MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NON BIS IN IDEM
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
PRINCÍPIO DO RECONHECIMENTO MÚTUO
BURLA
CÚMPLICE
Sumário

I - O vício de omissão de pronúncia é, um "vício relativo", ou "sanável", dado que a lei prevê a sua sanação, em sede de recurso - cfr. art. 379.º, nº 2 do CPP - ao determinar que as nulidades da sentença devem ser conhecidas no recurso e supri-las, devendo aplicar-se com as necessárias adaptações o disposto no art. 414, nº 4 do mesmo livro de leis.
II - Considerando que a questão da excepção à excepção da dupla incriminação relativamente ao crime de branqueamento e ao facto de o ordenamento português não ter como subjacente ao crime de branqueamento o crime de burla - que aliás já se encontraria prescrito - foi objecto de análise no acórdão recorrido, ainda que não nominado, ele não deixou de ser tema de justificação da decisão não podendo, por isso, decisão de ser taxada como sendo omissa quanto a esta questão.
III - A escassez de fundamentação, uma fundamentação deficiente, não convincente, esbagoada ou descentrada - o que não é o caso da fundamentação da decisão sob recurso - não transforma a motivação em "não fundamentação/motivação". Poderia ser apodada de nímia ou desqualificada - o que, itera-se, não é o caso - mas não a transforma numa decisão omissa, vale dizer não existente ou capitulada, que a arrume no conceito contido na al. c) do n.º 2 do art. 379º do CPP.
IV - Considerando que o tribunal recorrido se pronunciou, ainda que sob uma designação ou terminologia diversa da utilizada pelo requerido, sobre a questão de terem sido instaurados procedimentos contra o autor da burla e, como se assevera na decisão recorrida, em nenhum deles o cúmplice, aqui recorrente, consta como patenteado e versado, forçoso é concluir que não se verifica uma omissão de pronúncia quanto à violação do princípio do ne bis in idem invocada pelo recorrente.
V - O aqui requerido não foi investigado, vale dizer não se encontrava na posição de suspeito, ou indiciado, nos processos que em Portugal versaram sobre a actividade criminosa de que agora se encontra indiciado em França, pelo que, definitivamente, o Estado português não perquiriu ou perseguiu criminalmente o visado no mandado de detenção europeu que versamos.
VI - A falta de fundamentação não se confunde, ou não pode ter a mesma dimensão compreensiva, da falta de convencimento que essa fundamentação opera no destinatário. Para este a fundamentação pode não ser suficiente para os fins que prossegue e que anseia da decisão do órgão jurisdicional, mas esta perspectiva não pode obumbrar o fim constitucional do dever de fundamentação enquanto dever geral e comum de percepção do sentido das decisões por todos aqueles que delas tomem conhecimento ou que delas sejam destinatários.
VII - Porque a questão que o recorrente pretende ver apreciada de violação da CEDH (art. 6.º) e da CRP (art. 32.º) não constou do elenco das questões ele delimitou no respectivo pedido ao tribunal recorrido para conhecer está-lhe vedado colocar a questão ex novo perante o tribunal de recurso sob pena de violação e vulneração do princípio ao recurso.
VIII - O princípio do reconhecimento mútuo e da confiança que subjaz e entronca na natureza deste instrumento de eficiência e facilitação da realização da justiça a que cada Estado membro se compromete no seu acto de adesão não comporta, sob pena de frustração dos referidos princípios uma sindicância de razões substantivas que estiveram na decisão de emitir um mandado de detenção por parte de um Estado.
IX - Ao Estado de emissão compete, enquanto Estado de Direito (necessário e reconhecido ¬atente-se a propósito o acto de notificação da Comissão ao Estado polaco a propósito de pretensas e eventuais violações das regras e critérios essenciais e fundantes do Estado de Direito) ponderar, à luz do seu ordenamento e das necessidades de realização e prossecução do sistema de justiça, se a emissão do mandado cumpre regras de proporcionalidade, necessidade e subsidiariedade que estão inscritos em todos os ordenamentos de feição e assentimento democrático.
X - A menos que a medida dada para execução de um EM violasse de forma afrontosa o seu ordenamento e os valores inscritos no seu ordenamento cardinal é que seria legitimo ao Estado de execução eximir-se ao cumprimento do mandado, escudando-se, para se recusar, nos valores fundamentais que regem a sua sociedade.
XI - A apresentação de alguém para depor como arguido num processo, não é uma acto que esteja inscrito e seja de considerar abusivo e defraudante de um Estado de Direito.
XII - Não se constitui e configura como vulnerador de valores e princípios de um Estado de Direito o pedido a um Estado membro de detenção de um cidadão para ser presente à justiça de outro Estado membro que contra ele tem pendente um procedimento criminal por crimes.
XIII - O MDE pela natureza intrínseca que comporta, conleva e co-envolve de confiança entre os Estados membros de uma mesma comunidade de interesses e comunhão de vontades e princípios rectores não tem que necessariamente uma minuciosa e detalhada descrição dos factos que escoram o pedido de detenção. A confiança impõe que o Estado de execução confie - sem conferir minuciosa e escrupulosamente - que o Estado de emissão, na indicação que faz, no formulário, dos crimes por que o procurado a deter é visado pelas autoridades desse Estado é preciso e veraz.
XIII - A forma utilizada para endereçar um pedido de detenção de uma pessoa residente noutro Estado da UE, através de um mandado estabelecido entre os Estados membros, mediante o preenchimento de um formulário aceite - porque certamente discutido entre eles e colocadas as pertinentes questões que cada um, segundo a sua própria legislação estima deverem estar contidos nesse formulário - por todos os Estados membros não habilita ou favorece o Estado executor a promover pedidos de esclarecimento.
XIV - A menos que o formulário não contenha elementos essenciais e determinantes para a respectiva aceitação e possibilidade de cumprimento pelas autoridades judiciárias do Estado executor, v. g. por ausência de elementos reputados imprescindíveis e necessários segundo os regras e princípios fundantes do ordenamento do Estado executor.
XV - O crime de branqueamento constitui-se como um crime autónomo e independente dos crimes que possam ter estado na origem da obtenção dos proventos que sejam objecto de introdução no mercado para os tornar "legítimos".
XVI - Daí que não se sabendo, em concreto, em que se fundam as razões pelas quais o requerido se encontra indiciado pelo crime de branqueamento de capitais não seja legítimo afastar a execução do mandado pela não punibilidade do crime indicado não ser punido à luz do ordenamento jurídico-penal português.
XVII - A simples razão de que parte dos crimes, que o mandado indica como tendo sido cometidos pelo requerido lhe ser imputada a título de cumplicidade não justifica a recusa do mandado. De mais a mais a participação do requerido é a nível de cumplicidade, ou seja um plano de participação só possível de ser averiguada se conexionada com a autoria material que ajudou a concretizar.
XVIII - A comparticipação como cúmplice, ou como adjutor de uma actividade que é primacialmente cumprida e executada pelo autor principal, não pode ser desligada da averiguação e posteriormente pela apreciação e valoração da actividade que ajudou a perpetrar.
XIX - Daí que o Estado emissor considere e estime que a presença do cúmplice se torne essencial para, no julgamento em que estiverem em tela de juízo os factos praticados pelo autor material, se possa avaliar qual o grau de ajuda e colaboração que foi prestada pelo cúmplice na consecução do resultado antijurídico.

Texto Integral

I. – RELATÓRIO.

O Ministério Público, junto do Tribunal da Relação do Porto, requereu a execução do presente Mandado de Detenção Europeu, emitido pelas autoridades judiciárias francesas, contra AA, com os seguintes fundamentos de facto (sic): “por decisão proferida pela Juíza de Instrução do Tribunal de Grande Instância de ..., em 1 de junho de 2017, no âmbito do processo com a referência n.º 13/169/68 e instrução n.º 98/15/07, o Procurador da República, emitiu um Mandado de Detenção Europeu para procedimento criminal contra o requerido, porquanto:

Em novembro de 2011, a Tracfin (Unidade de Inteligência Financeira Francesa) revelou factos suscetíveis de serem crimes envolvendo a empresa BB, registada em ..., especializado em investimentos financeiros de alto rendimento, com dois endereços em ... e em ..., e tendo como representante CC, especializado em lucros de jogo.

Várias centenas de investidores interessaram-se pela elevada taxa de rendimento oferecida, e os novos investidores foram incitados a inscrever-se pelos primeiros (que acreditaram no sistema devido à intervenção dos seus mentores, levando os assinantes a não retirar o seu investimento com o objetivo de ganharem mais dinheiro) mediante o pagamento mínimo de 3000 €, sendo que alguns investidores não hesitaram em pedir dinheiro empresado.

O esquema revelou-se um esquema piramidal de Ponzi, no qual os juros foram pagos com o capital das entradas, sendo CC o seu principal perpetrador e beneficiário.

Este último colocou apostas desportivas durante mais de dois anos através de várias empresas, transferindo fundos sucessivamente de uma para outra, garantido os investidores através de uma comunicação destinada a convencer os investidores a não retirar o seu dinheiro e a continuar a informar terceiros deste esquema lucrativo,

O número de vítimas foi avaliado em 4000 pessoas, 300 delas em França e particularmente no sudoeste.

CC foi preso no dia 15 de junho de 2015 e foi indiciado pelos crimes de fraude e branqueamento de capitais dentro de um bando organizado. A investigação, efetuada através de cartas rogatórias internacionais, contou com as suas declarações destinadas a minimizar a sua responsabilidade e com as inquirições nomeadamente realizadas pelas autoridades portuguesas, o que permitiu estabelecer o papel de pessoas próximas de CC, que contribuíram para a montagem e funcionamento da fraude.

É o caso da sua companheira DD, do gerente da sociedade EE, FF e de AA advogado do CC e dirigente da sociedade GG, que aceitou assegurar a gestão e que com o seu estatuto de advogado permitiu credibilizar a montagem do esquema e dar uma aparência de grupo de sociedades estruturadas para convencer os antigos investidores a não tentarem recuperar o seu investimento e obter a adesão de novos clientes para o esquema piramidal.

A sua função de advogado, o seu conhecimento dos mecanismos financeiros e dos montantes recebidos nas suas contas pessoais (mais de 400 000 €) não permitem que se acredite que ele é mais uma vítima do CC. Tanto mais que o recebimento, sem justificação, de fundos provenientes da sociedade BB, cuja atividade ele não podia ignorar, é de natureza a imputar-lhe a sua participação no crime de branqueamento de capitais.

Esta situação levou ao envio do processo para o Tribunal Penal por ter em .., entre 1 de abril de 2011 e 3 de abril de 2013, em qualquer caso em território nacional e em Portugal, e por um período não prescrito, atuado como cúmplice de fraudes cometidas por HH, ajudando e incentivando na preparação do uso, na sua qualidade de advogado e de gerente da empresa GG, que devia assegurar o recrutamento e a formação de comerciantes capazes de realizar apostas desportivas destinadas a permitir aos investidores de realizar os lucros alegados por CC ou através dos produtos de Goodsenses representados por BB, bem sabendo que os comerciantes ainda não tinham sido recrutados, que a BB estava inoperacional e por ter no ... e em território nacional e de forma indivisível em Portugal, entre 1 de abril de 2011 e 3 de abril de 2013, e por período não prescrito, participado de uma operação de investimento ocultação ou conversão dos recursos obtidos direta ou indiretamente da fraude do grupo organizado cometido por HH, em nome da companhia BB, fazendo-se remunerar a título pessoal ou em nome da GG de que era gerente, através da transferências de fundos de clientes da BB, destinados a apostas desportivas e cujo pagamento resultou de meios fraudulentos (cfr. o MDE, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

2º - Estes factos integram segundo a legislação francesa o crime de complicite d'escroquerie realisee en bande organisee (Burla através de bando organizado), previsto no parágrafo 313-2, alínea 7, 313-1, alínea 1, 313-7, 313-8, 132-71, 121-7 do Código Penal Francês e blanchiment (branqueamento) previsto no parágrafo 324-1, alíneas 1 e 3, 313-2, alínea 7, 313-1, alínea 1, 324-3, 324-4, 324-7, 324-8, 132-71 do Código Penal Francês que são puníveis com uma pena de prisão de máximo superior a três anos e são, igualmente, punidos na lei nacional nos artigos 217.º, 218.º e 368.º A do Código Penal.

3º Conforme resulta do disposto no artigo 40.º, ao presente pedido é aplicável a lei nº 65/2003, de 23 de agosto, que aprovou o regime jurídico do Mandado de Detenção Europeu, em cumprimento da Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002.

4º O presente Mandado de Detenção Europeu, reporta-se assim à perseguição criminal pela prática de infração abrangida pelo disposto no artigo 2.º n.ºs 1 e 3 da referida Lei, igualmente punida entre nós com pena de prisão superior a 12 meses, o que determina a concessão da entrega da pessoa procurada.

5º Não se verifica nenhuma das situações que permitem a recusa de cumprimento do presente Mandado de Detenção Europeu, referidas nas diversas alíneas dos artigos 11.º e 12.º da lei 65/2003, de 23 de agosto.

6º Termos em que o Ministério Público, à luz do disposto nos artigos 15.º e ss. da referida Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, requer a execução do presente Mandado de Detenção Europeu (…).”  

Ouvido o detido, a 21 de Setembro de 2017, foi concedido o prazo para dedução de oposição ao mandado de detenção – cfr. fls. 49 e 50 – e a final validada a respectiva detenção julgada – cfr. fls. 53-54.

Na oposição que deduziu – cfr. fls. 77 a 101 –, o requerido/recorrente aduziu para recusa da execução do mandado de detenção as razões que a seguir quedam condensadas.

A) O Oponente nunca interveio no processo-crime em causa, nunca tendo sido convocado pelas Autoridades Judiciárias francesas seja para ser constituído arguido (personne mise en examen) e ser interrogado como tal, seja para prestar depoimento como testemunha. O Oponente foi convocado, pelo telefone, no ano de 2016, pela PJ e a Interpol, tendo comparecido nas instalações da PJ do Porto no dia e hora acordado, tendo fornecido os esclarecimentos que lhe foram solicitados pelos referidos OPC.

B) Isto é, a primeira vez que as Autoridades Judiciárias pretenderam ouvir o Oponente – que tem no Porto o seu centro de interesses familiares, residindo com a mulher e uma filha de 9 anos em morada certa e conhecida e exercendo a profissão de advogado com escritório devidamente registado na Ordem dos Advogados e profissional conhecido e respeitado entre os seus pares – fizeram-no, imagine-se, através da emissão de um MDE.

C) O procedimento em causa viola, desde logo, o princípio da proporcionalidade, da indispensabilidade e da última intervenção do direito penal, que constituem uma das pedras angulares do ordenamento jurídico penal num Estado de Direito.

D) O Oponente não cometeu, mesmo sob a forma de cumplicidade, os crimes de que vem indiciado. De qualquer forma, o crime de burla – mesmo que qualificada – sempre estaria prescrito de acordo com a lei portuguesa, nada constando no Formulário do MDE a fls. 70, que possa levar a concluir que o prazo de 3 anos a contar da prática dos factos, constante na lei francesa, não tenha também decorrido (cfr. ponto II, al. a) págs. 4 a 9).

E) Por sua vez, o Ministério Público português conhece, desde o ano de 2012, a factualidade que está subjacente ao processo crime em curso junto do Tribunal francês, tendo aberto, por essa razão, 16 processos crime, um dos quais despoletado por denúncia de um cidadão francês, que, em face disso, envolveu o envio de uma carta rogatória para a Autoridade Judiciária francesa, que a devolveu cumprida ao Ministério Público. O Ministério Público arquivou todos os procedimentos criminais em causa por falta de indícios da prática do crime de burla, em nenhum deles tendo decidido investigar o crime de branqueamento e em nenhum deles tendo chamado o Oponente a depor como testemunha ou a ser interrogado como arguido (cfr. ponto II, al. b) págs. 9 a 14).

F) As Autoridades Judiciárias francesas declaram que a factualidade em causa foi praticada no território francês e português. Acontece que o único elemento de conexão com o território francês é o facto de entre o número de vítimas algumas residirem em França mas não são identificadas como seus nacionais, não havendo quanto ao núcleo essencial ou acessório dos factos em causa e imputados, a título de cumplicidade ao Opoente, nada que aponte ter o mesmo ocorrido em França ou de o seu resultado típico ali se ter verificado. Deste modo, ter-se-á de excluir a competência das Autoridades Judiciárias daquele País, uma vez que tudo indica que, os alegados, vagos e genéricos comportamentos imputados ao Oponente que seriam susceptíveis de integrarem os crimes em causa, sempre haveriam de ter sido praticados em Portugal (cfr. ponto II, al. c) págs. 14 a 20).

