delitual é apenas o responsável civil, a seguradora, para quem foi transferida a responsabilidade por força do contrato de seguro, e não o autor material da lesão.
Não se poderá com propriedade falar então em punição, não podendo erigir-se a intencionalidade punitiva em critério de determinação do montante indemnizatório.
De resto, o mesmo acontecerá se estivermos face a caso de responsabilidade objectiva, pelo risco, em que não se vê como falar em função punitiva da responsabilidade civil, muito menos de forma primacial, como defendia Fernando Pessoa Jorge, ou na perspectiva de indemnização de natureza mista de que falava Antunes Varela, pretendendo castigar, embora num plano civil, o lesante.
O contrato de seguro obrigatório visa cobrir a responsabilidade civil pessoal pela reparação de danos decorrentes de lesões causadas a terceiros por veículo terrestre, sendo que essa responsabilidade tanto pode decorrer de comportamento culposo na condução do veículo, como os dos riscos próprios do veículo mesmo que não se encontre em circulação.
De diferente modo será se estivermos face a ofensas à honra, à autodeterminação sexual, à liberdade de decisão e de acção, à propriedade, à integridade física, ou à vida, mas agora nestes dois casos em sede de crime de ofensas à integridade física dolosas, ou de homicídio voluntário, simples, ou qualificado, típico, ou atípico, ou privilegiado, ou de prática desses crimes na forma tentada, em que não há, obviamente, lugar a uma prévia “contratualização”, a um concerto de transferência de responsabilidade do autor da lesão para terceiro, coincidindo o demandado responsável criminal com o demandado responsável civil pela violação de um direito humano fundamental e absoluto.
Nesses casos, ao proceder-se à quantificação da indemnização há que ponderar que o lesante será o efectivo pagador, estando-se fora de um quadro de responsabilidade segurada, em que a responsabilidade total é mesmo individual, coincidindo fisicamente o autor do facto lesivo e o responsável pelo pagamento da prestação ressarcitória, o demandado criminal e o demandado civil, havendo que considerar que o montante a encontrar não deverá atingir valor que redunde numa extrema dificuldade em cumprir ou num convite ao incumprimento, devendo assumir patamar mínimo de exigibilidade, maxime em casos em que o condenado, devedor da prestação indemnizatória, se encontra em situação de reclusão, em que as possibilidades de pagamento da indemnização obviamente minguam.
*
Tem-se entendido doutrinária e jurisprudencialmente, maxime, após o acórdão do STJ, tirado em reunião de secções para uniformização de jurisprudência, de 17-03-1971, in BMJ 205, 150, que em caso de morte, do art.º 496.º n.ºs 2 e 3, do CC, resultam três danos não patrimoniais indemnizáveis:
- O dano pela perda do direito à vida;
- O dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte;
- O dano sofrido pela vítima antes de morrer, variando este em função de factores de diversa ordem, como sejam o tempo decorrido entre a acção típica e ilícita e a morte, se a vítima estava consciente ou em coma, se teve dores ou não, e qual a sua intensidade, se teve ou não consciência de que ia morrer.
É consensual a ideia de que só são indemnizáveis os danos não patrimoniais que afectem profundamente os valores ou interesses da personalidade física ou moral, medindo-se a gravidade do dano por um padrão objectivo, embora tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, mas afastando-se os factores subjectivos, susceptíveis de sensibilidade exacerbada, particularmente embotada ou especialmente fria, aguçada, requintada, e apreciando-se a gravidade em função da tutela do direito; o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado – Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7ª edição, volume I, pág. 600; Vaz Serra, RLJ, ano 109º, pág. 115; Dário Martins de Almeida, loc. cit., pág. 268, “São as circunstâncias que acompanham o caso concreto - normalmente circunstâncias de carácter objectivo - que hão-de trazer à superfície essa gravidade, ajudando também a distinguir a dor real da dor fingida”.
Como se extrai do acórdão de 17-11-2005, revista n.º 3436/05-7ª, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 127, “A apreciação da gravidade do dano embora tenha de assentar, como é natural, no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objectivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjectividade inerente a alguma particular sensibilidade humana”.
A este propósito podem ver-se os acórdãos do STJ, de 22-11-1977, BMJ 271, 212; de 26-06-1991, BMJ 408, 538; de 04-03-2004, revista n.º 4439/03-2ª; de 9-12-2004, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 137; de 11-07-2007, processo n.º 1583/07-3ª; de 18-12-2007, revista n.º 3715/07-7ª; de 26-06-2008, revista n.º 628/08, CJSTJ 2008, tomo 2, pág. 131, de 22-10-2008, processo n.º 3265/08-3ª; de 29-10-2008, processo n.º 3380/08-5ª.
Vejamos a caracterização de cada um dos danos não patrimoniais ora em causa.
• Dano morte – dano não patrimonial da perda do direito à vida:
Na génese da responsabilidade civil a imputar ao lesante, arguidos no processo, está a prática pela arguida de uma conduta ilícita, culposa, de que resultou a violação plúrima de direitos de personalidade, como o direito à vida da vítima mortal e à integridade física e psíquica dos demandantes, marido e filhos daquela, tendo a arguida BB, como se viu supra, sido condenada por um crime de homicídio negligente, p. p. pelo artigo 137º do Código Penal.
O bem jurídico tutelado nas normas incriminadoras de homicídio é a vida humana inviolável, reflectindo o crime a tutela constitucional da vida, que proíbe a pena de morte e consagra a inviolabilidade da vida humana – art.º 24.º da Constituição da República Portuguesa – estando-se face à mais forte tutela penal, sendo a vida e a sua inviolabilidade que conferem sentido ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito à liberdade que estruturam e densificam o Estado de direito.
Como se extrai da Constituição da República Portuguesa Anotada, de Gomes Canotilho e Vital Moreira, 2007, volume I, págs. 446/7, “O direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto”.
O direito à vida é a conditio sine qua non para gozo de todos os outros direitos. Nos termos do art.º 2.º n.º 1, 1.ª parte, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei, tratando-se essencialmente de um direito a não ser privado da vida, um direito a não ser morto.13
[13 neste sentido, Vera Lúcia Raposo, O direito à vida na jurisprudência de Estrasburgo, in Jurisprudência Constitucional, n.º 14, pág. 59 e ss. ]
A indemnização pela perda do direito à vida em sentido estrito, sem abranger a relativa ao sofrimento entre o facto danoso e a morte e a reportada ao dano afectivo dos chegados ao falecido, é desconhecida na Resolução n.º 75-7 do Conselho da Europa de 14-03-1975, relativa à reparação dos prejuízos em caso de lesões corporais e de morte; omite, no seu n.º 3, todo dedicado à “Reparação em caso de morte”, qualquer referência sequer a perda do direito à vida; vem sendo ignorada por decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e é omitida ou repudiada nos principais países da EU.
No caso português, vista a uniformidade da jurisprudência e tendo em conta o n.º 3 do art.º 8.º do CC, deve ser atendida. Assim se pronunciou o acórdão do STJ, de 15-03-2006, no processo n.º 656/06, da 3ª secção. Do mesmo relator, o acórdão de 22-04-2008, Revista n.º 742/08-2ª, em que se reafirma: “A indemnização pela perda do direito à vida, tendo em conta a orientação maciça da nossa jurisprudência e o disposto no artigo 8º, n.º 3, do Código Civil, deve ser concedida”. Seguindo esta posição, e citando o acórdão de 11-01-2007, Revista n.º 4433/06-2ª, ainda do mesmo relator, veja-se o acórdão de 13-12-2007, no processo n.º 2307/07, da 5ª secção.
