Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
Relatório
1. No Tribunal Judicial da Comarca da AA (Juízo Central Criminal do BB, Juiz 3), o arguido CC foi condenado ao pagamento de indemnizações civis aos demandantes DD, EE e FF, e foi também condenado em concurso real, pela prática:
- de um crime de incêndio florestal agravado pelo resultado, nos termos dos arts. 274.º, n.ºs 1 e 2, al. a) e 285.º, ambos do Código Penal (CP), na pena de prisão de 12 (doze) anos,
- de um crime de homicídio por negligência grosseira, nos termos do art. 137.º, n.º 2, do CP, na pena de prisão de 3 (três) anos,
- e, em cúmulo jurídico da penas parcelares aplicadas, na pena única de 14 (catorze) anos de prisão.
Foi ainda declarado perdido a favor do Estado o isqueiro utilizado e determinada a sua destruição.
2. Inconformado com a decisão proferida, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo apresentado as seguintes conclusões:
«1º O presente recurso tem como objeto toda a matéria de direito do acórdão proferido nos presentes autos.
2.º O arguido CC, foi condenado pela prática de um crime de incêndio florestal agravado pelo resultado p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 274º, n.º1 e 2, al. a), e 285º, ambos do Cód. Penal, a 12 (doze) anos de prisão, foi ainda o arguido condenado pela prática do crime de homicídio por negligência grosseria, p. e p. pelo artigo 137º, n.º2, do Cód. Penal, a 3 (três) anos de prisão, sendo condenado em cúmulo jurídico numa pena única de 14 (catorze) anos de prisão.
3.º A aplicação da pena de prisão de 14 (catorze) anos em cúmulo jurídico e excessiva e ultrapassa em muito a culpa do arguido.
4.º Pena essa, que ultrapassa em larga medida os princípios da razoabilidade, necessidade proporcionalidade e legalidade, por ser muito excessiva e severa.
5. º O tribunal “a quo” salvo o devido respeito não ponderou de forma criteriosa quer a culpa, quer as exigências de reprovação e de prevenção geral e especial.
6.º Na aplicação da medida concreta da pena o tribunal "a quo'' violou o disposto nos artigos 40.º e 71.º C.P e não teve em conta o fim da prevenção especial da pena, porque a pena quando excessiva deixa de realizar os seus fins.
7.º Quer isto dizer, não teve em conta a ausência de condenações anteriores, pois o arguido ora recorrente não tem antecedentes criminais, é um jovem de 23 anos merece uma segunda oportunidade, não teve qualquer intenção de causar os danos matérias e humanos, mesmo após os factos ajudou no combate ao incêndio, verificando-se assim, que tentou reparar as consequências do crime embora sem qualquer sucesso.
8.º Não teve em consideração nenhuma das atenuantes nos termos do artigo 71.º.
9.º Em termos de comparação e em termos exemplificativos vejamos o acórdão do TRC de 05-10-2015 processo 174/13.0GAVZLC1, disponível em WWW.DGSLPT. em que um dos arguidos foi condenado para além de um crime de incêndio florestal agravado pelo resultado foi condenado na pena de 10 (dez) anos de prisão, três crimes de homicídio por negligência grosseira, foi condenado na pena de 2 (dois) anos e 8(oito) meses de prisão cada um deles, foi condenado em 8 (oito) crimes de ofensa à integridade fisica por negligência, na pena de 5 (cinco) meses de prisão, por cada um deles e por último condenado num crime de condução sem habilitação legal, na pena de 8 ( oito) meses de prisão, condenações essas que em cúmulo jurídico foi de 16 (dezasseis) anos de prisão.
10.º Assim, entende-se em termos comparativos que a pena única aplicada ao arguido/ recorrente de 14 (catorze) anos de prisão é desajustada severa e excessiva deverá ser revogada e /ou modificada para no que respeita, à escolha da pena aplicada, aplicando-se uma redução substancia, aplicando uma pena única nunca superior a 8 anos.
11.º Pelo exposto, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em conformidade ser proferido douto acórdão que revogue e/ou modifique o douto acórdão recorrido no que esta parte concerne, para no que respeita, à escolha da pena aplicada, aplicando -se uma redução substancial, aplicando uma pena única nunca superior a 8 anos, assim se fazendo inteira justiça .»
3. O recurso foi admitido por despacho de 14.08.2017.
4. O assistente, DD, nos termos do art. 413.º, do CPP, apresentou resposta tendo concluído pela “absoluta improcedência do recurso e, consequentemente, pela confirmação do douto acórdão recorrido” porquanto:
«1 – A pena aplicada ao arguido é, sem dúvida, a mais ajustada, atenta a gravidade dos factos provados;
2 – Não merecendo, por isso, qualquer juízo de censura, antes pelo contrário.»
5. O Procurador da República no Tribunal da Comarca da AA apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, concluindo:
«I. O objeto do recurso interposto pelo arguido CC circunscreve-se à matéria de direito que respeita à determinação das penas parcelares e da pena única que o tribunal, no douto acórdão recorrido, aplicou.
II. A determinação da medida da pena é uma operação complexa em que interagem três vetores que correspondem às finalidades que presidem à aplicação de qualquer reação punitiva na sequência de uma ação típica: a prevenção geral positiva, a prevenção especial e a observância do princípio da culpa – art.º 40º C.P.
III. Integrando os critérios legais de determinação da medida concreta da pena (art.º 71º C.P.) com a matéria de facto provada, temos que:
- É muito elevada a ilicitude do facto, considerando também a enorme gravidade das consequências decorrentes dos crimes, expressivamente traduzida na devastação causada, no grau de lesão dos bens jurídicos e no número de vezes que tal lesão ocorreu;
- A violação dos deveres impostos ao arguido, atendendo à forma e ao local onde atuou e às condições climatéricas existentes é, também ela muito elevada;
- O dolo, direto, é intenso e a negligência, grosseira, muito grave, revelando-se uma personalidade desviante, com forte resistência aos efeitos das penas, claramente deficitária quando cotejada com as qualidades que se pressupõem no homem fiel ao direito (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra, 2005, p. 250);
- A ausência de uma finalidade racionalmente apreensível que não seja a vontade de causar a destruição pelo fogo eleva de forma dramática o juízo de censura e a necessidade de intervenção na esfera do Recorrente a fim de que seja recuperado para os valores da ordem jurídica;
- As condições pessoais do Recorrente, a sua história de vida, o seu percurso existencial, revelam um indivíduo que, como expressivamente se escreve no acórdão, não tem quaisquer referências familiares ou práticas laborais, atuando ao sabor de impulsos sem antecipar as consequências dos seus atos;
- Estas características pessoais inculcam a conclusão de que o Recorrente não tem competências suficientes para se determinar de acordo com o direito, mantendo um preocupante grau de dissociação em relação aos valores fundamentais da ordem jurídica;
- A ausência de antecedentes criminais e a idade do Recorrente à data da prática dos factos não constituem fatores que atenuem, de forma relevante o grau de censura que as condutas suscitam.
IV. A ponderação conjugada de todos estes fatores concorre para a conclusão de que as apenas aplicadas pelo crime de incêndio florestal agravado pelo resultado (12 anos de prisão) e pelo crime de homicídio por negligência grosseira (3 anos) constituem reações sancionatórias necessárias, adequadas e proporcionais, observando o disposto nos artigos 40º, 70º e 71º, todos do Código Penal.
V. De acordo com o disposto no art.º 77º, 1 C.P. na operação de determinação da pena única do concurso são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
VI. Definindo os exatos termos em que se fixa a moldura penal do concurso, o n.º 2 do referido artigo dispõe que aquela tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
VII. Atendendo às penas parcelares concretamente determinadas e à posição de concordância com o quantum de tais penas, a moldura penal em que se deve encontrar a pena única é delimitada pelo mínimo de 12 anos de prisão e pelo máximo de 15 anos de prisão.
VIII. No que respeita à medida da pena de concurso, esta considerará também as referidas finalidades punitivas, mas desta feita atendendo, em particular e especificamente, “em conjunto” aos factos e à personalidade do arguido.
IX. Sendo certo que as finalidades punitivas foram pesadas, em cada pena parcelar, ponderando a relevância da integração dos critérios previstos no art.º 71º C.P., na determinação da pena única deve extrair-se da pluralidade de infrações conclusões quanto às necessidades de prevenção geral e especial.