G) A cláusula de territorialidade refere-se a todas as infracções, tanto àquelas que constam da lista do art.2º, n.º 2, como às que são objecto de controlo da dupla incriminação. Se a suposta infracção foi praticada fora do Estado de emissão e o Estado de execução não penalizar – ou não mais poder penalizar – a respectiva conduta, deve este recusar a execução do MDE.

H) A prática do crime de burla, sob a forma de cumplicidade, nunca é, segundo a lei portuguesa, elemento do tipo do crime de branqueamento (art.368.º-A do CP, com a redacção à data dos factos – 2011 e 2012), pelo que o Estado português nunca puniria as circunstâncias em causa a título de branqueamento.

I) Deste modo, considerando i) que o crime de burla está prescrito, ii) que o Ministério Público conhece a factualidade em causa, desde 2012, tendo arquivado os 16 procedimentos criminais por falta de indícios da prática de crime de burla, nuca tendo chamado o Oponente a intervir naqueles processos, nem nunca tendo dirigido a investigação para o crime de branqueamento, iii) que não há indícios de o Oponente ter praticado algum facto no território francês ou contra cidadãos franceses, iv) que o mesmo, a ocorrer, só pode ter ocorrido em Portugal, v) que o crime de burla não está entre o catálogo daqueles de que a origem dos proveitos dá lugar ao preenchimento do tipo legal do crime de branqueamento, pode este Tribunal efectuar, no âmbito da salvaguarda de uma reserva de soberania penal, de acautelar a realização efectiva da sua jurisdição, o respeito por princípios relevantes do seu sistema constitucional e penal, a competência investigatória por factos praticados no seu território, bem como a protecção de um cidadão português relativamente ao qual o Estado Português não tem – ou, pelo menos, deixou de ter – fundamento para perseguir criminalmente, alicerçado na cláusula da territorialidade, o duplo controle de incriminação e concluir existência de motivo ponderoso para a recusa de execução do mandado de detenção europeu ora em crise, tendo por base a verificação de três causas de recusa facultativa da execução do MDE, previstas, respectivamente, nas als. a), c), e) e h), ponto i) do art. 12º, n.º 1.”  

Repontou o Ministério Público – cfr. fls. 319 a 328 –, tendo argumentado que (sic):

o presente procedimento não viola o princípio da proporcionalidade, indispensabilidade e da última intervenção do direito penal pois que é a primeira vez que as autoridades judiciárias francesas pretendem ouvir o requerido; mesmo que assim não seja e o visado já tenha sido ouvido no âmbito de uma carta rogatória, como afirma, as autoridades francesas pretendem assegurar a sua presença física para efeitos de perseguição criminal, numa decisão soberana que as autoridades portuguesas não têm poderes para controlar, pois a desproporcionalidade não consta expressamente do elenco de causas de recusa obrigatórias ou facultativas, antes “incumbe às autoridades judiciárias de emissão proceder a um controlo da proporcionalidade a fim de ajustar a necessidade de emitir um mandado de detenção europeu, à luz da natureza da infracção como uma das modalidades concretas de cumprimento da pena”;

- estando em causa crimes relativamente aos quais se dispensa o controlo da dupla incriminação, seria violar este princípio empreender o controlo da prescrição; de todo o modo, atenta a moldura penal abstracta prevista para o crime de branqueamento (2 a 12 anos de prisão) e para o crime de burla qualificado (para a cumplicidade, 2 anos e 8 meses a 6 anos e 4 meses), estão longe de esgotados os prazos de prescrição do procedimento criminal face à lei portuguesa e as autoridades francesas tiveram o cuidado de referir no texto do mandado que os factos não estão prescritos;

- não estão aqui em causa os mesmos factos que foram investigados pelo Ministério Público no âmbito dos processos indicados pelo requerido e que se reportam os documentos por este juntos  com a sua oposição, já que as vítimas não são as mesmas, o ora visado nem sequer foi indicado como suspeito e em causa não esteve nenhuma investigação pela prática de factos eventualmente integrantes do crime de branqueamento;

- a informação vertida no MDE não permite concluir que os factos imputados foram praticados, apenas, em Portugal (no mandado pode ler-se que o visado foi cúmplice nas burlas cometidas por HH, entre 01.04.2011 e 03.04.2012, no departamento de Aveyron); ainda que se reconheça que o requerido terá praticado em Portugal actos de execução dos crimes que lhe são imputados, tal não constitui, de per si, causa de recusa facultativa;

- mesmo que assistisse alguma razão ao requerido, estão em causa fundamentos de recusa facultativa da execução do MDE e não há razão adicional para uma tal opção.” [[1]]

Foi ouvida prova testemunhal apresentada – cfr. fls. 376 a 380.

Em decisão proferida, de 27 de Novembro de 2017, no Tribunal da Relação do Porto, foi considerado que “(…) improcedente a oposição deduzida e autorizar a execução do mandado de detenção europeu emitido pela autoridade judiciária da República Francesa e consequente entrega do cidadão português, AA, à competente autoridade judiciária daquele país” – cfr. fls. 395 a 412.

Em dissensão com o decidido, recorre o requerido, tendo dessumido da diserta fundamentação o quadro conclusivo que a seguir queda extractado.

I.a). – QUADRO CONCLUSIVO.
A) O Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, que julgou improcedente a oposição deduzida pelo Recorrente e, consequentemente, autorizou a execução do “MDE” emitido pela autoridade judiciária da República Francesa e a consequente entrega do Recorrente à competente autoridade judiciária daquele país, constituiu uma inesperada surpresa, desde logo, pelas diversas contradições que logrou identificar ao longo daquela decisão.
B) Na realidade, o Recorrente alegou e demonstrou na sua oposição o seguinte:
(i) nunca interveio no processo crime que corre termos no Tribunal de Montpellier, nunca tendo sido convocado pelas Autoridades Judiciárias francesas, seja para ser constituído arguido (personne mise en examen) e ser interrogado como tal, nunca tendo sido notificado de qualquer acusação que contra si haja sido proferida, nunca lhe tendo sido dada a possibilidade de nele se defender, designadamente com “igualdade de armas”, por um lado contra o Ministério Público e as Partes Civis, por outro lado contra os co-arguidos, entre os quais o Senhor CC, que aproveitou a sua ausência para o acusar aquando do seu último interrogatório, de 15 de novembro de 2016;
(ii) os crimes de burla e de burla qualificada sempre estariam prescritos de acordo com o direito nacional;
(iii) uma vez prescrito o crime de base – a burla – não estaria preenchido tipo legal do crime de branqueamento;
(iv) o Ministério Público português teve (tem) conhecimento dos factos que constam no MDE – “esquema de Ponzi” - tendo sido arquivados 16 processos crime onde foram investigados, durante dois anos, aqueles mesmos factos;
(v) a sujeição do Recorrente a um processo crime em França sobre os mesmos factos que foram investigados naqueles processos penais arquivados, configuraria a violação do princípio ne bis in idem;
(vi) os Tribunais portugueses sempre seriam os competentes para investigar um cidadão português, residente em território português, pela alegada prática de determinados actos, segundo consta no MDE (fls. 70), naquele mesmo território;
(vii) não havendo indícios de o Oponente ter praticado algum facto com repercussão em território francês, a) que o mesmo, a ocorrer, só pode ter ocorrido em Portugal, b) que o crime de burla está prescrito de acordo com a lei portuguesa e c) que o crime de burla não está entre o catálogo daqueles de que a origem dos proveitos dá lugar ao preenchimento do tipo legal do crime de branqueamento, estão os Tribunais Portugueses legitimados a realizar, para a salvaguarda do princípio da soberania penal e da protecção de um cidadão português relativamente ao qual o Estado Português não tem (ou deixou de ter) fundamento para perseguir criminalmente, o duplo controle de incriminação.
C) O Recorrente assentou e fundamentou a sua oposição na verificação de um conjunto de factos concretos, precisos, objetivos, relacionados a soberania penal do Estado Português, como o respeito por princípios estruturantes do processo penal, designadamente de defesa dos arguidos e, ainda, de legítima protecção de seu nacional, que determinavam o preenchimento de quatro causas de recusa de execução do MDE – três delas facultativas e uma obrigatória – nos termos expressamente previstos nos arts. 11º, alínea b) e 12º, nº 1, alíneas c), e) e h), ponto (i) da Lei 65/2003, de 23 de Agosto (adiante abreviadamente RJMDE).
D) Apesar disso, entendeu o Tribunal a quo que não havia fundamento para não executar o MDE em causa, não obstante ter até reconhecido a verificação de uma das causas de recusa facultativa de execução do MDE, concretamente o critério da territorialidade (cfr. fls. 409 § 2).
E) O Acórdão encontra-se ferido de nulidade por omissão de pronúncia quanto a duas questões concretas que foram submetidas à apreciação do Tribunal a quo, desatendendo, ainda, a princípios estruturantes de um Estado de Direito que travejam o ordenamento jurídico português, concretamente a sua soberania penal, bulindo com direitos fundamentais do Recorrente.
F) O Tribunal a quo não se pronunciou quanto ao invocado controlo da dupla incriminação, circunstância relevante para efeitos de verificação da não punibilidade do crime de branqueamento e da prescrição do crime de burla (simples e qualificada) à luz do ordenamento jurídico português, que o Recorrente havia expressamente suscitado na sua oposição em face de entender – como entendeu o Tribunal a quo – que estava preenchido o critério da territorialidade.
G) O Recorrente suscitou e fundamentou, em sede de alegações orais, a verificação da causa de recusa obrigatória de execução do MDE assente na violação do principio do ne bis in idem (cfr. art. 11.º, al. b), do RJMDE), não se tendo também o Tribunal a quo pronunciado sobre esta questão.
H)  O Recorrente invocou a circunstância de terem sido iniciados e arquivados 16 processos crime, após cerca de 2 anos de investigação, os quais versaram sobre os mesmos factos que estiveram na base do MDE e no âmbito da maioria deles foi constituído arguido CC (cfr. factos assentes 3 e 4) como suspeito da autoria dos crimes de burla, de burla qualificada, de branqueamento e de falsificação de documentos. O Recorrente deu, ainda, conta ao Tribunal a quo que em nenhum daqueles processos foi o seu nome falado, seja pelos denunciados, pelas testemunhas ou por qualquer outro interveniente processual, facto, aliás, expressamente reconhecido no acórdão ora em crise (cfr. fls. 409 § 4 e 412 §4).
I) Tendo todos os referidos processos crime sido arquivados por ausência de indícios da prática dos crimes denunciados, concretamente pelo mencionado Jorge Queirós (factos assentes nºs 5 e 6 – fls. 402), e estando em causa no processo penal que corre termos em França a comparticipação do Recorrente a título de cumplicidade com Jorge Queirós, inexiste mais forma de o poder envolver na prática dos alegados actos nos processos que correram termos em Portugal, razão pela qual as decisões de arquivamento são necessária e inelutavelmente extensíveis ao Recorrente.
J) O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu já diversos acórdãos sobre a interpretação do princípio ne bis in idem, expressamente consagrado no art. 54º da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, designadamente os Acórdãos Gözütok/Brügge, de 11.02.2003, (procs. C-187/01 e C-385/01), Kraaijenbrink, de 18.07.2007 (proc. C-367/05), Kretzinger, de 18.07.2007 (proc. C-288/05), Van Straaten, de 28.11.2006 (proc. C-150/05) e Van Esbroeck, de 09.03.2005 (proc. C-436/03), decisões essas que, por via do Acórdão Mantello, de 16.11.2010, (proc. C-261/09), são aplicáveis à Decisão-Quadro do Conselho, de 13.06.2002, relativa ao MDE e, consequentemente, ao art. 11º, alínea b) da nossa Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, clarificando, entre outros, os conceitos de “decisão definitiva” e de “mesmos factos”.    
K) O TJUE concluiu que o princípio ne bis in idem se aplica também a procedimentos que envolvam a extinção da acção penal por via dos quais o Ministério Público de um Estado-Membro arquiva, sem intervenção de um órgão jurisdicional, o procedimento criminal instaurado nesse Estado.
L) A possibilidade de reabertura do processo penal em face do surgimento de novos elementos incriminatórios não afasta a verificação da referida causa obrigação de recusa da execução do MDE para salvaguarda do princípio ne bis in idem - Acórdão M. (proc. C-398/12) do TJUE e Acórdão Zolotoukhine c. Rússia, de 10 de fevereiro de 2009 (nº 14939/03, § 83), do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
M) O Ministério Público sempre estaria irremediavelmente impedido de reabrir os inquéritos em causa sobre os factos que neles foram exaustivamente investigados e que coincidem com aqueles que integram o MDE emitido pelas autoridades judiciárias francesas em face da prescrição do crime de burla e de burla qualificada em Março de 2017.
N) O Tribunal não se pronunciou sobre o conteúdo da declaração prestada sob compromisso de honra (“affidavit”) pelo Senhor Bastonário ..., advogado do Recorrente em França (fls. 387 e 388), nem sobre o depoimento das testemunhas prestado nos presentes autos, não tendo, como lhe competia, feito qualquer exame crítico daqueles elementos probatórios com a consequente valoração dos mesmos.
O) O Recorrente soube apenas pelo advogado francês que mandatou após a sua detenção – e não por via do MDE - que se encontra agendada uma audiência de julgamento em França, para o próximo dia 13 de dezembro de 2017, (i) sem que ao mesmo tenha sido dado conhecimento de uma alegada acusação, (ii) sem que ao mesmo tenha sido dada a oportunidade de se pronunciar sobre os factos que lhe são imputados, (iii) sem que ao mesmo tenha sido dada a oportunidade de exercer o contraditório, produzir a prova que entender conveniente, enfim, (iv) sem que ao mesmo tenha sido dada a oportunidade de se defender de forma justa e equitativa, representado por advogado, em igualdade de armas com o Ministério Púbico (“le Parquet”).
P) As circunstâncias descritas configuram uma afronta aos mais elementares direitos de defesa do Recorrente que alicerçam o ordenamento jurídico penal de qualquer Estado de Direito e, por essa razão, estão expressamente previstos na Constituição da República Portuguesa (art. 32º), bem como na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 6º).  
Q) No âmbito do exercício do direito de salvaguarda da soberania penal, que o Estado de execução não deixou alienada por virtude do princípio da cooperação judiciária subjacente ao MDE – bem pelo contrário, dele é parte integrante - bem como da obrigação de respeito pelas Convenções Internacionais das quais é membro, pode o mesmos recusar a execução daquele quando tenham, como foi o caso quanto ao Recorrente, sido desrespeitados os direitos de defesa que assistem a qualquer pessoa perseguida criminalmente.
R) O MDE, que priva a pessoa procurada do direito à liberdade por via da sua detenção e posterior entrega ao Estado de Emissão, pressupõe que a mesma se desenvolva mediante o respeito dos princípios da proporcionalidade, da indispensabilidade e da última intervenção. O Estado de Execução, tendo por base o primado dos direitos, liberdades e garantias fundamentais consagrados na sua Lei Constitucional, tem por imposição o dever controlar e assegurar a sua proteção.                       
S) A Comissão Europeia impõe a proporcionalidade como um dos requisitos a serem observados na ponderação que deve estar subjacente à emissão do MDE, prevendo expressamente no Manual sobre a emissão e a execução do Mandado de Detenção Europeu o recurso por parte dos Estados Membros a outros meios alternativos de cooperação judicial penal.
T) Não tendo o Recorrente tido qualquer intervenção processual em França, concretamente nunca foi constituído arguido, nem conheceu uma acusação, para além de residir habitualmente, em lugar certo, na cidade do Porto, onde tem o seu centro de vida pessoal e profissional como advogado, deveria ter o Estado de Emissão recorrido a outro meio alternativo de cooperação penal não privativo da liberdade.
U) A violação dos referidos princípios que devem estar subjacentes à emissão do MDE é fundamento para a recusa da sua execução quer por via da Constituição da República Portuguesa (cfr. arts. 28º, nº 2, 27º, 18º, nºs 2 e 3, 3º, nº 2), quer da Decisão-Quadro do Conselho 2002/584/JAI (cfr. art. 1º, nº 3).               
V) O Recorrente trouxe aos autos um conjunto de factos, devidamente documentados e testemunhados, que evidenciavam ter o Tribunal a quo por obrigação fazer prevalecer a soberania penal do Estado português e, consequentemente, recusando a execução do MDE emitido pelas autoridades judiciárias francesas.
W)  No MDE resulta haver indícios da prática, pelo Recorrente, a título de cumplicidade, dos crimes de complicite d´escroquerie realisée en bande organisée e de blanchiment, sendo que de acordo com a promoção do Ministério Público, os factos que serviram de base ao MDE constituiriam a prática dos crimes de burla, de burla qualificada e de branqueamento.
X) O Tribunal a quo na qualificação que fez da burla entrou na discussão do mérito da decisão da autoridade judiciária de emissão, incursão essa para a qual, como o próprio reconhece, não lhe assiste legitimidade, reconhecendo, contudo, não saber qual o valor do prejuízo, tal-qualmente não o sabe o Ministério Público.
Y) Por outro lado, o conteúdo do MDE não aporta informação que, nem mesmo de forma indirecta ou inferida, pudesse permitir ao Tribunal a quo – que prescindiu de solicitar ao Estado de Emissão informações complementares - concluir, como concluiu, pela indiciada prática do crime de burla qualificada p.p. nos termos do art. 218º, nº 2 do Código Penal e, consequentemente, chegar à conclusão que este e o de branqueamento não haviam prescrito.
Z) A causa de recusa deve ser aplicada em situações onde a lei portuguesa é competente – como é reconhecidamente o caso – nas situações em que o ordenamento jurídico considera que, pela sua soberania estadual própria, não deverá haver punição por ter havido uma limitação do seu poder punitivo em razão do decurso do tempo, leia-se, a prescrição do procedimento penal ou do próprio crime.
AA) Aplicando-se a atenuação especial obrigatória aos referidos tipos de ilícito em caso de cumplicidade, temos que o crime de burla será punível com pena de prisão até 2 anos e o crime de burla qualificada será punível com pena de prisão até 3 anos e 3 meses ou com pena de multa até 400 dias.
BB) O prazo de prescrição do procedimento criminal pela prática dos crimes de burla e de burla qualificada, em caso de cumplicidade, é de 5 anos, pelo que tendo a sociedade GG sido dissolvida e liquidada em março de 2012, sempre, por essa via, também haveria o crime de burla prescrito em março de 2017, sendo que o crime de burla dependente de queixa e o prazo para o efeito há muito que havia decorrido, pelo que não pode o Recorrente ser perseguido criminalmente em Portugal, pela alegada prática do crime de burla e, por isso, não pode o Estado Português consentir que o seja em França pelo crime d’escroqueri realisée en bande organisée, sob a forma de cumplicidade.
CC) Os actos imputados ao Recorrente no MDE a não são suscetíveis de, à luz da lei portuguesa, configurarem o crime de branqueamento, o que, por si só, consubstancia motivo para a recusa da execução do MDE, pois, de outra forma, estaríamos perante a entrega de um seu nacional a um outro Estado por alegados factos praticados em território português que nele não são puníveis.
DD) A burla ou a burla qualificada não estão previstas como forma de obtenção de vantagens para efeitos de punição por branqueamento, pelo que esta apenas poderia ocorrer se o crime de base fosse punível com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos, o que não é o caso.
EE) Deste modo, considerando (i) que não há indícios de o Oponente ter praticado algum facto com repercussão em território francês, (ii) que o mesmo, a ocorrer, só pode ter ocorrido em Portugal, (iii) que o crime de burla está prescrito de acordo com a lei portuguesa e (iv) que o crime de burla não está entre o catálogo daqueles de que a origem dos proveitos dá lugar ao preenchimento do tipo legal do crime de branqueamento, é legítimo a este Colendo Tribunal efectuar, no âmbito da salvaguarda do princípio da soberania penal e da protecção de um cidadão português relativamente ao qual o Estado Português não pode, num caso e deixou de poder, no outro, perseguir criminalmente, alicerçado na cláusula da territorialidade, o duplo controle de incriminação e concluir pela recusa de execução do MDE.
FF) Em Portugal correram, pelo menos, 16 processos crime onde os factos indiciários são os mesmos que estão na base do MDE – “esquema Ponzi” ou “pyramide de Ponzi” – tendo o Ministério Público concluído pelo arquivamento de todos eles pela ausência de indícios da prática por parte de ..., a titulo de autoria, dos crimes denunciados, é evidente que nenhum acto relacionado com o dito “esquema de Ponzi” pode ser imputado ao Recorrente a título de cumplicidade. Como diria Monsieur de La Palisse, se não há autor, não pode haver cúmplice!     
GG) Por sua vez, o Tribunal a quo reconheceu que a factualidade era a mesma, alicerçando a sua argumentação num critério bizarro da “investigação em curso”, ou melhor, da ausência dela (cfr. despacho de fls. 334 e 335).
HH) É evidente a vantagem em fazer prevalecer a jurisdição nacional em detrimento da jurisdição francesa, desde logo, para que, dessa forma, o Estado Português possa garantir os direitos e garantias que reconhece aos seus cidadãos, principalmente quando resulta evidente que esses mesmos direitos e garantias fundamentais foram postos em causa, nos termos que acima se descreveram.
II) Em suma, encontram-se verificadas as causas obrigatórias e facultativas que determinam a recusa de execução do mandado de detenção europeu ora em crise, quer por via disposto no art. 11º, al. b), quer nos termos das als. a), c), e) e h), ponto (i) do art, 12º, nº 1, todos do RJMDE, que sempre deveria ser recusada para assegurar o respeito ao um processo equitativo, com a garantia de todos os direitos de defesa, nos termos da Constituição da República Portuguesa (art. 32º) e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 6º).
JJ) O Acórdão violou o disposto naqueles preceitos, bem como nos arts. 18º, 28º, nº 2, 27º e 32º da Constituição da República Portuguesa, no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nos arts. 27º, nº 2, 73º, 118º, nº 1, al. c), 217º, 218º e 368-A, nº 5 (na redacção da Lei 59/2009 de 4.9) do Código Penal e, ainda, nos arts. 374º, nº 2 e 379º, nº1 als. a) e c) do Código de Processo Penal. 