Com excepção de Oliveira Ascensão, em Direito das Sucessões, Lisboa, 1980, págs. 86, 87 e 90, que recusa, na sequência da negação da função punitiva da responsabilidade civil, a atribuição, seja a que título for, de uma indemnização pela própria morte da vítima, a doutrina portuguesa, de forma majoritária, defende a reparabilidade autónoma do dano morte – veja-se neste sentido, Inocêncio Galvão Telles, in Direito das Sucessões – Noções Fundamentais, 3ª edição, pág. 86; Pereira Coelho, Direito das Sucessões, Coimbra, 1974, pág. 65; Nuno Espinosa Gomes da Silva, Direito das Sucessões, Lisboa, 1978, pág. 76; Diogo Leite de Campos, A indemnização do Dano Morte - Universidade de Coimbra - Boletim da Faculdade de Direito, vol. I, pág. 296; Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, volume I, 3.ª edição, págs. 294/5; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, 3.ª edição, 1980, vol. I, págs. 503 a 509, “é incontestável que a perda do direito à vida por parte da vítima da lesão constitui, nos termos do n.º 2 do artigo 496º, um dano autónomo, susceptível de reparação pecuniária”; António Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, AAFDL, 1980, Reimpressão de 1986, volume II, págs. 289 a 294; Delfim Maya Lucena, Danos não patrimoniais, O Dano da Morte, Almedina, 1985, págs. 57 a 72, maxime, págs. 69/71.
Igualmente reconhecido na jurisprudência que o dano não patrimonial da perda da vida é autonomamente indemnizável, a partir, como se referiu, do acórdão do STJ, de 17 de Março de 1971, tirado com intervenção de todas as secções do tribunal, constituindo o que João de Castro Mendes apelidava de “precedente persuasivo”, publicado in BMJ 205, 161, e RLJ, ano 105º, págs. 63 e ss., aqui com anotação concordante de Vaz Serra.
Como refere Diogo Leite Campos, “A vida, a morte e a sua indemnização”, in BMJ 365, págs. 5 e segs. “… porque a morte absorve todos os outros prejuízos não patrimoniais, o montante da sua indemnização deve ser superior à soma dos montantes de todos os outros danos imagináveis” e especifica que “a indemnização do dano da morte deve ser fixada sistematicamente a um nível superior, pois a morte é um dano acrescido e isto tem de ser feito sentir economicamente ao culpado”.
• Dano próprio da vítima:
Em causa está o dano não patrimonial próprio sofrido pela vítima pela antevisão da sua respectiva morte, sofrido pela própria vítima entre o facto danoso e a morte, antes de falecer, com a percepção da iminência da morte, com a perturbação, susto, medo, sofrimento, até à morte, mesmo que de forma fugaz.
Os danos não patrimoniais próprios da vítima correspondem à dor que esta terá sofrido antes de falecer, e devem ser valorados tendo em atenção o grau de sofrimento daquela, a sua duração, o maior ou menor grau de consciência da vítima sobre o seu estado e a previsão da sua morte.14 [14 cfr. acórdão de 04-06-2008, processo n.º 1618/08-3ª
15 - neste sentido o acórdão do STJ de 23-03-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 230. ]
De acordo com o acórdão de 31-01-2006, revista n.º 3769/05-1ª, provando-se que o filho dos autores desmaiou logo que ocorreu o acidente e que sobreviveu cerca de uma hora não há que considerar quaisquer danos não patrimoniais sofridos por este no período entre o acidente e a sua morte.
Segundo o acórdão de 07-11-2006, revista n.º 2873/06-6ª, o sofrimento moral da vítima ante a iminência da morte nos 30 minutos decorridos após o acidente é uma evidência – é, por si só, um facto notório, dispensado de alegação e prova, e que não pode deixar de ser valorizado em sede de indemnização por danos não patrimoniais.
• Dano desgosto do cônjuge e dos filhos da vítima:
No caso de morte da vítima há um círculo restrito de pessoas a esta ligados por estreitos laços de convivência, dação mútua, entrega recíproca, afeição, carinho e ternura, a quem a lei concede reparação/compensação quando pessoalmente afectadas por isso nesses sentimentos.
Neste caso, os danos destas vítimas “indirectas” emergem da dor moral que a morte da vítima pessoalmente lhes causou, havendo lugar a indemnização em conjunto e jure proprio ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes, e na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representarem – art.º 496.º n.º 2, do CC.
Está em causa um dano especial, próprio, que os familiares da vítima sentiram e sofreram com a morte do lesado, contemplando o sofrimento moral decorrente da morte, o desgosto provocado pela morte do ente querido.
No caso a compensação é devida pelo sofrimento da perda abrupta e irreparável daquele ente. A origem do dano do desgosto é o sofrimento causado pela supressão da vida, sendo de negar o direito à indemnização em relação a quem não tenha sofrido o dano.15
Salvo raras e anómalas excepções, a perda do lesado é para os seus familiares mais próximos causa de sofrimento profundo, sendo facto notório o grave dano moral que a perda de uma vida humana traz aos seus familiares, às pessoas que lhe são mais chegadas.
Como se refere no acórdão do STJ de 26-06-1991, BMJ 408, 538, trata-se de um dano não patrimonial natural, cuja indemnização se destina a compensar desgostos e que por serem factos notórios, não necessitam de ser alegados nem quesitados, mas só pedidos. É pacífico que um dos factores a ponderar na atribuição desta forma de compensação será sempre o grau de proximidade ou ligação entre a vítima e os titulares desta indemnização. Na sua determinação “há que considerar o grau de parentesco, mais próximo ou mais remoto, o relacionamento da vítima com esses seus familiares, se era fraco ou forte o sentimento que os unia, enfim, se a dor com a perda foi realmente sentida e se o foi de forma intensa ou não. É que a indemnização por estes danos traduz o “preço” da angústia, da tristeza, da falta de apoio, carinho, orientação, assistência e companhia sofridas pelos familiares a quem a vítima faltou”16. [16 Sousa Dinis, in Dano Corporal em Acidentes de Viação, CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 13. ]
• Da obrigação de indemnizar – verificação dos pressupostos no caso concreto:
Com se viu supra, a obrigação de indemnizar depende, em regra, da verificação dos seguintes pressupostos: - a violação ilícita de um direito ou interesse alheio; - o nexo de imputação do facto ao agente; - o dano; - o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
No presente caso, a obrigação da arguida/demandada para com a doente (vitima FF) não consistia na sua cura, dada a impossibilidade de garantir um tal desenlace, mas em fazer o que estivesse ao seu alcance, dentro dos meios e conhecimentos especiais de que dispunha, no sentido dessa cura ou, pelo menos, no sentido da melhoria do estado de saúde.
Tratava-se de uma obrigação de meios ou de atividade17. 17 Sobre a classificação que aparta as obrigações em obrigações de resultado e obrigações de meios (com origem atribuída a RENÉ DEMOGUE, no Traité des obligations en général, I, Sources des obligations, t. V, Paris, Rousseau et Cie Editeurs, 1925, pp. 536-44) v. em especial, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito civil português, II, Direito das obrigações, t. I, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 443-54; LOBATO GÓMEZ, «Contribución al estudio de la distinción entre las obligaciones de medios y las obligaciones de resultado», Anuario de Derecho Civil, 45, 2 (abril-junho 1992), pp. 651-734; NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, Direito das obrigações, I, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 143-59, e Princípios de direito dos contratos, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp. 32-42; ANDRÉ PLANCQUEEL, «Obligations de moyens, obligations de résultat», RTDC, 70 (1972), pp. 334-40; RICARDO LUCAS RIBEIRO, Obrigações de meios e obrigações de resultado, Coimbra, Wolters Kluwer Portugal, 2010. ]
O resultado não estava in obligatione. E sendo assim, não basta a prova de que o resultado não foi atingido (no caso de que a cliente não melhorou o seu estado de saúde, pelo contrário, faleceu) para se concluir pelo incumprimento. A prova deste é mais exigente, passando pela prova da falha na execução dos actos adequados à produção do resultado.