X. Assim, da prova produzida resulta:
- O Recorrente tem um percurso de vida que se caracteriza pela assunção de condutas não normativas, privilegiando, desde cedo, o posicionamento num contexto de desafio às mais elementares regras de convivência social e assumindo uma postura de desinteresse e distanciamento em relação às estruturas basilares do tecido social (“50. Com o decorrer do seu desenvolvimento foi revelando problemas de conduta que se foram traduzindo numa instabilidade escolar, na associação a pares desviantes, no consumo de substâncias psicoativas, no desafio à autoridade parental e na conquista precoce de competências de autogestão; 51. Nestas circunstâncias, nunca valorizou a escola, tendo apresentado um percurso marcado por reprovações, absentismo e problemas de comportamento que conduziram à sua expulsão escolar. Apesar de ter frequentado uma turma de currículos alternativos, adaptada às suas dificuldades escolares, não progrediu nos estudos, abandonando o sistema de ensino com habilitações equivalentes ao nível do 4º ano” – cf matéria de facto provada e elencada no acórdão recorrido);
- O consumo de álcool e de substâncias psicoativas afetou o seu processo de desenvolvimento, traduzindo uma escolha precoce de estratégias alienantes e não produtivas, exercitada com outros indivíduos com idêntica postura (52. A adolescência representou uma fase de rebeldia, turbulência e de constante desafio, envolvendo-se nesta altura nos consumos de bebidas alcoólicas e de outras substâncias psicoativas que partilhava com pares associados a comportamentos de transgressão social; 58. Apesar de assumir insatisfação com a sua condição de vida, mostrava-se pouco orientado para a mudança, admitindo refugiar-se no consumo de substâncias psicoativas (álcool e drogas), como forma de lidar com os problemas psicossociais que enfrentava – cf matéria de facto provada e elencada no acórdão recorrido);
- O Recorrente persistiu numa vivência não autónoma, recorrendo a terceiros para ver providas as suas necessidades elementares, nunca investindo na aquisição de competências que permitissem ser autossuficiente ou fazendo a procura ativa e consistente de ocupação laboral (53. A escalada de desorganização levou-o a incompatibilizar-se com o pai e a sair de casa na adolescência, passando a viver em casa de conhecidos e na condição de sem-abrigo. 54. Com este modo de vida, não estabilizou a sua condição laboral, retratando apenas uma experiência de alguns meses na jardinagem, sendo que as restantes decorreram num registo de biscate, em áreas indiferenciadas e sem contribuições sociais; 56. À data dos factos, o arguido encontrava-se a residir junto de um indivíduo mais velho que lhe prestou acolhimento habitacional e apoio alimentar, após ter vivido uma situação de acentuada desproteção e vulnerabilidade psicossociais como sem-abrigo. Manteve-se neste enquadramento durante alguns anos, até à sua reclusão, e permanecia mais afastado da sua família, em particular do pai, com quem tinha uma relação distante pelo modo de vida que ostentava; 57. CC não tinha trabalho estável, nem se mostrava proactivo na procura de ofertas laborais, acomodando-se a apoiar a pessoa que o acolhia na prática de uma pequena agricultura/pecuária. Nestas circunstâncias, não possuía fontes regulares de rendimento e, sem condições de autonomia económica – cf. matéria de facto provada e elencada no acórdão recorrido)
- A aparente falta de motivação racionalmente apreensível, que faz da acção criminosa (atear um fogo) um fenómeno quase inexplicável pela ausência de qualquer outro objetivo que não se traduza na produção de um mal, bem como a alta previsibilidade das consequências catastróficas da conduta, revelam um indivíduo como uma personalidade em que é evidente o défice de mecanismos de contenção e ponderação e que, na sua vivência, desconsidera o “outro” de forma altamente censurável;
- O Recorrente apresenta um contexto de vida e uma personalidade que tornam difícil a estruturação de um pensamento crítico relevante em relação aos factos que cometeu;
- Esses mesmos fatores mostram-se dificultadores da definição de um projeto de vida que supere as deficiências da sua personalidade e proporcione o reconhecimento da validade das normas jurídicas violadas;
- O risco de reincidência é elevado, considerando a sedimentação dos quadros de comportamento que vêm sido assumidos pelo Recorrente, consequência de uma personalidade cujos traços estruturantes se relacionam predominantemente com satisfação de impulsos de satisfação individual sem ponderação das consequências da ação.
XI. A grande gravidade dos factos; a sua repercussão transversal na comunidade; a insegurança que cria nos destinatários da norma a aparente facilidade com o que o Recorrente executou os factos integradores dos crimes; a situação de vulnerabilidade dos bens jurídicos que a conduta revela; os traços impulsivos e autocentrados da personalidade do Recorrente e o seu percurso de vida, marcado pela desconsideração de normas estruturantes da vida em sociedade, tudo isto, afirma-se, impõe a conclusão de são muito elevadas as necessidades de prevenção (geral e especial).
XI. Mostra-se acertada, assim, a aplicação da pena única de 14 anos de prisão.
XII. Face ao exposto, entende o Ministério Público que a decisão recorrida é isenta de qualquer reparo no que respeita à determinação da reação punitiva, observando, desde logo, o disposto nos artigos 40º, 70º, 71º e 77º, todos do Código Penal, devendo ser mantida na íntegra, com consequente improcedência do recurso interposto por CC.»
6. Dado que o despacho que admitiu o recurso, referido supra, era “omisso quanto ao tribunal superior competente para apreciação do recurso interposto”, por despacho de 04.09.2017 foi decidido “que o recurso em causa versando unicamente matéria de direito e estando em causa uma pena única superior a 5 anos deverá ser remetido para o Supremo Tribunal de Justiça, por ser o tribunal competente para apreciação do recurso” (fls. 1222).
7. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, o Senhor Procurador-Geral Adjunto, usando a faculdade prevista no n.º 1 do art. 416.º do CPP, emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente.
8. Notificado deste parecer, de harmonia com o disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse.
9. O arguido foi igualmente notificado nos termos do art. 424.º, n.º 3, do CPP, nada tendo respondido.
10. Colhidos os vistos em simultâneo, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.
Fundamentação
A. Matéria de facto provada:
1.1. Matéria de facto dada como provada pela 1.ª instância (não se transcreve a matéria de facto provada relativa aos pedidos de indemnização civil):
«1. No dia 8 de agosto de 2016, cerca das 15 horas, o arguido CC, na concretização de uma vontade já definida, dirigiu-se ao ..., no concelho do BB, com intenção de atear um fogo.
2. Aí chegado, o arguido CC, fazendo uso de um isqueiro, de marca BIC, de cor preta e patilha vermelha, pegou fogo a parte da vegetação seca ali existente, em local que dista menos de 100 metros de, no mínimo, quatro residências habitadas.
3. Seguidamente dirigiu-se para um local sito nas traseiras da residência de GG, sita também ao ...., reuniu no interior de um bidão, que ali se encontrava, o lixo que estava espalhado no local e, fazendo uso daquele isqueiro, pegou lume a esse lixo.
4. Após o início do fogo, o arguido CC ausentou-se rapidamente do local e dirigiu-se para a casa onde habitualmente reside, no ..., no BB.
5. Aí chegado, o arguido CC dirigiu-se a HH (doravante identificado por HH), pessoa com quem habita, e disse-lhe “já vem lume aí” e, vendo o ar incrédulo deste, abriu a porta de casa e disse “anda ver”, apontando para o mato a arder.
6. O arguido CC, quando foi abordado pela polícia encontrava-se com os braços chamuscados, em tronco nu, de calções e botas pretas e tinha na sua posse o isqueiro referido no ponto 2..
7. O local onde foi ateado o fogo é uma área florestal, densamente povoada por acácias, com uma grande quantidade de materiais combustíveis, grossos, médios, finos e mortos, a qual, através do transporte de matérias incandescentes na coluna de convecção e por força da ação dos ventos fortes de Noroeste, na ordem dos 70 km/h, originaram rapidamente focos secundários, que tomaram proporções incontroláveis, libertando uma enorme quantidade de calor, que, aliada às temperaturas elevadas que se fizeram sentir no dia dos factos, a rondar os 37 graus, e à baixa humidade do ar, a rondar os 15%, tornou impossível o combate ao fogo pelas diversas corporações de bombeiros chamadas a intervir com a urgência que a situação impunha.