Termos em que (…) deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida e julgando procedentes os motivos de recusa de execução do Mandado de Execução Europeu requerido pelas Autoridades Judiciárias Francesas contra o Recorrente.”
Em resposta ao impetrado pelo recorrente, o Ministério Público junto do tribunal da Relação do Porto, revida que (sic): “O recorrente mostra-se inconformado com o acórdão de fls. 395 e seguintes, que julgou improcedente a oposição por si deduzida à execução do Mandado de Detenção Europeu contra si emitido pela Autoridade Judiciária Francesa- Tribunal de Grande Instância de Montpellier, e para entrega para procedimento criminal pela prática dos seguintes crimes, puníveis pela legislação penal francesa:

- Cumplicidade de um crime de burla, realizada em organização criminosa prevista, p. e p. pelos artºs 313º nº 2, alínea 7, 313º nº 1 alínea 1; 313º nº 7; 313º nº 8; 132º- 71 e 121º-7 do CP e um crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelos artºs 324º - 1 alíneas 1 e 3; 313- 2 alínea 7; 313-1, alínea 1; 324º - 3; 324- 4; 324-7; 324-8; 132-71 do CP.

E que ordenou a execução de tal MDE – nos termos e com os fundamentos constantes de tal acórdão, que se dão por reproduzidos, por economia processual.

Os fundamentos do recurso interposto são praticamente os mesmos da oposição que apresentou à execução daquele mandado, alegando, ainda que o acórdão padece (como sumariamente se aponta – extraída das respectivas conclusões insertas a fls. 463 a 473):

- De nulidade por omissão de pronúncia quanto à “excepção à excepção” relativa à abolição do controlo da dupla incriminação e quanto à alegada violação do principio ne bis in idem (artºs 379º nº 1 c) e 412º nº 2 do CPP; artº 12º nº 1 a) e h), subalínea i) e artº 11º b), ambos do RJMDE);

- Nulidade por falta de exame crítico das provas apresentadas (artº 379º nº 1 a) e 374º nº 2 do CPP);

- Violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artº 6º) e da CRP (artº 32º);

- Violação dos princípios da proporcionalidade, da indispensabilidade e da última intervenção da execução do MDE;

- Erro na análise quanto às causas de recusa facultativa de execução prevista no artº 12º nº 1 a),c), e), h) e subalínea i) do RJMDE.

Tudo como melhor consta da respectiva peça recursória, cujos termos damos por reproduzidos.

Mas não tem qualquer razão, ao que se nos afigura.

SINOPSE:

O MºPº requereu, a fls. 2 e seguintes, a execução do MDE para entrega do recorrente, nos termos e com a fundamentação daí constante - que aqui se dão por reproduzidos.

Interrogado a 21/09/2017, foi por ele requerido prazo para a oposição ao MDE – que foi deferido (cfr fls. 48-54).

Na oposição apresentada, invocou os fundamentos constantes de fls. 77 a 101, concluindo que devia ser recusada a execução do MDE, juntando inúmeros documentos, constantes de fls.102 a 317 – fundamentos esses que agora repete invocando que o acórdão recorrido se não pronunciou quanto ao por si invocado.

O MºPº respondeu à oposição, analisando a prova apresentada e os fundamentos invocados pelo recorrido, que não impediam, em nada, com a execução do MDE, pois que não se verificava qualquer causa de recusa obrigatória nem facultativa que devesse ser atendida ou existisse qualquer obstáculo legal ao cumprimento daquele, nomeadamente, porque se não verificava “ a incompetência dos tribunais franceses para conhecimento dos factos”; porque “os factos não estão prescritos perante a legislação penal francesa nem portuguesa; “porque o procedimento não viola os princípios da proporcionalidade, da indispensabilidade e da última intervenção do direito penal”, nem sequer o principio “in bis in idem” – conforme expendido a fls. 319 a 329 – cujo teor se dá aqui por reproduzido.

Tal entendimento foi sufragado no acórdão ora impugnado e votado uniformemente pelo colectivo de Juízes – que se mostra devidamente fundamentado e analisadas todas as questões suscitadas pelo requerido - e sem que se verifique nele, a nosso ver, quaisquer das omissões alegadas pelo recorrente – considerando toda a matéria alegada e que foi devidamente analisada, de facto e de direito.

E que merece o nosso total acolhimento.

Não se verifica, qualquer nulidade por omissão de pronúncia relativamente ao facto invocado de que os crimes que lhe são imputados pela justiça francesa, não integram crimes de catálogo – sequer o de branqueamento de capitais - como resulta examinado no ponto 1 de fls. 407 a 410 do acórdão recorrido.

De notar, ainda, que a invocada causa de recusa facultativa de execução prevista no artº 12º nº 1 a) da Lei 65/2003 de 23/08, nem sequer se perfila, pois que as infracções imputadas ao requerido, cabem nas incluídas no nº 2 do artº 2º da citada lei (alíneas a), i) e u)) – pelo que está excluído o controlo da dupla incriminação – como aliás, já decidido, pela “ COUR DE JUSTICE DE L’UNION EUROPÉNNE – CJUE”, no Ac. proferido no processo C- 289/15, Grunza (que interpretou, neste mesmo sentido, os artºs 7º nº 3 e 9º nº 1 d) da Decisão – Quadro 2008/909/JAI).

Como resulta das conclusões do recurso, o recorrente pretende que a execução do mandado de detenção deveria ter sido recusada, além do mais,

pelo facto de ser de nacionalidade portuguesa,  residir em Portugal, aqui desenvolver a sua actividade profissional e encontrar-se socialmente integrado nos termos da alínea g) f n.º 1, do artigo 12.º da Lei 65/2003 de 23 de Agosto.

Mas, a recusa facultativa de execução do MDE, prevista nessa disposição legal, só se aplica às situações em que o mandado de detenção foi emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometer a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa – o que não é o caso, pois que o presente MDE tem por objectivo o exercício do procedimento criminal – pelo que está arredada a possibilidade de recusa de execução prevista no referido preceito. (cfr. neste sentido  Acórdão do STJ de 19-07-2006, consultável in www.dgsi.pt).

Não se verifica no caso presente qualquer causa de recusa obrigatória prevista no art. 11º ou ocorre sequer qualquer causa atendível de recusa facultativa, nomeadamente as previstas no art. 12°, n° 1 e) e h), ambos da referida Lei n.° 65/2003, de 23/08.

Atentando no teor do acórdão impugnado, não se verifica qualquer vício, quer de natureza substantiva, quer de natureza formal ou adjectiva, nos necessários pressupostos e fundamentos que conduziram àquela decisão.

Nem sequer é invocável qualquer nulidade por omissão de pronúncia, já que o acórdão que deferiu a execução de MDE, analisou, todas as causas, obrigatórias e facultativas de recusa – que não nos merecem censura.

Não se tendo suscitado a este tribunal qualquer dúvida quanto à identidade da pessoa procurada, e porque este não é o momento para apreciar questões de mérito, mas tão só da respectiva regularidade formal do MDE, cumpre, apenas, dar-lhe execução com base no princípio do reconhecimento mútuo em conformidade com o disposto no art.º 1º n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 65/2003 e na Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho de 13 de Junho.

Assim, e verificando-se que o mandado obedece aos requisitos formais constantes do artº 3.º da Lei 65/2003, e que os factos são puníveis em ambos os Estados, com pena privativa de liberdade superior a 12 meses e que, além disso, o crime se encontra previsto no artº 2º nº 2 daquela Lei, não se vê que tenha sido violada qualquer norma substantiva ou adjectiva, pelo que deve ser mantida a decisão.

Perante o exposto, deve o recurso ser julgado improcedente.”

I.b). – QUESTÕES QUE SE IMPÕEM PARA A CABAL COGNOSCIBILIDADE DO RECURSO.

No requerimento de interposição do recurso o recorrente delimita e confina o âmbito de cognoscibilidade mediante a proposição dos seguintes temas (sic):
1. a nulidade decorrente da omissão de pronúncia quanto à “exceção à exceção” relativa à abolição do controlo da dupla incriminação e quanto à alegada violação do princípio ne bis in idem (art. 379º, nº 1 al. c) e 412º, nº 2, ambos do CPP; art. 12.º, n.º 1, al. h), subalínea i) e art. 11º, al. b), ambos do RJMDE);
2. a nulidade por falta de exame crítico das provas apresentadas, concretamente os depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas, bem como a declaração escrita prestada, sob compromisso de honra, pelo Senhor Bastonário ..., advogado francês do Recorrente, relativa à (não) intervenção processual do Recorrente no processo em curso junto do Tribunal Criminal de Montpellier e já em fase de julgamento (art. 379º, nº 1 al. a) e 374, nº 2, ambos do CPP).”, desmembradas e decompostas nos sequentes sub-temas:
I. a nulidade decorrente da omissão de pronúncia quanto à “exceção à exceção” relativa à abolição do controlo da dupla incriminação e quanto à alegada violação do princípio ne bis in idem (art. 379º, nº 1 al. c) e 412º, nº 2, ambos do CPP; art. 12.º, n.º 1, als. a) e h), subalínea i) e art. 11º, al. b), ambos do RJMDE);
II. a nulidade por falta de exame crítico das provas apresentadas (art. 379º, nº 1 al. a) e 374, nº 2, ambos do CPP); 
III. a violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 6º) e da Constituição da República Portuguesa (art. 32º);
IV. a violação dos princípios da proporcionalidade, da indispensabilidade e da última intervenção da execução do MDE;
V. o erro na análise quanto à causa de recusa facultativa de execução prevista no artigo 12.º, n.º 1, al. e) do RJMDE;
VI. o erro quanto à causa de recusa facultativa de execução prevista no artigo 12.º, n.º 1, al. a) e h) subalínea i) do RJMDE;
VII. o erro na análise quanto à causa de recusa facultativa de execução prevista no artigo 12.º, n.º 1, al. c) do RJMDE.

II. – FUNDAMENTAÇÃO.

II.a). – ELMENTOS PERTINENTES PARA A DECISÃO.

