COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVEL
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA EXCLUSIVA
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
DIREITO COMUNITÁRIO
Sumário


I -     Os vícios constantes do art. 410.º, n.º 2, do CPP apenas podem ser conhecidos oficiosamente e, não quando suscitados pelos recorrentes, pois que sendo o STJ um tribunal de revista, só conhece dos vícios aludidos no art. 410.º, n.º 2, de forma oficiosa, por sua própria iniciativa, quando tais vícios se perfilem, que a não a requerimento dos sujeitos processuais. Mesmo nos recursos das decisões finais do tribunal colectivo, o STJ só conhece dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, por usa própria iniciativa, e nunca a pedido do recorrente, que, para o efeito, sempre terá de se dirigir à Relação.
II -    A velocidade é um conceito relativo, pois que será excessiva sempre que o condutor do veículo não consiga parar o veículo no espaço visível à sua frente, perante qualquer obstáculo. Mas a existência de obstáculo à frente do condutor do veículo pressupõe que esse obstáculo se apresente na metade direita da estrada considerando o sentido de marcha do condutor e que o espaço entre esse obstáculo e o condutor seja adequado a que este possa parar sem com ele colidir. Neste caso é exigível ao condutor que evite a colisão com esse obstáculo. Mas já não será quando o obstáculo surja de forma brusca, de surpresa, inopinadamente, na fixa de rodagem do condutor, a curta distância, de forma a que não seja possível, cumprindo as regras estradais ou com qualquer manobra de último recurso evitar a colisão.
III - Não consta que a situação concreta do peão (vítima) representasse para o arguido (condutor do veiculo) um perigo iminente, pois não era previsível, nem admissível segundo as regras da experiencia, que encontrando-se o peão parado na fixa de rodagem contrária aquela onde circulava o arguido, de costas para ela, fosse iniciar a travessia desta, no momento em que o arguido se aproximava. A qualquer condutor é-lhe exigível que cumpra as regras estradais, mas já não lhe é exigível que conte com a imprudência alheia.
IV - Sendo o acidente imputável ao próprio lesado, é excluída a culpa do condutor que tinha a direcção efectiva do veículo atropelante, presumindo-se que no seu interesse – arts. 503.º, n.º1 e 505.º do CC.
V - O direito nacional não se opõe directamente às Directivas comunitárias, podendo continuar a entender-se que na interpretação do art. 505.º do CC não cabe concorrência entre a culpa (negligência) do lesado e o mero risco da circulação automóvel do lesante.

Texto Integral



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
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Como consta do relatório do acórdão recorrido proferido em 22 de Maio de 2017, pela Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães, com referência aos autos de processo comum (intervenção do Tribunal Singular), com o nº 152/14.2GAMTR, provindo da comarca de ... - Inst. Local -Secção de Competência Genérica -...
“Nos presentes autos, após julgamento, foi decidido:
1. Absolve-se o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal.
2. Julga-se totalmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Instituto da Segurança Social, I.P. - Centro Nacional de Pensões e, em consequência, condena-se a demandada civil BB, S.A. a pagar ao demandante civil a quantia de 1.257,66 Euros (mil duzentos e cinquenta e sete euros e sessenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal civil em vigor, desde a notificação do pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento.
3. Julga-se parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelos assistentes CC, DD, EE, FF, GG, HH, II e JJ e, em consequência, condena-se a demandada civil BB, S.A. a pagar aos demandantes civis uma indemnização no valor global de 40.298,40 Euros (quarenta mil duzentos e noventa e oito euros e quarenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal civil em vigor, desde a notificação do pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento.
4. Condenam-se os assistentes CC, DD, EE, FF, GG, HH, II e JJ no pagamento das custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3,0 (três) Unidades de Contas.
5. Sem custas cíveis quanto ao pedido de indemnização civil deduzido pelo Instituto da Segurança Social, I.P. - Centro Nacional de Pensões.

6. Condenam-se os demandantes civis CC, DD, EE, FF, GG, HH, II e JJ e a demandada civil BB, S.A. no pagamento das custas cíveis do respectivo pedido de indemnização civil, na proporção do respectivo decaimento, fixando-se em 77% a responsabilidade dos demandantes civis e 23% a responsabilidade da demandada civil.

Inconformadas com tal decisão, dela são interpostos os seguintes recursos:
Da demandada BB, S.A., que, em síntese, suscita as seguintes questões:

-a) Na apreciação do pedido cível, o Tribunal fez errada aplicação do art° 505º do Código Civil, por ter seguido a interpretação que tem vindo a ser seguida na União Europeia, pois só há lugar à aplicação do art° 505º quando haja culpa do condutor e não mero risco;
- b) O comportamento do peão não é Só negligente;
- c) O acidente ficou a dever-se à culpa exclusiva do peão, pelo que o condutor não pode ser responsabilizado;
- d) Subsidiariamente, sempre a sua responsabilidade não pode ser superior a 10%;
- e) O direito à vida deveria ter sido fixado em 50.000,00€;
- f) A responsabilidade da demandada perante o pedido do 1SS, I.P., não é pela totalidade do pedido, mas apenas pela quota de responsabilidade do seu segurado.

Da assistente CC, onde, em síntese, conclui que o arguido circulava desatento, em excesso de velocidade e em veículo desadequado, não tendo o Tribunal valorado devidamente o depoimento do perito.”

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Julgando os recursos, veio o Tribunal da Relação a proferir a seguinte:
“Decisão:
Nos termos expostos, acorda-se em se julgar:
1 - Procedente o recurso da demandada cível, BB, absolvendo-a dos pedidos formulados pelos assistentes e do pedido de reembolso formulado pelo Instituto da Segurança Social, LP. - Centro Nacional de Pensões; e
2 - Improcedente o recurso da assistente.
Custas de ambos os recursos pela assistente, com taxa de justiça igualmente a seu cargo.”
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Inconformada veio a assistente CC, interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal “com fundamento em erro na determinação e interpretação da norma aplicável, bem como, pelas contradições existentes entre a fundamentação e a decisão da causa, nos termos do art.º 432.º, n.º 1, al. b)”, do CPP., apresentado as seguintes conclusões na motivação do recurso.:
1. Os factos dados como provados são indubitavelmente comprovadores de que, o peão LL, apesar de negligente, não foi o único responsável pelo acidente, uma vez que o veículo conduzido pelo arguido não teve uma intervenção meramente naturalística.
2. Pois, o peão foi avistado a, pelo menos, 50 metros, logo, atendendo ao critério do homem comum, ao agir como agiu, isto é, não reduzindo a velocidade do automóvel, não buzinando, calcando a embraiagem aquando da travagem, o arguido não usou cuidado e precaução que são exigíveis a todos os que, na via pública, conduzem um veículo automóvel e, pela omissão de tais deveres, conduzia de forma DESATENTA, SEM OS CUIDADOS NECESSÁRIOS A UM CONDUTOR PRUDENTE e que, nas circunstâncias concretas se lhe impunham e de que era capaz.
3. Aliás, não só porque circulava dentro de uma localidade, prevendo a possibilidade do aparecimento de um peão a dar início à travessia da faixa de rodagem, que como ainda pelo facto de conhecer o local por onde habitualmente passa.
4. Ora, apesar dessa consciência, o arguido não tomou as precauções a que estava obrigado e era capaz, conduzindo sem o cuidado necessário ao exercício da condução e de forma desadequada às exigências de segurança que se impunham, TENDO IMPRIMIDO UMA VELOCIDADE E CONDUÇÃO REVELADORA DE DESRESPEITO E INDIFERENÇA PELOS DEMAIS UTENTES DA VIA, vindo assim a embater no peão, provocando o seu sofrimento e morte.
5. A este propósito vide Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 04.12.2007, no âmbito do processo n.º 07B1710, disponível no site dgsi.pt, em que se decidiu:“Na verdade, não obstante a atuação contravencional da menor, que manifestamente contribui para o acidente, a matéria de facto apurada permite também concluir que a estrutura física (as dimensões e largura) do veículo automóvel, na ocasião timonado por uma condutora inexperiente...está inelutavelmente ligada à ocorrência do acidente.
6. Na fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela menor, deve, depois de determinado o seu valor, de acordo com a equidade, fazer-se funcionar o critério da repartição do danos, nos termos do art.º 570.º do CC, não se perdendo de vista a própria condição...” (negrito e sublinhado nosso).
7. No mesmo sentido, decidiu o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 09-09-2014, no âmbito do processo n.º 121/10.1TBPTL.G1.S1, disponível no site dgsi.pt:“Há concorrência de culpas, na proporção de 50% se, por um lado, o lesado, peão, procedeu à travessia da via, de modo inadvertido – sem olhar para o lado esquerdo e sem se certificar da inexistência de circulação na mesma – e, por outro lado, a condutora do veículo agiu com imperícia e falta de destreza ao efetuar a manobra de desvio do obstáculo para a esquerda e não para a direita, conforme teve oportunidade, assim não logrando em evitar o embate” (negrito e sublinhado nosso).
8. Ora, os Acórdãos acima transcritos são indubitavelmente esclarecedores de que, ainda que exista grande culpa do lesado por desatenção ou não cumprimento das regras estradais, o lesante é culpado na respetiva proporção se podia ter evitado o embate através de manobras evasivas (que no caso em apreço não foram feitas, aliás o arguido só travou após o embate), se conduzia com desatenção e não foi cauteloso (avistou a pelo menos 50 metros enão diminui a velocidade nem buzinou) e se demonstrou imperícia (no caso em apreço calcou a embraiagem o que imprimiu velocidade na viatura ao invés de a diminuir).
9. Além do referido, tem de se ter em atenção as condenações anteriores do arguido que demonstram uma conduta pouco responsável, não precavida, irresponsável e com desrespeito pelos demais transeuntes na via. Pois, o arguido circulava com desatenção numa via que passava habitualmente, que sabia que lá passavam peões habitualmente, bem como, que inexistia passageira nas imediações (num raio de km não existiam).
10. Aliás, tal obrigação resulta do art.º 24.º, n.º 1, do Código da Estrada: “o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente” (negrito e sublinhado nosso).
11. Ora, o arguido desrespeitou por completo o postulado no Código da Estrada, tanto é que não travou antes do embate, não executou qualquer manobra evasiva, apesar de ter a faixa de rodagem e bermas livres, nem conseguiu imobilizar o veículo. Agravando a situação, quando reconhece ter avistado o peão a, pelo menos, 50 metros de distância.
12. O Arguido foi incauto e foi irresponsável, ainda que, tal conduta seja repartida com o peão.
13. Aliás, o próprio Ac. refere que “parece indiscutível que a velocidade imprimida no veículo (independentemente de se encontrar dentro dos limites legais e de ser ajustada às condições da via) , a estrutura física, as dimensões e largura do veículo contribuíram para o desfecho do embate.
14. Logo, o douto Acórdão está em contradição quando afirma e concluí, erradamente que, o veículo teve uma intervenção meramente naturalística.
15. No caso em apreço, o comportamento do arguido, a sua imperícia e as dimensões do veículo são os motivos e causa do embate e, consequentemente, morte do peão.
16. Motivo pelo qual, jamais se poderá considerar que o acidente se deveu única exclusivamente ao lesado e por tal, revogar a decisão de primeira instância e absolver o arguido e seguradora. Antes terá de ser repartida a culpa entre arguido e peão na proporção de 50%.
17. O douto Acórdão é da opinião, em nossa opinião incorreta que, no âmbito do art.º 505.º não cabe concorrência entre a culpa (negligência) do lesante e o mero risco da circulação automóvel do lesante. E por tal, entendeu que, a participação do lesante foi meramente naturalística, ficando, por tal, o sinistro a dever-se exclusivamente vítima, sem qualquer contribuição causalmente adequada dos riscos próprios do veículo.
18. Ora, quando nos deparamos com a presente realidade: a negligência do lesado e o risco (e conexas vantagens) é fundamento da obrigação de indemnizar não havendo culpa do lesado – o facto dessa culpa em nada altera a existência desse mesmo risco, pelo que não pode deixar de continuar a ser fundamento da mesma obrigação – mas ora o grau menor se o lesado concorreu com o seu comportamento negligente para a produção do evento. “Há, evidentemente, um concurso de causas (risco e culpa), e sem qualquer uma delas o resultado jamais poderia ser produzido. (negrito e sublinhado nosso).
19. Se o lesante e o lesado estivem ambos despidos de culpa, o lesante pagaria em função do seu risco. Então, tendo culpa para o sinistro o lesado o que acontece é que “Simplesmente, agora, como que haverá uma retração do alcance do seu efeito responsabilizante, dada a concorrência do outro fator (o da culpa do sinistrado), passando os efeitos do acto danoso a ser imputáveis em igual, ou em maior ou menor grau, a cada um desses fatores concorrentes”. (negrito e sublinhado nosso).
20. “Um caso que mais recentemente me coube apreciar consistia no atropelamento de um peão numa rua da capital. Não se divisando qualquer infração por parte do condutor e atribuindo-se ao peão a transgressão do art.º 101.º, n.º 3 do CE (obrigação de atravessar nas passadeiras, se alguma existir a menos de 50 metros) decidiu-se que nenhuma responsabilidade havia para o condutor nos termos do art.º 505.º do CC ou seja, a responsabilidade pelo risco era afastada por, no caso, o acidente dever ser imputável ao próprio lesado.
21. Na verdade, independentemente de se julgar o condutor culpado ou não, e de a culpa do peão ser mínima, o que nessa tese lhe retirava logo o direito a qualquer indemnização, é inquestionável que o carro interveio naquele acidente numa clara manifestação do risco da circulação automóvel. O perigo típico dessa atividade manifesta-se mais no trafego urbano....O mesmo já não se poderia dizer se, por hipótese o peão se metesse a atravessar um autoestrada, sítio onde a sua circulação é proibida, ou se se atirasse contra um automóvel numa atitude suicida. Seriam casos em que o automóvel não interviria com aquela sua típica aptidão para criar perigo. E situações desse teor deverão ser apreciadas caso a caso, embora, por princípio, de deva entender que um automóvel em circulação é fonte de perigo. E se o risco típico se mantém, então não poderá dizer-se que o sinistrado foi o único causador do acidente, não funcionando, por isso a dirimente do art.º 505.º do CC. E em conformidade com o art.º 570.º a indemnização será atenuada em proporção com a quota de responsabilidade que, segundo o prudente arbítrio do julgador, dever ser atribuída ao risco próprio do veículo e culpa do lesado”. (negrito e sublinhado nosso).
22. Por tal, ainda que no caso dos autos se considere que o peão agiu com desrespeito pelas regras estradais ao atravessar de modo desatento, certo é que, tal obstaria a que o lesante fosse responsabilidade atendendo á sua intervenção, ou seja, desatenção, imprudência, imperícia e acima de tudo, estar a conduzir um veículo automóvel de mercadorias.
23. “O art.º 505.º assenta no pressuposto de o acidente ter sido devido, pura e simplesmente (ou seja: na totalidade) ao próprio lesado. Ou seja, o ato do lesado foi tal que só por si foi idóneo à deflagração do sinistro, sendo irrelevante o risco típico criado pelo veículo: O PEÃO ESBARROU NO CARRO, COMO PODERIA TER ESBARRADO NUM CANDEEIRO DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA OU NUM CARRO DE BOIS. SÓ NESTES OU EM SEMELHANTES CASOS SE PODE, NA VERDADE, DIZER QUE O ACIDENTE FOI “IMPUTÁVEL AO PRÓPRIO LESADO”, já que o carro foi um instrumento amorfo, no processo danoso, nele invertido sem o concurso daquela sua típica aptidão para criação do risco e que está na base da responsabilização prevista no art.º 503.º, n,º 1.” (caps lock, negrito e sublinhado nosso).
24. “Não sendo caso de aplicar a exceção (o art.º 505.º), por estarmos ante uma hipótese (concorrência do risco e da culpa) para a qual ele não foi concebido (Neste artigo supõe-se...ter sido o acidente apenas imputável ao lesado), segue-se que ficará substituindo-se o regime-base estabelecido no art.º 1 do art.º 503.º do CC.”
25. “Mas agora com este tempero: o acidente não foi devido apenas ao risco típico criado pela circulação automóvel, mas sim a este e à culpa do lesado, daí que seja lícito – melhor imperioso – repartir a responsabilidade pelo evento, em quotas que a consideração das realidades em presença ditará, pelos agentes que para ele, com o risco e com a culpa, concorram. O art.º 570.º que o Prof. Vaz Serra manda neste caso aplicar por analogia fornece-nos um argumento adjuvante...Aliás, o art.º 505.º ao referir “sem prejuízo dos disposto no art.º ....está, sem dúvida, a admitir o concurso de risco com a culpa do lesado. Aceita-se, portanto, que a culpa do lesado não seja, sem mais, causa de exclusão da indemnização.” (negrito e sublinhado nosso).
26. Caberá ao julgador destrinçar os casos em que o veículo foi, só ou em concurso com uma conduta negligente, um típico instrumento de danos, daqueleoutros em que interveio amorfamente, como seria o caso, de estacionado regularmente, nele embater um transeunte distraído, ou, como já se decidiu, ser arrastado por uma vaga de mar.
27. Pelo que, no caso em apreço, não é legítimo afirmar que o acidente é, única e exclusivamente, imputável ao lesado, tout court, quando segundo princípios gerais da causalidade adequada (art.º 563.º do CC) o ato do lesado, por si só, não é idóneo à produção de tal efeito.
28. “Ora, a lei que pretende ter consagrado as soluções mais justas e racionais, não há-de ter querido admitir uma solução tão extremista e aberrante” como a aplicada em sede de recurso.
29. “Em conclusão: o art.º 503.º do CC fixa a regra da responsabilidade pelo risco, no campo da circulação automóvel. O art.º 505.º estabelece exceções a essa regra, como a de o acidente ter sido imputável ao lesado. Logicamente, não sendo o caso da exceção, funciona a regra. Ora, a exceção (o disposto no 5’05.º) verifica-se quando o acidente é devido apenas, exclusivamente à culpa do lesado.” (negrito e sublinhado nosso).
30. No caso em apreço é forçoso concluir que foi a conjugação das condutas do lesado e do lesante que originou o sucedido, “e em regra é isso que acontece”. (negrito e sublinhado nosso).
31. “Neste caso, não rege o art.º 505.º (a exceção), mas a regra geral (art.º503.º) pelo que o condutor continua a responder pelo risco, responsabilidade essa, porém, temperada pelo facto da culpa do lesado (aplicação analógica do art.º 570.º)” (negrito e sublinhado nosso).
32. Apoiando o nosso ponto de vista, ver também, Brandão Proença, em anotação ao ac. STJ (cadernos de Direito Privado, n,º 7 – Set 2004).