Que das últimas frases não resulte qualquer equívoco: no ordenamento português, o facto de o devedor se obrigar a prestar um resultado ou, apenas, a prestar a atividade apta à sua eclosão não determina diferenças no regime do ónus da prova, seja do cumprimento, seja da culpa. Neste sentido manifesta-se também a maioria da doutrina portuguesa que sobre a
questão se debruça (alguma, implicitamente, por via da irrelevância que, em todo o plano, atribui à distinção)18. [18 Assim, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito civil português, II, Direito das obrigações, t. I, cit., sobretudo pp. 447-54; EDUARDO DOS SANTOS JÚNIOR, Direito das obrigações, I, Lisboa, AAFDL, 2010, p. 110; MENEZES LEITÃO, Direito das obrigações, I, 9.ª ed., Coimbra, Almedina, 2010, p. 142; PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito das obrigações, 3.ª ed., Lisboa, AAFDL, 2011, p. 182. ]
Num caso e no outro, o Código Civil fornece as mesmas regras sobre a prova, respectivos ónus e presunções (maxime, art.ºs 342.º, 344.º e 799.º). Num caso e no outro incumbe ao demandante a prova dos factos constitutivos do direito que pretende fazer valer e que podem resumir-se ao contrato de que emerge a obrigação da contraparte e ao vencimento do crédito (incumprimento tout court) ou podem ter de abranger também as falhas da execução (cumprimento defeituoso). E cabe ao demandado a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do demandante, por exemplo, a prova de que executou a prestação devida (caso lhe seja assacada falta de cumprimento ou mora), assim como lhe cabe a prova de que o incumprimento em que tenha incorrido não lhe é imputável a título de culpa.
Estando em causa, como está nestes autos, o cumprimento defeituoso de uma obrigação de meios tem o demandante de provar a fonte da obrigação originária e os defeitos do cumprimento. Mas não poderá fazer esta prova pela prova de um resultado defeituoso, pois o devedor não se obrigou à produção do resultado. A prova do cumprimento defeituoso de uma obrigação de meios passa pela demonstração de que não foi produzida a actividade apta a permitir a obtenção do resultado correspondente ao interesse do credor, ou, por outras palavras, de que existe uma divergência objectiva entre os actos praticados e aqueles que seriam adequados a que aquele resultado se pudesse produzir.
E é nisto que consiste a grande diferença, que na prática do direito se revela, entre uma obrigação de resultado e uma obrigação de meios. Na primeira, a prova do cumprimento e a do incumprimento defeituoso fazem-se, respectivamente, pela demonstração de que o resultado foi atingido, ou de que o resultado apresenta defeitos. Na segunda, a prova do cumprimento defeituoso efectua-se pela demonstração de que o devedor praticou actos inadequados a atingir o resultado. Num caso e no outro, não provado o cumprimento ou provado o incumprimento defeituoso, presume-se a culpa do devedor no incumprimento ou no cumprimento defeituoso, cabendo, portanto, ao devedor, a prova de que aqueles foram produzidos sem culpa da sua parte.
Neste mesmo sentido, as palavras de Carlos Ferreira de Almeida, em texto sobre a responsabilidade civil no contrato de prestação de serviço médico: “A presunção de culpa do devedor inadimplente estende-se ao cumprimento defeituoso (art.º 799.º, n.º 1). Quem invoca tratamento defeituoso como fundamento de responsabilidade civil contratual tem de provar, além do prejuízo, a desconformidade (objectiva) entre os actos praticados e a leges artis, bem como o nexo de causalidade entre o defeito e o dano. Feita esta prova, o médico (ou a clínica) só se exonera de responsabilidade, se provar que a desconformidade não é devida a culpa sua”19. [19 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, «Os contratos civis de prestação de serviço médico», in AAVV, Direito da saúde e bioética, Lisboa, AAFDL, 1996, pp. 75-120 (pp. 117). Em idêntico sentido, além da doutrina indicada na nota anterior, v. JORGE FIGUEIREDO DIAS e JORGE SINDE MONTEIRO, «Responsabilidade médica em Portugal», BMJ, 332 (jan. 1984), pp. 21-79 (pp. 45-6); ANTÓNIO SILVA HENRIQUES GASPAR, «A responsabilidade civil do médico», CJ, 3, 1 (1978), pp. 335-55 (pp. 344-5). Não se desconhecem outras posições - RICARDO LUCAS RIBEIRO, Obrigações de meios e obrigações de resultado, cit., maxime pp. 125-31, e sobretudo RIBEIRO DE FARIA, «Novamente a questão da prova na responsabilidade civil médica – reflexões em torno do direito alemão», RFDUP, 1 (2004), pp. 115-95, cuja apreciação aqui não cabe.]
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Delineada a relação jurídica estabelecida entre a doente e a arguida/demandada e explicadas as obrigações desta, devemos clarificar que o demandado Centro Hospitalar ..., hoje Hospital da Senhora da Oliveira responde civilmente por danos causados a terceiros pelos seus órgãos, agentes ou representantes no exercício de actividade de gestão privada, nos termos em que os comitentes respondem pelos danos causados pelos seus comissários. – cfr. art.º 501.º do CC.
Nos termos do art.º 500.º do CC “aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.”.
No caso concreto, o Centro Hospitalar ..., E.P.E., hoje Hospital da Senhora da Oliveira, E.P.E., é uma entidade pública empresarial, criada pelo DL n.º 50-A/2007 de 28/02. E nessa qualidade contratou directamente a arguida BB, celebrando com ela um contrato de prestação de serviços. Esta recebia ordens e instruções por parte dos órgãos superiores do CHAA.
Na situação dos autos, quando no dia 30.08.2010 a doente se dirige à SUMC e a arguida BB, como médica e apesar dos sintomas apresentados pela doente, no atendimento que efectuou no serviço de urgência na qualidade de médica, não observa as cautelas, os cuidados e diligências que, segundo os conhecimentos e experiência médica, lhe era exigido e de que era capaz, tendente nas circunstâncias concretas do caso, a encontrar o diagnóstico correcto e a ministrar o tratamento adequado na tentativa de evitar a produção da morte da infeliz vítima, verifica-se o cumprimento defeituoso.
Resultou provado, entre o mais, que perante os sintomas que a vítima apresentava, impunha-se, face às mais elementares regras da práxis médica, o estado da ciência médica e protocolos aplicados, a realização de outros exames analíticos, pelo menos, por parte da arguida BB.
Assim, face ao seu regresso ao SUMC, às queixas de cansaço, à presença de sangue na expectoração em doente em idade fértil, possivelmente a tomar anti-concepcionais, exigia-se que fosse considerada a possibilidade da expectoração hemoptóica e, por via disso, a realização de exame para determinação dos D-dímeros -produtos específicos da degradação da fibrina por activação da trobólise endógena-, que, quando estão elevados no sangue, em mais de 90% dos casos indiciam a ocorrência de trombo-embolismo pulmonar, mas que podem também quando aumentados, indiciar situações de enfarte do miocárdio, sépsis, gravidez ou qualquer doença inflamatória sistémica. E, bem assim, solicitar a pesquisa de bacilos ácido-álcool resistentes (BAAR) na expectoração, para despiste de tuberculose pulmonar.
Mais se demonstrou que para além disso, deveria ter sido solicitada a avaliação da FF por um especialista de medicina interna, uma vez que esta especialidade possui um âmbito interventivo especifico, diferente da medicina geral familiar ou, então, que fosse determinado o seu internamento, tendo em vista o acompanhamento da sua evolução clinica e permitir a realização rápida e atempada de tais exames e a avaliação por médico da especialidade, caso a situação se agravasse, como efectivamente aconteceu.
Perante tal factualidade, concluímos que o Centro Hospitalar ..., E.P.E., hoje Hospital da Senhora da Oliveira, E.P.E., é solidariamente responsável a par da demandada BB.
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O assistente invoca, e prova como veremos em seguida, a ocorrência de vários prejuízos de diferentes naturezas: dano-morte sofrido pela vítima; danos não patrimoniais da vítima e deles próprios, danos patrimoniais futuros. Todos são decorrência da morte de FF, sendo este o dano principal a que me reporto nestes parágrafos.
FF, depois de ter entrado nas urgências, na manhã do dia 31.08, já em paragem cardio-respiratória, não mais saiu do CHAA com vida. Como já assinalado, logo às 10:11 horas do dia 31 foi diagnosticado um trombo-embolismo pulmonar na bifurcação das artérias pulmonares direita e esquerda (aquando da sua transferência para a unidade de cuidados intensivos). E FF vem a falecer por falência multiorgânica, em consequência da evolução de trombo-embolismo pulmonar.
A embolia pulmonar acarreta uma mortalidade apreciável, sendo esta proporcional à gravidade do quadro inicial, considerando que a condição clinica da doente nos dias 29 e 30 era muito mais estável do que no dia 31 quando chegou em paragem cardio-respiratória, o prognóstico nos dias 29 e 30 era muito melhor. Isto é, não tendo ocorrido monitorização clinica nem tratamento específico para a embolia pulmonar, a doente passou rapidamente de uma situação clinica estável (de não alto risco de mortalidade) para um quadro de instabilidade hemodinâmica de alto risco de mortalidade.