A decisão sob sindicância consolidou a factualidade que a seguir queda extractada

A. Factos assentes.

Tendo em consideração o conteúdo do mandado de detenção, o teor dos documentos (quer os que foram juntos pelo Ministério Público com a petição inicial, quer os oferecidos pelo requerido com a oposição e posteriormente), as declarações da pessoa procurada e os depoimentos das testemunhas ouvidas, consideramos assentes os seguintes factos:
1. A pessoa procurada, ..., é cidadão nacional de Portugal e aqui tem residência permanente, sendo na cidade do Porto que se situa o centro da sua vida familiar, social e profissional de advogado;
2. A Sra. Juiz de instrução do Tribunal de Grande Instância de Montpellier decidiu que se emitisse e o Procurador da República emitiu, com data de 01.06.2017, mandado de detenção europeu contra aquele cidadão português, do qual constam, além dos elementos de identificação da pessoa procurada, as seguintes informações:
a) a decisão judicial em que se fundamenta a emissão do mandado de detenção europeu;
b) a duração máxima da pena (10 anos de prisão) aplicável aos ilícitos imputados;
c) A pretendida detenção e entrega daquele cidadão português à autoridade judiciária de emissão tem em vista o exercício de procedimento criminal (no âmbito do processo com a referência n.º 13/169/68 e instrução n.º 98/15/07) pelos seguintes factos que lhe são imputados (reprodução integral da descrição contida no MDE[2]):
“Em Novembro de 2011, a Tracfin (Unidade de Inteligência Financeira Francesa) revelou factos susceptíveis de serem crimes envolvendo a empresa BB, registada em Aukland, na Nova Zelândia, especializada em investimentos financeiros de alto rendimento, com dois endereços em Londres e em Malta, e tendo como representante CC, especializado em lucros de jogo.
Várias centenas de investidores interessaram-se pela elevada taxa de rendimento oferecida e os novos investidores foram incitados a inscrever-se pelos primeiros (que acreditaram no sistema devido à intervenção dos seus mentores, levando os assinantes a não retirar o seu investimento com o objectivo de ganharem mais dinheiro) mediante o pagamento mínimo de € 3000,00, sendo que alguns dos investidores não hesitaram em pedir dinheiro emprestado.
O mecanismo revelou-se ser uma pirâmide de Ponzi, no qual os juros eram pagos com o capital das entradas, cujo principal autor e beneficiário era CC, desfavoravelmente conhecido das autoridades portuguesas.
Este dedicava-se a essa actividade de apostas desportivas desde há dois anos através de sociedades sucessivas, passando os fundos de uma para a outra, tranquilizando os investidores através de uma comunicação destinada a convencê-los a não retirar os investimentos e continuar a falar aos seus familiares desse sistema lucrativo.
O número de vítimas foi avaliado em 4 000 pessoas, das quais 300 em França, principalmente no sudoeste.
CC foi detido no dia 15 de Junho de 2015 e indiciado pelos crimes de burla e branqueamento de capitais dentro de um bando organizado.
As investigações realizadas no quadro de novas cartas rogatórias internacionais, considerando as suas declarações que visavam minimizar a sua responsabilidade e especialmente os interrogatórios realizados pelas autoridades portuguesas, permitiram evidenciar o papel dos familiares de CC, quem contribuiu para a montagem e o funcionamento da burla.
Trata-se da companheira de CC, DD, do gerente da sociedade EE, FF, e também AA, advogado do CC e dirigente da sociedade GG, da qual aceitou assegurar a gestão, o qual, com o seu estatuto de advogado, deu credibilidade à montagem do esquema e a aparência de um grupo de sociedades estruturadas para convencer os antigos investidores a não tentarem recuperar o seu investimento e obter a adesão de novos clientes para a pirâmide de Ponzi.
A sua função de advogado, o seu conhecimento dos mecanismos financeiros e os montantes recebidos nas suas contas pessoais (mais de € 400 000,00) não permitem acreditar na hipótese de ele ser uma vítima de CC. Além disso, a cobrança, sem justificação, de fundos provenientes da sociedade BB, da qual não podia ignorar que não tinha iniciado actividade, é de natureza a caracterizar a sua participação no branqueamento do produto da infracção.
É por essa situação que está citado perante o tribunal correccional por, no departamento de ..., entre 1 de Abril de 2011 e 3 de Abril de 2013, em qualquer caso em território nacional e em Portugal, e por tempo sem prescrever, ter sido cúmplice das burlas cometidas por HH, ajudando-o e assistindo-o na sua preparação ou uso, na sua qualidade de advogado e de gerente da empresa GG, que devia realizar o recrutamento e a formação de comerciantes capazes de realizar apostas desportivas destinadas a permitir aos investidores realizar os proveitos alegados por CC através dos produtos de Goodsenses representados por BB, bem sabendo que os comerciantes ainda não tinham sido recrutados, que a BB estava inoperacional e por ter no departamento de ..., em território nacional, e de forma indivisível em Portugal, entre 1 de Abril de 2011 e 3 de Abril de 2013, em todo o caso, sem que haja prescrição, participado de uma operação de colocação, dissimulação ou conversão dos recursos obtidos, directa ou indirectamente, do crime de burla em organização criminosa cometido por HH, sob a aparência da sociedade BB, fazendo-se remunerar a título pessoal ou em nome da GG, de que era gerente, através da transferência de fundos procedentes de clientes da BB, destinados a apostas desportivas e cujo pagamento resultou de meios fraudulentos”.
d) Tais factos são susceptíveis de configurar, segundo a legislação francesa, a prática, como cúmplice, de um crime de burla realizada em organização criminosa (“complicité d´éscroquerie realisée en bande organisée) previsto e punido pelos artigos 313.º, n.º 2, alínea 7, 313.º, n.º 1, alínea 1, 313.º, n.º 7, 313.º, n.º 8, 132.º-71 e 121.º-7 do Código Penal e de um crime de branqueamento (blanchiment) previsto e punido pelos artigos 324-1, alíneas 1 e 3, 313-2, alínea 7, 313-1, alínea 1, 324-3, 324-4, 324-7, 324-8, 132-71 do Código Penal.
3. Pelos Serviços do Ministério Público de Vila Nova de Gaia correu termos o processo n.º 2419/12.5 JAPRT originado numa denúncia apresentada, em 28.12.2012, por J... contra “BB – Goodsense Investments Limited” e os seus representantes CC e André Branquinho, a quem o denunciante imputou, em síntese, os seguintes factos:  
“Por intermédio de um familiar, tomou conhecimento que a sociedade denunciada efectuava aplicações financeiras com elevada rentabilidade, pelo que entrou em contacto com a mesma através de um suposto director, de nome ..., e de um angariador, de nome ..., os quais lhe apresentaram uma proposta de aplicação financeira, de capital necessariamente superior a € 10 000,00, que teria uma rentabilidade de 10% de juros mensais, com a opção de capitalização mensal dos juros ou do depósito mensal de 10% do capital em conta, a título de juros.
Perante tal (proposta), em Fevereiro de 2012, decidiu fazer uma aplicação financeira da quantia de € 50 000,00 na sociedade em causa, quantia que entregou em numerário, ficando acordado que os juros mensais seriam depositados em conta por si indicada, sendo aberta uma conta em seu nome, num site da denunciada, à qual acedia através de user e de password que lhe foram fornecidas, com vista a consultar os extractos da mesma.
No entanto, a sociedade denunciada, apenas, procedeu ao depósito na conta bancária por si indicada da quantia de € 4 970,00 a título de juros pelo capital investido, nos termos acordados, não obstante da consulta ao seu extracto veiculado pelo site da denunciada constar que ali eram creditados mensalmente tais juros, os quais nunca lhe foram pagos, por transferência para a sua conta bancária”. 
4. Por versarem sobre factos idênticos, susceptíveis de integrarem o crime de burla ou burla qualificada, foram apensados ao referido processo n.º 2419/12.5 JAPRT os seguintes inquéritos:
- n.º 178/13.3 PHVNG, por denúncia apresentada em 18.03.2013, por ..., contra “BB” e CC;
- n.º 16/13.7 JAFUN, por denúncia apresentada em 07.01.2013, por ..., contra “BB”;
- n.º 17/13.5 JAFUN, por denúncia apresentada em 07.01.2013, por ..., contra “BB”;
- n.º 16/13.7 TASTS, por denúncia apresentada em 16.12.2012, por ..., contra “BB”;
- n.º 284/13.4 JAPRT, por denúncia apresentada em 08.02.2013, por ..., contra “BB”;
- n.º 380/13.8 JAPRT, por denúncia apresentada em 15.02.2013, por ..., contra CC;
- n.º 391/13.3 JAPRT, por denúncia apresentada em 15.02.2013, por ..., contra CC;
- n.º 446/13.4 JAPRT, por denúncia apresentada em 26.02.2013, por ..., contra “BB”;
- n.º 1035/13.9 JAPRT, por denúncia apresentada em 15.05.2013, por..., contra “BB”;
- n.º 1031/13.6 JAPRT, por denúncia apresentada em 15.05.2013, por ... e ..., contra “BB”;
- n.º 8289/13.9 TDPRT, por denúncia apresentada em 07.06.2013, por ..., contra “BB” e “Goodsense”;
- n.º 9778/13.0 TDPRT, por denúncia apresentada em 15.07.2013, por ..., contra “Goodsense Investments Limited” e CC;
- n.º 356/13.5 TDPRT, por denúncia apresentada em 12.06.2013, por ... e ..., contra “BB” e CC;
- n.º 2301/13.9 JAPRT, por denúncia apresentada em 06.11.2013, por ..., contra “BB” e CC.
- n.º 2784/13.7 TDLSB, por denúncia apresentada por ... e ... contra “BB”.
5. No despacho com que encerrou os mencionados inquéritos, o Ministério Público determinou o arquivamento dos autos “por insuficiência de indícios da prática de crime de burla qualificada, ao abrigo do disposto no artº 277º n.º 2 do Código de Processo Penal”.
6. Ainda nos aludidos autos do processo n.º 2419/12.5 JAPRT, foi incorporada uma denúncia apresentada pelo cidadão francês ... (representante da sociedade “Pro-Inox” contra CC, Sisnando Silva, Ângela Negrão, FF e “Goodsense Investments Limited” (também conhecida por “BB” e “Betexcorp”) por factos susceptíveis de integrarem um crime de burla (“escroquerie em bandes organisées”), mas o Ministério Público, também nessa parte, determinou o arquivamento dos autos, “quer por inexistência de indícios de crime, quer por falta de legitimidade para deles conhecer, ao abrigo do disposto no artº 277º, n.º 1 e 2 do C.P.P.”.
7. No processo de que emergiu o presente MDE, o visado ... constituiu seu advogado o Bastonário ..., o qual emitiu a declaração que constitui fls. 387 destes autos (com tradução para a língua portuguesa a fls. 388), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.”  

II.b). – RAZÕES DE DIREITO.

II.b).1. – ENQUADRAMENTO NORMATIVO E APORTAÇÕES JURISPRUDENCIAIS.

A necessidade de criação de um espaço de justiça e liberdade levou os Estados-Membros da União Europeia, após o Tratado de Amesterdão, a implementarem um conjunto de medidas operativas e processuais – aliás, em grande medida estatuídas nos Acordos de Schengen – de modo a, com base numa confiança entre os Estados-Membros e no respectivo reconhecimento mútuo das decisões judiciais, que tinha como pressuposto princípios de democracia e regras de um Estado de Direito, efectivar o direito de cada um dos Estados-Membros aplicar o seu ordenamento jurídico-penal às acções delitivas praticadas no seu território nacional, bem como perseguir os respectivos agentes. Tratava-se, ao final, de reforçar a soberania – aqui vertida no exercício do ius punendi – de cada um dos Estados-Membros, do mesmo passo que, com o reforço da confiança mútua, se afirmava a consciência colectiva de uma União congregadora de princípios e valores que as autoridades respectivas se propunham sedimentar e consolidar.  Cientes das diferenças e especificidades congénitas e especificas de cada ordenamento jurídico-penal e processual-penal os Estados-Membros assentavam que estando firmes regras inderrogáveis e irremíveis de um Estado de Direito democrático todos deviam estar cientes de que – com esse lastro ontológico invadeável de mundividência jurídica – as regras de Justiça seriam cumpridas relativamente a qualquer individuo que um Estado-Membro tivesse que enviar para outro Estado-Membro. [[3]]  

A Directiva em que se plasmaram os princípios e regras material-formais para execução de um mandado de detenção europeu transmite e dá lastro ao conchavo interestadual que se havia logrado.

O mandado de detenção europeu não é um pedido de extradição e reflecte, pela sua categorização conceptual emblemática e na medida em que se nutre e reverbera a  confiança e o reconhecimento mútuo [[4]] das decisões judiciais ditadas em cada um dos Estados-Membros, a capacidade relacional válida e estável entre um dos poderes estruturais e fundantes dos Estados-Membros, a saber o poder judicial. [[5]]

A relação que se estabelece, não deixando, obviamente, de uma relação entre Estados soberanos, converge na formação de um laço institucional entre as autoridades judiciárias de dois Estados-Membros no pleno exercício (constitucional) que lhe está conferido pela estruturação interna de fazer Justiça, onde se contêm e estão associados os poderes de perseguir os agentes criminosos e de os levar a julgamento se um órgão competente para o efeito – normalmente o Ministério Público – encontrar indícios que façam crer a sua inserção na concreta actividade delitiva por que é perseguido (criminalmente).

Num mandado de detenção europeu uma autoridade judiciária pede à congénere de outro Estado-Membro a detenção de um sujeito que ela reputa poder estar involucrado na prática de uma actividade punível pela lei penal do respectivo país e que pretende ouvir, eventualmente acusar e levar a julgamento.

Para satisfação do predito desiderato, pede à autoridade judiciária de outro Estado-Membro que proceda à detenção de uma determinada pessoa e que a mesma lhe seja entregue para os fins inscritos no pedido que haja formulado.
 “Em toda a entrega de sujeitos imputados ou condenados por delito não só se contempla a relação entre os Estados implicados. Pressupõe uma prévia relação entre o Estado de emissão e a pessoa reclamada (fruto do procedimento penal que contra a mesma se dirige) e engendra uma relação entre o Estado de execução e o sujeito a entregar (antes, o procedimento de extradição, agora o de entrega).Desta maneira convergem três campos de direito: o internacional, o penal e o processual. O Direito Penal é expressão da soberania dos Estados e como tal opera com limite da perseguição dos delitos tornando necessários mecanismos de colaboração internacional. Por seu lado, o Direito Processual Penal regula o exercício do ius puniendi mediante um entramado de difíceis equilíbrios entre a protecção de sensíveis e valiosíssimos direitos fundamentais e a necessidade de dotar o Estado das potestades necessárias para proteger a colectividade perseguindo eficazmente os delitos. Uma sorte de «Direito constitucional aplicado» ou de sismógrafo que reflecte os valores básicos plasmados na constituição do Estado. Logicamente cria conflitos quando essa soberania ultrapassa as fronteiras e choca com outras «constituições aplicadas». A entrega de um sujeito pelo Estado em que se haja refugiado, a outro Estado que o persiga penalmente, para que possa exercitar o ius puniendi supõe o máximo nível de cooperação penal. Daí que a extradição, enquanto susceptível de causar gravame irreparável na liberdade de um sujeito junto com a lesão de outros valores, constitua um dos exemplos claros de colisão entre sistemas que não têm por que solver («solventar») de igual maneira esse difícil equilíbrio direitos fundamentais- protecção da colectividade.”     
No que concerne aos princípios inspiradores refere a Autora citada que “o primeiro objectivo que a Ordem de Detenção Europeu (ODE) vem desencadear é o reconhecimento mútuo das resoluções judiciais a que alude o preâmbulo da DM (Directiva Marco, equivalente a Directiva Quadro) que a regula. Sem embargo e pese a enfâse com que se alude à mesma, a regulação mínima que impõe a DM não suprime o procedimento de verificação dos requisitos e garantias da resolução cuja execução se insta, exigindo finalmente uma decisão da autoridade de execução acerca da sua procedência. Daí que se debata na doutrina e nos tribunais se a ODE continua a ser um procedimento de extradição pela sua finalidade, a entrega de um sujeito acusado ou condenado por delito, e limitação de uns mesmos direitos para a levar a efeito, mantendo pronunciamentos recaídos em matéria de extradição para a ODE.

Em segundo, igualmente assinalado na DM (Directiva Quadro) ao mesmo nível que a anterior, é a protecção dos direitos fundamentais. De facto, a melhor maneira de afiançar a confiança recíproca é aumentando esta exigência. E daí que seja básico para a compreensão e interpretação da regulação sobre a ODE o seu respeito escrupuloso. (…) Portanto, na medida em que o reconhecimento mútuo descansa na confiança de que o sistema jurídico do resto dos EEMM é respeitador com o conteúdo absoluto destes direitos [os direitos fundamentais] os tribunais devem interpretar a normativa exigindo que o respeito seja efectivo.” [[6]

A emissão de um mandado de detenção europeu por uma autoridade judicial da União Europeia em que se reclama a detenção e entrega de um determinado sujeito tem em vista i) o exercício de acções penais (entrega para julgamento); ii) execução de uma pena ou medida de segurança privativa de liberdade (entrega para cumprimento).     

Não obstante, não é esta, ou pelo menos não o é em exclusivo, a sua natureza. Em primeiro lugar e como o nome indica, é uma «ordem» ditada por uma AJ (Autoridade Judiciária) para que se proceda à detenção imediata de um individuo dentro do âmbito da EU, equivalente a uma requisitória internacional que precisa de uma prévia resolução pela qual se acorde a privação de liberdade. (…)

Segundo, para além de uma ordem, este instrumento contém uma «solicitação de entrega». (…)

Terceiro, a ODE dita-se através de um «formulário unificado» de que todas as AJ dos EEMM devem dispor.”