Nestes termos e nos demais de Direito requer a V. Exas dignem a dar procedência ao presente recurso, por provado, e, consequentemente, revogar a douta decisão, substituindo-a por outra que condene a Seguradora ao pagamento da indemnização fixada em sede de primeira instância, assim farão V. Exas a habitual e sã JUSTIÇA.
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Não houve resposta.
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Neste Supremo, a Dig.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer
“1 – Nos presentes autos, o arguido AA, foi absolvido, na 1ª instância do crime de homicídio por negligência e condenada, em matéria civil, a demandada BB S.A..
2 – Inconformadas, recorreram a Assistente e a demandada BB, de questões atinentes à matéria civil, para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por Acórdão de 22.05.2017, julgou procedente o recurso da Companhia de Seguros, absolvendo-a dos pedidos formulados pelos assistentes e do pedido de reembolso formulado pelo Centro Nacional de Pensões e improcedente o recurso da Assistente.
3 – Deste Acórdão, recorreu para o STJ, a Assistente, CC, delimitando-o, exclusivamente à matéria civil.
4 – Carece o MP de legitimidade para se pronunciar sobre o mérito da causa, pelo que, vistos os autos, se promove a continuação dos mesmos para decisão final. “

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Não tendo sido requerida audiência, seguiu o processo para conferência, após os vistos legais.
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Consta do acórdão recorrido:
“A matéria fáctica considerada provada e não provada foi a seguinte:
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I. Fundamentação de Facto

1. Factos Provados:

Da audiência de julgamento, resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos da acusação:

1. No dia 19 de Junho de 2014, pelas 17h25m, o arguido AA circulava ao volante do veículo ligeiro de mercadorias de marca Opel, modelo TFR 54 HD, de matrícula ...-OX, cor branca, propriedade de MM, pela Estrada Nacional n.º 103, ao km 103,400, ...., no sentido de marcha ....
2. No referido veículo, o arguido transportava NN, sendo que este era transportado no banco da frente, ao lado do condutor.
3. Nessas mesmas circunstâncias de tempo, modo e lugar, no referido veículo, o arguido transportava OO, sendo que este era transportado no banco traseiro, atrás do condutor.
4. A via onde o arguido circulava tem boa visibilidade, permitindo aos condutores que circulam em ambos os sentidos avistarem a faixa de rodagem em toda a sua largura, numa extensão de, pelo menos, 50 metros.
5. A via, no referido local, configura, atento o sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido, uma recta com declive de cerca de 2%.
6. Trata-se de uma faixa de rodagem composta por duas vias de trânsito, uma em cada sentido, separadas pela linha longitudinal contínua, marca M1, com uma largura da faixa de rodagem de 5,80 metros, havendo bermas devidamente asfaltadas, as quais têm cerca de 0,85 metros de largura e precedidas de uma valeta em betão, com cerca de 0,90 metros e ambas as margens confinam com áreas florestais e rurais, as quais se apresentam a uma cota superior em relação à via.
7. O pavimento é betuminoso e, embora apresentando algum desgaste, está em estada regular de conservação.
8. A superfície encontrava-se seca e limpa.
9. No local existe sinalização horizontal – linha longitudinal contínua, divisora de sentidos de trânsito, marca M1, setas de selecção marca M15c e M15d, linhas guia de ambos os lados da faixa de rodagem e marca M19.
10. Segundo o sentido da marcha do veículo conduzido pelo arguido, verifica-se a existência da seguinte sinalização vertical:
- A cerca de 400 metros antes do local do embate, o sinal N1a – início de localidade;
- A cerca de 100 metros antes do local do embate, o sinal 13a – pré-aviso reduzido;
- No local do embate e suas proximidades, sinais de J3a, J3c e J3d – indicação do âmbito urbano; sinais de cedência B2 – paragem obrigatória (STOP, para quem se apresenta no cruzamento vindo da ... e de ...); sinais de obrigação D3a – obrigação de contornar a placa ou obstáculo (para quem circula na EN103 e pretende seguir para as localidades da ... e ...); e o sinal de informação H20a – paragem de veículos de transporte colectivo de passageiros.
11. O limite de velocidade máxima permitida no local é de 50 km/hora.
12. O dia era de sol e o céu encontrava-se sem nuvens, sendo que o sol ainda estava alto por detrás da arborização alta existente no lado direito da faixa de rodagem, segundo o sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido.
13. Nas referidas circunstâncias de tempo, modo e lugar, LL encontrava-se a conversar com PP, encontrando-se este ao volante do veículo com a matrícula ...-PV, parado no lado direito da Estrada Nacional n.º 103, no referido Km 103,400, no sentido de marcha ..., isto é, no sentido oposto àquele em que circulava o arguido.
14. O referido LL encontrava-se dentro da via de trânsito onde o veículo ...-PV parou, junto à janela do condutor deste veículo, de costas voltadas para o eixo da faixa de rodagem e a uma distância não concretamente apurada deste eixo.
15. Quando o veículo conduzido pelo arguido se preparava para se cruzar com o veículo ...-PV e com o dito QQ, a uma distância que não ficou concretamente determinada, este QQ voltou-se, girando para o seu lado direito, e iniciou o atravessamento da rua, no sentido Oeste/Este, ou seja, da esquerda para a direita em relação ao sentido de marcha do veículo ...-OX, ..., embatendo este naquele QQ.
16. O embate em QQ deu-se com a parte da frente, lado esquerdo, do veículo ...-OX.
17. O embate ocorreu em local não concretamente determinado, mas já dentro da via de trânsito onde circulava o arguido.
18. O arguido circulava a velocidade não concretamente apurada.
19. O arguido não residia nas imediações do local do embate, mas passa ali habitualmente por razões laborais.
20. O arguido apercebeu-se do peão LL, a conversar com PP, condutor do veículo ...-PV, a, pelo menos, 50 metros de distância.
21. No local do embate, foram deixadas duas marcas de travagem, uma dos rodados esquerdos, com 27,8 metros e outra dos rodados direitos, com 36,6 metros.
22. Na altura do embate, não se encontrava a circular qualquer veículo na faixa de rodagem por onde circulava o veículo conduzido pelo arguido.
23. O arguido, numa acção evasiva, travou e desviou-se ligeiramente para a direita.
24. Na altura em que travou, o arguido também pisou o pedal da embraiagem.
25. Em consequência do embate sofrido, o LL foi transportado na frente do veículo, sobre o capot do motor, em mais de 27 metros, findos os quais, após a paragem do veículo, foi projectado, para a frente, em cerca de 3 metros.
26. LL caiu no chão da via, onde permaneceu deitado na faixa de rodagem da direita, onde circulava o veículo conduzido pelo arguido, a uma distância de 1,40 metros da berma direita, no sentido de trânsito do veículo.
27. O veículo ...-OX imobilizou-se no limite direito da faixa de rodagem, obliquamente em relação à via, com a frente orientada no sentido em que circulava e para o lado direito.
28. Por força do embate, da projecção e da consequente queda de LL, o chão da via direita ficou com salpicos de sangue, desde o local do atropelamento até ao local onde se imobilizou a vítima mortal e, ainda junto desta, com uma macha considerável de sangue.
29. Ainda por força do embate, o veículo ...-OX apresentava salpicos de sangue da vítima LL no pára-brisas e tampa do motor.
30. Em consequência do embate, LL sofreu lesões traumáticas, nomeadamente, lesões cerebrais e tóraco-abdominais, compatíveis com terem sido originadas por violento traumatismo de natureza contundente, lesões essas que foram a causa directa e necessária da sua morte.
31. O exame toxicológico efectuado ao LL para pesquisa de álcool etílico, drogas de abuso e medicamentos resultou negativo.

Dos pedidos de indemnização civil:
32. Com base no falecimento, em 19/06/2014, do beneficiário da segurança social com o n.º .. – QQ, em consequência dos factos a que dizem respeito os autos, foi requerido no ISS, I.P./CNP, por EE, o reembolso de despesas de funeral, o qual foi deferido.
33. Em consequência, o Centro Nacional de Pensões pagou ao requerente EE, a título de reembolso de despesas de funeral, o valor de 1.257,66 Euros.
34. O proprietário do veículo ....-OX, MM, transferiu a sua responsabilidade civil automóvel para a companhia de seguros BB, S.A., mediante contrato de seguro em vigor à data do embate, titulado pela apólice n.º 9001320452.
35. Os assistentes eram irmãos do falecido QQ.
36. Os assistentes sofreram desgosto pela perda do seu irmão.
37. Os assistentes sempre recordarão para sempre, com profunda tristeza, a morte do seu irmão.
38. Os assistentes EE e II, desde a data do evento, encontram-se angustiados, afligidos e atormentados.
39. Com o funeral do irmão falecido, os assistentes gastaram 1.750,00 Euros, bem como a quantia de 253,95 Euros no fato.
40. O falecido é solteiro e não deixou descendentes.

Das contestações:
41. O arguido é pessoa trabalhadora.

Mais se provou que:
42. Ainda que o arguido circulasse a 40 km/h, o mesmo não conseguiria evitar o embate com o peão LL.
43. Por sentença datada de 12/03/2008 e transitada em julgado a 21/04/2008, o arguido foi condenado, no âmbito do processo n.º 31/08.2GCVPA, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., pela prática, em 24/02/2008, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º n.º 1 do Código Penal, a uma pena de 80 dias de multa, à razão diária de 5,00 Euros, num montante total de 400,00 Euros, bem como na sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 3 meses, a qual foi declarada extinta, pelo respectivo cumprimento, por despacho de 21/05/2009.
44. Por sentença datada de 10/12/2013 e transitada em julgado a 09/01/2014, o arguido foi condenado, no âmbito do processo n.º 92/13.2GCVPA, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., pela prática, em 21/07/2013, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º n.º 1 do Código Penal, a uma pena de 80 dias de multa, à razão diária de 5,50 Euros, num montante total de 440,00 Euros, bem como na sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 3 meses, a qual foi declarada extinta, pelo respectivo cumprimento, por despacho de 12/03/2015.
45. O arguido é madeireiro, auferindo como rendimento mensal uma quantia mensal de cerca de 500,00 Euros.
46. O arguido pratica também uma agricultura de subsistência, do que retira produtos para consumo próprio.
47. Vive em casa própria com a esposa e com um filho de 8 anos.
48. O arguido tem mais dois filhos, com 24 e 21 anos de idade, que já são independentes.
49. Paga um crédito bancário, relativo ao seu veículo automóvel, no valor de 250,00 Euros mensais.
50. Tem ainda despesas de alimentação e despesas com água, luz e gás, referentes a habitação, num valor aproximado de 50,00 Euros mensais.
51. A esposa do arguido não exerce qualquer actividade profissional.
52. O arguido nunca andou na escola, não sabe ler, em escrever.
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2. Factos Não Provados

Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a presente causa. Não se provou nomeadamente que:
1. O arguido circulava a uma velocidade entre 66,8 km/h e 69,33 km/h, acima do limite legal para aquele concreto local.
2. O peão LL tinha uma estatura de 1,63 metros de altura e com boa constituição esquelético e estado de nutrição.
3. Ao agir da forma descrita, o arguido não usou do cuidado e precaução que são exigíveis a todos os que, na via pública, conduzem um veículo automóvel e, pela omissão de tais deveres, conduzia de forma desatenta, sem os cuidados necessários a um condutor prudente e que, nas circunstâncias concretas se lhe impunham e de que era capaz.
4. Não só porque circulava dentro de uma localidade, prevendo a possibilidade do aparecimento de um peão a dar início à travessia da faixa de rodagem, como ainda pelo facto de conhecer o local por onde habitualmente passa.
5. Apesar dessa consciência, o arguido não tomou as precauções a que estava obrigado e era capaz, conduzindo sem o cuidado necessário ao exercício da condução e de forma desadequada às exigências de segurança que se impunham, tendo imprimido uma velocidade e condução reveladora de desrespeito e indiferença pelos demais utentes da via, vindo assim a embater no peão.
Do pedido de indemnização civil
6. Os ferimentos sofridos pelo falecido provocaram-lhe dores físicas e uma angústia e amargura indescritíveis por se sentir à beira da morte.
7. O falecido QQ tinha 52 anos de idade e era fisicamente bem constituído e saudável.
8. O falecido era alegre, cheio de vida e gosto de viver, um homem bem-disposto, extrovertido e com facilidade para as relações sociais.
9. Os assistentes amavam muito o falecido irmão, sentimento que era inteiramente retribuído e constituíam uma família harmoniosa e feliz.
10. A morte do falecido foi o maior desgosto da vida dos seus irmãos.
11. Com a sua morte, perderam a alegria de viver, que ainda não recuperaram e desconhecem se alguma vez recuperarão.
12. O falecido vivia de uma forma muito próxima com os assistentes EE e II.
13. Era com eles que contactava diariamente e tomava as suas refeições, que se deslocava às feiras de ... e a eventos festivos, que passava a Páscoa, o Natal, a passagem de ano, estando sempre presentes diariamente na sua vida para o que fosse necessário.
14. Após o falecimento, os assistentes EE e II perderam a vontade de viver.
15. Deixaram estes demandantes de participar em actividades festivas e, de pessoas alegres e bem dispostas, passaram a ser pessoas sisudas e tristes, de difícil contacto, desconcentrados e ansiosas, tornando-se pessoas facilmente irritáveis e irascíveis, com distúrbios de memória, de sono, sofrendo de pesadelos.
16. O falecido contribuía para as despesas mensais da assistente/demandante civil II.
17. O falecido recebia uma pensão de 500,00 Euros mensais, dos quais entregava à demandante II a quantia de 450,00 Euros.
18. A demandante II não gastava com o falecido mais de 50,00 Euros.
19. O falecido não tinha intenções de casar e viveria, pelo menos, mais 35 anos de vida.”

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Cumpre apreciar e decidir
O nº 1 do artº 410º do CPP, refere que: “Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”, e o artº 434º do CPP diz, na verdade, que o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto no artigo 410º nºs 2 e 3.

O artigo 410º:do CPP dispõe no seu nº 2 que:
Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada,
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.

Mas, como vem sendo entendido por este Supremo, os vícios constantes do artigo 410º nº 2 do CPP, apenas podem ser conhecidos oficiosamente e, não quando suscitados pelos recorrentes, pois que sendo o Supremo Tribunal de Justiça um tribunal de revista, só conhece dos vícios aludidos no artigo 410º nº 2, de forma oficiosa, por sua própria iniciativa, quando tais vícios se perfilem, que não a requerimento dos sujeitos processuais.
Mesmo nos recursos das decisões finais do tribunal colectivo, o Supremo só conhece dos vícios do art. 410º, nº 2, do CPP, por sua própria iniciativa, e nunca a pedido do recorrente, que, para o efeito, sempre terá de se dirigir à Relação.
Esta é a solução que está em sintonia com a filosofia do processo penal emergente da reforma de 1998 que, significativamente, alterou a redacção da al. d) do citado art. 432., fazendo-lhe acrescer a expressão antes inexistente "visando exclusivamente o reexame da matéria de direito", filosofia que, bem vistas as coisas, visa limitar o acesso ao Supremo Tribunal, sob pena do sistema vigente comprometer irremediavelmente a dignidade deste como tribunal de revista que é.(v Acórdão deste Supremo Tribunal de 09-11-2006 Proc. n. 4056/06 - 5.ª Secção)
Com tal inovação, o legislador claramente pretendeu dar acolhimento a óbvias razões de operacionalidade judiciária, nomeadamente, restabelecendo mais equidade na distribuição de serviço entre os tribunais superiores e garantir o desejável duplo grau de jurisdição em matéria de facto.
Esta posição nada tem de contraditório, já que a invocação expressa dos vícios da matéria de facto, se bem que algumas das vezes possa implicar alguma intromissão nos domínios do conhecimento de direito, leva sempre ancorada a pretensão de reavaliação da matéria de facto, que a Relação tem, em princípio, condições de conhecer e colmatar, se for caso disso, sendo claros os benefícios em sede de economia e celeridade processuais que, em casos tais, se conseguem, se o recurso para ali for logo encaminhado.
Como referiu por ex. o Acórdão de 8-11-2006, deste Supremo Tribunal, proc.n. 3102/06- desta 3.ª Secção: Os vícios elencados no art. 410º, nº 2, do CPP, pertinem à matéria de facto; São anomalias decisórias ao nível da confecção da sentença, circunscritos à matéria de facto, apreensíveis pelo seu simples texto, sem recurso a quaisquer outros elementos a ela estranhos, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito. Também o apelo ao princípio in dubio pro reo respeita à matéria de facto.
Se o agente intenta ver reapreciada a matéria de facto, esta e a de direito, recorre para a Relação; se pretende ver reapreciada exclusivamente a matéria de direito recorre para 0 STJ, no condicionalismo restritivo vertido nos arts. 432º e 434º do CPP, pois que este tribunal, salvo nas circunstâncias exceptuadas na lei, não repondera a matéria de facto.
É ao tribunal da relação a quem cabe, em última instância, reexaminar e decidir a matéria de facto. - arts. 427º e 428º do CPP.
In casu não se perfila a existência de qualquer dos vícios constantes das alíneas do nº 2, do artº 410º, nem nulidades de que cumpra conhecer, nos termos do nº 3, do mesmo preceito.
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Nos termos do artº 400º nº 3, do CPP: - Mesmo que não seja admissível recurso quanto á matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.
Segundo o nº 2 deste preceito: - Sem prejuízo do disposto nos artigos 427º e 432º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
Tendo em conta o exposto, uma vez que a alçada da Relação é de 30.000€ conforme artº 31º da Lei nº 52/2008 de 28-08-2008, e Artigo 44.º da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, o valor do pedido e o valor desfavorável para o recorrente, relativamente à decisão impugnada, verifica-se que a decisão recorrida é passível de recurso para o Supremo.
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A recorrente assistente pretende que se revogue a decisão, substituindo-a por outra que condene a Seguradora ao pagamento da indemnização fixada em sede de primeira instância, pois que, e em síntese, considera que:
Os factos dados como provados são indubitavelmente comprovadores de que, o peão LL, apesar de negligente, não foi o único responsável pelo acidente, uma vez que o veículo conduzido pelo arguido não teve uma intervenção meramente naturalística, pois, o peão foi avistado a, pelo menos, 50 metros, logo, atendendo ao critério do homem comum, ao agir como agiu, isto é, não reduzindo a velocidade do automóvel, não buzinando, calcando a embraiagem aquando da travagem, o arguido não usou cuidado e precaução que são exigíveis a todos os que, na via pública, conduzem um veículo automóvel e, pela omissão de tais deveres, conduzia de forma DESATENTA, SEM OS CUIDADOS NECESSÁRIOS A UM CONDUTOR PRUDENTE e que, nas circunstâncias concretas se lhe impunham e de que era capaz.
Na fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela menor, deve, depois de determinado o seu valor, de acordo com a equidade, fazer-se funcionar o critério da repartição do danos, nos termos do art.º 570.º do CC, não se perdendo de vista a própria condição....
No caso em apreço é forçoso concluir que foi a conjugação das condutas do lesado e do lesante que originou o sucedido, “e em regra é isso que acontece”.
Neste caso, não rege o art.º 505.º (a exceção), mas a regra geral (art.º 503.º) pelo que o condutor continua a responder pelo risco, responsabilidade essa, porém, temperada pelo facto da culpa do lesado (aplicação analógica do art.º 570.º)”

Apreciando:
Como se sabe, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.- nº 1, do artº 483., do Código Civil (CC)
Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação -artº 562º nº 1 do CC.
O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. Artº 564º nº 1 do CC
Mas, a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão. Artº 563º do CC
A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor. e tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.
Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados. - artº 566º do CC.

A indemnização deve pois ter carácter geral e actual, abarcar todos os danos, patrimoniais, e não patrimoniais, mas quanto a estes apenas os que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito e, quanto àqueles, incluem-se os presentes e futuros, mas quanto aos futuros só os previsíveis (arºs 562º, a 564º e 569º do Código Civil)

Porém, nos termos do nº 2, do citado artº 483º, do CC, “Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.”
O artº 503.º, do CC, a propósito de “Acidentes causados por veículos”, estabelece:
“1. Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.
2. As pessoas não imputáveis respondem nos termos do artigo 489.º
3. Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do n.º 1.”

Todavia, nos termos do artº 505.º do mesmo diploma, sobre “Exclusão da responsabilidade “ determina “Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.”

Por sua vez, o artº 570.º do mesmo Código a propósito da “Culpa do lesado” determina:
1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
2. Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.”

Sendo que o artº 572.º, referindo-se à “Prova da culpa do lesado” consigna:
“Àquele que alega a culpa do lesado incumbe a prova da sua verificação; mas o tribunal conhecerá dela, ainda que não seja alegada.”
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O arguido tinha sido acusado da prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal.
A 1ª instância na decisão final, considerou a dado passo:
“Ora, salvo melhor opinião, em face à matéria de facto que emergiu como demonstrada da audiência de julgamento, cremos que temos excluir liminarmente a velocidade excessiva (superior ao limite legal) do veículo conduzido pelo arguido como factor integrador da conduta negligente deste arguido. De facto, dando-se provado que o arguido circulava a uma velocidade não concretamente apurado e, por outro lado, não se demonstrando, pelas razões apresentadas na fundamentação da matéria de facto, que o arguido circulava a uma velocidade entre 66,8 km/h e 69,33 km/h, não se poderá concluir que o arguido seguia em excesso de velocidade e em violação do normativo constante do artigo 27.º do Código da Estrada.
De igual modo, sem necessidade de grandes dissertações, afigura-se-nos que a circunstância de o arguido, quando confrontado com a invasão da sua via de trânsito pelo peão, ter pisado simultaneamente o travão e a embraiagem, “soltando” com tal reação o veículo, configure uma violação de um qualquer normativo estradal.. Mais, sem se entrar na questão técnica da manobra, isto é, não se discutindo se a travagem torna ou não inconsequente o acto de pisar o pedal da embraiagem e o “soltar” o veículo, afigura-se-nos sem qualquer margem para dúvida que, considerando aquela que é a figura de um condutor normal colocado na posição do arguido e perante a rapidez, a surpresa e o inesperado da conduta do próprio peão, de forma alguma se poderia exigir uma outra reacção ao arguido. Um tal reflexo, provavelmente, nem a um condutor que faça disso profissão seria exigível.
Com tal reação, certamente que o arguido não deixou de cumprir com o seu dever de actuar com prudência perante o perigo súbito com que se viu confrontado e nem por isso é admissível sustentar que o arguido violou o seu dever de preparação e informação prévia.
Mais cuidados merece-nos o restante argumento invocado para sustentar a actuação negligente (e grosseira) do arguido. Assim, impõe-se questionar se era ou não exigível ao arguido proceder a uma adequação da velocidade a que seguia, no momento imediato em que avista o peão, ainda a uma distância de, pelo menos, 50 metros.
E, neste ponto, atento o disposto nos supracitados artigos 24.º e 25.º do Código da Estrada, afigura-se-nos que a resposta não pode deixar de ser afirmativa. O arguido, confrontado antecipadamente com uma potencial situação perigosa, tinha o dever de acautelado [acautelar] a necessidade de uma travagem e, eventualmente, de uma imobilização do veículo, assim se consubstanciando o dever de preparação e o dever de actuar com prudência perante uma situação de perigo, deveres esses que integram o aludido dever de cuidado externo.
Contudo, salvo melhor opinião, face à demais factologia comprovada, esta conclusão não pode bastar, por si só, para se obter a condenação do arguido. Para que a imputação objectiva possa ser afirmada, ou melhor, para que o resultado (embate e subsequente morte) possa ser imputado à conduta do agente, importa completar a apreciação jurídica dos factos com a avaliação do comportamento da vítima, na medida em que esta possa ter contribuído causalmente para o resultado.
É que, encontrando-se o peão LL no meio da via de trânsito contrária àquela em que seguia o arguido e partindo daí para o atravessamento da via, o mesmo desrespeitou, desde logo, o disposto nos artigos 99.º e 100.º do Código da Estrada.
Depois, ao ter procedido ao atravessamento do via nos termos em que o fez, voltando as costas ao sentido de circulação contrário e sem se tendo[ter] acautelado da eventual circulação de outros veículos, violou também o peão o disposto no artigo 101.º do mencionado diploma legal.
A ser assim, no caso em apreço, também a própria vítima concorreu causalmente, com a sua conduta, para a produção do resultado alcançado.
Ora, é sabido que, em termos abstractos e conceptuais, o concurso causal da vítima para a produção do resultado não interrompe, de forma automática, a imputação dos factos típicos ao arguido.
Nesse sentido, lê-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18/02/2014, proc. 199/12.3GDSTB.E1, Ana Barata Brito, in www.dgsi.pt, que: “III. A eventual contribuição causal da vítima para a produção do resultado não paralisa necessariamente a imputação, pois a imputação objectiva explica-se para além de uma lógica de pura causalidade.
É que “a imputação objectiva deve sempre explicar-se (estabelecer-se) para além de uma lógica de pura causalidade. Seguindo posições desenvolvidas por Roxin e Jakobs, a partir do momento em que o agente começa a actuar ilicitamente, em que viola o seu dever de cuidado, há um relaxamento e um desprendimento de atitude que podem justificar a imputação. O princípio da confiança, segundo o qual o agente que adopta um comportamento adequado pode confiar que os outros procederão de idêntico modo, deixa de se aplicar quando essa confiança, em face de circunstâncias do caso, reconhecíveis para o agente, se apresente como injustificada. O princípio da confiança cede relativamente a comportamentos (mesmo ilícitos) de terceiros com os quais um agente consciente deva razoavelmente contar.”.
No caso presente, perante o modo como os factos se desenrolaram e apreciando, à luz das regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, as concretas condutas do arguido e da vítima, não podemos deixar de propender para o entendimento de que, no caso concreto, o princípio da confiança que assistia ao arguido não pode ceder perante o comportamento inesperado e incauto da própria vítima, que, ele sim, com uma grosseira desconsideração pela situação de perigo em que se encontrava e permaneceu ao situar-se no meio de uma via de circulação com o nível de Estrada Municipal e, depois, ao iniciar o atravessamento dessa via sem se assegurar que o podia fazer em segurança.
Note-se, que a vítima, independentemente de quaisquer problemas de saúde que pudesse ter, não era um qualquer “animal irracional”, nem tão pouco era um menor de idade, do qual se esperasse, naquelas circunstâncias, um comportamento errático, imprudente e inesperado.
Ou seja, num juízo de prognose póstuma, colocados na posição do arguido, perante todas as circunstâncias demonstradas e considerando aquelas que são as regras da normalidade do acontecer ou as regras da experiência comum, não se nos afigura que tenha sido a conduta do arguido a criar ou a promover, em primeiro lugar, a situação de perigo e, depois, o próprio embate de que resultou a morte do peão.
Não se ignora que a conduta do arguido contém, em si mesmo, implicitamente, um risco. Não cremos, contudo, que tal risco possa, in casu, assumir uma relevância criminal, ou que esse risco extravase aqueles que são os limites do risco socialmente toleráveis e permitidos (lembre-se a lição de Figueiredo Dias acima enunciada e note-se que não se demonstrou a que concreta velocidade o arguido seguia).
Aliás, recorde-se também aqui que, em conformidade com o que ficou demonstrado, mesmo que o arguido fosse a 40 km/h (e eventualmente a uma circulação inferior), o embate, ainda assim, não deixaria de se produzir e não deixaria de se produzir, justamente, face à conduta do peão/da vítima.
De outro modo, perante a conduta do peão e ainda que se verificasse uma estrita e rigorosa observância do dever de agir a que o arguido se encontrava vinculado, dificilmente o resultado não se verificaria.
Neste conspecto, é com sérias dificuldades que, num juízo de causalidade adequada, podemos imputar o resultado produzido a uma qualquer conduta negligente do agente.
A ser assim, face aos factos concretamente demonstrados, cremos que a própria actuação da vítima afasta a imputação objectiva do resultado à conduta negligente do arguido.
E por essas razões, o arguido deverá ser absolvido do crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal.”