Portanto, o prognóstico ou a taxa de sucesso do tratamento da embolia pulmonar no caso de o mesmo ter sido iniciado nos dias 29-30/08 era de uma probabilidade de sucesso muito maior. Isto é, a chance de salvar a vida era muito maior e muito provável enquanto estava numa fase hemodinamicamente estável ou de não alto risco de mortalidade.
Devemos concluir que, se aquando da sua 2.ª ida ao hospital, no dia 30.08.2010, FF tivesse sido objecto de exames complementares de diagnóstico e assistida por um médico especialista em medicina interna, com enorme probabilidade ter-lhe-ia sido diagnosticada o TEP, e teria sido prontamente assistida e medicada de forma adequada, o que lhe teria dado uma maior probabilidade de salvação.
Não sabemos se a morte de FF não teria sobrevindo caso a arguida BB tivesse atuado de forma adequada e diligente, tivesse cumprido diligentemente e sem defeitos a sua obrigação de prestar os melhores serviços de diagnóstico e tratamento, que ao seu alcance estavam pelos seus conhecimentos e meios técnicos e humanos.
Não podemos, com certeza, saber se FF teria sobrevivido se aquela tivesse cumprido integral e diligentemente a sua obrigação. Podemos apenas formular um juízo de probabilidade sobre a sobrevivência. Além disso, sabemos, com certeza, que a defeituosa prestação daquela retirou a FF qualquer possibilidade de sobrevivência. O comportamento da arguida/demandada fez perder a FF a chance, a oportunidade de sobreviver à doença.
É para casos como o presente que a jurisprudência e a doutrina têm recorrido ao conceito de perda de chance ou perda de oportunidade. Mais genericamente, a perda de chance reporta-se a actos ou omissões que conduziram a que alguém perdesse a hipótese de obter um benefício ou de evitar um prejuízo20. [20 JÚLIO GOMES, «Sobre o dano da perda de chance», Direito e Justiça, 19, 2, 2005, pp. 21-2; RUTE TEIXEIRA PEDRO, A Responsabilidade Civil do Médico, Reflexões sobre a noção de perda de chance e a tutela do doente lesado, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 184; NUNO SANTOS ROCHA, A «perda de chance» como uma nova espécie de dano, Coimbra, Almedina, 2014, e-book, p. 14. ]
Tal como salienta Luís Medina Alcoz21, [21 LUIS MEDINA ALCOZ, Hacia una Nueva Teoría General de la Causalidad en la Responsabilidad Civil Contractual (y Extracontractual): La Doctrina de la Pérdida de Oportunidades, Revista da Asociación Española de Abogados Especializados en Responsabilidad Civil y Seguro, n.º 30, Segundo Trimestre, 2009, págs. 32 e seguintes (disponível em http://www.asociacionabogadosrcs.org//doctrina/Luis%20Medina.pdf?phpMyAdmin=9eb1fd7fe71cf931d58819) ] a teoria da perda de chance tem origem na prática judicial, e refere-se em geral a casos em que a vítima se encontra, de certo modo, numa situação de desigualdade relativamente ao agente porque carece de conhecimentos e meios para apreciar se houve ou não causalidade. A teoria em apreço visa corrigir tal desequilíbrio, auxiliando a vítima perante tais dificuldades de prova.
Trata-se de uma técnica a que se recorre no âmbito quer da responsabilidade contratual, quer da responsabilidade extracontratual (e mesmo pré-contratual, conforme acima referido) para ultrapassar as dificuldades de prova do nexo causal, pretendendo-se com a mesma evitar-se a solução drástica, e em muitos casos injusta, a que conduz o modelo tradicional do tudo ou nada.
A teoria da perda de chance, ou oportunidade perdida, tem ainda a consequência de distribuir entre as partes o peso da incerteza, colocando o agente a responder apenas em proporção da medida em que foi o causador do dano. A mesma foi desenvolvida por forma a obter-se uma solução que se pretende equilibrada, adequando-se ao sentimento da comunidade jurídica de repugnância perante situações em que, segundo o modelo tradicional, o agente era exonerado em consequência das dificuldades probatórias, dificuldades estas, aliás, causadas pelo próprio facto ilícito.
Mas, por outro lado, a aplicação de tal teoria também evita outro resultado igualmente injusto, qual seja o de obrigar o demandado a reparar um dano que pode não ter causado, ou causado totalmente.
Salienta-se ainda que a aplicação do modelo tradicional do tudo ou nada em casos como os apontados leva a que as finalidades de prevenção e de ressarcimento da responsabilidade civil sejam insatisfatoriamente alcançadas.
Na realidade, a finalidade de prevenção será promovida com maior eficácia se os lesados forem compensados pelas suas oportunidades perdidas, suportando o lesante essa compensação. Por outro lado, ao reparar-se a oportunidade perdida, estar-se-á a reparar, e a reparar apenas, o dano efectivamente causado pelo agente, o que poderá não suceder com o modelo do tudo ou nada.
Seguindo o relato que é feito por Rute Teixeira Pedro22, [22 RUTE TEIXEIRA PEDRO, obra citada, pags. 192-198.] as primeiras aplicações desta teoria ocorrem no século XIX, em França, em casos onde se averiguava a responsabilidade de um “officier ministériel” por ter impossibilitado o recurso de uma decisão judicial, bem como nos já referidos casos de competições com cavalos de corrida. O acolhimento da figura pela jurisprudência francesa foi-se multiplicando, sendo amplamente reconhecida na actualidade.
Quanto à doutrina francesa, a aceitação da teoria da perda de chance é unânime, segundo refere, de tal modo que a discussão passa hoje pela determinação das condições de que depende a ressarcibilidade da perda de chance e dos critérios de apuramento do montante indemnizatório. Tal unanimidade não se estende, porém, à aplicação da mesma no âmbito da responsabilidade do médico, enquanto perda de uma chance de cura ou de sobrevivência.
A decisão da Cour de Cassation datada 17 de Novembro de 1982 será emblemática desta perspectiva: o demandado, médico, havia injectado ar no nariz do paciente enquanto procedia a uma cirurgia; tal actuação foi considerada negligente, pois criou um risco de embolia atenta a presença de um corte, não faltoso, revelado por uma hemorragia. E, efectivamente, houve ar que entrou nas veias do paciente, seguindo-se uma embolia, a qual levou a que o mesmo ficasse permanentemente incapacitado. Porém, não se logrou ligar a embolia à actuação negligente do demandado, porque a mesma podia ter sido causada pelo ar normalmente contido nos sinos nasais. Apesar disso, a Cour d’Appel compensou o demandante pela perda da chance de evitar a embolia. Tal decisão foi condenada pela Cour de Cassation com base na circunstância de a perda de chance apenas poder ser utilizada para avaliar danos Esta decisão, de que agora se dá nota, foi já descrita como um golpe de estado, conforme reporta Lara Khoury na obra agora citada. Mas também foi interpretada como limitando a função da perda de chance à definição do dano e como uma forma de lembrar que esta teoria não deve ser utilizada para passar por cima da falta de demonstração da causalidade. Argumentou-se, neste sentido, que a Cour de Cassation apenas se limitou a reafirmar que, para se poder concluir que existe causalidade entre o facto ilícito e a alegada perda de chance, então a falta do médico teve que desempenhar algum papel na produção do dano. Estas posições, porém, contradizem a tese segundo a qual a perda de chance é um dano autónomo, avançado ou intermédio em relação ao dano final, bem como a consideração de que a causalidade deve ser provada apenas entre o facto ilícito e esse dano intermédio (e não já entre a falta e o dano final).
Perante situações como a dos autos, nas quais não se pode estabelecer um nexo de causalidade adequado entre a conduta do agente e o dano (final), podem tomar-se grosso modo três posições:
1. Para que o lesado seja indemnizado, o ordenamento jurídico português exige que exista um nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano; no nosso ordenamento a indemnização não tem função punitiva, mas meramente ressarcitória, pelo que, não se estabelecendo o nexo causal com o dano (final), não há lugar a indemnização; a mera perda de chance não constitui um dano.