8. Devido ao calor, à humidade e ao vento acima indicados que se faziam sentir, e bem assim à continuidade arbustiva existente, no dia 8 de agosto de 2016, o incêndio ateado pelo arguido atingiu grandes proporções e dividiu-se em várias frentes, propagando-se inicialmente em sentido ascendente.
9. Mas posteriormente, devido às altas temperaturas que se fizeram sentir nos dias 8 a 10 de agosto, que atingiram respetivamente os 37º, os 38,2º e os 35,3º, bem como às fortes rajadas de vento, com direção variável, que atingiram nesses dias respetivamente os 59 km/h, os 82 km/h e os 61 km/hora, e às baixas humidades que se verificaram na ordem respetivamente dos 15%, dos 10% e dos 14%, esse incêndio propagou-se em diversas direções, consumindo uma vasta aérea e colocando pessoas e residências em perigo.
10. Além de outras, as pessoas residentes no local referido nos pontos 1. e 3. tiveram de abandonar as suas casas, devido do fogo ateado pelo arguido, que podia ter atingido essas casas e pôr em perigo as suas vidas ou a sua integridade física.
11. Na madrugada do dia 9 de agosto, o fogo alastrou para a encosta da ..., bem como para o Parque Ecológico do BB, zona do ..., consumindo mato, erva seca e algumas plantas de regeneração natural, assim como montes de lenhas secas e toros de pinheiro provenientes das limpezas, que se encontravam arrumados nas curvas de nível, tornando muito difícil o seu combate.
12. O fogo propagou-se também à freguesia do ..., designadamente para uma propriedade denominada de «...», mais conhecida por «...», atingindo vegetação e parte do palácio aí existente.
13. Atingiu ainda vários locais onde estavam guardados animais, matando-os.
14. Em virtude destes factos e em consequência da conduta do arguido CC, aliada às condições climatéricas que na altura se faziam sentir, atrás referidas, o fogo desceu a montanha e invadiu a zona urbana da cidade do BB, chegando nalguns casos a atingir o centro da cidade.
15. Desde o início do incêndio, cerca das 15 horas do dia 8 de agosto de 2016, até às 21 horas do dia 10 de agosto de 2016, o fogo consumiu na sua passagem uma área aproximada de 1.928 (mil, novecentos e vinte e oito) hectares.
16. Do percurso do incêndio resultou um rasto de destruição dos mais variados bens, como residências, instalações empresariais, veículos automóveis, campos agrícolas, quintas com património relevante a nível urbanístico, histórico e ambiental, vida animal e manto herbáceo, cujo valor ainda não foi completamente contabilizado, apesar do já apurado e referido no ponto 21., infra.
17. Várias corporações de bombeiros foram convocadas para a extinção do incêndio, designadamente os Bombeiros Municipais do BB, os Voluntários ..., os Bombeiros Municipais de ... e os Bombeiros Municipais de ..., para além da Polícia Florestal, da Polícia de Segurança Pública e da Guarda Nacional Republicana.
18. Para além dos corpos de bombeiros regionais, das diversas forças e serviços policiais e da ajuda da população diretamente afetada, registou-se ainda a participação no combate ao sinistro uma força operacional, onde se incluíam Sapadores de ..., rapidamente deslocalizada do Continente para a R.AM..
19. Durante o combate às chamas, alguns bombeiros perderam os sentidos devido à inalação de fumos.
20. Vários civis tentaram auxiliar os bombeiros no combate às chamas para tentar salvar as suas habitações, pondo em perigo a sua saúde e a sua integridade física.
21. Quanto às infraestruturas, tanto privadas como públicas, no BB, os prejuízos calculados atingem cerca de 61 (sessenta e um) milhões de euros, que teve mais de três centenas de edifícios danificados.
22. Deste montante, 36 (trinta e seis) milhões de euros contemplam os prejuízos em mais de 300 (trezentos) edifícios privados, sejam moradias ou prédios de comércio e serviços, entre os quais 177 (cento e setenta e sete) que ficaram completamente destruídos e 123 (cento e vinte e três) que ficaram apenas parcialmente destruídos, sendo que os outros 25 (vinte e cinco) milhões reportam-se a prejuízos em infraestruturas municipais.
23. Cerca de 600 (seiscentos) pessoas foram retiradas das suas casas, de hospitais e de hotéis, 327 (trezentos e vinte e sete) pessoas foram assistidas no Hospital ....do BB, sendo cerca de 200 (duzentas) por inalação de fumo e outras tiveram de receber apoio material, psicológico e emocional. Foram evacuados 234 (duzentos e trinta e quatro) doentes do Hospital ..., bem como do Hospital ..., várias fábricas e quintas históricas foram destruídas e vários hotéis evacuados, tendo cerca de 200 (duzentas) pessoas sido alojadas no Regimento de Guarnição ....
24. No dia 9 de agosto de 2016, o fogo propagou-se ainda à Zona ..., no BB, tendo atingido as casas 6 e 8 da entrada 40 da Travessa .....
25. Estas duas habitações estão localizadas no final da Travessa, por cima da encosta da Rua ---, onde viviam três pessoas idosas, cujas habitações arderam.
26. As duas residências eram idênticas e geminadas, tinham um quintal exterior, com alguns degraus que davam acesso ao seu único andar.
27. Devido ao incêndio desencadeado pelo arguido, morreram três pessoas:
· na casa 8, II (doravante identificada apenas por JJ) e
· LL (doravante identificada apenas por LL), e na casa 6, MM (doravante identificada apenas por MM),
que não puderam fugir, ficando cercadas pelo fogo.
Com efeito:
28. No dia 9 de agosto de 2016, cerca das 19h:30m/19h:40m, JJ e LL encontravam-se na sua casa, n.º8 daquela Travessa, quando a primeira telefonou ao seu marido, NN (doravante identificado apenas por NN), que se encontrava na zona do ..., BB, dizendo-lhe que a casa estava cercada pelas chamas e que se encontrava muito assustada.
29. No seguimento da receção dessa chamada telefónica, NN dirigiu-se imediatamente para a sua residência a fim de prestar auxílio à esposa e à mãe.
30. Porém, quando ali chegou, devido ao volume das chamas que deflagravam, foi impedido de aceder à sua habitação pelos bombeiros que ali combatiam o incêndio.
31. A intensidade das chamas era tal que retirou qualquer possibilidade de JJ e LL abandonarem a casa, bem como impossibilitou NN de qualquer ação para salvá-las, mesmo após as tentativas das equipas de socorro que se encontravam no terreno, resultando na carbonização da habitação e na inevitável morte daquelas.
32. Nesta residência e no respetivo recheio, os prejuízos materiais causados pelo fogo atingiram cerca de €35.000,00 (trinta e cinco mil euros).
33. Por sua vez, a residente na casa 6, a MM, para além de ser cega, estava acamada.
34. Cerca das 19h:40m., do dia 9 de agosto de 2016, a MM encontrava-se em casa, na companhia do seu sobrinho, OO, da avó deste e arrendatária da casa, PP, e ainda de QQ e RR, irmão de OO, quando, repentinamente, por ação do vento intenso que se fazia sentir, o fogo varreu todo o vale e atingiu essa residência, que foi imediatamente invadida por labaredas que subiam a encosta e atingiram simultaneamente várias casas, designadamente a residência contígua à sua – casa 8 - que em poucos segundos foi envolta pelas chamas, que se transmitiram à casa 6 em poucos segundos.
35. A intensidade das chamas era tal que em poucos segundos os familiares de PP não tiveram hipótese de salvá-la, pois tiveram que correr pela Travessa até à estrada para salvarem as próprias vidas, tendo OO, após deixar a restante família em segurança na estrada, ainda voltado atrás para tentar retirar a sua tia do interior da residência com a ajuda dos bombeiros, não conseguindo, porém, chegar perto da casa devido à intensidade das chamas que entretanto a cercou.
36. Assim, em poucos minutos, a casa localizada na Porta 6 da Entrada n.º40, da Travessa ..., ficou completamente destruída e carbonizada pelo fogo, matando a PP, que estava na cama sem hipótese de se locomover.