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Na verdade, do que vem provado resulta que, sendo a via onde o arguido circulava uma recta com boa visibilidade, permitindo aos condutores que circulam em ambos os sentidos avistarem a faixa de rodagem em toda a sua largura, numa extensão de, pelo menos, 50 metros, tratando-se de uma faixa de rodagem composta por duas vias de trânsito, uma em cada sentido, separadas pela linha longitudinal contínua, marca M1, com uma largura da faixa de rodagem de 5,80 metros, QQ encontrava-se a conversar com PP, encontrando-se este ao volante do veículo com a matrícula ...-PV, parado no lado direito da Estrada Nacional n.º 103, no referido Km 103,400, no sentido de marcha ..., isto é, no sentido oposto àquele em que circulava o arguido. encontrando-se dentro da via de trânsito onde o veículo ...-PV parou, junto à janela do condutor deste veículo, de costas voltadas para o eixo da faixa de rodagem e a uma distância não concretamente apurada deste eixo.
E quando o veículo conduzido pelo arguido se preparava para se cruzar com o veículo ...-PV e com o dito QQ, a uma distância que não ficou concretamente determinada, este QQ voltou-se, girando para o seu lado direito, e iniciou o atravessamento da rua, no sentido Oeste/Este, ou seja, da esquerda para a direita em relação ao sentido de marcha do veículo ...-OX, Braga/Chaves, embatendo este naquele QQ. com a parte da frente, lado esquerdo, do veículo ...-OX. em local não concretamente determinado, mas já dentro da via de trânsito onde circulava o arguido.
O arguido circulava a velocidade não concretamente apurada.
O arguido, numa acção evasiva, travou e desviou-se ligeiramente para a direita. Na altura em que travou, o arguido também pisou o pedal da embraiagem.
O limite de velocidade máxima permitida no local é de 50 km/hora.
Ainda que o arguido circulasse a 40 km/h, o mesmo não conseguiria evitar o embate com o peão LL.
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A velocidade é um conceito relativo, pois que será de considerar excessiva sempre que o condutor de veículo não consiga parar o veículo no espaço livre visível à sua frente, perante qualquer obstáculo.
Mas a existência de obstáculo à frente do condutor do veículo pressupõe obviamente que esse obstáculo se apresente na metade direita da estrada considerando o sentido de marcha do condutor e que o espaço entre esse obstáculo e o condutor seja adequado a que este possa parar sem com ele colidir.
Neste caso é exigível ao condutor que evite a colisão com esse obstáculo,
Mas já não será quando o obstáculo surja de forma brusca, de surpresa, inopinadamente, na faixa de rodagem do condutor, a curta distância deste, de forma a que não seja possível, cumprindo as regras estradais ou com qualquer manobra de último recurso evitar a colisão.

Os peões ao transitarem pela faixa de rodagem, devem fazê-lo “com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos,” como resulta do disposto no artº 99º nº 2, do C-.Estrada
Como consta do artº 101º, nº 1, do mesmo diploma rodoviário, sobre “Atravessamento da faixa de rodagem ”Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.”

Poderá questionar-se se o arguido ao deparar com o peão parado na faixa contrária deveria ter buzinado para chamar a sua atenção.
Porém, não consta que a situação concreta do peão representasse um perigo iminente, pois não era previsível, nem admissível segundo as regras da experiência, que encontrando-se o peão parado na faixa de rodagem contrária àquela onde circulava o arguido, de costas para ela, fosse iniciar a travessia desta, no momento em que o arguido se aproximava.
E, de harmonia com o artº 22º nº 2, do Código da Estrada,
Só é permitida a utilização de sinais sonoros:
a) Em caso de perigo iminente;
b) Fora das localidades, para prevenir um condutor da intenção de o ultrapassar e, bem assim, nas curvas, cruzamentos, entroncamentos e lombas de visibilidade reduzida.

In casu, apreciadas pois, as circunstâncias da ocorrência de harmonia com as regras estradais, e as regas da experiência, resulta evidente que não era exigível ao condutor arguido outro comportamento,
A qualquer condutor é-lhe exigível que cumpra as regras estradais, mas já não lhe é exigível que conte com a imprudência alheia.

Sendo que não foi dado como provado, outrossim, foi dado como não provado que:
Ao agir da forma descrita, o arguido não usou do cuidado e precaução que são exigíveis a todos os que, na via pública, conduzem um veículo automóvel e, pela omissão de tais deveres, conduzia de forma desatenta, sem os cuidados necessários a um condutor prudente e que, nas circunstâncias concretas se lhe impunham e de que era capaz.
Apesar dessa consciência, o arguido não tomou as precauções a que estava obrigado e era capaz, conduzindo sem o cuidado necessário ao exercício da condução e de forma desadequada às exigências de segurança que se impunham, tendo imprimido uma velocidade e condução reveladora de desrespeito e indiferença pelos demais utentes da via, vindo assim a embater no peão.

É pois evidente concluir-se pela culpa exclusiva da vítima ao iniciar a travessia da faixa de rodagem contrária , sem que nada o fizesse prever, pois que o referido QQ encontrava-se dentro da via de trânsito onde o veículo ...-PV parou, junto à janela do condutor deste veículo, de costas voltadas para o eixo da faixa de rodagem e a uma distância não concretamente apurada deste eixo e, quando o veículo conduzido pelo arguido se preparava para se cruzar com o veículo ...-PV e com o dito QQ, a uma distância que não ficou concretamente determinada, este QQ voltou-se, girando para o seu lado direito, e iniciou o atravessamento da rua, no sentido Oeste/Este, ou seja, da esquerda para a direita em relação ao sentido de marcha do veículo ...-OX, Braga/Chaves, embatendo este naquele QQ.

De tal conclusão se deu conta a 1ª instância quando referiu: “considerando os factos dados como provados, bem como toda a argumentação jurídica desenvolvida a propósito do não preenchimento do tipo incriminador do homicídio negligente por parte do arguido, também aqui, coerentemente, teremos que concluir que não se encontram preenchidos os apontados pressupostos cumulativos da responsabilidade civil aquiliana.
Com efeito, dos factos dados como provados, nada aponta para qualquer comportamento culposo imputável ao arguido enquanto condutor do veículo sinistrado que possa fundar uma obrigação de indemnizar os demandantes civis com base na responsabilidade civil por facto ilícito (artigo 483.º a 498.º do Código Civil).
A mesma factualidade exclui qualquer juízo de censura ou de reprovação da conduta do arguido, pois nenhum outro comportamento se poderia exigir, em abstracto, ao mesmo.”

Assim e, em termos de responsabilidade civil, face ao nosso Código Civil, sendo o acidente imputável ao próprio lesado é excluída a culpa do condutor que tinha a direcção efectiva do veículo atropelante, presumindo-se que no seu interesse,- artºs 503º nº 1 e 505º, do CC.
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Há porem, que desenvolver ainda a questão cível, objecto de recurso, uma vez que o recorrente invoca um concurso de causas (risco e culpa), aduzindo que “O art.º 570.º que o Prof. Vaz Serra manda neste caso aplicar por analogia fornece-nos um argumento adjuvante...Aliás, o art.º 505.º ao referir “sem prejuízo dos disposto no art.º ....está, sem dúvida, a admitir o concurso de risco com a culpa do lesado. Aceita-se, portanto, que a culpa do lesado não seja, sem mais, causa de exclusão da indemnização.”(v. conclusões 18º e 25º)

A 1ª instância tinha fundamentado, da seguinte forma:«
I. Dos Pedidos de Indemnização Civil