2. A perda de chance é indemnizável enquanto dano intermédio, autónomo do dano final, desde que se verifiquem os demais pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente o facto ilícito e culposo e o nexo causal entre ele e o dano da perda de chance. A perda de chance não constitui um problema do domínio da causalidade, mas do domínio do dano.
3. A perda de chance não constitui um dano autónomo, nem é indemnizável enquanto tal; no entanto, o dano (final) pode ser indemnizável, em certa medida, se se verificar elevada probabilidade de ter sido adequadamente causado pelo facto ilícito. A perda de chance constitui um problema de causalidade.
Compreendem-se as reticências de boa parte da doutrina em aceitar em termos gerais a indemnização por perda de chances. Neste sentido, leiam-se as palavras de Menezes Cordeiro: “não é possível condenar alguém a pagar – o que tem, sempre, um sentido expropriativo ou confiscatório – se não se estabelecer um nexo de causalidade entre o facto e o dano”; “ao mandar indemnizar pela perda de chance, dispensando, com isso, a prova da causalidade, está-se a proceder a uma (re)distribuição do risco não prevista na lei”23.[ 23 MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, II, Parte geral, negócio jurídico, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2014, p. 288 ]
Em idêntico sentido, Paulo Mota Pinto afirma: “não parece que exista já hoje entre nós base jurídico-positiva para apoiar a indemnização por perda de chances”24.[ 24 PAULO MOTA PINTO, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, II, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 1106.]
Explica, no entanto, que tanto não significa que a chance não seja protegida quando “o âmbito de protecção garantida pela norma violada ou pelo bem afectado inclui igualmente a mera elevação do risco de lesão – que é outra forma de perguntar se inclui a diminuição de chances de evitar o prejuízo – bastando essa mera elevação do risco (no interesse negativo, de perda de oportunidades alternativas) para que se imponha ao agente o dever de indemnizar”25.[ 25 PAULO MOTA PINTO, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, II, cit., p. 1106.]
Esta posição aproxima-se daquela que Carneiro da Frada também manifesta. Na responsabilidade contratual, diz este Autor, “a perda de oportunidade pode desencadear responsabilidade de acordo com a vontade das partes (que erigiram essa “chance” a bem jurídico protegido pelo contrato”26.[ 26 CARNEIRO DA FRADA, Direito Civil, Responsabilidade civil: o método do caso, Coimbra, Almedina, 2006, p. 104] Na responsabilidade delitual, “tudo depende da possibilidade de individualizar a violação de uma norma cujo escopo seja precisamente a salvaguarda da “chance””27. [27 CARNEIRO DA FRADA, Direito Civil…, cit., p. 104.]
No entanto, tem vindo a fazer carreira a consideração da perda de chance como indemnizável enquanto dano intermédio, autónomo do dano final, desde que se verifiquem os demais pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente o facto ilícito e culposo e o nexo causal entre ele e o dano da perda de chance.
Neste sentido, Rute Teixeira Pedro afirma que a ressarcibilidade do dano por perda de chance depende de determinados pressupostos: - “terá de existir um determinado resultado positivo – a obtenção de uma vantagem ou a não concretização de uma desvantagem – que pode vir a verificar-se, mas cuja verificação não se apresenta certa”; - “é necessário que, apesar desta incerteza, a pessoa se encontre numa situação de poder vir a alcançar esse resultado”; “a pessoa terá, portanto, de estar investida de uma chance real de consecução da finalidade esperada” (sublinhados meus); - “é indispensável que se verifique um comportamento de terceiro, susceptível de gerar a sua responsabilidade, e que elimine de forma definitiva as (ou algumas das) existentes possibilidades de o resultado se vir a produzir”28[28 RUTE TEIXEIRA PEDRO, A Responsabilidade Civil do Médico…, cit., pp. 198-201 ]
. De um só golpe, acrescenta, “o facto do agente destrói as expectativas existentes e inviabiliza a obtenção do resultado esperado. O desaparecimento do elemento intermédio traz, por arrastamento, o desaparecimento do resultado final que eventualmente se viria a verificar”29.[ 29 RUTE TEIXEIRA PEDRO, A Responsabilidade Civil do Médico…, cit., p. 203.]
Defendendo igualmente a consideração da perda de chance como dano autónomo, Nuno Santos Rocha explica que, para determinar o valor da indemnização terá de se proceder a três operações distintas: “Avaliar, primeiro, qual o valor económico do resultado em expectativa e, de seguida, a probabilidade que existiria de o alcançar, não fora a ocorrência do facto antijurídico. Este segundo valor, calculado numa percentagem – traduzindo a consistência e seriedade das «chances» -, terá que ser por fim aplicado ao primeiro, para que se possa finalmente obter o valor pecuniário da «perda de chance»”30. [30 NUNO SANTOS ROCHA, A «perda de chance» como uma nova espécie de dano, cit., p. 44. Segue no essencial o método de cálculo de RUTE TEIXEIRA PEDRO, A A Responsabilidade Civil do Médico…, cit., pp. 227 a 232. ]
A jurisprudência portuguesa tem aderido à doutrina da ressarcibilidade da perda de chance, como dano autónomo. A título meramente exemplificativo:
- Acórdão do STJ de 06/03/2014, proc. 23/05.3TBGRD.C1.S1: “III - É admitida a ressarcibilidade do dano da perda de chance ou de oportunidade, que pressupõe: a possibilidade real de se alcançar um determinado resultado positivo, mas de verificação incerta; e um comportamento de terceiro, susceptível de gerar a sua responsabilidade, que elimine de forma definitiva a possibilidade de esse resultado se vir a produzir.”
- Acórdão do STJ de 05/02/2013, proc. 488/09.4TBESP.P1.S1: “X - O dano da “perda de chance” que se indemniza não é o dano final, mas o dano “avançado”, constituído pela perda de chance, que deve ser medida em relação à chance perdida e não pode ser igual à vantagem que se procurava, nem superior nem igual à quantia que seria atribuída ao lesado, caso se verificasse o nexo causal entre o facto e o dano final. XI - Para o que importa proceder a uma tarefa de dupla avaliação, isto é, em primeiro lugar, realiza-se a avaliação do dano final, para, em seguida, ser fixado o grau de probabilidade de obtenção da vantagem ou de evitamento do prejuízo, após o que, obtidos tais valores, se aplica o valor percentual que representa o grau de probabilidade ao valor correspondente à avaliação do dano final, constituindo o resultado desta operação a indemnização a atribuir pela perda da chance”.
Noutra abordagem do problema, a perda de chance não constitui um dano autónomo, nem é indemnizável enquanto tal; no entanto, o dano (final) pode ser indemnizável, em certa medida, se se verificar elevada probabilidade de ter sido adequadamente causado pelo facto ilícito. A perda de chance constitui, assim, um problema de causalidade. Trata-se da posição entre nós assumida por Rui Cardona Ferreira: nega que se possa sustentar, em face do nosso ordenamento, uma posição favorável quanto à admissibilidade da perda de chance como dano patrimonial, emergente e autónomo31. [31 RUI CARDONA FERREIRA, «A perda de chance revisitada (a propósito da responsabilidade do mandatário forense)», Revista da Ordem dos Advogados, ano 73, out./dez. 2013, pp. 1301-29].
Não é este o momento para analisar a perda de chance de forma geral, nem de tomar posição sobre o tema de modo genérico. Perante o caso que nos ocupa não há dúvida de que a demandada tinha a obrigação de ter agido de outra forma, de ter realizado determinados exames e chamado a intervir um médico especialista em medicina interna que lhe teriam permitido diagnóstico certo e de ter assistido e medicado a paciente em conformidade. O cumprimento adequado e diligente da sua prestação teria dado à paciente a possibilidade de sobreviver, ou uma muito maior probabilidade de sobrevivência. A probabilidade de sobrevivência foi coarctada pela conduta da arguida/demandada, gerando para FF um dano concreto: a redução drástica da probabilidade de sobreviver.
Entre a conduta lesiva da arguida/demandada e este dano autónomo, intermédio, há um irrefutável nexo causal. A omissão da arguida/demandada era adequada a causar, e efectivamente causou, aquele dano intermédio.