Já quanto às características que se indicam para o MDE são: “a) a judicialização, por ser um mecanismo exclusivamente judicial, o que suprime toda a intervenção governativa e o principio da oportunidade, permitindo a cooperação directa entre AAJJ; b) a homogeneização, “a DM assenta em bases de um procedimento comum que todos os EEMM implementaram com uma margem de discricionariedade”; c) harmonização, facilitada por uma formulário comum; d) simplificação, desaparece como fase independente a detenção prévia da extradição; e) celeridade, consequência do desaparecimento da tramitação governativa, da comunicação directa entre as AAJJ e do estabelecimento de prazos muitos breves; f) flexibilidade procedimental, contempla a possibilidade de que o reclamado consinta a entrega, com uma redução drástica do prazos; g) favorecimento da entrega, suprime-se o controle da dupla tipificação para 32 categorias de delitos e reduzem-se os motivos de denegação; e i) garantismo, fortalecendo o respeito pelos direitos fundamentais do reclamado desse o momento da detenção e ao largo de toda a tramitação, aplicando à condenação o tempo de privação da liberdade sofrido pelo motivo de entrega.” [[7]]    

Na jurisprudência deste Supremo Tribunal Justiça, são avonde as decisões que se debruçaram sobre a questão que vem equacionada no tema sob sindicância.

Assim, escreveu-se no douto acórdão, de 5 de Novembro de 2014, desta Secção, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, que: “O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro com vista á detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativa de liberdade-artigo 1º da Lei 65/2003 

A adequação do procedimento, ou o seu campo de aplicação, exprime-se na equação entre o fim concretamente pretendido e a finalidade designada na lei para aquele procedimento, ou seja, a propriedade, ou impropriedade, do procedimento é uma questão de ajustamento da pretensão formulada ao perfil inscrito na lei.  

Nos autos essa pretensão concreta é deduzida em termos formalmente correctos e para conseguir uma finalidade que é a constante da Lei, ou seja, pretende o Estado Francês a entrega de um cidadão holandês a fim de exercer o procedimento criminal por crimes cuja prática está indiciada. 

Sendo patente essa convergência entre o pedido formulado e a norma estruturante do procedimento não compete ao Estado requerente entrar em consideração com factores exógenos que se inscrevem noutro contexto processual.  

Para a validade do mandado apenas releva a sua adequação á finalidade pretendida. 

II. - Num breve apelo à raiz do instituto importa relembrar que o Tratado de Amesterdão, em vigor desde 1 de Maio de 1999, instituiu o Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça - ELSJ (artigo 29º).A cooperação judiciária em matéria penal continuou a fazer parte do III Pilar, não tendo sido "comunitarizada", como o foram a cooperação em matéria civil e as matérias de asilo e emigração. Realçam-se as importantes alterações introduzidas a nível da cooperação penal a qual deixou de ser uma cooperação meramente intergovernamental, dado o crescente papel da Comissão e do Parlamento Europeu. 

Efectivamente, passou a existir a possibilidade de adopção de decisões-quadro para efeitos de aproximação legislativa (instrumento de contornos semelhantes ao da directiva do I Pilar mas sem efeito directo);  

- a Comissão passou a ter direito de iniciativa  

- previu-se, em termos a definir, a participação de autoridades judiciárias e de polícia criminal em acções a realizar no território de um outro Estado Membro;  

- a nível das relações externas, o artigo 38 do TUE veio permitir à União Europeia concluir por, unanimidade, acordos interna­cionais com Estados terceiros ou organizações internacionais em matérias relevantes do III pilar.  

Por outro lado, o Tratado de Amesterdão integrou o "acquis Schengen" no acervo da União Europeia. Um dos objectivos do Tratado de Amesterdão foi facultar aos cidadãos um elevado nível de protecção num espaço de liberdade, segurança e justiça, mediante a instituição de acções em comum no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal, através da prevenção e combate à criminalidade, organizada ou não, em especial o terrorismo, o tráfico de seres humanos, os crimes contra as crianças, o tráfico ilícito de armas, o tráfico de droga e o combate à corrupção e à fraude através, quer de uma cooperação mais estreita entre autoridades judiciárias e outras autoridades competentes dos Estados Membros, quer da aproximação de disposições de direito penal dos Estados Membros.  

0 Tratado de Nice, que entrou em vigor a 1 de Fevereiro de 2003, não introduziu grandes alterações institucionais em matéria de cooperação judiciária penal, traduzindo antes um quadro de continuidade. 

A importância conferida ao Espaço de Segurança, Liberdade e Justiça pelo Tratado de Amesterdão foi reafirmada pelos Chefes de Estado e de Governo, tendo sido realizado um Conselho Europeu em Tampere, em 15 e 16 de Outubro de 1999, exclusivamente dedicado a estas matérias, cujas conclusões são invocadas como fundamento do trabalho da União Europeia em matéria de cooperação judiciária penal nos últimos cinco anos. Mais do que um mero enunciar de princípios, constituíram um desenvolvimento qualitativo nos trabalhos da União Europeia e um momento essencial na história do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. Para além das múltiplas áreas aí elencadas (protecção das vítimas, prevenção da criminalidade, luta contra a Criminalidade - Eurojust, Task Force Chefes de Polícia, equipas de investigação conjuntas, Academia Europeia de Polícia, reforço da Europol, Estratégia contra a droga - acção específica contra o branqueamento de capitais), que foram efectivamente incrementadas, foi retomada a ideia de um Plano de Acção para Concretização do ELSJ, tendo-se concluído que o reconhecimento mútuo de decisões se deveria tomar o eixo essencial da cooperação judiciária na União Europeia tanto em matéria penal como em matéria civil, aplicável quer a sentenças judiciais, quer a outras decisões de autoridades judiciárias.  

Para implementação deste princípio foi adoptado um Programa de medidas destinadas a aplicar o princípio do reconhecimento mútuo de decisões penais com um conjunto de medidas a adoptar e respectivo prazo de adopção.  

O programa de medidas destinado a dar execução ao princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais, referido no ponto 37 das conclusões do Conselho Europeu de Tampere, e aprovado pelo Conselho em 30 de Novembro de 2000, aborda a questão da execução mútua de mandados de detenção.  

Na elaboração da decisão quadro que conduziu á criação do mandado de detenção europeu foi determinante o objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça o que conduziu à supressão da extradição entre os Estados-Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias.  

A instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças, ou de procedimento penal, permitiu suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos actuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que, até á criação da referida figura, prevaleciam entre os Estados-Membros deram lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial, como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.  

O objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduziu à supressão da extradição entre os Estados-Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Acresce que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas, ou suspeitas, para efeitos de execução de sentenças, ou de procedimento penal, permitiu suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos actuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleciam entre Estados-Membros deram lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial como transitada em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.  

O mandado de detenção europeu previsto na decisão-quadro de 2002 constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de "pedra angular" da cooperação judiciária. Pode-se afirmar que o mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros substituindo, nas relações entre os Estados-Membros, todos os anteriores instrumentos em matéria de extradição, incluindo as disposições nesta matéria do título III da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen.  

O seu núcleo essencial reside em que, «desde que uma decisão é tomada por uma autoridade judiciária competente, em virtude do direito do Estado-Membro de onde procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União». O que significa que as autoridades competentes do Estado-Membro no território do qual a decisão pode ser executada devem prestar a sua colaboração à execução dessa decisão como se tratasse de uma decisão tomada por uma autoridade competente deste Estado. [[8]/[9]

III.  - O mecanismo do mandado de detenção europeu baseia-se, assim, sempre num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros. E, desse modo, uma decisão tomada por uma autoridade judiciária competente de um determinado Estado-Membro de onde procede, de acordo com as normas legais deste Estado, essa decisão tem um efeito pleno no Estado que recebe tal ordem. 

Na lógica do procedimento do MDE as autoridades do Estado no território no qual a decisão é executada devem prestar a sua colaboração à execução dessa decisão como se tratasse de uma decisão tomada por uma autoridade competente deste, sendo vedada qualquer indagação sobre as razões de substância ou de procedência em relação ao objecto e ao mérito da questão conforme aponta o do STJ de 29-5-2008, Processo n.º08P-1891, in wvvw.dgsi.pt. - Acórdãos do STJ). 

Resulta do exposto que a decisão relativa à medida de coacção, entre as que constam previstas no Código de Processo Penal (art. 18º, n.º 3 da lei 65/2003), tem que equacionar a natureza específica do mandado de detenção europeu e as razões subjacentes à sua emissão que, no caso vertente, se destina a efectivação do procedimento criminal e apresentação dos arguidos autoridades judiciárias de França, onde está pendente o processo. Tal como refere o despacho recorrido, justificada que se mostra a emissão do MDE por parte de França, os factos são puníveis em Portugal com pena máxima até 10 anos de prisão, tendo sido considerado que a medida de coacção de prisão preventiva era a medida mais adequada e proporcional à satisfação das inerentes finalidades do mandado em causa. 

Tal finalidade específica é a entrega do detido desde que solicitada de forma válida e legal, no cumprimento dos mecanismos da Lei 65/2003. Como se refere em decisão deste Supremo Tribunal de Justiça de 12-7-2007, proc. n.° 07P2712, in http://www.dgsi.pt/. Ac. do STJ "a detenção, para efeitos de execução de MDE, é menos exigente quanto aos requisitos da prisão preventiva, até pelos prazos mais curtos previstos no art. 30.º da Lei n.º 65/03 (cfr., ainda neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.° 228/97 - quanto à detenção para extradição). Por outras palavras  na ponderação dos requisitos da adequação, proporcionalidade e necessidade a gravidade dos crimes indiciados conjuga-se com a necessidade de resposta positiva ao pedido internacional de detenção. 

É nessa lógica que se pronuncia o Tribunal Constitucional quando, em decisão proferida no Acórdão 228/97 refere, a propósito da verificação de eventual discriminação entre uma prisão preventiva para efeitos de extradição e de uma prisão para efeitos processuais penais na ordem nacional que: 

"No caso em apreço, não existe qualquer discriminação não só porque as situações não são verdadeiramente comparáveis como também porque a detenção provisória ou solicitada para efeitos de extradição não é susceptível de ser comparada no que aos respectivos prazos respeita com a prisão preventiva para efeitos penais. 

É um facto inegável existir em ambos os casos uma privação da liberdade: porém, as finalidades que tal privação visa realizar em cada um dos casos são substancialmente diversas. Assim, na extradição - englobando aqui, quer os casos em que há um pedido prévio de detenção provisória quer os casos de detenção antecipada não solicitada - esta detenção destina-se unicamente a permitir tomar uma decisão sobre a extradição por forma, a que esta seja garantidamente efectivada. Pelo seu lado, a prisão preventiva em processo penal visa diferentes fins: garantir a presença do arguido durante o procedimento penal, quando haja fundado receio de fuga, evitar o perigo de perturbação da instrução do processo, caso o arguido se mantivesse em liberdade, receio, fundado de perturbação da ordem ou da tranquilidade pública ou da continuação da actividade criminosa, em razão da natureza do crime ou da personalidade do delinquente." 

Igualmente o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 21-11-2012 acentua o perfil próprio que caracteriza o decretar de medidas de coacção em sede de MDE referindo que: Detenção e entrega são assim os únicos objectivos do mandado de detenção europeu, visando a primeira a efectivação da segunda. Isto é, a detenção no âmbito do mandado de detenção europeu tem por finalidade a entrega de pessoa procurada ao Estado emissor, entrega que, obviamente, só tem lugar após a tomada de decisão sobre a validade da detenção e sobre a verificação dos requisitos legais de que depende a execução do mandado (detenção constitucionalmente prevista conforme preceito da alínea c) do n.º 3 do artigo 27º da Constituição Política. 

Por isso, em princípio, a detenção efectuada no âmbito do mandado de detenção europeu, quando validada pelo tribunal, deve ser mantida até à entrega, sem embargo de poder (e dever) ser substituída por medida de coacção, como estabelece o n.º 3 do artigo 18º da Lei n.º 65/03 , designadamente quando a detenção se mostre desnecessária à obtenção do desiderato do mandado, ou seja, à efectivação da entrega. 

Daí a estrutura específica e urgentíssima atribuída ao procedimento relativo ao mandado de detenção europeu, traduzida na imposição estabelecida no artigo 29º, segundo a qual a pessoa procurada deve ser entregue no mais curto prazo possível, numa data acordada entre o Tribunal e a autoridade judiciária de emissão, no prazo máximo de 10 dias a contar da decisão definitiva de execução do mandado, nos curtíssimos prazos estabelecidos no artigo 30º para a duração máxima da detenção (60 dias sem que seja proferida pelo Tribunal da Relação decisão sobre a execução do mandado, 90 dias se for interposto recurso ordinário daquela decisão e 150 dias se for interposto recurso para o Tribunal Constitucional) e na celeridade imposta no artigo 33º no processamento da execução do mandado, norma que impõe se pratiquem fora dos dias úteis, das horas de expediente dos serviços de justiça e das férias judiciais todos actos processuais relativos ao processo de execução do mandado de detenção europeu, e que declara decorrerem em férias os prazos relativos àquele processo. 

Daí que o período de tempo de privação da liberdade à ordem de mando de detenção europeu só possa ser tomado em conta no prazo de duração ou cumprimento de pena, não tendo qualquer repercussão na medida de coacção de prisão preventiva, como estabelece o n.º 1 do artigo 10º da Lei n.º 65/03.

Concordando com tais pressupostos é evidente também a conclusão de que que, atentas as específicas finalidades que o mandado de detenção europeu visa prosseguir, a detenção e entrega de pessoa procurada se encontram submetidas, em pleno, ao regime jurídico-processual da prisão preventiva, sendo menores as exigências quanto aos requisitos da detenção/prisão e sua manutenção. A manutenção da detenção, suposta a sua validação deve ser equacionada em função das circunstâncias objectivas em que o mandado foi emitido com a finalidade de entrega da pessoa procurada, pelo que a detenção deve ser mantida até à entrega, a menos que se mostre desnecessária. 

Sendo menores as exigências da manutenção da detenção no âmbito do mandado de detenção europeu, aferindo-se a sua aplicação pelas circunstâncias objectivas em que o mandado foi emitido, são também menores as exigências de fundamentação da decisão que a determina.” [[10]]
Na mesma linha argumentativa vai o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Novembro de 2012, relatado pelo Conselheiro Oliveira Mendes.

O mandado de detenção europeu, como expressamente resulta do n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 65/03, de 23 de Agosto (Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu), é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade. Trata-se pois de instrumento legal a utilizar por qualquer dos Estados membros no âmbito do processo penal, destinado à detenção de alguém e à sua entrega, tendo em vista o exercício da acção penal ou o cumprimento de uma pena ou de medida de segurança privativas da liberdade.

Não podendo o Estado emissor do mandado proceder (directamente) à detenção da pessoa procurada, atento a que a mesma se encontra sob a jurisdição de outro Estado, solicita a este Estado a execução da detenção e a entrega da pessoa procurada. 

Ao Estado executor cabe deter a pessoa procurada e proceder à sua entrega ao Estado emissor.   

Detenção e entrega são assim os únicos objectivos do mandado de detenção europeu, visando a primeira a efectivação da segunda. Isto é, a detenção no âmbito do mandado de detenção europeu tem por finalidade a entrega de pessoa procurada ao Estado emissor, entrega que, obviamente, só tem lugar após a tomada de decisão sobre a validade da detenção e sobre a verificação dos requisitos legais de que depende a execução do mandado (detenção constitucionalmente prevista conforme preceito da alínea c) do n.º 3 do artigo 27º da Constituição Política [[11]]).

Por isso, em princípio, a detenção efectuada no âmbito do mandado de detenção europeu, quando validada pelo tribunal, deve ser mantida até à entrega, sem embargo de poder (e dever) ser substituída por medida de coacção, como estabelece o n.º 3 do artigo 18º da Lei n.º 65/03 [[12]], designadamente quando a detenção se mostre desnecessária à obtenção do desiderato do mandado, ou seja, à efectivação da entrega.

O texto do n.º 3 do artigo 18º da Lei n.º 65/03, ao estabelecer que o juiz relator procede à audição do detido, no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, e decide sobre a validade e manutenção desta, podendo aplicar-lhe medida de coação prevista no Código de Processo Penal, considera que a detenção no âmbito do mandado, mais concretamente a sua manutenção, constitui medida autónoma, não totalmente coincidente com as de coacção, designadamente com a prisão preventiva. A letra da lei ao aludir à aplicação de medida de coacção prevista no Código de Processo Penal tout court, e não à aplicação de outra medida de coacção prevista no Código de Processo Penal, estabelece uma clara distinção entre a detenção no âmbito do mandado e a prisão preventiva no âmbito do processo penal.