Por força do disposto no artigo 129.º do Código Penal, a indemnização por perdas e danos resultantes de crime é regulada pela lei civil.
Os pedidos formulados pelos demandantes civis visam a declaração de um crédito indemnizatório a seu favor com base na responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana emergente da conduta criminosa do arguido.
Este direito de crédito funda-se no disposto no artigo 483.º n.º 1 do Código Civil que postula que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”.
Para que procedam os pedidos do assistente e do demandante civil, há, assim, que verificar se há factos dados como provados que preencham, cumulativamente os seguintes pressupostos:
· A existência de um facto voluntário do agente;
· A ilicitude desse facto;
· Que haja um nexo de imputação do facto ao lesante (culpa do lesante);
· Que da violação do direito subjectivo ou da lei sobrevenham danos;
· Que se verifique a existência de um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.
O facto voluntário do agente terá que se traduzir numa conduta humana do agente que é pensada e controlada pelo próprio agente, podendo configurar-se como uma acção ou omissão, sendo que neste último caso, pressupõe-se a existência de um dever legal de praticar o acto omitido, o qual, se fosse praticado, seguramente ou, pelo menos, muito provavelmente, teria evitado o dano.
A ilicitude do facto traduz-se num juízo de desvalor objectivo do facto voluntário do agente em resultado da violação de um direito de outrem ou de uma norma destinada a proteger interesses alheios (as chamadas normas de protecção), aqui se integrando as normas penais.
Por seu turno, a culpa consiste num juízo de censura (subjectivo) centrado na conduta do agente, sendo imprescindível, por um lado, que o agente seja susceptível de um juízo de censura e, por outro lado, que a sua conduta seja efectivamente censurável, isto é, que nas circunstâncias concretas do caso se possa afirmar que o agente podia e devia ter actuado de outra forma.
Por outro lado, para haver obrigação de indemnizar é necessário que ocorra um dano, sendo que o mesmo é, na perspectiva da responsabilidade civil, todo o prejuízo ou desvantagem que é causado nos bens jurídicos, de carácter patrimonial ou não, em função da sua susceptibilidade de avaliação pecuniária.
No que tange aos danos patrimoniais, são indemnizáveis não apenas os danos emergentes, ou seja, o prejuízo imediatamente sofrido pelo lesado, mas também os lucros cessantes, isto é, as vantagens que deixaram de entrar no património do lesado, como consequência da lesão (artigo 564º, n.º 1, do Código Civil).
Quanto aos danos não patrimoniais, e embora os mesmos não possam ser matematicamente contabilizados, o seu ressarcimento, por mais simbólico que seja, sempre servirá para minorar e compensar os danos sofridos pelo lesado, pois conforme explanado por Antunes Varela não há, de facto, a intenção de pagar ou indemnizar o dano, muito menos o intuito de facultar o comércio com valores de ordem moral; há apenas o intuito de atenuar um mal consumado (in Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, pág. 615). O legislador entendeu, no entanto, limitar a ressarcibilidade destes danos àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (artigo 496.º n.º 1 do Código Civil).
Exigindo-se um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, nos termos do artigo 563.º do Código Civil, “a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”, aqui se consagrando a teoria da causalidade adequada em termos que a indemnização só cobrirá aqueles danos cuja verificação era lícito, na altura do evento danoso, prever que não ocorressem, se não fosse o evento lesivo.
Emergindo a obrigação de indemnizar, necessário se torna proceder à fixação da indemnização correspondente aos danos sofridos em consequência da acção ilícita e culposa. O princípio geral nesta matéria encontra-se formulado no artigo 562.º do Código Civil que privilegia a reconstituição natural da “situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”. Apenas haverá lugar à fixação da indemnização em dinheiro “… sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor” (artigo 566.º do Código Civil).
Esta indemnização em dinheiro há-de, porém, conter-se nos limites resultantes do disposto no n.º 2 do citado artigo 566.º do Código Civil, que consagra a teoria da diferença, ou seja, na medida da diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem os danos.
No caso de não ser possível averiguar o valor exacto dos danos, o Tribunal definirá aquele valor equitativamente, dentro dos limites que tiver por provados (cfr. art. 566.º n.º 3 do Código Civil).
É a este critério da equidade que se terá que recorrer, não só para fixar o valor dos danos não patrimoniais que resultaram provados, mas também, o valor dos danos patrimoniais demonstrados, mas não quantificáveis.
Isto posto, considerando os factos dados como provados, bem como toda a argumentação jurídica desenvolvida a propósito do não preenchimento do tipo incriminador do homicídio negligente por parte do arguido, também aqui, coerentemente, teremos que concluir que não se encontram preenchidos os apontados pressupostos cumulativos da responsabilidade civil aquiliana.
Com efeito, dos factos dados como provados, nada aponta para qualquer comportamento culposo imputável ao arguido enquanto condutor do veículo sinistrado que possa fundar uma obrigação de indemnizar os demandantes civis com base na responsabilidade civil por facto ilícito (artigo 483.º a 498.º do Código Civil).
A mesma factualidade exclui qualquer juízo de censura ou de reprovação da conduta do arguido, pois nenhum outro comportamento se poderia exigir, em abstracto, ao mesmo.
A apreciação da questão civil não pode, porém, quedar-se por aqui, visto que os assistentes também invocaram as normas da responsabilidade civil pelo risco para sustentarem os seus pedidos.
De resto, como é sabido, “a causa de pedir, nas acções de indemnização por acidente de viação, é o próprio acidente, e abrange todos os pressupostos da obrigação de indemnizar. Se o autor pede em juízo a condenação do agente invocando a culpa deste, ele quer presuntivamente que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa se não provar. E assim, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, o tribunal pode averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, salvo se dos autos resultar que a vítima só pretende a reparação se houver culpa do réu” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2007, proc. 07B1710, Santos Bernardino, in www.dgsi.pt).
No mesmo sentido, “IV – Quando o lesado exerce o direito de indemnização invocando a culpa do lesante, não pretenderá, em regra, prescindir da responsabilidade pelo risco em que o lesante terá, a caso, incorrido, mas só acentuar que este até por culpa é responsável. V – Se o tribunal não julgar procedente a acção com base na responsabilidade por culpa, verificando-se, porém, os pressupostos de responsabilidade pelo risco, deve julgar-se procedente a acção com fundamento nesta responsabilidade” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/07/1997, proc. 9720158, Soares de Almeida, in www.dgsi.pt).
Ora, a responsabilidade derivada da utilização de veículos de circulação terrestre, enquanto responsabilidade pelo risco do veículo, está regulada no nosso ordenamento jurídico nos artigos 503.º e seguintes. Dispõe o n.º 1 deste artigo que “aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”.
É pacífico na jurisprudência e na doutrina portuguesa que o âmbito deste dispositivo legal abrange todos e quaisquer veículos capazes de causar danos por via da sua circulação terrestre, aqui se compreendendo, automóveis, motociclos, velocípedes/bicicletas e, de forma genérica, todos os meios de transporte de circulação rodoviária.
Por outro lado e de acordo com o preceito analisado, é responsável quem tiver a direcção efectiva do veículo e o utilizar no interesse próprio, ainda que por intermédio de comissário. O responsável será, no fundo, o detentor do veículo, ou seja, “aquele que tem o veículo em uso por sua própria conta e possui o poder efectivo, e necessário para o uso, de disposição sobre o veículo” (cfr. RIBEIRO DE FARIA, Jorge Leite, Direito das Obrigações, vol. II, Almedina, Coimbra, pág. 34) e isto, ainda que, como no caso dos autos, se tenha a direcção efectiva por intermédio de comissário.
In casu, o veículo segurado era um automóvel ligeiro de mercadorias, enquadrado, portanto, no âmbito de aplicação do n.º 1 do artigo 503.º do Código Civil.
Por outro lado, a direcção efectiva do veículo estava entregue ao comissário do proprietário do mesmo (Fernando Pires de Castro), isto é, ao arguido e, nesse sentido, o veículo encontrava-se a ser utilizado no interesse da própria proprietária.
Verificam-se, por isso, os pressupostos do n.º 1 do artigo 503.º do Código Civil, para fazer operar a responsabilidade civil do proprietário pelo risco do veículo com a matrícula ...-OX.
Sucede que, da análise do caso sub judice supra desenvolvida, chegou-se à conclusão que foi o próprio peão, que, em face do local da via onde se encontrava e atenta a forma como procedeu ao atravessamento da via, inobservou o preceituado nos artigos 99.º, 100.º e 101.º do Código da Estrada, tendo-o feito em violação do dever geral de cuidado que se lhe impunha naquela situação, actuando, por conseguinte, de uma forma negligente.
Ora, dispõe o artigo 505.º do Código Civil que, “sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.
Sobre este preceito, surgiu um intenso debate doutrinal e jurisprudencial quanto à possibilidade de concorrência da responsabilidade pelo risco pertencente ao proprietário do veículo automóvel com a culpa do lesado na produção do acidente de viação.
Neste debate, a posição que ainda nos parece ser maioritária tem vindo a entender que não pode haver concurso de responsabilidades do lesado, a título de culpa, e do titular da direcção efectiva do veículo, assente no risco. Nesta lógica, apurada a culpa do peão e excluída a culpa do condutor do veículo automóvel, nada mais é preciso indagar, ficando excluída a responsabilidade deste pelos danos sofridos pelo primeiro. Para afastar a responsabilidade civil pelo risco a que se reporta o n.º 1 do artigo 503.º do Código Civil, bastaria, assim, que o acidente se tenha ficado a dever, em termos de culpa ou de mera causalidade, ao próprio lesado, a terceiro ou a facto de força maior estranho ao funcionamento do veículo.
O fundamento desta doutrina encontra-se em Antunes Varela, para quem o artigo 505.º do Código Civil coloca um problema de causalidade: a verificação de qualquer uma das circunstâncias previstas naquele preceito opera uma interrupção no nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e o dano e, nesse sentido, afasta a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, pois que o dano deixa de ser um efeito adequado do risco do veículo. Bastará, então, a imputação causal do acidente ao lesado para excluir a responsabilidade objectiva: “não se exige, pois, que o acidente seja devido a facto culposo do lesado, que seja causado pela conduta censurável deste; abrangem-se também todos os casos em que o acidente é devido ao lesado, mesmo que não haja culpa deste. A possibilidade de concurso, em acidente de viação, do perigo especial do veículo com facto de terceiro ou da vítima (culposo ou não culposo), de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade ou a uma atenuação da obrigação de indemnizar fundada no risco, é claramente rejeitada, com o argumento de não ser justa nem ter consagração legal. Se o acidente ocorre porque o lesado ou terceiro não observaram as regras de prudências exigíveis em face do perigo normal do veículo, cessa a responsabilidade do detentor, porque, não obstante o risco inerente à viatura, os danos provêm de facto de outrem.” (cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2007, proc. 07B1710, Santos Bernardino, in www.dgsi.pt).
De outra banda, encontram-se os que, partindo de uma leitura menos literal do artigo 505.º do Código Civil, defendem a tese da concorrência de responsabilidades. É o caso de Vaz Serra (que já nos trabalhos preparatórios do Código Civil havia proposto a formulação do preceito, nesse sentido), que argumenta, por um lado, que a expressão “acidente imputável ao lesado” enunciada no artigo 505.º deve ser entendida com o sentido de acidente devido unicamente a facto do lesado. “[S]endo a situação de concorrência entre o risco e culpa semelhante às contempladas no art. 570.º, deve este preceito ser aplicado por analogia a tal situação, o que conduz à aplicação dos princípios gerais sobre conculpabilidade do lesado” (cfr. o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2007, proc. 07B1710, Santos Bernardino, in www.dgsi.pt).
Outros argumentos que costumam ser apontados a favor da tese da concorrência de responsabilidades prendem-se com a insensibilidade da tese maioritária no tratamento igualitário que dispensa a situações tão díspares como sejam os sinistros provocados por um comportamento mecânico dos lesados, ditados por um medo invencível ou por uma reacção instintiva, os eventos pessoais fortuitos (por exemplo, desmaios e quedas), os factos praticados por crianças e demais inimputáveis, os comportamentos de precipitação ou distracção momentânea, ou o descuido provocado por más condições de vias. No fundo, o artigo 505.º do Código Civil trata de igual forma “as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados por acidentes de viação”, o que leva, muitas vezes, a resultados concretos difíceis de aceitar.
Assim como também é insensível, ignorando o desejável espírito de coerência das soluções legais de um ordenamento jurídico que se pretende unitário, ao regime estabelecido no Código do Trabalho, para os acidentes laborais, onde se estabelece que o dever de indemnização do empregador só é excluído se o acidente tiver sido dolosamente provocado pelo sinistrado ou se provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado (cfr. alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais).
A par de Vaz Serra, outros nomes na doutrina vêm, mais recentemente, apoiar a tese da concorrência de responsabilidades. Calvão da Silva (cfr. anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/03/2001, in RLJ, ano 134.º, Agosto de 2001, n.ºs 3924 e 3925, págs. 112 e segs. e anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2007, in RLJ, ano 137.º, Setembro-Outubro de 2007, n.º 3946, págs. 35 e segs.), por exemplo, parte da constatação que a obrigatoriedade de contratação de um seguro de responsabilidade civil como pressuposto da circulação de veículos terrestres a motor, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 408/79, de 25 de Setembro, está intimamente conexionada com o regime material da responsabilidade civil pelo risco em matéria de acidentes causados por veículos, constante do Código Civil, pelo que tal obrigatoriedade impunha um revisitar da querela doutrinal em que o artigo 505.º estava envolto, perspectivando o problema à luz das “novas linhas de força da relação entre o risco dos veículos e a fragilidade de certos participantes no tráfego” que conduza à tutela destes lesados mais frágeis.
Defende aquele professor que, assentando a responsabilidade fixada no artigo 503.º n.º 1 do Código Civil no risco da utilização do veículo (e não na culpa) e estando o concurso da conduta culposa do condutor ou detentor do veículo com facto culposo do lesado (o concurso de culpas do condutor e do lesado) previsto directamente no artigo 570.º do Código Civil, então, do disposto no artigo 505.º do Código Civil tem que se extrair a conclusão de que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída, quando o acidente sobrevier, unicamente, da conduta do próprio lesado ou de terceiro, ou quando resulte, exclusivamente, de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo. Entendimento contrário implicaria, segundo aquele professor, que a ressalva constante da primeira parte do artigo 505.º perdesse o seu conteúdo útil.
Calvão da Silva chama, ainda, em favor da sua tese, vária legislação avulsa, em matéria de responsabilidade civil por acidentes com intervenção de aeronave (artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 321/89, de 25 de Setembro e artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 71/90, de 2 de Março), ou com intervenção de embarcações de recreio (artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 329/95, de 9 de Dezembro), no domínio da produção e distribuição de energia eléctrica (artigo 44.º do Decreto-Lei n.º 184/95, de 27 de Julho), ou ainda no caso de responsabilidade civil do produtor ou fabricante de produtos defeituosos (artigo 7.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 383/89, de 6 de Novembro), onde expressamente se refere ou da qual decorre a necessidade de conduta culposa exclusiva do lesado para afastar a responsabilidade pelo risco.
Assim, criticando a tese maioritária por ser insensível ao alargamento crescente do âmbito da responsabilidade pelo risco por influência do Direito da União Europeia e tendo por escopo a garantia de uma maior protecção dos lesados, sustenta Calvão da Silva que uma interpretação progressista ou actualista do artigo 505.º, que tenha em conta a unidade do sistema jurídico (nos termo do artigo 9.º n.º 1 do Código Civil) e as novas concepções de solidariedade e justiça que enformam o regime da responsabilidade pelo risco, impõe que tenha que ser acolhida a tese do concurso/concorrência da culpa do lesado com o risco próprio do veículo.
Também Brandão Proença (in A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual, Almedina, Coimbra, 1997) aponta no mesmo sentido: “a posição tradicional, porventura justificada em certo momento, esquece, hoje, que, por exemplo, o peão e o ciclista (…) são vítimas de danos, resultantes, muitas vezes, de reacções defeituosas ou pequenos descuidos, inerentes ao seu contacto permanente e habitual com os perigos da circulação, de comportamentos reflexivos ou necessitados (face aos inúmeros obstáculos colocados nas «suas» vias) ou de «condutas» sem consciência do perigo (máxime de crianças) e a cuja danosidade não é alheio o próprio risco da condução. (…) Numa época em que a relação pura de responsabilidade, nos domínios do perigo criado por certas actividades, se enfraqueceu decisivamente, não parece compreensível, a não ser por preconceitos lógico-formais, excluir liminarmente o concurso de uma conduta culposa (ou mesmo não culposa) do lesado, levando-se a proclamada excepcionalidade do critério objectivo às últimas consequências.” (cfr. ob.cit., págs. 275 e 276).
E, adiante, conclui que, na ausência de uma norma específica, idêntica à do art.7.º n.º 1 do supracitado Decreto-Lei n.º 383/89, de 6 de Novembro, propende para subsumir o concurso entre o risco dos veículos e a conduta culposa dos lesados ao critério do n.º 1 do artigo 570.º do Código Civil, “atendendo ao paralelismo das duas situações de concorrência, sintonizadas com a necessidade de uma adequada repartição do dano” (cfr. ob. cit., pág. 819).
Se dúvidas, porém, persistissem quanto à bondade da opção por uma das duas teses, as mesmas ficam, a nosso ver, eliminadas, se atendermos ao teor e à ratio das Directivas Automóveis, bem como à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) que sobre aquelas se tem vindo a desenvolver, sempre na perspectiva da vítima e levando em consideração o alcance social do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Assinale-se que, muito embora a definição dos regimes de responsabilidade civil sejam da competência dos Estados-Membros da União Europeia, a verdade é que as soluções decorrentes da obrigação de interpretação das normas nacionais em conformidade com as Directivas da União Europeia, nomeadamente com as chamadas Directivas Automóveis em matéria de seguro obrigatório, ou da obrigação de assegurar o efeito útil das mesmas, têm penetrado aquele regime de responsabilidade civil (o regime do seguro obrigatório vai, assim, afectar, inelutavelmente, o regime da responsabilidade civil – sobre esta interpenetração dos dois regimes cfr. MOITINHO DE ALMEIDA, “Seguro Obrigatório Automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias”, in www.stj.pt/documentacao/estudos/seguros), a ponto de já ter imposto a erradicação dos limites que se encontravam estatuídos no artigo 504.º do Código Civil para a responsabilidade civil do transportador a título gratuito e dos limites máximos indemnizatórios do artigo 508.º do Código Civil (cfr., sobre esta matéria, o acórdão do TJUE de 14 de Setembro de 2000, Mundial Confiança, proc. C-348/98, in www.curia.europa.eu, que esteve na origem da querela jurisprudencial que só ficou resolvida com o acórdão uniformizador de jurisprudência 3/2004 e, definitivamente, com a alteração ao artigo 508.º do Código Civil operada pelo Decreto-Lei n.º 59/2004, de 19 de Março).
Também aqui a obrigação de interpretar as normas nacionais, em concreto, o artigo 505.º do Código Civil, em conformidade com as Directivas Automóveis e com a jurisprudência que o TJUE tem desenvolvido em torno da protecção do lesado de um sinistro automóvel, em especial, dos peões, enquanto vítimas de uma colisão com um automóvel (ainda que tenha concorrido com culpa para tal colisão), bem como a obrigatoriedade de o “juiz nacional” assegurar o efeito útil daquelas Directivas, levam-nos à conclusão de que a única interpretação do artigo 505.º do Código Civil que se mostra conforme ao Direito da União Europeia é a tese, pugnada, entre outros, por Vaz Serra, Calvão da Silva, Brandão Proença e Sinde Monteiro, de que a responsabilidade do detentor pelo risco do veículo concorre com a culpa do lesado.
A verificação da dita conformidade impõe-se a este Tribunal por força do princípio da lealdade europeia, de acordo com o qual os Estados-Membros estão obrigados a adoptar todas as medidas necessárias ao cumprimento dos objectivos dos Tratados e a não adoptar medidas que ponham em causa tais objectivos.
A partir deste princípio da lealdade, consagrado, actualmente, no artigo 4.º n.º 3 do Tratado da União Europeia, o TJUE “… decompôs uma série de outros princípios que densificam a lealdade e revelam-se indispensáveis à própria sobrevivência do sistema federativo europeu”, destacando-se, no que para o caso importa, o princípio do Primado do Direito da União Europeia que implica a não aplicação do direito nacional incompatível com o Direito da União e a obrigação dos Estados-Membros fazerem respeitar o Direito da União, suprimindo ou reparando as consequências de um acto nacional contrário ao Direito da União (cfr. acórdãos do TJUE de 15 de Julho de 1963, Costa Enel, proc. 6/64 e de 09 de Março de 1978, Simmenthal, proc. 106/77, ambos in www.curia.europa.eu); o Princípio do Efeito Directo das normas europeias, que autoriza os particulares a invocarem as normas europeias que imponham deveres ou reconheçam direitos de forma suficientemente clara e incondicionada, ainda que inseridas Directivas (que têm como destinatários os Estados-Membros), inclusivamente contra normas nacionais violadoras do Direito da União (cfr. acórdão do TJUE de 5 de Fevereiro de 1963, Van Gend & Loos, proc. 26/62, in www.curia.europa.eu); o Princípio da Efectividade e o Princípio da Equivalência do Direito da União, segundo os quais as autoridades nacionais devem garantir o efeito útil das disposições europeias e assegurar que a protecção das pretensões decorrentes do Direito da União seja assegura de igual forma às pretensões decorrentes do direito nacional (cfr. acórdão do TJUE de 14 de Dezembro de 1995, Peterbroeck, Van Campenhout & Cie SCS, proc. C-312/93, in www.curia.europa.eu); o Princípio da Interpretação e Aplicação Uniformes do Direito da União e ainda o Princípio da Interpretação Conforme, que exige que o intérprete e aplicador do direito nacional, nomeadamente o juiz, devam atribuir às disposições nacionais um sentido conforme com o Direito da União (cfr. acórdão do TJUE de 10 de Abril de 1984, Von Colson e Kamann, proc. 14/83 e acórdão do TJUE de 13 de Novembro de 1990, Marleasing, proc. C-106/89, ambos in www.curia.europa.eu); e finalmente, o Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva que postula que a efectividade do Direito da União depende da garantia judicial das suas normas (cfr. acórdão do TJUE de 19 de Maio de 1990, Factortame, proc. C-213/89, in www.curia.europa.eu) (cfr., sobre esta matéria, SILVEIRA, Alessandra, Princípios de Direito da União Europeia, 2ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2011).
É à luz destes princípios de Direito da União que iremos apreciar as normas relativas ao seguro de responsabilidade civil automóvel.
Feitos estes considerandos, no actual panorama legislativo da União Europeia, existem, no domínio do seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis cinco directivas (toda a legislação de Direito da União citada pode ser encontrada in http://eur-lex.europa.eu/pt/index.htm):
1. A Directiva 72/166/CEE, do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade (Primeira Directiva sobre o seguro Automóvel);
2. A Directiva 84/5/CEE, do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis (Segunda Directiva sobre o seguro Automóvel);
3. A Directiva 90/232/CEE, do Conselho, de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis (Terceira Directiva sobre o seguro Automóvel);
4. A Directiva 2000/26/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Maio de 2000, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis e que altera as Directivas 73/239/CEE e 88/357/CEE, do Conselho (Quarta Directiva sobre o seguro Automóvel);
5. A Directiva 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio de 2005, que altera as Directivas 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE, 90/32/CEE, do Conselho e a Directiva 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis (Quinta Directiva sobre o seguro Automóvel).
Desde sempre foi pacificamente aceite que a finalidade básica das directivas consiste em harmonizar o quadro jurídico atinente ao estatuto do seguro obrigatório, não o da responsabilidade civil.
(…)
Mas a realidade trouxe até aos tribunais situações em que se detetou um conflito entre as regras ou o espírito das directivas, progressivamente mais ambiciosos quanto aos objectivos de harmonização, e o direito da responsabilidade de diferentes países.
Daí que tenha existido a necessidade de uma tomada de posição, vindo a ser desenvolvido um princípio interpretativo que, em teoria, nunca veio a ser posto em causa.
Este princípio (…) exprime a ideia de que, embora os Estados membros sejam livres de estabelecer o regime jurídico que considerem mais apropriado em matéria de nascimento e quanto à regulação de uma obrigação de indemnização, eles têm de exercer as suas competências de um modo que não retire efeito útil à legislação da União Europeia, isto é, que permita afeiçoar a realidade aos objectivos estabelecidos em comum, mesmo que, pontualmente, aqui e ali, se constatem conflitos de competência com o direito interno da responsabilidade civil.” (cfr. SINDE MONTEIRO, ob. cit., pág. 98).
Desta directriz interpretativa, foi desenvolvida, pelo TJUE, uma “regra jurídica de criação jurisprudencial”: «de acordo com esta regra, o efeito útil da legislação comunitária resultaria esvaziado se “a responsabilidade do próprio lesado pelos danos sofridos (…) tivesse por consequência excluir automaticamente ou limitar de modo desproporcionado o seu direito a ser indemnizado” [o autor cita o acórdão do TJUE de 14 de Setembro de 2000, proc. C-348/98, Mendes Ferreira, n.º 37, in www.curia.europa.eu]. / Isto não tem de produzir o efeito de afastar completamente a aplicação das regras da culpa do lesado. Apenas visa impedir que por considerações ligadas ao direito da responsabilidade certas categorias de lesados fiquem, digamos, “à partida”, privadas da protecção do seguro. / Daí que sempre se tenha afirmado que a redução da indemnização tem que ser possível em “circunstâncias excepcionais”, “com base numa apreciação individual” da conduta do lesado.» (cfr. SINDE MONTEIRO, ob. cit., pág. 99).