37. A família residente nesta casa ficou com todos os seus bens reduzidos a cinzas, restando-lhes o vestuário que traziam vestido.
38. Os prejuízos originados pela destruição desta residência e respetivo recheio em consequência do fogo atingiram a quantia de cerca de €30.000,00 (trinta mil euros).
39. A autópsia da vítima JJ concluiu que o negro de fumo nas vias aéreas e o valor de carboxihemoglobina encontrados no seu sangue indiciam que estaria viva quando o incêndio atingiu a sua habitação, sendo que a respetiva morte terá ocorrido por ausência de ar respirável, ainda antes de se acumular monóxido de carbono no sangue em concentração suficiente para ser considerada letal.
40 A morte de JJ foi provocada por asfixia por carência de ar respirável.
41. Por sua vez, os corpos das vítimas referidas LL e a PP ficaram reduzidos a um conjunto de restos cadavéricos, constituídos por fragmentos ósseos de diferentes dimensões, calcinados, coloração esbranquiçada, apresentando uma massa de tecidos moles carbonizada.
42. A LL e a PP faleceram carbonizadas, em consequência do fogo que atingiu as suas casas, conforme referido nos pontos 24. a 31. e 33. a 36., supra.
43. Assim, a ação do arguido culminou ainda na morte de três pessoas que, de forma inesperada, foram atingidas irremediavelmente pelo fogo na sua passagem.
44. Ainda devido à conduta do arguido, várias vítimas do incêndio ficaram sem as suas únicas casas, os respetivos recheios e os seus haveres, necessitando de ser realojadas em casas de familiares ou apoiadas materialmente pelo Governo Regional e Câmara Municipal do BB ou pela Segurança Social, tendo ficado algumas em situação económica difícil, de que se destacam os familiares das vítimas falecidas na Travessa ..., OO e NN, mas também SS e TT.
45. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, ateando fogo em área florestal de grande densidade combustível, com o propósito de causar incêndio em local próximo de habitações, floresta e mata, bem sabendo que as condições climatéricas que se faziam sentir, acima referidas, eram propícias à propagação do fogo e a atingir grandes proporções, o que quis e conseguiu.
46. O arguido sabia que face a essas condições atmosféricas, ventos fortes, baixa humidade e calor intenso, e ao local em que ateou o fogo, este era suscetível de se alastrar facilmente, propagando-se a casas de habitação, podendo desta forma causar prejuízos elevados ou criar o perigo de tal ocorrer, pondo desta forma em perigo bens patrimoniais alheios de valor elevado, o que quis e aconteceu, bem como sabia que tal fogo era suscetível de criar perigo para a vida ou integridade física dos habitantes dessas casas, conformando-se com estes factos, acabando por causar prejuízos económicos e ambientais de grande dimensão e por deixar várias vítimas em situação económica muito débil.
47. Outrossim, sabia o arguido que o incêndio que ateou, nas condições climatéricas em que o fez e no local onde o iniciou, fazia perigar, como fez, as casas, a integridade física e a vida de outras pessoas, incluindo as casas e as pessoas referidas nos pontos 1., 3. e 9., supra, o que não o inibiu de o fazer, sabendo também que esse incêndio poderia causar a morte de pessoas que pudessem ser afetadas por ele, o que efetivamente veio a acontecer, pois, como consequência desse incêndio por si ateado, pereceram três cidadãs, embora tenha atuado confiando que essas mortes não ocorreriam.
48. Sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei.
«Da acusação
1. Por diversas vezes, o arguido anunciou aos seus vizinhos a intenção de atear um fogo.
2. A MM movimentava-se em cadeira de rodas.
3. A autópsia das vítimas LL e MM concluiu que o negro de fumo nas vias aéreas e o valor de carboxihemoglobina encontrados no seu sangue indiciavam que estariam vivam quando o incêndio atingiu as habitações, sendo que as respetivas mortes terão ocorrido por ausência de ar respirável, ainda antes de se acumular monóxido de carbono no sangue em concentração suficiente para ser considerada letal.
4. A morte de LL e de MM foi provocada por asfixia por carência de ar respirável.
5. O arguido quis deixar as pessoas em situação económica difícil.»
B. Matéria de direito
1. A partir das conclusões apresentadas aquando da interposição do recurso pelo arguido CC, parece que o arguido apenas recorre da medida da pena única de 14 anos. Porém, o arguido insurge-se igualmente contra as penas parcelares aplicadas. Na motivação, é claro quando afirma que “o douto acórdão recorrido, salvo o devido respeito, determinou de forma desajustada a medida concreta da pena, correspondente aos crimes dos quais o arguido foi condenado, considerando-se em nosso entender por ser severas e excessivas” (ponto 3.2. da motivação, sublinhado nosso), para logo depois afirmar “A condenação de 12 anos de prisão no crime de incêndio florestal agravado (...) e a condenação de 3 (três) anos de prisão, pelo crime de homicídio por negligência grosseira (...) e em cúmulo jurídico numa pena única de 14 (catorze) anos de prisão é excessiva e ultrapassa em muito a culpa do arguido” (ponto 3.3. da motivação, sublinhado nosso).
E assim também o entendeu o Ministério Público na Comarca da AA quando expressamente analisa todas as penas e conclui que as penas aplicadas individualmente a cada um dos crimes “constituem reações sancionatórias necessárias, adequadas e proporcionais” (conclusão IV), para só depois considerar acertada a pena única aplicada (conclusão XI).
E pese embora o Senhor Procurador-Geral Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça tenha citado a resposta supra referida, nomeadamente, na parte em que o Ministério Público concluiu pela adequação das penas parcelares aplicadas — “Respondeu, igualmente, o Ministério Público (1201-1221), concluindo que as penas parcelares «constituem reacções sancionatórias necessárias, adequadas e proporcionais (...)». No que respeita à pena única, destaca...”— acaba porém, por afirmar que “em lado algum o recurso impugna as penas parcelares”, restringindo a sua análise àquela pena única, e concluindo pela manutenção da pena aplicada.
Consideramos, no entanto, atento o referido na motivação do recurso apresentada pelo arguido, que este recorre não só das penas aplicadas a cada um dos crimes, considerando-as “severas e excessivas”, como também da pena única conjunta aplicada ao concurso de crimes.
Ora, tendo em conta o acórdão de fixação de jurisprudência n.º5/2017 — “A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas.” (DR, 1.ª série, 23.06.2017) — não assiste qualquer dúvida quanto à competência do STJ para conhecimento do recurso interposto.
Resta referir que nem na motivação, nem nas conclusões do recurso interposto pelo arguido, há qualquer alusão à condenação nos pedidos de indemnização civil, pelo que se conclui que quanto a esta parte não há qualquer recurso, pelo que o acórdão recorrido transitou em julgado nesta parte.
2.1. Todavia, consideramos que cabe ainda a este Supremo Tribunal de Justiça uma palavra sobre a qualificação jurídica dos factos.
Neste âmbito, assume particular importância o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/95, de 7 de junho (DR, I série-A, de 06.07.1995, p. 4298).
Pronunciando-se sobre se “o Supremo Tribunal de Justiça poderá ou não alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal dos factos recolhidos na instância recorrida e sobre os quais esta erigiu a decisão que, uma vez proferida, subiu em recurso à instância superior” (acórdão cit., p. 4298-9), entendendo que o que “está em debate é a admissibilidade ou não da qualificação jurídica dos factos feita na instância em caso de recurso, quando a mesma qualificação não esteja em debate, ou seja, não constitua objecto de impugnação” (acórdão cit., p. 4299), concluiu, e fixou jurisprudência, este Supremo Tribunal no sentido de que
“O tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efetuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus”.
Isto mesmo veio a ser confirmado em legislação posterior. Na verdade, por força do disposto no art. 424.º, n.º 3, do CPP, introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29.08, “Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias.” Assim sendo, o legislador acabou por consagrar a possibilidade de alteração da qualificação jurídica em sede de recurso, pese embora seja necessário assegurar o competente direito de defesa, na linha do que vinha sendo defendido pelo Tribunal Constitucional — cf. acs. n.ºs 22/06, 596/96, 279/95 e 518/98).