Daí a estrutura específica e urgentíssima atribuída ao procedimento relativo ao mandado de detenção europeu, traduzida na imposição estabelecida no artigo 29º, segundo a qual a pessoa procurada deve ser entregue no mais curto prazo possível, numa data acordada entre o Tribunal e a autoridade judiciária de emissão, no prazo máximo de 10 dias a contar da decisão definitiva de execução do mandado, nos curtíssimos prazos estabelecidos no artigo 30º para a duração máxima da detenção (60 dias sem que seja proferida pelo Tribunal da Relação decisão sobre a execução do mandado, 90 dias se for interposto recurso ordinário daquela decisão e 150 dias se for interposto recurso para o Tribunal Constitucional) e na celeridade imposta no artigo 33º no processamento da execução do mandado, norma que impõe se pratiquem fora dos dias úteis, das horas de expediente dos serviços de justiça e das férias judiciais todos actos processuais relativos ao processo de execução do mandado de detenção europeu [[13]], e que declara decorrerem em férias os prazos relativos àquele processo. 

Daí que o período de tempo de privação da liberdade à ordem de mando de detenção europeu só possa ser tomado em conta no prazo de duração ou cumprimento de pena, não tendo qualquer repercussão na medida de coacção de prisão preventiva, como estabelece o n.º 1 do artigo 10º da Lei n.º 65/03.[[14]]
Certo é que o Tribunal Constitucional se tem pronunciado, também, no sentido da especificidade própria do regime da detenção no âmbito dos procedimentos de extradição, tendo decidido no acórdão n.º 228/97 que a detenção no âmbito da extradição visa finalidade distinta da prosseguida com a prisão preventiva, sendo que enquanto a detenção no âmbito de procedimento de extradição se destina a permitir a tomada de decisão sobre a entrega da pessoa procurada e, obviamente, a entrega, a prisão preventiva (em processo penal) visa diferentes fins: garantir a presença do arguido durante o procedimento, designadamente quando haja receio de fuga, evitar o perigo de perturbação da instrução do processo, evitar o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas e evitar o perigo de continuação da actividade criminosa. Diversidade de finalidades que, no entender daquele Tribunal, justifica a existência de diferentes regimes no que concerne à possibilidade de privação do direito à liberdade.

Atentas as específicas finalidades que o mandado de detenção europeu visa prosseguir, detenção e entrega de pessoa procurada, temos pois por certo que a detenção efectuada no âmbito do mesmo e a sua manutenção não se encontram submetidas, em pleno, ao regime jurídico-processual da prisão preventiva, sendo menores as exigências quanto aos requisitos da detenção/prisão e sua manutenção. A manutenção da detenção, suposta a sua validação, como já se deixou consignado, é de aferir nas circunstâncias objectivas em que o mandado foi emitido, sendo que à emissão deste subjaz um único desiderato, qual seja a entrega da pessoa procurada, razão pela qual, como também já deixámos dito, em princípio, a detenção deve ser mantida até à entrega, a menos que se mostre desnecessária.

Sendo menores as exigências da manutenção da detenção no âmbito do mandado de detenção europeu, aferindo-se a sua aplicação pelas circunstâncias objectivas em que o mandado foi emitido, são também menores as exigências de fundamentação da decisão que a determina.” [[15]]
Já antes, no acórdão deste Supremo Tribunal, de 28 de Outubro de 2009, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, se havia ponderado que (sic): “O programa de medidas destinado a dar execução ao princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais, referido no ponto 37 das conclusões do Conselho Europeu de Tampere, e aprovado pelo Conselho em 30 de Novembro de 2000, aborda a questão da execução mútua de mandados de detenção.

Na elaboração da decisão quadro que conduziu á criação do mandado de detenção europeu foi determinante o objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça o que conduziu à supressão da extradição entre os Estados-Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias.

A instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças, ou de procedimento penal, permitiu suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos actuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até á criação da referida figura prevaleciam entre os Estados-Membros deram lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial, como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.

O objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduziu à supressão da extradição entre os Estados-Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Acresce que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas, ou suspeitas, para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permitiu suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos actuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleciam entre Estados-Membros deram lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial como transitada em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.

O mandado de detenção europeu previsto na decisão-quadro de 2002 constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de "pedra angular" da cooperação judiciária. Pode-se afirmar que o mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros substituindo, nas relações entre os Estados-Membros, todos os anteriores instrumentos em matéria de extradição, incluindo as disposições nesta matéria do título III da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen. O seu núcleo essencial reside em que, «desde que uma decisão é tomada por uma autoridade judiciária competente, em virtude do direito do Estado-Membro de onde procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União». O que significa que as autoridades competentes do Estado-Membro no território do qual a decisão pode ser executada devem prestar a sua colaboração à execução dessa decisão como se tratasse de uma decisão tomada por uma autoridade competente deste Estado. 

Resulta do exposto a falência do primeiro pressuposto de que arranca o recorrente na impugnação do despacho recorrido, ou seja, ou da possibilidade de equacionar os factos que originaram a emissão do respectivo mandado de detenção europeu.

Na verdade, afastada a existência de motivo de recusa de execução-artigo 11 e seg. do diploma citado- o mandado de detenção adquire plena exequibilidade, não sendo admissível que se recoloquem os fundamentos de facto que o informam. Tal como na transmissão de determinação judicial na ordem jurídica interna também aqui o pedido formulado é cumprido nos seus termos, adquirida que está a sua regularidade formal.

 A invocação do princípio de presunção de inocência não tem aqui qualquer virtualidade para inquinar factos que foram adquiridos em processo com decisão transitada em julgado, ou suficientemente indiciados para permitir o julgamento na ordem jurídica emitente. O funcionamento do mesmo principio tem o seu lugar adequado quando nos tribunais franceses se discutiram, ou se vão discutam, factos susceptíveis de tipificar a incriminação tipificada.
 A admitir a pretensão do recorrente estaria totalmente inquinado o mecanismo do mandado de detenção europeu.

II. -  Importa agora decidir sobre a forma como se desenvolveram no caso vertente as condições e os princípios que condicionam as condições de aplicação da medida de coacção a que alude o artigo 191 e seguintes do Código de Processo Penal. Sublinhe-se que essa medida define o estatuto do recorrente até que exista uma decisão definitiva relativa ao mandado de detenção europeu sendo certo que a mesma deve ser tomada sessenta dias após a detenção-artigo 26 da Lei 65/2003

 Como se refere em decisão deste Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Fevereiro de 2005 a possibilidade de aplicação de medida de coacção de entre as previstas no Código de Processo Penal pressupõe, pois, um juízo que, embora autónomo na competência da autoridade de execução, não pode deixar de estar mutuamente intercondicionada pela natureza do mandado e pelos fundamentos que determinaram a sua emissão - para procedimento penal, ou para execução de uma pena, após a condenação no Estado da emissão.

As condições para aplicação de medida de coacção, quando o procedimento de execução do mandado requeira formalidades ou informações complementares, podem ser mais abertas no caso de detenção para procedimento penal por crime de menor gravidade (embora dentro dos limites que admitem a emissão de mandado europeu) do que nos casos em que a emissão se destina a assegurar o cumprimento de uma pena de prisão de efectiva gravidade.

 Importa, ainda, sublinhar que os termos em que se conjugam as regras inerentes á aplicação da medida de coacção são perfeitamente autónomos a uma ponderação do estado de saúde que amiúde o recorrente invoca e que apenas poderá apresentar relevância em termos de suspensão da execução preventiva tal como se inscreve no artigo 211 do Código de Processo Penal.

Com excepção do termo de identidade e residência, a aplicação de qualquer das demais medidas de coacção está sujeita à verificação, em concreto, no momento da aplicação, de um de três requisitos de carácter geral: fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do inquérito ou da instrução; perigo, em razão da natureza do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade pública.

Para decretar a medida de coacção, foram considerados verificados o primeiro e o terceiro requisitos ou seja o perigo de fuga e perigo de continuação da actividade criminosa

Acerca do requisito perigo de fuga, refere Germano Marques da Silva que “importa ter bem presente que a lei não presume o perigo de fuga, exige que esse perigo seja concreto, o que significa que não basta a mera probabilidade de fuga deduzida de abstractas e genéricas presunções, v. g., da gravidade do crime, mas que se deve fundamentar sobre elementos de facto que indiciem concretamente aquele”. Acrescentando mesmo que “a tradição jurisprudencial portuguesa, influenciada pela legislação do passado e, já perante o Código de 1987, pela norma do art. 209.°, na sua primeira redacção, tem sido muito pouco exigente com a fundamentação fáctica do perigo de fuga; o perigo de fuga é deduzido, regra geral, da gravidade do crime e da capacidade financeira do arguido, o que se nos afigura errado perante as disposições do novo Código.” (Curso de Processo Penal II, pág. 265),

Também Cavaleiro de Ferreira, defendia que “não deve apreciar-se unilateralmente o interesse fundamental de assegurar a execução da sentença final ou de assegurar a presença do arguido no processo, mas deve também atender-se à efectiva probabilidade do risco eventual de insegurança”, e, sobre o perigo de fuga, afirmava que “não é de exagerar, ampliando-o, o perigo de fuga. É um perigo real, mas relativo; pode o arguido ausentar-se para o estrangeiro ou esconder-se em território nacional. Mas a coordenação internacional da repressão criminal e o instituto da extradição tornam cada vez menos seguro um meio de fuga, que aliás, não está à disposição de todos”.” [[16]]

A exposição jurídico-conceptual que perpassa pelos doutos acórdãos transcritos permite dessumir qual a teleologia e os escopos processuais de justiça que os EEMM visaram com a fundação e implementação do MDE.

Numa primeira linha o efectivo e presencial comparecimento e presença de um imputado pela prática de um crime num dos Estados Membros aos actos judiciais tendentes à apreciação e julgamento de feito cometido na esfera territorial do país emissor (aplicação efectiva e real do ius punendi) ou com efectiva, ou fundada alegação de ter ocorrido, ligação ao país de emissão.

Numa segunda linha o asseguramento por parte de um Estado Membro que a aplicação do ius punendi, maxime pela anterioridade de um julgamento e de imposição, por virtude desse julgamento, de uma sanção penal por um tribunal do Estado Membro, é efectivamente executado e realizado no exercício da soberania que lhe é conferido pelo poder de punir aqueles que cometem acções previstas e punidas pela lei penal.

Visando o MDE estes dois escopos a um tempo jurídico-processuais e de afirmação da soberania fundante e constitucional do Estado Membro emissor, ao Estado executor resta pouco mais que não seja a efectivação/asseguramento do pedido que é formulado por um Estado que se coloca na mesma ordem constitucional e cuja legislação comum assume uma feição injuntiva na ordem jurídica interna de cada dos estados Membros que constituem o grupo de nações que constituem o bloco institucional em que se congregam e federam (pelo menos em algumas áreas da organização societária e do Estado).
II.b).2. - Nulidade decorrente da omissão de pronúncia quanto à “exceção à exceção” relativa à abolição do controlo da dupla incriminação e quanto à alegada violação do princípio ne bis in idem (art. 379º, nº 1 al. c) e 412º, nº 2, ambos do CPP; art. 12.º, n.º 1, al. h), subalínea i) e art. 11º, al. b), ambos do RJMDE).
II.b).2.i) – NULIDADE DA DECISÃO POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA.
Em jeito de prolegómeno permita-se-nos tecer umas breves considerações relativas à figura jusprocessual de falta ou omissão de pronúncia.
Genericamente, os actos judiciais cumprem no processo uma função pré-estabelecida e estão preordenada à consecução de um determinado resultado, a emissão de pronúncia por parte de um órgão jurisdicional de um juízo decisório que se possa impor na ordem jurídica a todos os que estejam envolvidos no dissídio de direito levado a tribunal para solução. Porém, a decisão que num procedimento judicial venha a ser proferida deve conter-se dentro dos limites do direito rogado e em congruência com os factos alegados e as provas aportadas pelas partes. [[17]]

A congruência de uma decisão – princípio adoptado de forma expressa no ordenamento jurídico processual espanhol (cfr. artigo 218.º da Lei de Enjuiciamento Civil) – enquanto princípio referente ao desenvolvimento do processo, expressa os limites do juízo jurisdicional, isto é, o âmbito que se deve alcançar e que a sentença não deve ultrapassar, fundamentalmente no aspecto do pronunciamento do veredicto, mas também no intelectual e lógico (fundamentos da decisão). O mencionado principio, que no ordenamento jurídico processual indígena colhe assento nos artigos 264.º e 661.º do Código Processo Civil –aplicável ex vi do artigo 4º do Código Processo Penal –, desdobra-se em três vertentes ou assume-se como polarizador de três proposições paradigmáticas, a saber: adequação da sentença às pretensões das partes, de maneira que aquela dê arrimada resposta a todas estas; correlação entre as petições de tutela e os pronunciamentos da decisão; harmonia entre o solicitado e o decidido.

A congruência de uma sentença atina com uma qualidade que se refere, não à relação entre si das distintas partes e elementos da sentença, mas sim à relação da sentença com a pretensão dos litigantes. Uma sentença é congruente na medida em que decide na coerência interna do processo e é incongruente, ainda que revelando coerência na sua argumentação lógico-racional, se se afasta da estrutura performativa que resulta ou decorre da composição de interesses postos em tela de juízo na causa.

Podem ocorrer incongruências quando na sentença deixam de se fazer declarações que as pretensões exigem ou omitem declarações ou decisões sobre pontos litigiosos. A doutrina alemã e austríaca falam, neste caso, no chamado “instituto do procedimento da integração”. Neste caso, se ocorre omissão de pronúncia não existe violação do princípio da congruência ou seja que a sentença não deve taxar-se de incongruente. Do que se trata é de uma sentença incompleta e o que haverá é que completá-la, mediante petição da parte. Segundo uma corrente chamar-se-ia a este vício “incongruência omissiva”, em violação do que se chama princípio da exaustividade.       