Esta ideia de protecção da vítima encontra-se, de resto, em várias ordens jurídicas dos Estados-Membros da União Europeia. «Esta protecção impõe-se nas sociedades modernas, uma vez que os acidentes com veículos constituem uma das principais causas de morte e lesões corporais graves. Cada vez mais as ordens jurídicas tendem a desvalorizar a culpa como fundamento do direito da indemnização pelos danos decorrentes dos acidentes de viação, encontrando a razão de ser desse direito na própria circulação dos veículos (…). Um exemplo paradigmático desta perspectiva é, na ordem jurídica francesa, a chamada Lei Badinter de 5/07/1985, segundo a qual, passageiros, pedestres e ciclistas são sempre compensados pelos seus ferimentos, ninguém podendo opor-lhes a sua própria culpa, excepto se o acidente se dever exclusivamente ao seu comportamento, que deve ser particularmente grave e indesculpável (“faute inexcusable”) ou se tiverem procurado voluntariamente os danos sofridos. E mais, a culpa grave do lesado nem sequer é relevante nos casos em que os acidentados tenham menos de 16 anos ou mais de 70, ou sejam titulares de uma incapacidade de, pelo menos, 80%.» (cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/03/2013, proc. 113/07.8TBMLG.G1, António Sobrinho, in www.dgsi.pt).
A jurisprudência do TJUE, interpretando as normas das Directivas Automóveis (em sede dos processos de reenvio prejudicial) e chamada a pronunciar-se sobre a possibilidade de exclusão da cobertura do seguro obrigatório de responsabilidade civil, tem sido pródiga em casos ilustrativos desta ideia de protecção do lesado, entendendo que, à excepção do caso previsto no artigo 2.º n.º 1 da Segunda Directiva Automóvel, isto é, à excepção dos casos em que os ocupantes do veículo causador do sinistro têm conhecimento de que o automóvel onde circulam é roubado, são inadmissíveis disposições legais ou contratuais que excluam, de forma automática, em determinadas circunstâncias, a obrigação de ressarcir o lesado pela seguradora (jurisprudência que, como supra se disse, permitiu a construção da “regra jurídica jurisprudencial” a que se refere o Prof. Sinde Monteiro). Vejam-se, a mero título de exemplo, o acórdão do TJUE de 28 de Março de 1996, proc. C-129/94, Ruiz Bernáldez; o acórdão do TJUE de 14 de Setembro de 2000, proc. C-348/98, Mundial Confiança; o acórdão do TJUE de 30 de Junho de 2005, proc. C-537/03, Katja Candolin; o acórdão do TJUE de 19 de Abril de 2007, proc. C-356/05, Elaine Farrell, todos in www.curia.europa.eu.
Percebendo-se o aparecimento e o desenvolvimento dos referidos “princípio interpretativo” e “regra jurídica jurisprudencial”, de que forma é que os mesmos se repercutem num caso, como o dos presentes autos, em que se discute a obrigação da seguradora, com base na responsabilidade civil pelo risco do veículo segurado, ter que indemnizar um peão que, com a sua conduta, contribuiu para o dano por si sofrido?
No fundo, importa determinar se o preceituado no artigo 505.º do Código Civil (ou melhor, a interpretação tradicional daquele preceito que sustenta a exclusão da responsabilidade civil pelo risco em caso de concorrência com a culpa do lesado) é compatível com as Directivas Automóveis do seguro obrigatório, interpretadas no sentido que foi desenvolvido pelo TJUE, na jurisprudência citada.
É que, aquele normativo, ao excluir a responsabilidade pelo risco nos casos em que o acidente resulte de conduta do lesado, exclui também, in casu, a responsabilidade que se transferiu para a companhia de seguros (a demandada civil quer permanece nos autos) e, dessa forma, exclui a obrigação desta de indemnizar os demandantes civis, sendo certo que estes não podem deixar de se considerar lesados, atenta a definição dada pelo artigo 1.º da Primeira Directiva Automóvel, nem o peão pode deixar de ser considerado “a parte mais vulnerável num acidente”, atento o considerando (16) da Quinta Directiva Automóvel.
Ora, a esta questão o TJUE já deu resposta, sendo que a existência de jurisprudência interpretativa do Direito da União já anteriormente fornecida pelo TJUE dispensa este Tribunal da obrigação de suscitar, em sede de reenvio para aquela instituição da União, a questão prejudicial interpretativa (neste sentido, cfr. o acórdão do TJUE de 27 de Março de 1963, proc. apensos 28/62, 29/62 e 30/62, Da Costa, in www.curia.europa.eu. Cfr., ainda, o acórdão do TJUE de 6 de Outubro de 1982, proc. 283/81, Cilfit, in www.curia.europa.eu, onde o TJUE precisou a doutrina do acto claro).
Assim, no acórdão do TJUE de 9 de Junho de 2011, proc. C-409/09, Ambrósio Lavrador, in www.curia.europa.eu (o acórdão teve origem num reenvio prejudicial do Supremo Tribunal de Justiça), o TJUE concluiu que “contrariamente aos contextos jurídicos que deram origem aos acórdãos (…) Candolin e o. e Farrell, a mencionada legislação não tem assim por efeito, no caso de a vítima ter contribuído para o seu próprio dano, excluir automaticamente ou limitar de modo desproporcionado o seu direito, no caso concreto, o direito dos pais de um menor que faleceu, quando circulava numa bicicleta, em resultado de uma colisão com um veículo automóvel, de ser indemnizada pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil do condutor do veículo envolvido no acidente. Não afecta assim a garantia, prevista pelo direito da União, de que a responsabilidade civil, determinada segundo o direito nacional aplicável, seja coberta por um seguro conforme com as três directivas acima mencionadas” (cfr. considerando n.º 34 do acórdão do TJUE em análise).
Com esta fundamentação, decidiu o TJUE que “a Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais no domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano” (sublinhado nosso – para uma análise mais detalhada da posição do TJUE neste caso, cfr. SILVEIRA, Alessandra e FERNANDES, Sophie Perez, O seguro automóvel. Considerações sobre a posição do Tribunal de Justiça da União Europeia em sede de reenvio prejudicial (a propósito do acórdão Ambrósio Lavrador de 2011), in Cadernos de Direito Privado”, n.º 34, Abril/Junho de 2011, págs. 3 a 19).
De igual forma decidiu o TJUE em, pelo menos, mais três reenvios prejudiciais que lhe foram apresentados. Assim foi no âmbito dos reenvios prejudiciais submetidos ao TJUE, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, nos casos Domingos Freitas (cfr. despacho do TJUE de 21/03/2013, proc. C-96/12, Domingos Freitas, in www.dgsi.pt) e Jonathan Rodrigues Esteves (cfr. despacho do TJUE de 21/03/2013, proc. C-486/11, Jonathan Rodrigues Esteves, in www.dgsi.pt) e, pelo Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, no caso Serafim Gomes Ferreira (cfr. despacho do TJUE de 21/03/2013, proc. C-362/11, Serafim Gomes Ferreira, in www.curia.europa.eu).
Cabe, então, agora, extrair conclusões daquela decisão.
Perante as duas leituras que a doutrina e a jurisprudência fazem do artigo 505.º do Código Civil (uma, a tradicional e maioritária, no sentido de afastar a responsabilidade pelo risco do detentor/proprietário do veículo – e, reflexamente, a responsabilidade da seguradora – em casos de culpa do lesado, outra, no sentido de admitir a concorrência do risco do veículo com a culpa do lesado para a produção do acidente), importa perceber se alguma destas leituras priva ou não o Direito da União Europeia, mormente as Directivas Automóveis, do seu efeito útil. Mais concretamente, importa perceber se não estamos perante uma (interpretação de uma) norma que, definida com base em critério gerais e abstractos, recusa “automaticamente ou limita de modo desproporcionado” o direito da vítima (in casu e em face do falecimento do peão, os seus herdeiros) a ser indemnizada pelo seguro automóvel obrigatório ou, de outro modo, se alguma daquelas leituras “permitem excluir ou limitar o direito da vítima [leia-se, lesados] de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano”.
Ora, postas as coisas nestes termos, parece indiscutível que o artigo 505.º do Código Civil, interpretado no sentido de que a culpa do lesado interrompe o nexo causal do risco do veículo, isto é, interpretado no sentido de que não admite a concorrência entre o risco criado pela circulação automóvel e a culpa do lesado, tem como consequência, com base numa apreciação normativa de cariz geral e abstracto, a exclusão automática de qualquer indemnização aos lesados (neste sentido, com uma apreciação crítica da jurisprudência do TJUE, nomeadamente por assentar em pressupostos jurídicos errados relativos à legislação nacional, o que redundou na formulação da decisão do TJUE pela negativa, isto é, que redundou na decisão de que «o Direito da União “não se opõe” às disposições nacionais», cfr. SINDE MONTEIRO, ob. cit., págs. 105 a 109).
É, assim, à luz destes argumentos que entendemos, procedendo a uma interpretação conforme com o Direito da União Europeia (Directivas Automóveis e jurisprudência do TJUE) das normas nacionais sobre a responsabilidade civil objectiva, que o artigo 505.º do Código Civil consagra a possibilidade de concurso do risco do condutor do veículo com a conduta culposa do lesado e que a responsabilidade pelo risco do detentor do veículo segurado (e, consequentemente, a responsabilidade da seguradora) só é excluída, como entende Sinde Monteiro (in, ob. cit., pág. 127), quando o acidente for exclusivamente imputável a falta grave e indesculpável do lesado, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
De resto, partindo da ratio subjacente à consagração legal do instituto da responsabilidade civil pelo risco do veículo, constante do artigo 503.º n.º 1 do Código Civil, parece-nos que esta será a solução que permite alcançar, com mais sucesso, a “solução justa” do caso concreto, numa altura em que, como supra já se abordou, a responsabilidade civil resultante de acidentes de viação, por força da exigência de um seguro automóvel obrigatório, se “socializou”, deixando os lesantes de responder com o seu património. Como, impressivamente, refere Sinde Monteiro (in ob. cit, págs. 125 e 126), «A ideia básica é a de que a circulação de veículos automóveis, massas em movimento que não podem ser detidas instantaneamente (…) introduz na sociedade um risco tão elevado de acidentes que deve ser visto como um verdadeiro risco social, o que justifica a obrigação do seguro e a criação de fundos de garantia. / Esta circulação, o facto de as pessoas serem obrigadas a conviver de perto com as máquinas em movimento, no seu dia a dia ao longo da vida, obriga a tão grande número de precauções acrescidas “que se tornam desculpáveis negligências ou culpas leves dos lesados e se compreende que apenas a culpa grave (ou até muito grave ou extremamente grave) deste seja considerada bastante para afastar a responsabilidade”. / A contribuição do risco para os acidentes reside na própria circulação dos veículos, de massas que não podem ser instantaneamente detidas (energia cinética). / Não é necessário que o condutor do veículo tenha praticado qualquer acto que aumente o risco de acidente. (…) Distrações destas são estatisticamente inevitáveis, é algo que seguramente acontece, mas que não aconteceria sem a circulação das máquinas a motor. Abstrair do risco gerado na sociedade por essas máquinas para olhar apenas para a contribuição humana por parte do lesado, significa, numa visão realista, desequilibrar os pratos da balança. / Decerto não [é] a única causa. Há uma contribuição do lesado. Mas isso não anula o risco permanente e constante implicado pela convivência com máquinas que, mesmo tripuladas por gente competente, não se podem deter instantaneamente. (…) … o puro problema de justiça comutativa começa a ser um modo irrealista de focar a realidade. A responsabilidade, mais do que pela sua incidência (da indemnização) sobre pessoas concretas, passa a incidir sobre sectores sociais, passamos a poder, também aqui, falar em “esferas de risco”» (sublinhado nosso).
Regressando ao caso sub judice, importa, agora, indagar se, para além da culpa do peão, terá contribuído também para a eclosão do sinistro o risco inerente ao veículo automóvel segurado na demandada civil.
Analisando a matéria de facto provada, parece-nos que se impõe responder afirmativamente a esta questão: dos factos considerados provados, não é possível concluir que o acidente de viação em causa não é única ou exclusivamente imputável ao peão a título de “culpa grave ou indesculpável”, mas apenas e quando muito, a título de negligência, por violação do dever geral de cuidado no cumprimento das normas rodoviárias, nomeadamente das que se referem ao comportamento que aqueles peões devem ter na circulação rodoviária.
Em causa está um acidente com intervenção de um peão e, de outro lado, de um veículo automóvel ligeiro de passageiros, cuja perigosidade/ risco decorre, em abstracto, da sua própria natureza, das suas dimensões, do seu peso, do seu funcionamento mecânico, da velocidade que pode atingir, da maior dificuldade em manobrar e, em concreto, da circunstância de circular numa via aberta a veículos não motorizados e a peões, todos eles entendidos como “a parte mais vulnerável num acidente”.
Ora, considerando que o embate no peão se dá com a frente lateral esquerda do veículo segurado na demandada civil, que o peão LL foi transportado na frente do veículo, sobre o capot do motor, em mais de 27 metros, findos os quais, após a paragem do veículo, foi projectado para a frente em cerca de três metros, parece indiscutível que a velocidade imprimida ao veículo (independentemente de se encontrar dentro dos limites legais e de ser ajustada às condições da via), a estrutura física, as dimensões e a largura do veículo contribuíram para o desfecho do embate.
Tais factos são, por si só, potenciadores do risco próprio do veículo segurado. Na verdade, dentro dos riscos próprios do veículo, a que se refere o artigo 503.º n.º 1 do Código Civil, cabem quer os riscos provenientes da máquina propriamente dita, quer os riscos inerentes ao condutor do veículo (neste sentido, cfr. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 7ª edição, Almedina, pág. 664). Ora, no caso concreto, claramente os factores enunciados inserem-se nos primeiros, isto é, nos riscos provenientes do veículo “stricto sensu” e daí que se impõe concluir que, para a ocorrência do acidente em apreciação nos presentes autos, concorreram, por um lado, o peão LL (violador das regras do direito estradal), mas também, indiscutivelmente, os riscos próprios do veículo com a matrícula ...-OX, segurado na demandada civil BB, S.A., o que, de acordo com a interpretação do preceituado no artigo 505.º acima postulada, reclama a subsunção deste concurso de causas do dano à solução do artigo 570.º do Código Civil.
Emergindo assim um direito dos assistentes, lesados, a serem indemnizados, cumpre apreciar os danos alegados por forma a apurar o respectivo quantitativo.
Os assistentes/demandantes civis começam por peticionar a quantia de 65.000,00 Euros, a título de danos não patrimoniais sofridos pelo próprio peão LL, nomeadamente pelas dores físicas sofridas e pela angústia e amargura que sentiu antes de falecer.
Os mesmos não lograram demonstrar, porém, tais danos não patrimoniais, pelo que os mesmos não poderão ser computados em qualquer indemnização que venha a ser atribuída aos assistentes.
Naturalmente que a própria morte é, em si mesmo, um dano não patrimonial, passível de ser indemnizável nos termos do artigo 496.º n.ºs 1 e 2 do Código Civil. E, sobre tal dano, sumariou-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/03/2015, proc. 4578-10.2TBALM.L2-6, Vítor Amaral, in www.dgsi.pt:
- Em caso de morte do lesado, do disposto no art.º 496.º, n.ºs 2 e 3, do CCiv., resultam três danos não patrimoniais indemnizáveis: o dano da perda do direito à vida (ou dano da morte); o dano sofrido pela vítima antes de morrer; e o dano sofrido pelos familiares em consequência da morte da vítima.
- É conhecida a querela doutrinal e jurisprudencial quanto à titularidade do direito indemnizatório pela perda do direito à vida, havendo quem entenda que o direito à indemnização se constitui no património da vítima/falecido, sendo depois encabeçado pelos respectivos herdeiros mediante transmissão por morte (sucessão hereditária).
- Porém, a jurisprudência dominante do STJ vem entendendo, em contrário, que a perda do direito à vida, já não podendo integrar-se no património da vítima, não constitui um dano cuja reparação se transmita aos respectivos herdeiros.
- Constitui, em vez disso e com o que se concorda, um dano gerador de direito indemnizatório que cabe, por direito próprio, aos familiares legalmente indicados, nos termos e segundo a ordem do disposto no n.º 2 do art.º 496.º do CCiv..
(…)”.
No caso concreto, o peão vitimado era solteiro e não tinha descendentes, sendo os demandantes civis/assistentes irmãos do mesmo.
Assim sendo, considerando a forma como tal dano morte se produziu, a jurisprudência que se vem desenvolvendo sobre o ressarcimento do dano morte em Portugal e o disposto no artigo 496.º n.º 4 do Código Civil, num juízo de equidade a desenvolver nos termos do n.º 3 do artigo 566.º do mesmo diploma, reputa-se adequado fixar uma compensação aos assistentes demandantes civis, pelo dano morte, em 100.000,00 Euros.
Peticionam, em segundo lugar, os assistentes CC, DD, FF, GG, HH e JJ, uma indemnização total de 45.000,00 Euros (7.500,00 Euros cada) pelos demais danos não patrimoniais por si sofridos.
De igual modo, pedem os demandantes EE e II, em terceiro lugar, uma indemnização de 30.000,00 Euros (15.000,00 Euros cada), acrescida de juros legais, à taxa legal, desde a notificação do PIC até efectivo e integral pagamento, a título de danos não patrimoniais sofridos.
Quanto a estes pedidos, da matéria de facto dada como provada, resultou que os primeiros demandantes sofreram desgosto pela perda do irmão e que sempre recordarão esta morte com profunda tristeza.
Resultou também demonstrado que os segundos demandantes, para além destes danos, também ficaram angustiados, afligidos e atormentados.
Ora, salvo melhor opinião, os danos não patrimoniais aqui peticionados pelos demandantes civis radicam na própria morte da vítima do sinistro ocorrido e, nesse sentido, atento o supra exposto e o preceituado no n.º 4 do artigo 496.º do Código Civil, tais danos não patrimoniais já se encontram abrangidos no quantum indemnizatório acima determinado, pelo que, nesta parte, improcedem os pedidos formulados pelos assistentes, sob pena de se proceder a uma duplicação ressarcitória dos demandantes.
Peticiona, em quarto lugar, a demandante II, uma indemnização, na quantia de 5.000,00 Euros, acrescida de juros legais, à taxa legal, desde a notificação do PIC até efectivo e integral pagamento, a título de danos patrimoniais sofridos pela demandante, consistentes nas contribuições que lhe eram dadas pelo falecido.
Relativamente a tal pedido, a demandante não logrou demonstrar os factos susceptíveis de o suportar, pelo que, sem necessidade de mais considerações, este valor será também de desconsiderar no valor indemnizatória a fixar.
Peticionam, finalmente os demandantes a quantia de 2.150,00 Euros, acrescida de juros legais, à taxa legal, desde a notificação do PIC até efectivo e integral pagamento, a título de danos patrimoniais sofridos, os quais são relativos ao funeral do falecido.
Nesta parte, resultou demonstrado, com relevância para o caso, que, com o funeral de LL, os assistentes gastaram 1.750,00 Euros, bem como a quantia de 253,95 Euros no fato do defunto, num total de 2003,95 Euros.
A este valor haverá que descontar a quantia de 1.257,66 Euros que o assistente EE recebeu a título de reembolsos do Centro Nacional de Pensões (também sob pena de duplicação indemnizatória).
Assim, a título de danos patrimoniais, os assistentes têm direito a uma indemnização no valor global de 746,29 Euros.
O valor global dos danos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelos lesados computam-se, assim, em 100.746,29 Euros (cem mil setecentos e quarenta e seis euros e vinte e nove cêntimos).
Importa, porém, neste ponto, fazer operar o critério de repartição do dano, previsto no artigo 570.º do Código Civil, face ao concurso da responsabilidade pelo risco do veículo com a culpa do lesado.
Assim, não é de ignorar que, no concurso de causas que esteve na origem do sinistro, a actuação culposa do peão teve um peso significativo na produção do dano, considerada o modo grosseiro como inobservou as regras de trânsito que foram, in casu, violadas, o que justifica, por si só, uma redução significativa da indemnização.
Por outro lado, não pode ser deixada de considerar a própria condição da vítima (o peão), sabendo-se que o nosso ordenamento jurídico não exige a esta classe de utentes da via rodoviária qualquer tipo de formação ou preparação para a circulação rodoviária.
Também não se pode desconsiderar a própria dinâmica do acidente e o contributo inegável que a dimensão do veículo, a velocidade que se lhe imprimiu e as maiores dificuldades na execução das manobras inerente às características mecânicas do próprio veículo influíram na produção do acidente.
Vale isto por dizer que, a nosso ver, a indemnização acima aludida deverá ser objecto de uma redução de 60% do seu valor, correspondente à quota de responsabilidade atribuída ao peão.
Entende-se, por isso, no quadro do disposto no n.º 1 do artigo 570.º do Código Civil, fixar a indemnização a atribuir aos assistentes demandantes civis em 40.298,40 Euros (quarenta mil duzentos e noventa e oito euros e quarenta cêntimos).
Pelo pagamento de tal indemnização é responsável a demandada civil, BB, S.A., para a qual se achava transferida, pelo proprietário do veículo com a matrícula ...-OX, por contrato de seguro titulado pela apólice n.º 9001320452, válida à data do sinistro, a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação com intervenção desse veículo.
A este valor acrescem juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a citação até efectivo e integral pagamento, nos termos do disposto nos artigos 559.º, 804.º, 805.º n.º 1 e 806.º n.ºs 1 e 2 do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
*
No que respeita ao pedido de indemnização civil apresentado pelo Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Nacional de Pensões, o mesmo, tendo sido deduzido no âmbito do disposto no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22 de Fevereiro, corresponde ao reembolso das despesas de funeral suportadas por este Instituto.
Assim, considerando o disposto no artigo 1.º daquele diploma, que resultou demonstrado que o Centro Nacional de Pensões reembolsou o assistente EE em 1.257,66 Euros e todas as considerações supra tecidas quanto aos demais demandantes civis, dúvidas não ficam da procedência deste pedido de indemnização civil.
Pelo pagamento desta quantia é, igualmente, responsável a demandada civil, BB, S.A., por força do mencionado contrato de seguro.
Àquele valor acrescerão os respectivos juros de mora à taxa legal em vigor, a contar da notificação dos pedidos de indemnização civil até efectivo e integral pagamento, nos termos do n.º 2 do artigo 805.º do Código Civil.»
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Por sua vez, o Tribunal da Relação fundamentou:
“- a) A demandada BB, entende que na apreciação do pedido cível, o Tribunal terá feito errada aplicação do artº 505º do Código Civil, por ter seguido a interpretação que tem vindo a ser seguida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, pois só há lugar à aplicação do artº 505º quando haja culpa do condutor e não mero risco.
Na sua globalidade, a fundamentação agora transcrita, sendo de algum modo inovadora, sustenta-se na plena adesão à jurisprudência da União, em ruptura com as ainda largamente maioritárias doutrinas e jurisprudência nacionais.
Com efeito, todo o raciocínio e decisão de direito são feitos com apoio da jurisprudência maioritária comunitária e da pouca nacional que a acompanha.
Contudo, e pese embora o brilhantismo da argumentação e da bondade intrínseca de tal orientação, temos por certo que de jure constituto o direito nacional não se opõe directamente às Directivas invocadas, podendo, e devendo, continuar a entender-se que na interpretação do artº 505º não cabe a concorrência entre a culpa (negligência) do lesado e o mero risco da circulação automóvel do lesante.
Neste sentido, confiram-se, entre muitos outros, os seguintes acórdãos do S.T.J. (negrito nosso):
- Revista n.º 2389/03.0TBPRD.P1.S1 - 2.ª Secção, de 15-04-2010:
I - A lei, nos arts. 102.º, n.ºs 1 e 2, e 104.º, n.º 1, do CEst, aprovado pelo DL n.º 114/94, de 03-05, quis conferir às faixas de rodagem a finalidade de circulação de veículos, impondo particulares reservas e cautelas aos peões quando as invadam, quer para as atravessar, quer por outra razão qualquer, tudo para afastar o perigo de atropelamentos.
II - Encontrando-se a sinistrada em cima de um degrau existente na entrada do centro de Catequese – de onde havia saído –, não visível para o réu que circulava no seu velocípede pela faixa de rodagem, e invadindo a mesma repentinamente quando aquele estava a passar em frente à dita entrada, sem que tivesse possibilidade de qualquer manobra de recurso, deve considerar-se a lesada foi a responsável pelo seu atropelamento.
III - O facto de a sinistrada, à data do acidente, ter 11 anos de idade, não afasta a culpa na produção do evento danoso: tal idade confere-lhe um discernimento suficiente para lidar com situações vulgares de relativo perigo rodoviário, como a presente, que se reveste de uma simplicidade e banalidade enormes: acabada a catequese e alcançados os degraus de saída, deparava-se-lhe a via de trânsito e, com os seus 11 anos, já podia e devia prever o que veio a acontecer.
IV - Perante este quadro factual de extrema simplicidade, não se justifica a minoração da relevância da culpa da menor em ordem a motivar a inclusão, com sequência indemnizatória, do risco próprio da circulação do velocípede.
- Revista n.º 5109/03.6TBSTS.P1.S1 - 6.ª Secção, de 01-02-2011:
I - Não pode ser objecto de censura pelo STJ a alteração pela Relação das respostas a dois quesitos da base instrutória, na sequência de impugnação efectuada pela recorrente no recurso de apelação, se tal alteração foi feita de forma fundamentada no acórdão recorrido, após audição dos respectivos depoimentos testemunhais e análise crítica da prova a que a Relação procedeu.
II - O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, nos termos do art. 722.º, n.º 2, do CPC, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
III - Provado que o peão procedeu à travessia da estrada, a pé, sem atender ao trânsito do veículo automóvel, cujas luzes eram visíveis a uma distância superior a 30 m, apresentando uma taxa de álcool no sangue 2,48 g/l e sem se certificar que o podia fazer sem perigo de acidente, tudo em manifesta infracção ao art. 101.º, n.º 1, do CEst, é de entender que o atropelamento é imputável a culpa exclusiva da própria vítima e que apenas se ficou a dever à conduta deste.
IV - É certo que se provou que o condutor do veículo não avistou o peão antes do embate e que não abrandou a sua marcha, nem tentou travar, mas isto não permite atribuir-lhe, sem mais, qualquer parcela de culpa, assente que circulava a velocidade não inferior a 40/50 km/h, com as luzes acesas na posição de médios, que o acidente ocorreu de noite e chovia com intensidade, que o peão não era portador de qualquer dispositivo de iluminação ou reflector e envergava um guarda-chuva preto, o que tornava ainda mais difícil a percepção da sua presença por parte de qualquer condutor normal colocado naquela situação, assim não podendo afirmar-se que o peão era visível para o condutor ao proceder à travessia da estrada, da esquerda para a direita, ou que pudesse ser avistado, com antecedência, a tempo de o condutor poder evitar a colisão, não podendo concluir-se que o condutor do veículo tinha a possibilidade de avistar o peão, só não o tendo visto por seguir distraído, nem que seguisse a velocidade excessiva.
V - Exigindo que o condutor possa parar no espaço livre e visível à sua frente, o art. 24.º, n.º 1, al. a), do CEst, apenas quer que o condutor se assegure de que a distância entre ele e qualquer obstáculo visível é suficiente para, em caso se necessidade, fazer parar o veículo, sem ter de contar com obstáculos que lhe surjam inopinadamente.
VI - A regra de que o condutor deve adoptar velocidade que lhe permita fazer parar o veículo no espaço visível à sua frente, pressupõe, obviamente, na sua observância, que não se verifiquem condições anormais ou factos imprevisíveis que alterem de súbito a sua linha de marcha.
VII - Atendendo a que o acidente só ficou a dever-se à conduta do peão, sendo-lhe imputável a título de culpa, e apenas a ele, não pode haver concorrência da responsabilidade objectiva ou pelo risco criado pela circulação do veículo com a culpa do peão.