Em casos como o presente, em que, por via do incumprimento (em sentido lato) ilícito e culposo, o lesado perde a oportunidade que efectivamente tinha (em alguma medida) de vir a obter o resultado correspondente ao seu interesse primário ou final nesse contrato, a perda de chance constitui um dano autónomo, indemnizável, desde que entre este dano e a conduta lesiva se verifique o necessário nexo de causalidade adequada.
Concluindo pela verificação dos pressupostos da responsabilidade civil – facto ilícito e culposo, dano (intermédio ou autónomo, consubstanciado na elevada probabilidade de não sobrevivência ou quase impossibilidade de sobrevivência) e nexo causal (entre a conduta ilícita e culposa e o dano intermédio) –, resta quantificar o dano sofrido. Em que medida deve o assistente ser indemnizado.
• Dos prejuízos causados e medida da sua indemnização:
O assistente pediu a condenação dos demandados nas seguintes quantias indemnizatórias, para ressarcimento dos seguintes danos:
i) € 35.000 a título de dano morte;
ii) € 20.000 a título de danos morais sofridos por FF;
iii) € 180.000 a título de danos morais sofridos pelo assistente viúvo e por cada um dos dois filhos menores;
iv) € 354.021,16 a título de danos patrimoniais, sendo todas as quantias acrescidas de juros vincendos.
É, actualmente, entendimento quase unânime do STJ a possibilidade de valoração/tutela dos danos não patrimoniais na responsabilidade contratual, desde que tais danos sejam em si graves, por aplicação do disposto no art.º 496.º do CC32. [32 Neste sentido, e a título de exemplo, o Acórdão do STJ de 30/09/2014, proc. 739/09.5TVLSB.L2-A.DS1. Vai distante a doutrina contrária, expressa por Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4.ª ed., nota 8 ao art. 496.]
Não sendo possível a reconstituição natural, impõe-se a indemnização em dinheiro (art.ºs 562.º e 566.º do CC). Em quanto? Mesmo recorrendo a critérios de equidade (art.º 566.º n.º 3, do CC), a resposta não é imediata. Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados, assim o determina a norma por último citada.
A ressarcibilidade do dano da perda de chance ou de oportunidade existe tanto na responsabilidade contratual como extracontratual33.[ 33 Acórdão do STJ de 30/09/2014, proc. 739/09.5TVLSB.L2-A.DS1. ]
Que os danos acima elencados se verificaram é indiscutível perante a factualidade assente. Relativamente aos danos morais sofridos pela vítima, leiam-se sobretudo os factos provados x), ll); a respeito dos danos morais sofridos pelo assistente, viúvo e filhos, leiam-se sobretudo os factos provados mm) a rr), zz), aaa); sobre os prejuízos patrimoniais, leiam-se os factos kk), ss) a yy), bbb).
Porém, estamos, como já exposto, perante um caso em que os demandados (arguida BB e Centro Hospitalar ..., E.P.E.) são responsáveis apenas pela perda de chance, pelo que se impõe quantificar a indemnização por referência à chance perdida e tendo em consideração a medida das probabilidades de sobrevivência se a oportunidade da sua obtenção não tivesse sido frustrada com a conduta, sobretudo omissiva, da demandada BB.
Para aferir a medida da indemnização num caso de perda de chance, como o presente, importa proceder a uma tarefa de dupla avaliação: em primeiro lugar, avaliar o dano final; em seguida, fixar o grau de probabilidade de obtenção da vantagem. Uma vez obtidos tais valores, aplica-se o valor percentual que representa o grau de probabilidade ao valor correspondente à avaliação do dano final, constituindo o resultado de tal operação o valor da indemnização a atribuir pela perda da chance34. [34 NUNO SANTOS ROCHA, A «perda de chance» como uma nova espécie de dano, cit., p. 44. Segue no essencial o método de cálculo de RUTE TEIXEIRA PEDRO, A A Responsabilidade Civil do Médico…, cit., pp. 227 a 232 ]
Relativamente ao dano final, admito serem adequados os valores atribuídos pelo assistente aos vários danos. Relativamente ao grau de probabilidade de sobrevivência se a demandada BB tivesse realizado a prestação adequada e exigível, considerando o apurado nos factos j) a p), q), r) e o disposto no art.º 566, n.º 3, do CC, afigura-se-me razoável fixar a probabilidade de sobrevivência às 19:00 horas (do dia 30.08) em 50%.
Justificando-se tal percentagem na minha óptica, atendendo à existência de duas situações clinicas possíveis e admissíveis, a saber, uma situação clinica estável (de não alto risco de mortalidade) e uma situação clinica de instabilidade hemodinâmica de alto risco de mortalidade. Esta última sempre implicaria necessariamente uma probabilidade igual ou inferior a 49% e a primeira ainda que seja condicionada a diversos factores (designadamente, idade da doente, existência de doenças associadas e/ou de outra natureza que condicionem a evolução do TEP), cremos que, estando a paciente FF, no segundo dia de atendimento, numa situação clínica estável (de não alto risco de mortalidade), pelo menos 50% de probabilidade de sobreviver, naquele momento, teria.
Aplicando a referida percentagem (50%) ao valor do dano final, concluímos que o assistente, por si e em representação dos seus filhos menores, deve ser indemnizado pelos danos emergentes da perda de chance em € 294.510,58 (duzentos e noventa e quatro mil, quinhentos e dez euros e cinquenta e oito cêntimos).
*
• Da responsabilidade da Seguradora Interveniente:
De acordo com o exposto nos factos ccc) a eee), a EE – Companhia de Seguros S.A. celebrou com a Ordem dos Médicos um contrato de seguro de grupo, titulado pela apólice n.º 84.10.0680091, pelo qual garantiu a responsabilidade civil profissional dos médicos perante terceiros, derivada de danos e prejuízos causados no exercício da sua profissão de médicos, desde que exercida de acordo com a legislação vigente, tudo conforme consta da respectiva apólice, das condições gerais, especiais e particulares, que se mostram a fls. 640 a 661 e cujo teor se dá aqui pro reproduzido.
Como decorre dos autos, a EE – Companhia de Seguros, S.A. foi admitida a intervir nos autos apenas e só na qualidade de interveniente acessória.
Prescreve o art.º 321.º do NCPC: "1 - O réu que tenha acção de regresso contra terceiro para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda pode chamá-lo a intervir como auxiliar na defesa, sempre que careça de legitimidade para intervir como parte principal. 2 - A intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento".
Comentando este preceito, Lopes do Rêgo diz o seguinte: "Na base de tal configuração está a ideia de que a posição processual que deve corresponder ao sujeito passivo da relação de regresso, conexo com a controvertida e - invocada pelo réu como causa do chamamento - é a de mero auxiliar da defesa, tendo em vista o seu interesse indirecto ou reflexo na improcedência da pretensão do autor, pondo-se, consequentemente, a coberto de ulterior e eventual acção de regresso ou de indemnização contra ele movida pelo réu da causa principal".
Mas, sendo tal a ideia - continua o mesmo A. - "não deve ser tratado como parte principal", o seu papel e estatuto reconduzem-se, pois, ao de auxiliar na defesa, visando com a sua actuação processual - não obstar à própria condenação, reconhecidamente impossível - mas produzir a improcedência da pretensão que o autor deduziu no confronto do réu-chamante"35. [35 in Comentários ao Código de Processo Civil, pág. 252 e ss..]
A este propósito, Lebre de Freitas sublinha que, com o D.-L. 329-A/95, "das três situações processuais a que o chamamento à autoria podia conduzir (litisconsórcio impróprio, substituição processual, assistência), apenas a assistência, agora designada intervenção acessória, passou a ter lugar"36.[ 36 in Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, pág. 583. ]
A este respeito, escreveu Salvador da Costa: "Esta solução legal é inspirada, face ao interesse indirecto ou reflexo, na improcedência da pretensão ao autor, pela ideia de a posição processual que deve corresponder ao titular de uma acção de regresso, meramente conexa com a relação jurídica material controvertida objecto da causa principal, é a de mero auxiliar na defesa, em termos de acautelamento da eventualidade da hipótese de no futuro contra ele ser intentada, por quem foi réu na acção anterior, acção de regresso para efectivação do respectivo direito".