A regra ou princípio da incongruência ou incoerência, que, itera-se, deve cumprir-se entre as alegações de facto, não se aplica relativamente às alegações de direito da acção ou da contestação, já que pode ocorrer divergência e desconformidade entre estas alegações e a decisão, por o tribunal não estar sujeito e vinculado às alegações jurídicas ou indicações normativas que as partes forneçam. Na verdade o tribunal está vinculado ao fundamento, não pela fundamentação, e a fundamentação inclui não só a forma de apresentar os argumentos, mas também os concretos elementos jurídicos aduzidos: os preceitos legais e os princípios jurídicos citados e o entendimento que deles as partes fazem. Consubstancia-se neste procedimento a regra “iura novit curia” – o tribunal conhece do direito e isto porque o direito não tem que ser provado; o tribunal pode e deve aplicar o direito que conhece como estime mais acertado, desde que se atenha á causa de pedir, que dizer, ao genuíno fundamento – não à fundamentação – da pretensão. O pressuposto da correcta aplicação da regra “iura novit curia” é dupla: 1.º que o tribunal respeite, na sua essência a causa petendi da pretensão do litigante; 2.º que os demais litigantes tenham podido, do mesmo passo que o tribunal, conhecer e afrontar esse genuíno fundamento da pretensão, o que equivale à observância dos princípios da igualdade das partes e da audiência ou do contraditório.      
A lei delineia e modela a estrutura da sentença – cfr. artigo 607.º do Código Processo Civil - pontuando as partes em que se estrutura e as questões que deve apreciar e decidir. Delineada a estrutura deste acto jurisdicional (por excelência), o desvio ao figurino gizado pelo legislador ocasiona uma patologia na formação e estruturação da decisão susceptível de ervar o acto de nulidade.
Concretamente apela o recorrente para os vícios contidos na alínea c) do nº 1 artigo 379º do Código Processo, que na lei adjectiva civil corresponde a alínea  d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código Processo Civil, que, preceitua é nula a decisão: “d) quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…).”
Esta nulidade está directamente relacionada com o comando previsto no art. 608º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, e serve de cominação para o seu desrespeito [[18]]. O dever imposto no art. 608º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil diz respeito ao conhecimento, na sentença, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e causa de pedir apresentadas pelo autor (ou, eventualmente, pelo réu reconvinte) suscitam, quanto à procedência ou improcedência do pedido formulado [[19]]. E para que este dever seja cumprido, é preciso que haja identidade entre a causa petendi e a causa judicandi, entre a questão posta pelas partes (sujeitos), e identificada pelos sujeitos, pedido e causa de pedir, e a questão resolvida pelo juiz, identificada por estes mesmos elementos. Só estas questões é que são essenciais à solução do pleito [[20]]. E é por isto mesmo, que já não o são os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos [[21]] – embora seja conveniente que o faça, para que a sentença vença e convença as partes [[22]] –, de que as partes se socorrem quando se apresentam a demandar ou a contradizer, para fazerem valer ou naufragar a causa posta à apreciação do tribunal. É de salientar ainda que, de entre a questões essenciais a resolver, não constitui nulidade o não conhecimento daquelas cuja apreciação esteja prejudicada pela decisão de outra.
Como se escreveu no douto acórdão deste Supremo tribunal de Justiça, de 29 de Janeiro de 2009, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral: “Como se refere em Acórdão deste Supremo Tribunal de 16 de Setembro de 2008 Relator Juiz Conselheiro Henriques Gaspar a omissão de pronúncia constitui uma patologia da decisão que consiste numa incompletude [ou num excesso] da decisão, analisado por referência aos deveres de pronúncia e decisão que decorrem dos termos das questões suscitadas e da formulação do objecto da decisão e das respostas que a decisão fornece.
 Quando se configura a existência de omissão está subjacente uma omissão do tribunal em relação a questões que lhe são propostas. Admitindo que a decisão se consubstancia num silogismo assente na conclusão inferida de duas premissas a omissão de pronuncia implica que uma daquelas premissas está incompleta– artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP.
A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões juiz deve apreciar são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (artigo 660, nº 2 do CPC), e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deva conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.
Retomando ao Acórdão citado as questões que são submetidas ao tribunal constituem o thema decidendum, como complexo de problemas concretos sobre que é chamado a pronunciar-se. Os problemas concretos que integram o thema decidendum sobre os quais o tribunal deve pronunciar-se e decidir, devem constituir questões específicas que o tribunal deve, como tal, abordar e resolver, e não razões, no sentido de argumentos, opiniões e doutrinas expostas pelos interessados na apresentação das respectivas posições (cfr., v. g., os acórdãos do Supremo Tribunal, de 30/11/05, proc. 2237/05; de 21/12/05, proc. 4642/02 e de 27/04/06, proc. 1287/06).
A “pronúncia” cuja “omissão” determina a consequência prevista no artigo 379º, nº 1, alínea c) CPP – a nulidade da sentença – deve, pois, incidir sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido á cognição do tribunal e não aos motivos ou as razões alegadas.” [[23]]
O vício apontado é, digamos assim, um “vício relativo”, ou “sanável”, dado que a lei prevê a sua sanação, em sede de recurso – cfr. artigo 379º, nº 2 do Código Processo Penal – ao determinar que as nulidades da sentença devem ser conhecidas no recurso e supri-las, devendo aplicar-se com as necessárias adaptações  o disposto no artigo 414, nº 4 do mesmo livro de leis. 
II.b).2.ii) - NULIDADE DECISÃO POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA. QUANTO A UMA EVENTUAL DUPLA INCRIMINAÇÃO.
O recorrente apontoou, nas respectivas alegações, as razões por que estima ter o tribunal recorrido incorrido no vício de omissão de pronúncia quanto às questões que foram objecto do pedido de recusa – se bem que uma delas, a referente à violação do princípio do ne bis in idem, por via oral.
Assim “o Acórdão encontra-se ferido de nulidade por omissão de pronúncia quanto a duas questões concretas que foram submetidas à apreciação do Tribunal a quo, desatendendo, ainda, a princípios estruturantes de um Estado de Direito que travejam o ordenamento jurídico português, concretamente a sua soberania penal, bulindo com direitos fundamentais do Recorrente.
O Tribunal a quo não se pronunciou quanto ao invocado controlo da dupla incriminação, circunstância relevante para efeitos de verificação da não punibilidade do crime de branqueamento e da prescrição do crime de burla (simples e qualificada) à luz do ordenamento jurídico português, que o Recorrente havia expressamente suscitado na sua oposição em face de entender – como entendeu o Tribunal a quo – que estava preenchido o critério da territorialidade.
As razões donde o recorrente faz derivar a nulidade da decisão recorrida ancoram, ou assentam, em síntese apertada, na falta de motivação convincente e satisfatória – pelo menos para o recorrente – quanto a questões que haviam sido postas em equação na oposição e que não foram adequadamente respondidas.

Assim, estima o recorrente não se ter o tribunal pronunciado quanto ao “invocado controlo da dupla incriminação, circunstância relevante para efeitos de não punibilidade do crime de branqueamento no caso concreto à luz do ordenamento jurídico português”, porquanto, parecendo ressaltar a existência de uma actividade delitiva imputada ao requerido e levada a efeito em território nacional, “operando a causa de recusa facultativa prevista no artigo 12.º, n.º 1, al. a), poderá (e deverá) o Estado Português proceder ao controlo da dupla incriminação, quer em relação ao crime de burla, quer ao crime de branqueamento, mesmo estando ambos consagrados no catálogo contido no n.º 2, do artigo 2.º.” [[24]]  

Reitera que “quanto ao crime de burla o mesmo encontra-se prescrito, pelo que não mais poderia o Recorrente ser criminalmente perseguido em Portugal pela sua eventual prática.

Por sua vez, no caso dos presentes autos resulta evidente a não punibilidade dos factos, à luz da lei portuguesa, a título de branqueamento, o que constitui razão ponderosa para a recusa da execução, porquanto estamos perante a possível entrega de um seu nacional por alegados factos praticados em território português e que aqui não são puníveis.
O Tribunal a quo nada disse sobre a questão do duplo controlo de incriminação, pelo que se encontra o acórdão ora em crise ferido de nulidade, pois a omissão de pronúncia “existe quando o tribunal deixa de decidir a questão que lhe foi colocada e já não quando deixa de apreciar um qualquer argumento” [[25]] (cfr. art. 379º, nº1 al. c) do CPP).”
Preceitua o preceito adrede (artigo 2º, nº 2 do Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu, que: “será concedida a entrega da pessoa procurada com base num mandado de detenção europeu, sem controlo d dupla incriminação do facto, sempre que os factos, de acordo com a legislação do Estado membro de emissão, constituam as seguintes infracções, puníveis no Estado membro de emissão com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração não inferior a três anos”.

A propósito da excepção da dupla incriminação no âmbito de aplicação do mandado de detenção europeu, escreveu-se na Revista Portuguesa de Ciências Criminais que: “Questão que revela problemas é a abolição da dupla incriminação para a execução do Mandado de detenção europeu. Apesar das visíveis diferenças entre os sistemas jurídicos, diante da confiança mútua que devem demonstrar, os Estados-membros, segundo a norma descrita no artigo 2.º, n.º 2, da Decisão-quadro, devem; naquelas infracções arroladas e quando cominadas penas ou medidas de segurança privativas de liberdade não inferior, na pena máxima, a três anos; cumprir o Mandado de detenção europeu, independentemente do controle de dupla incriminação. Tal abolição é tida como uma das mais evidentes manifestações do Princípio do reconhecimento mútuo.

O princípio da dupla incriminação é uma regra clássica da cooperação internacional em natária penal, a qual consiste em que os fatos, que podem dar ensejo à extradição, devem ser considerados crime, quer no Estado requerente, quer no Estado requerido, o que se mostra justificado pelo fato de a extradição pressupor um acordo, entre os Estados, de quais valores proteger.

Entre a manutenção e a exclusão total da exigência do controle de dupla incriminação, no Mandado de detenção europeu, foi consagrada uma solução híbrida. Tal solução, apontada no artigo 2.º. n.º 2, da Decisão-quadro, informa que as pessoas acusadas ou condenadas pelas infracções nele arroladas, caso puníveis no Estado-emissor com pena ou medida de segurança privativas de liberdade com duração máxima não inferior a três anos, serão entregues sem o controle de dupla incriminação, ou seja, naquelas infracções arroladas, caso preenchido o requisito da duração da pena, não há a necessidade de ser o fato incriminado também no direito do Estado-executor para que a entrega seja realizada. Caso não se amolde a estas ocorrências, o controle de dupla incriminação subsiste para a entrega da pessoa com base num Mandado de detenção europeu.

A vantagem desse método estaria no fato de não abolir a exigência da dupla incriminação nas condutas que revelam "Weltanschauung" e destarte, incriminadas em apenas alguns países.

(…) A noção de reconhecimento mútuo retorna ao aspecto procedimental das coisas. Considerando o Programa de medidas destinadas à sua aplicação, o ‘‘princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais pressupõe a confiança recíproca dos Estados-Membros nos respectivos sistemas de justiça penal. Esta confiança repousa, em especial, na plataforma comum constituída pelo empenho dos Estados-Membros nos princípios da liberdade, da democracia, do respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, e do Estado de direito”.

Entretanto, isso não se refere à questão de fundo do direito penal.

As diferenças, no que tocam as incriminações, não são da competência da confiança mútua, mas de política criminal e mais geralmente do sistema de valores dos Estados-membros,

Na maioria das vezes as diferenças nas incriminações traduzem-se dos diferentes valores adoptados pelos Estados. Isso se torna mais claro quando nos deparamos com delitos relacionados à ética ou à moral.

Exemplos são as condutas de abortamento e eutanásia, as quais, dependendo da orientação ética ou moral de cada Estado, poderão sei, ou não, incriminadas.

Não se trata de desconfiar do sistema jurídico de outro Estado-membro, mas sim de aplicar ou cooperar para aplicar a legislação apenas àqueles valores que o Estado-membro elegeu tutelar.

Pode-se confiar e ao mesmo tempo reconhecer as diferenças entre as legislações, pois ‘‘a confiança será séria se ela não for cega”‘.

Um dos exemplos que podem ser suscitados é o que se relaciona à eutanásia. Pode- se até argumentar que essa não faz parte do rol inserido na Decisão-quadro em estudo, entretanto, não se pode perder de vista que esse catálogo é por demais genérico, possibilitando, inclusive, que a eutanásia seja vislumbrada na infracção ‘‘homicídio voluntário". Recentemente, a Holanda e a Bélgica legalizaram a eutanásia isto é,  tais Estados-membros admitem que pacientes que preencham determinados requisitos legais possuem o “direito de morrer’’. Esses dispositivos legais são manifestações concretas dos valores adoptados pelos cidadãos de cada um desses Estados-membros. Entretanto, com a eliminação a exigência do controle da dupla incriminação no Mandado de detenção europeu, esses valores seriam desconsiderados. Em outras palavras, não obstante seus valores apontarem noutro sentido, esses Estados-membros estariam obrigados a cumprir um Mandado de detenção europeu emitido por qualquer outro Estado-membro para deter e entregar uma pessoa que foi condenada ou está sendo processada pela prática de eutanásia, fato esse admitido em suas legislações.

Deve-se lembrar, ainda, que o processo de construção do espaço europeu ocorre apenas sobre um pressuposto de consenso entre os Estados-membros sobre os valores passíveis de tutela penal e, tal consenso, ocorre à revelia de um debate público e democrático sobre esses bens, os meios adequados de protegê-los e práticas de decisão.

Ainda sobre o exemplo da Eutanásia, uma possível recusa por parte de um dos dois Estados-membros no cumprimento de um Mandado de detenção europeu não implicaria desconfiar do sistema legal e/ou judiciário do Estado-emissor, mas sim de cooperar apenas para a persecução de atentados a valores que adopta.

Destarte, o reconhecimento mútuo, muito embora embasado na confiança recíproca, pode subsistir, sem duvidas, perante o controle da dupla incriminação e vice-versa.

Outro argumento, agora de carácter técnico, consiste na afirmação de que a exigência do controle de dupla incriminação sobrecarrega o procedimento, eis que ao impor uni maior controle, aumenta o risco de impunidade.

A própria comissão ilustra bem esse argumento ao afirmar que ‘‘Os instrumentos jurídicos actualmente vigentes em matéria de reconhecimento de decisões estrangeiras estabelecem que o reconhecimento poe ser recusado nos casos em que não exista um crime dual. Se este requisito do reconhecimento mútuo se mantiver, dever-se-á verificar, no âmbito de cada procedimento de validação, se este critério se encontra satisfeito. Esta abordagem implica uma fase adicional em todo e qualquer procedimento de validação, tornando-o, em alguns casos, consideravelmente moroso’’.

O controle de dupla incriminação pode ser realizado de duas maneiras; in abstracto e in concreto. Na primeira, verifica-se se a qualificação jurídica realizada pelo Estado requerente sobre os fatos é compatível com a qualificação jurídica prevista na lei do Estado requerido, mesmo que não haja identidade material entre ambas. Já na segunda, a verificação engloba, além da qualificação jurídica dada nos Estados, ainda outros elementos objectivos e subjectivos, que possam influenciar na punibilidade do agente, à luz da legislação do Estado requerido, Noutras palavras, a exigência da dupla incriminação pode ser examinada, a princípio, sob dois prismas, na versão mais radical, a dupla incriminação implica, não apenas na análise de ser o fato uma infracção no âmbito do direito do Estado de execução, mas também se deve proceder a um exame de todos os elementos susceptíveis de influenciar na punibilidade ou na justificação do fato. Já na versão mais célere, a dupla incriminação implica apenas verificar se os fatos correspondem a uma inflação prevista no direito do Estado de execução. Na prática se constata que o Juiz, quando é chamado para apreciar a existência da dupla incriminação, procede a uma avaliação in abstracto levando em consideração, além dos elementos constitutivos da infracção, os elementos objectivos tocantes à punibilidade, em especial, as causas de justificação do fato.

Deve-se salientar, entretanto, que a Decisão-quadro apenas faz referência à desnecessidade do controle de dupla incriminação, subsistindo um controle de incriminação dos fatos no Estado-emissor realizado pela autoridade judiciária do Estado-executor. Tal controle, que cabe à autoridade judiciária do Estado-executor, ocorrerá da seguinte forma;

primeiramente, um controle genérico, onde se verificará se o fato que deu origem ao Mandado de detenção europeu faz parte da lista de incriminações constantes na Decisão-quadro, e ainda se foram emitidos por uma autoridade competente; depois, um controle jurídico, que consiste no controle de incriminação do fato no Estado-emissor, onde a autoridade judiciária do Estado-executor fica subordinada à definição legal dos fatos atendendo aos elementos constitutivos do tipo legal do delito tal como previsto na legislação daquele e não na sua legislação.

Ora a própria Decisão-quadro, mesmo abrindo mão do controle de dupla incriminação, determina outro controle, que também é complexo e moroso, e pode causar atrasos no seu cumprimento, mesmo porque parece ser muito mais dificultoso para a autoridade judiciária do Estado-executor proceder ao controle de incriminação do fato sob a égide da legislação do Estado-emissor, do que um controle sob a sua própria lei.

Carece evidenciar, destarte, que facilitar o procedimento não é um dos objectivos do Conselho e, portanto, não pode ser utilizado como argumento para suprimir o controle de dupla incriminação. Outro exemplo disso é a Decisão-quadro relativa ao congelamento de bens, onde se criou em complexo procedimento, que não buscou, de maneira alguma, acelerar o procedimento. Assim, se os procedimentos ditados pelo Conselho tendem a ser mais morosos, por que então não dar prioridade às garantias individuais?

Refutados os argumentos apresentados para a ausência da Cláusula de controle de dupla incriminação, torna-se patente que tal supressão concebe uma limitação ao alcance da soberania, assim como assentimento da validade do sistema de valores dos outros Estados-membros para a perseguição de fatos que relevam da soberania destes, ou seja, a passagem de um imperialismo de soberanias para um reconhecimento mútuo de soberanias limitadas.” [[26]

O tribunal elegeu como tema de discussão, que estimou serem aqueles que o opositor tinha concentrado na sua dilacerada oposição, que enunciou como sendo i) Incompetência dos tribunais franceses para conhecimento dos factos; ii) Prescrição do procedimento criminal; e iii) Conhecimento dois factos pelo Ministério Público. [[27]]       

Ainda que de forma nebulosa e sem menção especifica, nominada e escancarada da figura em causa – dupla incriminação do facto – somos de entender que o tribunal recorrido não deixou de discorrer sobre a questão dos crimes de burla e branqueamento que está assacada ao requerido no mandado de detenção.

Temos para nós que o fez nas considerações que se deixam transcritas em seguida:

As normas aplicáveis são as seguintes:

Artigo 12.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto,  

n.º 1 - A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:

h) O mandado de detenção europeu tiver por objecto infracção que:

i) Segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, no todo ou em parte, em território nacional ou a bordo de navios ou aeronaves portugueses;

Artigo 4.º da DQ 2002/584/JAI do Conselho: “A autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu: 7. Sempre que o mandado de detenção europeu disser respeito a infracção que: a) Segundo o direito do Estado-Membro de execução, tenha sido cometida, no todo ou em parte, no seu território ou em local considerado como tal.

Na tese do requerido, está excluída a competência das Autoridades Judiciárias de França já que “o único elemento de conexão com o território francês é o facto de entre o número de vítimas algumas residirem em França”, sem que, no entanto, estejam identificadas como nacionais deste país.

Os comportamentos, vagos e genéricos, que lhe são imputados (a título de cumplicidade) “sempre haveriam de ter sido praticados em Portugal”.

É a descrição dos factos constante do formulário do MDE que, essencialmente, releva para este efeito e o que dele se colhe é que CC, através de empresas que foi criando (aparentemente direccionadas para a actividade de apostas desportivas), acenando com uma remuneração elevadíssima (da ordem dos 120% ao ano), aliciou milhares de pessoas (cerca de 4.000) a entregar-lhe diversas quantias em dinheiro, sendo o valor mínimo de € 3.000,00, mas tudo isso não passou de um esquema do tipo pirâmide de Ponzi, que naturalmente ruiu, ficando os “investidores” sem o dinheiro e sem qualquer possibilidade de o reaver.