Na verdade, apenas se tornou claro através da letra da lei aquilo que a doutrina há muito vinha defendendo:
- “o tribunal é livre na qualificação jurídica dos factos que são levados a juízo e sobre os quais tem e deve, fundamentadamente (art. 210.º, n.º 1 CRP), que decidir. (...) Não se alterando pois o objecto do processo, a qualificação jurídica pelo tribunal é totalmente livre” (Frederico Isasca, Alteração substancial dos factos e sua relevância no processo penal português, Coimbra: Almedina, 1992, p. 101 e 104-5);
- “o objecto do processo não deixará de ser o mesmo só porque a sua qualificação jurídica tenha variado (...) É pois indiferente o nomem iuris” (Castanheira Neves, Sumário de Processo Criminal (1967-1968), ed. policopiada Coimbra, 1968, p. 223);
- “não obstante o tribunal de recurso poder alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, ainda que para crime mais grave, não pode agravar a sanção aplicada ao arguido pela sentença recorrida. (...) pode oficiosamente alterar a qualificação jurídico-penal e até agravar a incriminação, mas não pode, contudo, agravar a sanção que já fora aplicada” (Mara Lopes, O princípio da proibição da Reformatio in Pejus como limite aos poderes cognitivos e decisórios do tribunal — sentido e verdadeiro alcance, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Vol. III, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 983 e 985);
- ou mais recentemente: “a qualificação jurídica dada aos factos na acusação fixa o limite quantitativo da pena a aplicar no processo, ou seja, o tribunal não pode aplicar pena mais grave do que a que resultaria se a qualificação na acusação fosse correta. O tribunal pode qualificar diversamente os factos, desde que não se altere o sentido da acusação, mas do mesmo modo que a alteração não substancial dos factos (...) não envolve alteração da medida da pena aplicável, também assim deve ser com a mera alteração da qualificação jurídica.” (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal português, Vol. I, 2.ª ed., Lisboa: UCP, 2017, p. 387).
Por tudo isto, entendemos que este Supremo Tribunal pode analisar, e eventualmente alterar, a qualificação jurídica dada aos factos provados, ainda que sempre com respeito pelo princípio da reformatio in pejus.
Vejamos.
2.2. O arguido começou por ser acusado por um crime de incêndio florestal agravado, nos termos dos arts. 274.º, n.ºs 1 e 2, als. a) e b), ambos do CP, e por três crimes de homicídio, com dolo eventual, nos termos dos arts. 131.º, e 14.º, n.º 3, ambos do CP. Todavia, foram os factos requalificados e o arguido veio a ser condenado pelo crime de incêndio florestal agravado pelo resultado, nos termos dos arts. 274.º, n.ºs 1 e 2, als. a) e 285.º, todos do CP, e por um crime de homicídio, com negligência grosseira, nos termos do arts. 137.º, n.º 2, do CP.
Quanto a isto, no acórdão recorrido, começou por se fazer uma exposição teórica sobre os crimes de perigo comum, o crime de incêndio florestal em particular, seguindo-se uma exposição sobre o crime agravado pelo resultado. Quanto ao ponto em concreto relativo ao facto de terem existido diversas mortes esclareceu: “a sobrevir preterintencionalmente uma só morte, a questão não se coloca. Existindo, no entanto, mais do que uma morte, por se tratar do mesmo bem jurídico tutelado (vida) qualquer delas se equivale na agravante modificativa, constituindo os demais crimes autónomos de homicídio negligente, embora, no nosso entender, como abaixo verificaremos, esta imputação autónoma se deva fazer por um único crime de homicídio negligente (grosseiro) que abarcará as restantes mortes (no caso, duas).” (cf. fls. 1143). Apenas voltou a análise deste último ponto mais tarde, não sem antes ter apresentado uma exposição sobre o crime de homicídio a titulo negligente, com particular desenvolvimento sobre a caracterização dos crimes negligentes, e considerando por fim que:
«Outra questão no tema da negligência é saber se, havendo mais de um ofendido, e tratando-se de crimes de natureza pessoal, o agente do crime deve ser punido por tantos crimes negligentes quanto o número de vítimas ou deve ser punido unicamente por um só crime (o mais grave caso haja crimes de diversa gravidade, nomeadamente homicídios e ofensas à integridade física), entrando os restantes em consideração em sede de fixação da medida concreta da pena.
Importa referir que, no nosso entender, independentemente do número de vítimas mortais ou de ofensas à integridade física, em consequência de negligência, o agente deve ser punido por um único crime (o mais grave caso seja a situação em causa), apontando-se assim para uma situação de concurso aparente (apesar de se tratar de bens eminentemente pessoais), pois o que se visa é censurar o descuido e a leviandade do agente, não importando o número de resultados emergentes da conduta (não obstante seja necessário verificar a lesão da integridade física ou a morte, pois ambos os tipos legais em análise configuram a natureza de crimes de resultado), sendo o número de mortes (ou feridos) um fator a atender em sede de determinação da medida da pena.
(...) [nos] crimes negligentes, (...) o juízo de censura é unitário e apenas pode ser formulado em relação à concreta violação do dever objetivo de cuidado ou à omissão do cuidado devido em concreto pelo agente. Nos crimes negligentes de resultado plural não podem ser dirigidos vários juízos de censura relativamente à mesma e única ação negligente, que consista numa única violação do dever de cuidado. Não existindo possibilidade de formular uma pluralidade de juízos de censura, não está configurada uma pluralidade de crimes. De outro modo nos crimes negligentes produzir-se-ia um corte na construção da doutrina do crime, com tratamento dogmaticamente diferenciado em relação aos crimes dolosos, até com maiores exigências ao nível do juízo de censura nos crimes negligentes do que nos crimes dolosos. (...)
Aliás, o enunciado nuclear do fundamento da assimilação da doutrina sobre a unidade e pluralidade de infrações na negligência e nos crimes dolosos de resultado, que respeita muito à particularidade do juízo de censura, explicitado por Pedro Caeiro e Cláudia Santos (“Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6.º, Fasc. 1.º, Jan-Mar (1996) págs. 133 a 142), dá por adquirido e como base da construção crítica que existe nas ações negligentes de resultado múltiplo «uma (incontestável) pluralidade de tipos preenchidos». E que, por isso, seria necessário «mostrar que a falta de representação dos factos só permite a formulação de um juízo de censura».
No entanto, esta fórmula parece dar por adquirido o que se pretende ou deveria metodologicamente demonstrar. É que será precisamente pela unidade de ação constituída apenas pela unidade de violação do dever de cuidado que é objeto do juízo de censura, que se determina a unidade do juízo de censura; havendo unidade (um único juízo de censura) não poderá haver nas ações negligentes mais do que o preenchimento de um único tipo subjetivo e objetivo.» (cf. fls. 1148-1150, sublinhados nossos).
E por isto conclui haver apenas «um crime de homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelo artigo 137º, n.º2, do Cód. Penal, porquanto:
- com o atear do fogo e consequente incêndio que iniciou, aquele arguido, sem o pretender, mas de forma displicente e contrariando as mais elementares regras de segurança, até pelas condições climatéricas que se faziam sentir e do local onde decidiu ateá-lo, provocou a morte de outras duas pessoas, que, pelas razões já aduzidas, o tribunal entende dever integrar a prática de um só crime, porque, no fundo, tais mortes resultam de uma única ação censurável, ainda para mais a título de descuido grosseiro.
- A negligência é, pois, grosseira porque o arguido teve um comportamento particularmente perigoso, que não pode deixar de se traduzir num grave desrespeito do dever de representação ou da justa representação da possibilidade de ocorrência do resultado que se veio a verificar, evidenciando características da sua personalidade, com “problemas de autocontrolo, impulsividade e com lacunas ao nível de competências pessoais como a antecipação de consequências e impactos do seu comportamento”, por referência do cidadão normal, do homem médio, suposto pela ordem jurídica.» (cf. fls. 1151).
Consideramos, no entanto, não ser esta a qualificação jurídica que deve ser dada aos factos provados.
2.3. No caso dos presentes autos, verificamos que o arguido vem condenado pelo crime de incêndio florestal com criação de perigo para a vida (cf. art. 274.º, n.º 1 e 2, al. a), do CP) agravado pelo resultado de morte, nos termos do art. 285.º, do CP, para além da punição de um crime de homicídio negligente (negligência grosseira), nos termos do art. 137.º, n.º 2, do CP, pese embora tenham ocorrido três mortes.