E, não deixou de fazer notar que "o fundamento básico da intervenção acessória provocada é a acção de regresso da titularidade do réu contra terceiro, destinada a permitir-lhe a obtenção da indemnização pelo prejuízo que eventualmente lhe advenha da perda da demanda", sendo certo que "o chamado não influencia a relação jurídica processual desenvolvida entre o autor e o chamante" e, daí que "nela não pode haver sentença de condenação"37.[ 37 in Os Incidentes da Instância - 3ª edição -, pág. 127 e ss..}
Ou seja, hoje em dia, o interveniente acessório tem a posição de assistente, tal como era regulada a mesma no art.º 335.º e ss. do C.P.C. de 1967. Ora, a respeito da posição jurídica do assistente na acção, Lopes Cardoso disse, de forma bem clara, que o mesmo não podia ser condenado ou absolvido, sendo-lhe até lícito abandonar a causa em qualquer altura.
Mas, acentuou, que "o simples facto de ser admitido a assistir, vincula-o, porém, a tal decisão, não porque este forme caso julgado pleno contra ele ..., mas no sentido de que o assistente, em nova acção onde tenha a posição de parte principal, fica obrigado a aceitá-la como prova plena dos factos que a sentença estabeleceu, e como caso julgado relativamente ao direito que definiu"38.[38 in Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil 2ª edição -, pág. 155 - consideração esta tecida no âmbito de aplicação do CP.C. de 39, mas que mantém perfeita actualidade, atento o disposto no art. 341º aplicável ao caso sub iudice ex vi nº 4 do art. 332º.
Também Alberto dos Reis acentua esta mesma ideia - "quem é condenado na acção é a parte principal; o tribunal condena o assistido, se este decair, mas não condena o assistente". - in Código de Processo Civil anotado, Volume I - 3ª edição -, pág. 478 - também esta referência é feita em relação ao C.P.C. de 39, mas permanece válida nos dias de hoje pelas mesmas razões supra referidas.
De tudo o exposto, resulta de forma bem clara que o interveniente acessório não pode nunca ser condenado na acção para a qual apenas foi chamado a intervir como mero auxiliar.
Daí que, em perfeita consonância com o que foi referido, o n.º 4 do art.º 323.º do NCPC preceitue que "a sentença proferida constitui caso julgado quando o chamado, nos termos previstos no artigo 341º, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior acção de indemnização".
A ratio de toda esta orientação legislativa é, outra vez, explicada por Lebre de Freitas, em comentário, ao preceito legal acabado de referir. Lê-se na obra citada deste A.: "No regime do anterior chamamento à autoria, constituía-se sempre caso julgado contra o primitivo réu, mesmo que ele se excluísse da causa", mas "diversamente se passam as coisas num regime em que ao chamado só é consentido intervir acessoriamente", sendo certo que o mesmo é impedido de contrariar de forma cabal e plena a pretensão que se discute como principal, impedindo-o de fazer uso de meios processuais que podiam influir na decisão final ou tomar, no uso de um meio processual, uma orientação diversa que igualmente podia influenciar a decisão".
Daí que "a produção de caso julgado perante o chamado à intervenção acessória pode, portanto, não se produzir, como se produzia sempre perante o chamado à autoria. Mas, quando se produz, o seu alcance continua a ser o mesmo, tido em conta que a função de um incidente e de outro é a mesma: tornar indiscutíveis, no confronto do chamado, os pressupostos do direito à indemnização, a fazer valer em acção posterior, que respeitem à existência e ao conteúdo do direito do autor"39. [39 in obra citada, pág. 590.]
Daqui resulta a necessária conclusão de que, tendo a EE – Companhia de Seguros S.A. intervindo nos autos apenas e só na qualidade de interveniente acessória, não pode ser condenada nem absolvida nos autos, sendo que a presente sentença constitui caso julgado, nos termos previstos no artigo 341º, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior acção de indemnização. “
Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação -artº 562º nº 1, do CC.
O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. Artº 564º nº 1, do CC
Mas, a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão. Artº 563º ,do CC
A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor. e tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.
Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados. - artº 566º, do CC.
A indemnização deve pois ter carácter geral e actual, abarcar todos os danos, patrimoniais, e não patrimoniais, mas quanto a estes apenas os que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito e, quanto àqueles, incluem-se os presentes e futuros, mas quanto aos futuros só os previsíveis (arºs 562º, a 564º e 569º do Código Civil)
Porém, nos termos do nº 2, do citado artº 483º, do CC, “Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.”
Por sua vez, o artº 570.º do mesmo Código, a propósito da “Culpa do lesado” determina:
1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
2. Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.”
Sendo que o artº 572.º, referindo-se à “Prova da culpa do lesado” consigna:
“Àquele que alega a culpa do lesado incumbe a prova da sua verificação; mas o tribunal conhecerá dela, ainda que não seja alegada.”
“Nascida em França, em 17/7/1889, a figura da perda de chance expandiu-se pelo mundo inteiro, sobretudo na segunda metade do século passado, sendo, hoje, aceite na maioria dos países e algumas organizações internacionais.
Apesar de continuar a ser controversa, sendo negada por alguns, ela revela-se uminstrumento privilegiado para a realização do Direito justo, no domínio da responsabilidade civil, tanto contratual como extracontratual.
Como tal, penetrou no nosso ordenamento jurídico, muito embora ainda não permita a elaboração de uma teoria geral.
De qualquer modo, não obstante os vários critérios utilizados para a sua classificação e os campos de aplicação, entendemos que a perda de chance deve ser tratada como uma nova espécie de dano e não como uma questão de causalidade.
Tal dano, consistindo na perda da possibilidade de obter um resultado favorável ou de evitar um resultado desfavorável, é autónomo, diferente do dano final, e é passível de indemnização no quadro da actual legislação.
Assim o tem entendido, recentemente, a maioria da jurisprudência que se vem adiantando ao labor científico da doutrina nacional, sendo que uma reduzida parte delatambém já aceita a perda de chance como um dano autónomo.
[…]
Com o devido respeito, entendemos que o dano indemnizável pela perda de chance é distinto do dano final.
Visando a perda de chance indemnizar um dano materializado numa possibilidade, não pode a indemnização conferida ser igual àquela que corresponderia ao dano efectivo ou final.
Pelo contrário, ela terá que ter um montante, necessariamente, inferior, sob pena de se confundir a mera possibilidade com a sua efectividade. Assim entendeu o mesmo STJ, agora no processo n.º 1410/04.0TVLSB.L1.S1193, onde consta que “[a] vantagem em causa deve ser aferida em termos de probabilidade, reportando-se o dano de perda de chance ao valor da oportunidade perdida e não ao benefício esperado”. “Logo, não poderá nunca coincidir com o valor indemnizatório correspondente ao dano final e efectivo. É que se trata aqui de danos diferentes: num caso a mera perda de uma possibilidade, no outro um dano efectivo”194
.
Partindo do pressuposto que esta indemnização visa compensar a perda de uma possibilidade, ela será tanto maior quanto mais elevada for a referida possibilidade (de evitar um prejuízo ou de obter um benefício)
.
Para o cálculo da respectiva indemnização, há que proceder da seguinte forma:
- em primeiro lugar, define-se o valor que seria atribuído ao dano final;
- de seguida, calcula-se a probabilidade de obtenção da vantagem perdida ou de evitamento do prejuízo, em regra, traduzida num valor percentual;
- por fim, calcula-se o montante indemnizatório, com base nos dois valores anteriormente obtidos
perda de chance só se terá por verificada nos casos em que a atribuição da indemnização em nada depende da probabilidade de concretização da chance perdida).
Uma das vias de cálculo opera pela vulgarmente designada regra proporcional.
Porém, é pensável laborar com outro critério, conhecido pela regra da diferença, que opera com a redução de probabilidades operada pelo agente.
Os resultados obtidos são diferentes, consoante se opte por uma ou outra via, conduzindo a da regra da diferença a valores indemnizatórios inferiores aos obtidos segundo a regra proporcional. Por isso, e porque necessita de um elemento desconhecido por esta via de cálculo, a regra da diferença não tem tido aceitação entre nós, pelos nossos tribunais, não obstante ser mais rigorosa, sendo frequente a utilização da regra proporcional.