- Revista n.º 308/2002.P1.S1 - 1.ª Secção, de 10-01-2012:
I - A não demonstração de certo facto da base instrutória (quesito) não autoriza que se tenha por adquirido o seu contrário.
II - A imputação do evento a título de culpa pressupõe, por um lado, a verificação de uma relação de desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado pelo autor do facto e, por outro, a possibilidade de formulação de um juízo de censura na imputação desse facto, impendendo sobre o lesado o ónus da prova desses requisitos, salvo se houver presunção legal – art. 487.º, n.º 1, do CC.
III - Se o evento se ficou a dever à inobservância das regras de prudência pela vítima, impostas perante o perigo normal do atravessamento de uma via destinada ao trânsito de veículos, sendo que, em contraponto, nada se apurou, na matéria de facto, quanto às condições de circulação do veículo ou ao seu condutor, que sugira contribuição, por via dos riscos próprios inerentes à utilização em curso na circunstância, para a ocorrência do embate (atropelamento), resulta que a conduta da vítima se apresenta, ela mesma, só por si, suficiente e adequada à produção do acidente.
IV - Ou seja, o veículo motorizado revela-se, do ponto de vista da sua aptidão geradora de riscos, em termos de causalidade adequada, indiferente ao choque – a não ser sob o (juridicamente indiferente) aspecto puramente naturalístico –, pelo que o acto de imprudente e contraordenacional invasão da faixa de rodagem, no círculo específico de criação de risco conhecido e de verificação previsível, imputável unicamente ao lesado, exclui a responsabilidade objectiva, assente nos perigos ou riscos, de natureza geral, próprios da utilização e circulação da máquina, acolhida no art. 503.º, n.º 1, como previsto no art. 505.º, n.º 1, ambos do CC.
V - Em suma, concluindo-se que o atropelamento ocorreu por facto exclusivamente imputável ao peão, sem que tenha havido qualquer contribuição causal dos riscos próprios do veículo, arredada está a implicação da responsabilidade pelo risco e respectivos efeitos.