De acordo com a matéria de facto provada, o arguido ateou fogo em área florestal (factos provados 1, 2, 3), tendo provocado um incêndio em área florestal (facto provado 7) que atingiu grandes proporções (facto provado 8), colocando em perigo várias pessoas e residências (factos provados 9, 16, 22, 24 e 44); para além disto, morreram 3 pessoas que foram cercadas pelo fogo e do qual não conseguiram fugir (facto provado 27). O arguido agiu querendo atear o fogo que veio a ocorrer (facto provado 45), sabendo que, tendo em conta as condições existentes, o fogo era suscetível de alastrar gerando um incêndio e criando perigo para bens patrimoniais de valor elevados “o que quis e aconteceu, bem como sabia que tal fogo era suscetível de criar perigo para a vida ou integridade física dos habitantes dessas casas, conformando-se com estes factos” (facto provado 46); além disto, ao atear o fogo naquelas condições, “sabia o arguido que (...) fazia perigar, como fez, as casas, a integridade física e a vida de outras pessoas (...), sabendo que esse incêndio poderia causar a morte de pessoas que pudessem ser afetadas por ele, o que efetivamente veio a acontecer, pois, como consequência desse incêndio por si ateado, pereceram três cidadãs, embora tenha atuado confiando que essas mortes não ocorreriam” (facto provado 47), sabendo ainda que as condutas eram proibidas e punidas por lei (facto provado 48).
Ora, com isto temos os factos provados necessários para enquadrar a conduta do arguido no âmbito do tipo legal de crime de incêndio florestal, previsto no art. 274.º, do CP.
O crime de incêndio florestal, integrado no capítulo III (dos crimes de perigo comum), do título IV (dos crimes contra a vida em sociedade), do livro II (parte especial) do Código Penal, constitui, tal como a epígrafe do capítulo indica. um crime de perigo comum, mas também um crime de perigo concreto.
O crime de incêndio constitui um crime que visa proteger um leque variado de bens jurídicos — desde a vida e a integridade física até bem patrimoniais alheios de valor elevado. E integra a respetiva conduta típica aquele que provoca incêndio, causando-o de modo orientado, isto é, não basta que do facto de ter ateado fogo tenha resultado um incêndio, mas é ainda necessário que o tenha causado em vista de provocar aquele incêndio, é necessário que tenha ocorrido uma “causação normativamente orientada” (assim, Faria Costa, art. 272.º/ § 12, Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. II, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 870). Para além disto, deve ser provocado um incêndio de relevo, como o provado os presentes autos. Trata-se, ainda de um crime de perigo comum.
Nos crimes de perigo comum, “tipificam‑se condutas cuja efeito sobre um possível objecto de acção é tão vasto que dificulta um eventual controlo sobre as suas consequências; ao que acresce a dificuldade em determinar, aquando da realização da conduta, qual o objecto de acção sobre o qual se vai reflectir a conduta, o que consequentemente dificulta a determinação prévia dos titulares do bem jurídico protegido. Entre nós, Augusto Silva Dias entende que, se quanto à natureza do crime o caracterizamos em função do “modo de realização da acção”, não devemos, no entanto, defender a ideia de que aquele perigo comum se pode consubstanciar numa certa pessoa. Assim, “a coerência só se alcança quando, como o nosso legislador pretendeu, a pessoa colocada em perigo — e concordamos que basta para a consumação típica que uma só pessoa seja colocada em perigo — é, não a pessoa A, B ou C, mas umas das muitas atingidas pela acção expansiva dos meios utilizados, isto é, um representante da colectividade ameaçada”. Na verdade, se, por um lado, os crimes de perigo comum se caracterizam pelo facto de colocarem em perigo certo bem jurídico protegido pelo tipo (e nesta medida são classificados como crimes de perigo quanto ao bem jurídico), exigindo, na maior parte dos casos, que em concreto aquele perigo se verifique (sendo, pois, crimes de perigo concreto), por outro lado, constituem crimes de resultado de perigo (quando à classificação em função da conduta), consequentemente aquele resultado de perigo terá de se consubstanciar num efeito sobre o objecto de acção distinto da conduta que o produziu, pelo que o objecto de acção — por exemplo, uma pessoa cuja vida ou integridade física ficou em perigo — sofreu um efeito decorrente daquela conduta. Porém, a pessoa constitui apenas um representante da colectividade que potencialmente estava ameaçada por aquela conduta; assim sendo, este efeito sobre algum determinado objecto de acção tem de ocorrer, embora seja indiferente que se produza em um ou em diversos objectos de acção; o que terá como consequência que, independentemente dos objectos, leia-se pessoas, afectados, apenas um crime de perigo comum será praticado (não desprezando, no entanto, a possibilidade de, em sede de determinação da medida da pena e atendendo à moldura penal, fazer reflectir na pena concreta o maior ou menor efeito da conduta em diversos objectos de acção)” (Helena Moniz, Agravação pelo resultado?, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p.504-6).Tal como afirma Augusto Silva Dias “é certo que os bens jurídicos efectivamente colocados em perigo (...) são, na sua essência, bens jurídicos individuais, mas essa individualidade não deve ser vista como unidade singular, expressão de uma identidade ímpar, à semelhança do que acontece nos crimes contra as pessoas, mas como indivíduo integrado num grupo — o transeunte, o habitante de uma zona, o morador de um prédio urbano”. (Augusto Silva Dias, “Entre «comes e bebes»” cit., p. 549).
Ou, nas palavras de Faria Costa, os crimes de perigo comum “são crimes de perigo em que o perigo se expande relativamente a um número indiferenciado e indiferenciável de objectos de acção sustentados ou iluminados por um ou por vários bens jurídicos. Se uma acção — desse modo tipificada na lei — cria um perigo concreto, por exemplo, para a vida de dezenas, centenas ou mesmo milhares de pessoas está-se, indesmentivelmente, perante um crime que é, simultaneamente, um crime de perigo comum e de perigo concreto” (cf. Faria Costa, art. 272.º/ § 4, ob. cit. supra, p. 867).
Tratando-se de um crime de perigo comum, e tal como aconteceu, a conduta do agente coloca em perigo um número indiferenciado de pessoas, pelo que o tipo legal de crime abarca não só a conduta que apenas coloca em perigo a vida de uma pessoa, ou de uma residência, por exemplo, ou a vida de diversas pessoas, ou de diversas residências. Isto é, ainda que não ocorra a lesão de um bem jurídico vida encabeçado numa certa e determinada pessoa, o agente comete o crime porque indiferenciadamente a sua conduta foi em concreto apta a provocar um perigo para um número elevado de pessoas, ainda que se tenha que comprovar a efetiva verificação daquele perigo para um número indiferenciado de pessoas e bens (cf. Faria Costa, art. 272.º/ § 4 e ss e 8 e s, Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. II, cit supra, p. 867 e ss). Ou seja, o agente é punido independentemente do número de pessoas que coloca em perigo (sendo certo, todavia, que o maior ou menor número de pessoas colocadas em perigo deverá ser relevante em sede de determinação da pena, desde logo, porque estaremos perante condutas de gravidade distinta). Na verdade, o legislador optou pela criação de um tipo legal de crime de perigo com um âmbito de irradiação indeterminado.
Ora, estando nós perante um crime de perigo comum como o crime de incêndio, isto terá reflexos no entendimento da agravação resultante do disposto no art. 285.º, do CP.