Já na doutrina, há quem sustente que “para efeitos do valor da chance perdida se deve recorrer a uma percentagem do dano final, calculada com base na diferença entre as probabilidades existentes antes e depois da intervenção ilícita e culposa do agente”197, sem deixar de apresentar logo críticas à regra da diferença, por permitir reduções que podem conduzir à privação total da indemnização pela perda de chance.
Na impossibilidade de determinação com rigor do grau de probabilidade e, consequentemente, do valor exacto do dano, o tribunal deve recorrer à equidade, nos termos do art.º 566.º, n.º 3 do Código Civil
[…]
Ainda que se reconheça dificuldade em considerar a autonomia da figura da perda de chance no direito português, nomeadamente por razões ligadas ao estabelecimento do nexo de causalidade, enquanto requisito da responsabilidade civil, não é caso de “rutura, mais ou menos «camuflada» com a conceção clássica da causalidade”199, sendo que a mesma, a verificar-se, não é, a nosso ver, absolutamente vedada pelo art.º 563.º do Código Civil, devendo antes ser assumida, “não em termos ilimitados ou de aplicação geral, mas em pressupostos e com limites bem definidos”200. Acontece, porém, que, nos casos de indemnização por perda de chance, não devem assimilar-se os planos do dano e da causalidade com implicação na perspectiva de excluir como dano autónomo a perda de chance, uma vez que se visa indemnizar, não a perda do resultado querido, mas antes a da oportunidade perdida como um direito em si mesmo violado por uma conduta que pode ser omissiva ou comissiva. E essa oportunidade integra já o conceito de dano, pois este tem vindo a evoluir, passando a responsabilidade civil a reparar, para além dos danos que atentem directamente contra as pessoas e o património, os danos emocionais e expectativas de interesse.
Essa flexibilização do conceito de dano que vem sendo desenvolvida permite uma maior aproximação da aplicação do direito às realidades actuais e conduz, ou deve conduzir, a que a chance ou oportunidade perdida seja merecedora de tutela do direito.
Só assim a teoria da perda de chance vigorará e contribuirá, a nosso ver, mediante a correcta análise de todos os pressupostos da obrigação de indemnizar, para a realização do Direito.”
Também, Patrícia Helena Leal Cordeiro da Costa, na sua dissertação de mestrado “DANO DE PERDA DE CHANCE E A SUA PERSPECTIVA NO DIREITO PORTUGUÊS” ed.Verbo Jurídico, refere:
“O problema da perda de oportunidade diz respeito, não à teoria da causalidade jurídica ou de imputação objectiva, mas à teoria da causalidade física – tanto assim que a primeira (teoria da perda de oportunidade) leva a um alargamento dos casos de responsabilidade, enquanto que a segunda (teoria da causalidade jurídica ou de imputação objectiva) leva a uma restrição dos mesmos. Uma hipótese de perda de oportunidade apenas pode colocar-se verdadeiramente quando não se alcança a prova de que um determinado facto foi causa física de um determinado dano final.
A doutrina da perda de chance propugna, em tese geral, a concessão de uma indemnização quando fique demonstrado, não o nexo causal entre o facto e o dano final, mas simplesmente que as probabilidades de obtenção de uma vantagem, ou de evitamento de um prejuízo, foram reais, sérias, consideráveis.
Teve origem na prática judicial, e refere-se em regra a casos em que a vítima se encontra, de certo modo, numa situação de desigualdade de armas relativamente ao agente porque carece de conhecimentos e meios para apreciar (e demonstrar) se houve ou não causalidade. Visa assim corrigir tal desequilíbrio, auxiliando a vítima perante tais dificuldades de prova. Trata-se de uma técnica a que se recorre, pois, para ultrapassar as dificuldades de prova do nexo causal, pretendendo-se com a mesma evitar-se a solução drástica, e em muitos casos injusta, a que conduz o modelo tradicional do tudo ou nada.
[..]
- em primeiro lugar, proceder-se-á avaliação do dano final;
- seguidamente, fixar-se-á o grau de probabilidade de obtenção da vantagem ou
de evitamento do prejuízo, em regra traduzido num valor percentual. Saliente-se, porém, que o cálculo da probabilidade não pode ser deixado para momento posterior ao da decisão que aprecia o invocado direito à indemnização, nomeadamente para o incidente de liquidação previsto no art. 661.o, n.o 2 do Código de Processo Civil, visto que tal operação é desde logo necessária para apurar se a chance perdida é séria e real.
Obtidos tais valores, resta aplicar o valor percentual que representa o grau de probabilidade ao valor correspondente à avaliação do dano final, sendo que o resultado de tal operação constituirá a indemnização a atribuir pela perda da chance.
Assim, e por exemplo, se por acto negligente do médico o paciente perde 30 % de chances de sobrevivência e, posteriormente, vem a falecer sem que se logre estabelecer, com certeza, o nexo causal entre o facto do médico e a morte, a indemnização pela perda de chance de sobrevivência será calculada do seguinte modo:
- avaliação do resultado final morte – que, para efeitos de argumentação, seestabelece em € 100.000,00;
- fixação do grau de probabilidade de evitamento do prejuízo, o qual é de 30%;
- aplicação desta percentagem àquele valor, fixando-se a indemnização em € 30.000,00.”
A doutrina de perda de chance acolhida pelo Acórdão Recorrido ao considerar uma probabilidade de sobrevivência da utente às 19h do dia 30/08/2010 fixada em 50% na fixação do montante de valor indemnizatório de € 294.510,58 (duzentos e noventa e quatro mil quinhentos e dez euros e cinquenta e oito cêntimos, não afronta o entendimento que vem sendo seguido sobre a matéria, nem torna tal quantitativo desproporcional para o Recorrido pois que é legítimo concluir que as duas situações clínicas possíveis e admissíveis nos autos – uma situação clínica estável, e uma situação clínica de instabilidade hemodinâmica de alto risco de mortalidade -, implicariam uma probabilidade de sobrevivência de 50%.
Tendo em conta a análise fundamentada e pormenorizada descrita na 1ª instância, que se mostra pertinente, na amplitude jurisprudencial e doutrinal, em correlação com a matéria fáctica provada, bem como a fundamentação aduzida na 2ª instância, o recurso não procede.
Acordam os deste Supremo – 3ª Secção:
Rejeitam o recurso interposto pela interveniente Ageas, nos termos dos artºs 420º nº 1, al. b) e 414º nºs 2 e 3, do CPP.
Negam provimento ao recurso interposto pelos demandados, e confirmam a decisão recorrida.
Custas pela interveniente Ageas nos termos da tabela anexa ao Regulamento das Custas Processuais, indo condenada ainda na importância de 7 Ucs pela rejeição, nos termos do nº 3, do artº 420º do CPP
Custas pelos demandados recorrentes, na proporção do vencido.
Lisboa, Escadinhas de São Crispim,
Elaborado e revisto pelo relator.
Pires da Graça (Relator)
Raúl Borges
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[1] O Exmº Conselheiro Salvador da Costa, na sua obra “Os Incidentes da Instância”, 2016, 8ª ed., pág. 118, a propósito da possibilidade de o chamado interpor recurso apesar de não ser condenado na acção, pronuncia-se nos seguintes termos:
”Já entendemos no sentido negativo, sob o argumento da subordinação do interveniente acessório à parte que o chamou à intervenção, designadamente no tocante ao direito de recorrer e de que a sentença condenatória do réu era insusceptível de o prejudicar directamente.
(…)
Reponderando a nossa posição anterior, propendemos agora a considerar, com base no nº 2 do artigo 631º, a legitimidade recursória do interveniente acessório quanto às sentenças que, pelo seu conteúdo, directa e efectivamente o afectem, por exemplo no que concerne aos pressupostos do direito de regresso”.
Também no sentido da legitimidade recursiva do interveniente acessório se pronunciou o ac. da Relação de Coimbra de 20/12/2016 (www. dgsi.pt)
[2] No sentido de que o interveniente acessório provocado não tem legitimidade para recorrer autonomamente, cfr ac. do STJ de 25/03/2010 (www. dgsi.pt)