- Revista n.º 2997/06.8TBPVZ.P1.S1 - 2.ª Secção, de 19-01-2012:
I - Em matéria de acidentes de viação, a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no art. 505.º do CC – maxime, ser o acidente imputável a facto, culposo ou não, do lesado – exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, a título de risco.
II - O texto do art. 505.º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente, em concreto, for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

- Revista n.º 4249/05.1TBCVCT.G2.S1 - 6.ª Secção, de 15-05-2012
I - Os arts. 503.º, n.º 1, 504.º, n.º 1, 505.º e 570.º do CC, quando interpretados no sentido de que a existência de culpa exclusiva ou parcial da vítima pode fundamentar a exclusão ou redução da indemnização, por lesões sofridas em consequência de acidente de viação, não colide com o Direito Comunitário, particularmente com os n.ºs 3.°, n.° 1, da Primeira Directiva (72/166/CEE), 2.°, n.° 1, da Segunda Directiva (84/5/CEE) e 1.°-A da Terceira Directiva (90/232/CEE), introduzido pelo art. 4.° da Quinta Directiva (2005/14/CE), todas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de automóveis, por competir à legislação do Estado-membro regular, no seu direito interno, o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos automóveis.
II - O Acórdão do TJUE, de 09-06-2011, proferido no Processo em que J... M...A... L..., M... C... O... F... B..., litigavam contra a Companhia de Seguros ... S.A., afirmou na sua decisão (Terceira Secção), onde se abordava a problemática assim sumariada – “Seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis – Directivas 72/166/CEE, 84/5/CEE e 90/232/CEE – Direito a indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis – Requisitos de redução – Contribuição da vítima para o seu próprio dano – Responsabilidade pelo risco – Disposições aplicáveis ao terceiro menor vítima de acidente”, que: “A Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, e 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano”.

- Revista n.º 1272/04.7TBGDM.P1.S1 - 2.ª Secção, de 17-05-2012:
I - O atropelamento de um peão – menor de 4 anos de idade – que inopinadamente se atravessou à frente de um veículo que, numa localidade, seguia na sua faixa de rodagem, a uma velocidade não superior a 20 km/h, sem que o condutor o pudesse prever, é de imputar em exclusivo ao lesado, tornando irrelevante o risco genérico decorrente do facto de o veículo se encontrar a circular numa via pública.
II - Uma interpretação do art. 505.º do CC que admita a concorrência entre a responsabilidade pelo risco inerente ao veículo automóvel e a imputação do acidente ao lesado, sujeitando a quantificação da indemnização à ponderação prevista no art. 570.º do CC, fica necessariamente afastada quando o acidente seja exclusivamente devido ao sinistrado, sem qualquer contribuição causalmente adequada dos riscos próprios do veículo.
III - Em tais circunstâncias, não é imposta pelas Directivas Europeias em matéria de seguro automóvel a responsabilidade da seguradora com quem o proprietário e condutor do veículo outorgou contrato de seguro obrigatório, já que, como decidiu o Tribunal de Justiça, no acórdão de 09-06-11, no âmbito do processo de reenvio prejudicial n.º C-409/09, tais Directivas “devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano”.

No caso em apreço, sendo a matéria de facto fixada no sentido de que a ocorrência se ficou a dever a culpa do lesado, sendo a participação do lesante meramente naturalística, fica necessariamente afastada a responsabilidade deste, pois o acidente se ficou a dever exclusivamente à vítima, sem qualquer contribuição causalmente adequada dos riscos próprios do veículo.
Deste modo, e na procedência de tal pretensão da recorrente seguradora, resta decidir, sem mais, pela sua absolvição do pedido de indemnização civil formulado pelos assistentes e do pedido de reembolso formulado pelo Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Nacional de Pensões, ficando prejudicada a apreciação das demais questões por ela suscitadas.
E com esta procedência, improcedentes têm de ser toda a e cada uma das questões suscitadas pela assistente, tanto mais que a pretensa culpa do condutor, como acima se viu, ficou afastada com a manutenção integral da matéria de facto fixada pela 1ª instância.”
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O artº 8º da nossa Constituição Política dispõe no nº 4, que “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático. “
Ora, como resulta do acórdão deste Supremo, de 11-07-2013, proc. nº 97/05.7TBPVL.G2.S1, 6ª SECÇÃO, com o qual se concorda,:
Algumas decisões, sobretudo deste Supremo Tribunal, têm vindo a afastar-se do entendimento tradicional e largamente maioritário de que havendo culpa do lesado, o risco próprio do veículo interveniente no acidente, previsto no art. 503.º, n.º 1, do CC, fica excluído, nos termos do art. 505.º do CC, ou seja, não há lugar a concorrência de culpa e responsabilidade objectiva pelo risco.
Também entendemos que, em tese, as duas culpas não podem concorrer, a menos que se trate de culpa leve ou levíssima da vítima.
Os arts. 503.º, n.º 1, 504.º, n.º 1, 505.º e 570.º do CC, quando interpretados no sentido de que a existência de culpa exclusiva ou parcial da vítima pode fundamentar a exclusão ou redução da indemnização, por lesões sofridas em consequência de acidente de viação, não colidem com o Direito Comunitário, particularmente com os arts. 3.º, n.° 1, da Primeira Directiva (72/166/CEE), 2.°, n.° 1, da Segunda Directiva (84/5/CEE) e 1.°-A da Terceira Directiva (90/232/CEE), introduzido pelo art. 4.° da Quinta Directiva (2005/14/CE), todas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de automóveis, por competir à legislação do Estado-membro regular, no seu direito interno, o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos automóveis.
Na responsabilidade objectiva, importa ponderar se um concreto dano pode ou não ser incluído no risco de actuação de alguém, ou de alguma actividade, por se impor a consideração de que quem colhe vantagem de um exercício ou de uma actividade que comporta riscos deve suportar a desvantagem dos danos que essa actuação causa, assim, acolhendo um princípio de justiça distributiva ubi commoda ibi incommoda.
A responsabilidade objectiva não prescinde da consideração de uma actividade que para ser perigosa deve ser apta a causar danos mesmo que não haja culpa, importando que esse dano se inscreva, senão exclusivamente, pelo menos em larga medida, no círculo de actividade geradora do risco, no caso, nos riscos próprios do veículo, esteja ou não em circulação, não se prescindindo do nexo de causalidade entre o resultado danoso e a sua causa reportada à actividade que implica o risco.
De há muito que a jurisprudência considerou não ser actividade perigosa a circulação automóvel, conforme Assento n.º 1/80, do STJ, de 21-11-1979, nos termos do qual “O disposto no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre”.
Em caso de contribuição exclusiva de um peão, não pode considerar-se que o veículo envolvido no sinistro, em si mesmo, aportou um risco inerente à sua circulação concorrente com a actuação do lesado, o que seria impor um gravame injustificado atendendo a que a lei, no art. 503.º, n.º 1, do CC, já consagra a responsabilidade objectiva no domínio da circulação rodoviária.
Sendo de atribuir o acidente exclusivamente a actuação culposa da vítima, não concorrendo para a respectiva eclosão, em termos de causalidade adequada, o risco inerente à circulação do veículo envolvido no acidente, porque a potencialidade de perigo que encerra a sua circulação foi alheia ao sinistro, não se pode considerar a concorrência de um risco causalmente adequado, inerente à circulação do veículo e resultado danoso sofrido por culpa exclusiva da vítima.

Com efeito como já dava conta o acórdão deste Supremo, de 15-05-2012, da mesma 6ª SECÇÃO, proc. nº 4249/05.1TBVCT.G2.S1
Os artigos 503º, nº1, 504º, nº1, 505º e 570º do Código Civil, quando interpretados no sentido de que a existência de culpa exclusiva ou parcial da vítima pode fundamentar a exclusão ou redução da indemnização, por lesões sofridas em consequência de acidente de viação, não colide com o Direito comunitário, particularmente com os nºs 3°, n°1, da Primeira Directiva (72/166/CEE), 2°, n°1, da Segunda Directiva (84/5/CEE) e 1°-A da Terceira Directiva (90/232/CEE), introduzido pelo art. 4° da Quinta Directiva (2005/14/CE), todas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de automóveis, por competir à legislação do Estado-membro regular, no seu direito interno, o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos automóveis.
O Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 9.6.2011, proferido no Processo em que J... M... A... L..., M... C... O... F... B..., litigavam contra a Companhia de Seguros ... S.A, afirmou na sua decisão (Terceira Secção), onde se abordava a problemática assim sumariada – “Seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis – Directivas 72/166/CEE, 84/5/CEE e 90/232/CEE – Direito a indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis – Requisitos de redução – Contribuição da vítima para o seu próprio dano – Responsabilidade pelo risco – Disposições aplicáveis ao terceiro menor vítima de acidente”, que: “A Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, e 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano”.

Em síntese, e como se refere no sumário do acórdão deste Supremo de 09-09-2014, proc. nº121/10.1TBPTL.G1.S1, 1ª SECÇÃO
“I - Malgrado as alterações que vêm sendo introduzidas na legislação sobre o direito segurador, mormente pelo direito comunitário, o sistema português continua a manter o paradigma assente no primado da responsabilidade civil fundada na culpa do agente – art. 483.º do CC.
II - Admite, no entanto, a responsabilização do detentor/beneficiário de um veículo de circulação pelos riscos inerentes a esta mesma circulação – art. 503.º do CC.
III - Se, da dinâmica do acidente, se apurar a culpa exclusiva do lesado, o art. 505.º do CC exclui, de forma taxativa, a possibilidade de concorrência entre risco e culpa.”

Pelas razões expostas o recurso não procede.
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Termos em que, decidindo:
Acordam os deste Supremo – 3ª Secção – em negar provimento ao recurso e confirmam a decisão recorrida.

Custas pela recorrente. na proporção do vencido.

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de Dezembro de 2013
Elaborado e revisto pelo relator.
Pires da Graça
Raul Borges