Tal como refere Augusto Silva Dias, a existência de um só crime mesmo quando colocadas em perigo de vida duas ou mais pessoas, “vale igualmente para a agravação pelo resultado morte ou ofensa à integridade física grave, prevista no art. 285.º do CP, pois aí a lesão agravante, tanto do ponto de vista objectivo quanto subjectivo, surge no prolongamento do crime (de perigo) base, nada acrescentando ou alterando à sua natureza. Assim, se várias pessoas, vítimas do perigo, vêm a morrer em consequência do mesmo e se se prova que a negligência consciente ínsita no dolo de perigo se estende ao resultado agravante, é praticado um só crime de perigo comum agravado pelo resultado, sendo a punição concreta do agente determinada segundo a moldura penal prescrita no art. 285.º” (Entre «comes e bebes»: debate de algumas questões polémicas no âmbito da protecção jurídico-penal do consumidor a propósito do Acórdão da Relação de Coimbra de 10 de Julho de 1996), RPCC, 1998, p. 551; em sentido idêntico, Pinto de Albuquerque, Crimes de perigo comum e contra a segurança das comunicações em face da revisão do Código Penal, Jornadas de Direito Criminal. revisão do Código Penal (alterações ao sistema sancionatório e parte especial), Lisboa: CEJ, 1998, p. 253 e ss, em particular, p. 280: “”se o crime de perigo tiver por resultado a morte de várias pessoas ou ofensas corporais graves em várias pessoas ou ambos os resultados, deve considerar-se que se consumou um só crime de perigo agravado pelo resultado”; aliás, assim era expressamente entendido na Lei n.º 19/86, de 19.07, onde expressamente se referia que “Se da conduta referida no n.º 1 [incêndio] resultar a morte de uma ou mais pessoas, a pena aplicável será a de prisão de cinco a quinze anos.” Ora, a revogação deste dispositivo e a introdução do crime de incêndio no âmbito do CP — através da Lei n.º 59/2007, de 04.09, na base da qual esteve a proposta de lei n.º 93/X (consultável aqui: http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c3246795a5868774d546f334e7a67774c336470626d6c7561574e7059585270646d467a4c316776644756346447397a4c33427762446b344c5667755a47396a&fich=ppl98-X.doc&Inline=true)— visou tão-só a introdução de “um crime de incêndio da floresta, que se consuma independentemente da criação de perigo para a vida, a integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado, circunstâncias que agravam a responsabilidade do agente”). Na base desta tese está o facto de as regras de cuidado violadas, com o crime de perigo comum agravado pelo resultado, serem referidas a um número indeterminado de sujeitos (também assim, Augusto Silva Dias, ob. cit. supra, nota 59, p. 552).
Assim sendo, deverá o resultado agravante ser imputado ao agente; resultado este proveniente de uma conduta dolosa de incêndio com criação dolosa de perigo para a vida de um número indeterminado de pessoas; desta conduta resultou uma materialização daquele perigo de modo que o desvalor de resultado adicional deverá ser como tal punido. Ainda que se tenha que dizer que houve uma pluralidade de bens jurídicos violados, devemos considerar que estamos perante um “facto complexo [que] não se pode fundamentar na simples conjugação causal do facto base com o resultado agravante (...) A pena mais grave só se pode fundamentar na existência de especiais factores de risco que acompanham a execução do facto base e se concretizam no dano materializado no resultado agravante” (Frederico de Lacerda da Costa Pinto, A categoria da punibilidade na teoria do crime, vol. II, Coimbra: Almedina, 2013, p. 621). E por isso, e tendo em conta o princípio da responsabilidade pessoal, “os factores de risco (...) só responsabilizam o autor se se puderem integrar na sua esfera individual de domínio (mesmo que depois a extensão do dano não seja em si mesma totalmente controlável). (...) Assim, se o resultado agravante se produz pela concretização dum factor de perigo integrado no tipo e dominado pelo agente ele pode ser imputado ao agente” (idem, p. 622).
Ora, no caso dos presentes autos, o fator de risco criador do perigo de que resultaram as mortes foi criado pelo próprio agente/arguido, sabendo que nas condições em que foi criado (cf. facto provado 46) havia uma alta probabilidade de conduzir aos resultados de morte que vieram a ocorrer); na verdade, foi o arguido quem realizou a conduta criadora de um risco não permitido que se exprimiu na criação do incêndio do qual resultou um perigo proibido que se consubstanciou no resultado negligente (cf. sobre isto Figueiredo Dias, Direito Penal I, 2.ª ed, Coimbra: Coimbra Editora, 207, 35/ §§ 47 e ss, p. 893 e ss). Mas, por estarmos perante uma conduta dolosa de incêndio tipificada como crime de perigo comum, a materialização desta conduta em diversos resultados lesivos de bens jurídicos pessoais, como a vida ou a integridade física grave, impõe que se entenda o crime complexo como sendo um só pois constitui a materialização de um perigo comum. Sabendo que no crime de perigo comum criado é indiferente que se tenha colocado em perigo uma ou várias pessoas (indiferente, saliente-se, para se poder subsumir a conduta apenas a um tipo legal de crime, mas não indiferente para a determinação da pena em concreto — onde a colocação de um número maior ou menor de pessoas e/ou bens em perigo deverá ser avaliado, nomeadamente, em termos de exigências de prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização e do limite máximo de pena imposto pela culpa do agente), não é indiferente que da conduta tenha resultado a materialização daquele perigo, porém como materialização daquele perigo inicial apenas podemos entender estar perante um mesmo crime agravado pelo resultado. É que “a pena mais grave só se pode fundamentar na existência de especiais factores de perigo (um especial modelo de perigo) que acompanham a execução do facto base e se concretizam no dano materializado no resultado agravante” (Frederico da Costa Pinto, ob. cit. supra, p. 627). E o mesmo se tem entendido perante o tipo legal de crime de incêndio agravado pelo resultado previsto no Código Penal Alemão — § 306 c, do StGB. Nas palavras de Wolff quando são mortas duas pessoas através de um crime de incêndio, o agente é punido por um crime de incêndio agravado pelo resultado de 2 mortes, e não por dois crimes de incêndio agravados pelo resultado de morte em concurso ideal (Strafgesetzbuch, Leipziger Kommentar, 12.ª ed, vol. 11, Berlim: De Gruyter, 12.ª ed., 2008, § 306c, nm. 13; assim também decisão do Tribunal Federal, de de 06.08.2003 (2 StR 265/03) — cf. Altvater, Gerhard, Rechtsprechung des BGH zu den Tötungsdelikten, NStZ (Neue Zeitschrift für Strafrecht), 2004, Heft 1, p. 23 e ss, em particular p. 28).
E, nestes casos, a ilicitude da conduta é mais do que a simples junção de uma ilicitude subjacente a uma conduta base e a um resultado adicional, devendo proceder-se sim a uma caracterização global. Aqui o legislador não quis punir apenas a conduta que indiferenciadamente coloca em perigo várias pessoas, mas a conduta que concretamente lesou algumas pessoas de entre aquele número indeterminado. Dir-se‑á que o agente, ainda que tivesse tido dolo quanto à provocação do incêndio e quanto ao perigo de lesão de diversas pessoas, não teria sequer admitido a possibilidade de efetivamente vir a morrer alguém resultante daquele comportamento — mas aí está a negligência, ainda que possa ser inconsciente, relativamente ao resultado agravante que lhe é imposto. E não se diga que o agente nunca poderia ter conseguido evitar a produção do resultado, pois o resultado não lhe é imputado porque poderia ter evitado a sua produção, mas porque poderia ter evitado a criação da fonte de perigo que permitiu a produção do resultado, e é na criação dolosa daquela fonte de perigo que reside a negligência quanto à produção do resultado decorrente de uma violação de um dever de cuidado consubstanciada na criação dolosa daquele perigo. E na falta de vontade de evitar a criação do perigo que se viria a materializar no resultado adicional reside o elemento subjetivo do tipo de ilícito do crime de incêndio com morte negligente resultante da conduta dolosa de perigo comum para aquele bem jurídico. Neste caso, tendo atuado o agente com dolo em relação à conduta base de provocação do incêndio, e dolo em relação ao perigo de verificação do resultado, isto é, com conhecimento e vontade de realização da conduta perigosa — provocação do incêndio — e do perigo desta conduta para bens jurídicos pessoais e patrimoniais de um número indeterminado de pessoas, então este dolo em relação ao perigo de verificação daquelas lesões inclui a representação da possibilidade de verificação do resultado lesivo daqueles bens (já assim antes, Helena Moniz, ob. cit. supra, p. 635 e ss e 649 e ss). E, no presente caso, este dolo relativamente ao perigo existiu uma vez que foi dado como provado que:
- “45. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, ateando fogo em área florestal de grande densidade combustível, com o propósito de causar incêndio em local próximo de habitações, floresta e mata, bem sabendo que as condições climatéricas que se faziam sentir, acima referidas, eram propícias à propagação do fogo e a atingir grandes proporções, o que quis e conseguiu.”
- “46. O arguido sabia que face a essas condições atmosféricas, ventos fortes, baixa humidade e calor intenso, e ao local em que ateou o fogo, este era suscetível de se alastrar facilmente, propagando-se a casas de habitação, podendo desta forma causar prejuízos elevados ou criar o perigo de tal ocorrer, pondo desta forma em perigo bens patrimoniais alheios de valor elevado, o que quis e aconteceu, bem como sabia que tal fogo era suscetível de criar perigo para a vida ou integridade física dos habitantes dessas casas, conformando-se com estes factos, acabando por causar prejuízos económicos e ambientais de grande dimensão e por deixar várias vítimas em situação económica muito débil.”
- “47. Outrossim, sabia o arguido que o incêndio que ateou, nas condições climatéricas em que o fez e no local onde o iniciou, fazia perigar, como fez, as casas, a integridade física e a vida de outras pessoas, incluindo as casas e as pessoas referidas nos pontos 1., 3. e 9., supra, o que não o inibiu de o fazer, sabendo também que esse incêndio poderia causar a morte de pessoas que pudessem ser afetadas por ele, o que efetivamente veio a acontecer, pois, como consequência desse incêndio por si ateado, pereceram três cidadãs, embora tenha atuado confiando que essas mortes não ocorreriam.”
De tudo o exposto, decorre que, nos presentes autos, o arguido deve ser punido por um crime agravado pelo resultado, nos termos do art. 285.º, e 274.º, n.º 2, al. a), ambos do CP, sendo pena a aplicar entre 4 anos e 16 anos de prisão.
E constituindo a agravação pelo resultado uma materialização do perigo dolosamente criado pelo incêndio (doloso), integrando esta pena agravada, em princípio, o ilícito global praticado que colocou em perigo bens jurídicos como a vida, a integridade física e bens patrimoniais, para além da efetiva lesão do bem jurídico vida, deverá, aquando da determinação da pena, ter-se em conta não só os resultados negligentes de morte, como o perigo concreto ocorrido para os outros bens. Será com base nestas considerações que se determinará a pena a aplicar ao recorrente.
2.4.1. A pena deverá ser determinada com base na moldura prevista no crime de incêndio agravado (nos termos dos arts. 271.º, n.ºs 1 e 2, al. a), e 285.º, ambos do CP), isto é, de pena de prisão entre 4 anos e 16 anos.
A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências da prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos arts. 71.º, n.º 1 e 40.º do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela dos bens jurídicos em causa e às exigências sociais decorrentes das lesões ocorridas, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade humana do delinquente. Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena, dever‑se-ão ter em conta todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra o arguido, nomeadamente, os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º, n.º 2, do CP. Nesta valoração, o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenha tido em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração).
Ora, estamos perante um caso de incêndio florestal com graves consequências para a comunidade onde ocorreu, a revelar fortes exigências de prevenção geral. Os factos sob julgamento ocorreram em pleno mês de agosto, num momento em que as condições atmosféricas, tal como resulta da matéria de facto provada, eram propícias a que um simples fogo facilmente provocasse um incêndio de grandes proporções como veio a ocorrer. Ora, os factos provocaram forte alarme social na comunidade, gerando avultados danos como ocorreram e resulta da matéria de facto provada, assim impondo fortes exigências de prevenção geral de modo a demonstrar à comunidade que as ações lesivas de bens jurídicos fundamentais são punidas assim se reafirmando a validade das normas lesadas.
As exigências de prevenção especial são igualmente significativas — o arguido, aquando dos factos, não tinha trabalho estável nem fontes de rendimento (cf. facto provado 57), vivia acolhido na residência de uma outra pessoa depois de ter passado por uma fase como “sem-abrigo” (cf. facto provado 56); relativamente aos factos assume uma posição de minimização da responsabilidade (cf. facto provado 60); em meio prisional tem obtido algum apoio de familiares, e tem procurado estar envolvido em algumas atividades de modo a desenvolver competências pessoais e sociais (cf. facto provado 63); o arguido não tem antecedentes criminais (cf. facto provado 65)
Porém, a conduta do arguido mostra uma atitude claramente contra o dever ser jurídico penal, não se coibindo e tendo querido realizar os factos relatados nos autos ainda que as condições atmosféricas fossem de modo a potenciar de forma grave os danos quer para as pessoas, quer para os bens patrimoniais.
Embora, à data dos factos, o arguido tivesse apenas 23 anos de idade (o que deve ser tido em conta aquando da determinação da medida concreta da pena) teremos, no entanto, de averiguar se outros factos provados não impõem fortes exigências de prevenção especial. E, neste âmbito, não podemos deixar de salientar que o arguido apesar de “em abstracto, [ter] uma narrativa convencional face aos crimes de incêndio, considerando que atos desta natureza, se intencionais, devem ser julgados e punidos judicialmente e os seus autores alvo de tratamento” (facto provado 60), entende “o seu envolvimento no presente processo judicial como o resultado de um “acidente” e de “falta de sorte”, revelando uma “postura de minimização da responsabilidade” (facto provado 60) o que nos impõe considerar que as exigências de prevenção especial são significativas. Além de tudo isto, ainda que em contexto prisional tenha tentado manter-se ativo e integrado na prática de atividades desportivas e no ensino escolar (facto provado 63) de modo a “estimular o desenvolvimento de competências pessoais e sociais” (idem), certo é que foi também alvo de medida disciplinar por um episódio de conflito com outro colega (facto provado 64).
Acresce que o arguido revela problemas de autocontrolo e de impulsividade, bem como “lacunas ao nível de competências pessoais, como a antecipação de consequências e impactos do seu comportamento” (facto provado 59), sem que, todavia, se tivesse provado qualquer situação de imputabilidade diminuída, ou até mesmo inimputabilidade. Porém, cabe salientar que o arguido “tem noção da revolta social que se gerou” (facto provado 61) em consequência da sua conduta. Ou seja, as exigências de prevenção especial, sendo acentuadas, não permitem uma compressão da pena até ao limite exigido e imposto pela prevenção geral.
Assim, tendo em conta a moldura (pena de prisão entre 4 anos e 16 anos), as fortes exigências de prevenção geral e uma culpa grave do arguido a estabelecer um limite máximo muito próximo do máximo da moldura, mas sem esquecer que estamos perante um delinquente primário, e que o incêndio acabou por tomar proporções imensas, considera-se adequada a pena de 14 (catorze) anos de prisão como adequada e proporcional às exigências de prevenção e ainda dentro do limite imposto pela culpa.
2.4.2. O recorrente invoca ainda a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra no proc. n.º 174/13.0GAVZL.C1, em que um dos arguidos foi condenado numa pena única de 16 anos de prisão (decisão que não foi alterada quando do recurso para o STJ — acórdão de 14.04.2016, proc. n.º 174/13.0GAVZL.C1.S1). Tratando-se, quer nos presentes autos, quer no caso do processo referido, de incêndios de grandes proporções, que causaram grande alarme social, e colocaram em perigo diversas pessoas, e bens patrimoniais de valor elevado, tendo causado inúmeros danos e destruição de bens, e mortes de várias pessoas, podemos dizer que os casos são similares, como são igualmente similares as penas apicadas. Todavia, nunca poderemos considerar que se trata da mesma situação — as diferenças resultantes do modo como os factos ocorreram, as diferenças resultantes do facto de serem pessoas diferentes a intervirem na prática dos factos, de modo diferente, nunca permite, como pretende o recorrente, que se possa dizer estarmos perante casos iguais a impor penas iguais. A similitude dos casos, quando muito, poderia levar a entender que as penas possam ser próximas. Mas não será isto que fundamenta a aplicação de uma qualquer pena – a pena deve ser aplicada em função das concretas exigências de prevenção geral, em função das concretas exigências de prevenção especial, em função do concreto arguido, através de uma análise global dos concretos factos e da concreta personalidade do arguido plasmada nesses factos.
Conclusão
Não são devidas custas.
Supremo Tribunal de Justiça, 15 de fevereiro de 2018
Os Juízes Conselheiros, (Helena Moniz) (Nuno Gomes da Silva)