Dos numerosos lesados por esse esquema, cerca de 300 residem em França, no sudoeste, mais exactamente, na região de ...

CC foi detido no dia 15 de Junho de 2015, indiciado pelos crimes de burla em bando organizado e branqueamento, e, nas declarações que prestou quando sujeito a interrogatório, implicou no esquema o aqui requerido AA que, quer enquanto seu advogado, quer como gerente da sociedade “GG”, ajudou à montagem do esquema.

A entrada nas suas contas bancárias pessoais de montantes que totalizaram mais de € 400.000,00, provenientes da “BB”, sem justificação bastante, permitiria “caracterizar a sua participação no branqueamento do produto da infracção”.

É entendimento geralmente aceite que o crime de burla se consuma quando a coisa sai da esfera de disposição patrimonial do burlado, de modo a já não poder obstar a que ela entre na esfera patrimonial do agente.

Embora a descrição dos factos constante do mandado de detenção seja parca e pouco clara quanto às circunstâncias em que terá sido praticado o crime de burla, é possível inferir que as entregas ou remessas dos valores pecuniários que entraram na esfera patrimonial do referido CC ocorreram em território francês, na aludida localidade de .... Por conseguinte, quanto a esses lesados, o crime de burla terá sido cometido em território do EM de emissão.

O cúmplice, sendo um participante, não intervindo na execução do facto (de que não tem o domínio funcional, sendo a sua intervenção acessória) auxilia o autor, facilita o facto do autor, podendo fazê-lo através de auxílio físico (cumplicidade material) ou psíquico (cumplicidade moral), situando-se a prestação de auxílio em toda a contribuição que tenha possibilitado ou facilitado o facto principal ou fortalecido a lesão do bem jurídico cometida pelo autor.

Tendo a autoridade judiciária do EM de emissão competência para conhecer dos factos praticados pelo autor, também a terá para os factos do cúmplice.

Mas, como expressamente se admite na descrição contida no formulário do MDE, alguns dos factos imputados ao aqui requerido, designadamente aqueles que configurariam uma participação no crime branqueamento, ocorreram em Portugal.

Estaria, então, verificada a hipótese legal do citado artigo 12.º, n.º 1, al. h)-i), da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto. O que não significa que se deva concluir pela verificação de causa de recusa de execução do MDE, pois esta terá que ser justificada nas concretas vantagens que a prevalência da jurisdição nacional sobre a do EM de emissão envolva para a investigação e conhecimento das infracções constantes do MDE.

É esse o entendimento que tem sido, uniformemente, adoptado na jurisprudência, como no acórdão do STJ de 15.09.2011: ““II. Consagrando o CP a chamada solução plurilateral ou de ubiquidade, é admissível, em face da própria lei portuguesa, considerar competente a lei e a jurisdição portuguesa, no caso de terem aqui sido praticados factos, ou a francesa, onde se verificou o resultado típico. III. Estando o crime a ser investigado em França, este é o país que se posiciona em melhores condições para conhecer de toda a actividade criminosa e para proceder ao julgamento do conjunto dos factos, independentemente do lugar em que tenha tido lugar cada uma das parcelas da actividade criminosa ou em que tenha actuado cada um dos respectivos agentes. IV. Mesmo havendo possibilidade de o lugar da prática do facto poder ser também em Portugal, a circunstância de a França se posicionar igualmente como lugar da prática do facto, não justifica o uso da recusa facultativa com fundamento no disposto na al. h), segmento i), do n.º 1 do art. 12º da Lei 65/2003, de 25-08”.

Tanto quanto se logrou apurar, em Portugal, nunca decorreu, nem está a decorrer, qualquer investigação para determinar eventual responsabilidade do aqui requerido pelos factos que estiveram na origem da emissão do MDE.

Contrariamente, em França, essa investigação está a ser efectuada, abrangendo um leque alargado de possíveis agentes dos crimes, eventualmente, cometidos e nesse país reside parte substancial dos lesados por essa alegada actividade criminosa. Mesmo que se trate de cidadãos portugueses, é de toda a conveniência que aí se proceda ao julgamento do conjunto dos factos. Aliás, se a figura central desse processo é CC, indiciado como autor de crimes de burla em bando organizado e branqueamento, e se foi este quem implicou no esquema fraudulento o aqui requerido AA, será de toda a conveniência para a descoberta da verdade que, no âmbito do mesmo julgamento, este possa contrapor a sua versão dos factos.

A circunstância de o requerido ter o centro da sua vida profissional, familiar e social na cidade do Porto não é razão suficiente para recusa da execução deste mandado.

Para o recorrente o tribunal fez caso omisso quanto à questão da dupla incriminação i) pela não punibilidade do crime de branqueamento “no caso concreto à luz do ordenamento jurídico português”; ii) e por parte dos factos constantes da incriminação inserta no formulário ter ocorrido em território nacional – cfr. al. a) do nº1 do artigo 12º do RJMDE.

O recorrente/requerido, apelando a diversos ângulos e perspectivando os temas sob diversas orientações – mas perpetuando endemicamente a mesma questão essencial e axial – foi orientando a sua defesa – o que se louva e enaltece – em torno das três questões enunciadas pelo tribunal.

A questão da excepção à excepção da dupla incriminação relativamente ao crime de branqueamento e ao facto de o ordenamento português não ter como subjacente ao crime de branqueamento o crime de burla – que aliás já se encontraria prescrito – foi objecto de análise no troço que deixou transcrito supra pelo que, ainda que não nominado, ele não deixou de ser tema de justificação da decisão não podendo, por isso, decisão de ser taxada como sendo omissa quanto a esta questão.      

A escassez de fundamentação, uma fundamentação deficiente, não convincente, esbagoada ou descentrada – o que não é o caso da fundamentação da decisão sob recurso – não transforma a motivação em “não fundamentação/motivação”. Poderia ser apodada de nímia ou desqualificada – o que, itera-se, não é o caso – mas não a transforma numa decisão omissa, vale dizer não existente ou capitulada, que a arrume no conceito contido na alínea c) do nº 2 do artigo 379º do Código Processo Penal.    
II.b).2.ii). – NULIDADE (POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA) QUANTO À ALEGADA (POR VIA ORAL) DA VIOLAÇÃO DO PRINCIPIO NO BIS IN IDEM.  

Para a não pronúncia da violação do principio do ne bis in idem, alegada por via oral, refere o recorrente que (sic):
O Recorrente suscitou e fundamentou, em sede de alegações orais, a verificação da causa de recusa obrigatória de execução do MDE assente na violação do principio do ne bis in idem (cfr. art. 11.º, al. b), do RJMDE), não se tendo também o Tribunal a quo pronunciado sobre esta questão.
O Recorrente invocou a circunstância de terem sido iniciados e arquivados 16 processos crime, após cerca de 2 anos de investigação, os quais versaram sobre os mesmos factos que estiveram na base do MDE e no âmbito da maioria deles foi constituído arguido CC (cfr. factos assentes 3 e 4) como suspeito da autoria dos crimes de burla, de burla qualificada, de branqueamento e de falsificação de documentos. O Recorrente deu, ainda, conta ao Tribunal a quo que em nenhum daqueles processos foi o seu nome falado, seja pelos denunciados, pelas testemunhas ou por qualquer outro interveniente processual, facto, aliás, expressamente reconhecido no acórdão ora em crise (cfr. fls. 409 § 4 e 412 §4).
Tendo todos os referidos processos crime sido arquivados por ausência de indícios da prática dos crimes denunciados, concretamente pelo mencionado ... (factos assentes nºs 5 e 6 – fls. 402), e estando em causa no processo penal que corre termos em França a comparticipação do Recorrente a título de cumplicidade com ..., inexiste mais forma de o poder envolver na prática dos alegados actos nos processos que correram termos em Portugal, razão pela qual as decisões de arquivamento são necessária e inelutavelmente extensíveis ao Recorrente.
O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu já diversos acórdãos sobre a interpretação do princípio ne bis in idem, expressamente consagrado no art. 54º da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, designadamente os Acórdãos Gözütok/Brügge, de 11.02.2003, (procs. C-187/01 e C-385/01), Kraaijenbrink, de 18.07.2007 (proc. C-367/05), Kretzinger, de 18.07.2007 (proc. C-288/05), Van Straaten, de 28.11.2006 (proc. C-150/05) e Van Esbroeck, de 09.03.2005 (proc. C-436/03), decisões essas que, por via do Acórdão Mantello, de 16.11.2010, (proc. C-261/09), são aplicáveis à Decisão-Quadro do Conselho, de 13.06.2002, relativa ao MDE e, consequentemente, ao art. 11º, alínea b) da nossa Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, clarificando, entre outros, os conceitos de “decisão definitiva” e de “mesmos factos”.    
O TJUE concluiu que o princípio ne bis in idem se aplica também a procedimentos que envolvam a extinção da acção penal por via dos quais o Ministério Público de um Estado-Membro arquiva, sem intervenção de um órgão jurisdicional, o procedimento criminal instaurado nesse Estado.
A possibilidade de reabertura do processo penal em face do surgimento de novos elementos incriminatórios não afasta a verificação da referida causa obrigação de recusa da execução do MDE para salvaguarda do princípio ne bis in idem - Acórdão M. (proc. C-398/12) do TJUE e Acórdão Zolotoukhine c. Rússia, de 10 de fevereiro de 2009 (nº 14939/03, § 83), do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
M) O Ministério Público sempre estaria irremediavelmente impedido de reabrir os inquéritos em causa sobre os factos que neles foram exaustivamente investigados e que coincidem com aqueles que integram o MDE emitido pelas autoridades judiciárias francesas em face da prescrição do crime de burla e de burla qualificada em Março de 2017.
Versando este ponto de impugnação da decisão, escreveu-se no acórdão recorrido a ponto da violação do invocado “Erro quanto à causa de recusa facultativa de execução prevista no artigo 12.º, n.º 1, al. a) e h) subalínea i) do RJMDE”, que (sic): “3. Conhecimento dois factos pelo Ministério Público.       

Normativo aplicável:

Artigo 12.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto

n.º 1 -   A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:

(…) c) Sendo os factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu do conhecimento do Ministério Público, não tiver sido instaurado ou tiver sido decidido pôr termo ao respectivo processo por arquivamento;

Artigo 4.º da DQ 2002/584/JAI do Conselho: “A autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu: “3. Quando as autoridades judiciárias do Estado-Membro de execução tiverem decidido não instaurar procedimento criminal, ou pôr termo ao procedimento instaurado, pela infracção que determina o mandado de detenção europeu ou quando a pessoa procurada foi definitivamente julgada num Estado-Membro pelos mesmos factos, o que obsta ao ulterior exercício da acção penal”.
Como decorre do que se considerou assente, o caso não é desconhecido do Ministério Público em Portugal, houve, pelo menos, dezasseis denúncias que deram origem a outros tantos inquéritos e o desfecho foi o arquivamento dos autos “por insuficiência de indícios da prática de crime de burla qualificada, ao abrigo do disposto no artº 277º n.º 2 do Código de Processo Penal”.
Com a consagração desta causa de recusa facultativa, visa-se, não só impedir a dupla punição, mas também a repetição do procedimento criminal contra a mesma pessoa.
No entanto, como sustenta o Sr. Procurador da República na sua resposta à oposição deduzida (fls. 319 e segs.), não existe identidade subjectiva nem o objecto do processo, no seu aspecto material, é o mesmo.
Em nenhum dos mencionados processos o aqui visado foi denunciado, suspeito ou arguido nem os factos susceptíveis de configurar cumplicidade no crime de burla e, sobretudo, no crime de branqueamento foram objecto de investigação e de decisão de arquivamento do inquérito.
Por tudo isto se conclui que não se verifica, no caso, motivo de recusa da execução do mandado.

Para efeitos do disposto no art.º 10.º do RJMDE (desconto do período de detenção resultante da execução do MDE), consigna-se que a pessoa procurada foi detida em 20 de Setembro de 2017 e, após a sua audição em 21.09.2016, foi restituída à liberdade.” [[28]]
Valem para este apartado os argumentos usados no precedente. O tribunal pronunciou-se, ainda que sob uma designação ou terminologia diversa da utilizada pelo requerido, sobre a questão de terem sido instaurados procedimentos contra o autor da burla e, como se assevera na decisão recorrida, em nenhum deles o cúmplice, aqui recorrente, consta como patenteado e versado. O aqui requerido não foi investigado, vale dizer não se encontrava na posição de suspeito, ou indiciado, nos processos que em Portugal versaram sobre a actividade criminosa de que agora se encontra indiciado em França.
Definitivamente, o Estado português não perquiriu ou perseguiu criminalmente o visado no mandado de detenção europeu que versamos.       
Não ocorreu falta de pronúncia sobre esta concreta questão.
II.b).3. – Nulidade por falta de exame crítico das provas apresentadas, concretamente os depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas, bem como a declaração escrita prestada, sob compromisso de honra, pelo Senhor Bastonário ..., advogado francês do Recorrente, relativa à (não) intervenção processual do Recorrente no processo em curso junto do Tribunal Criminal de Montpellier e já em fase de julgamento (art. 379º, nº 1 al. a) e 374, nº 2, ambos do CPP).
Finalmente – “last but not the least” – o tribunal recorrido teria irrogado a pauta processual por (sic): “O Tribunal não se pronunciou sobre o conteúdo da declaração prestada sob compromisso de honra (“affidavit”) pelo Senhor Bastonário ..., advogado do Recorrente em França (fls. 387 e 388), nem sobre o depoimento das testemunhas prestado nos presentes autos, não tendo, como lhe competia, feito qualquer exame crítico daqueles elementos probatórios com a consequente valoração dos mesmos.
O) O Recorrente soube apenas pelo advogado francês que mandatou após a sua detenção – e não por via do MDE - que se encontra agendada uma audiência de julgamento em França, para o próximo dia 13 de dezembro de 2017, (i) sem que ao mesmo tenha sido dado conhecimento de uma alegada acusação, (ii) sem que ao mesmo tenha sido dada a oportunidade de se pronunciar sobre os factos que lhe são imputados, (iii) sem que ao mesmo tenha sido dada a oportunidade de exercer o contraditório, produzir a prova que entender conveniente, enfim, (iv) sem que ao mesmo tenha sido dada a oportunidade de se defender de forma justa e equitativa, representado por advogado, em igualdade de armas com o Ministério Púbico (“le Parquet”).
P) As circunstâncias descritas configuram uma afronta aos mais elementares direitos de defesa do Recorrente que alicerçam o ordenamento jurídico penal de qualquer Estado de Direito e, por essa razão, estão expressamente previstos na Constituição da República Portuguesa (art. 32º), bem como na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 6º). 

A omissão acoimada ao acórdão recorrido assenta numa ausência de motivação da decisão, mais concretamente de não alusão/referência à declaração prestada e afiançada (por via documental – cfr. fls. )  de um senhor Advogado francês nem das testemunhas ouvidas no âmbito da produção de prova (cfr. fls. )

Versando este ângulo da falta de fundamentação tivemos oportunidade de escrever em diversos acórdãos – tanto nesta jurisdição com na jurisdição cível – que: “Discreteando sobre a decisão judicial, ..., magistrado do Ministério Público, junto do Tribunal Supremo (do reino de Espanha), estima que na primeira linha das considerações a ponderar é “a circunstância de que a decisão judicial se pronuncia sempre perante pessoas: o mandato jurídico , em que ao fim e ao cabo se resume a sentença, tem como termino ou destinatário uma pessoa, que resulta especialmente obrigada ou afectada per ele; assim, para pôr um exemplo, no processo penal a sentença condena ou absolve uma pessoa, contra a qual se desenvolveu o processo, sem prejuízo de que, ao mesmo tempo, a sentença afecte de maneira considerável outras pessoas, como o possível prejudicado, assim como a quem haja, eventualmente, actuado como acusador particular, e, desde logo, afecta a sociedade em geral, sempre interessada na correcção da sentença penal, que, por isso, tem como valedor permanente no processo o Ministério Público. O mesmo se pode dizer das demais manifestações do processo. O facto de a sentença se pronuncie perante cidadãos, que ostentam a dignidade de pessoas é a origem e fundamento dessa série de exigências éticas (…). A dignidade da pessoa, que é qualidade inerente aqueles que vão a suportar as consequências da decisão judicial consiste em que se trata de seres humanos dotados de consciência moral, que dizer seres racionais, que possuem inteligência e vontade com a possibilidade consequente de decidir-se a obrar sob o pressuposto da liberdade.”     

O mandato jurídico em que a sentença se transverte “exige que o dito mandato seja racionalmente aceitável, congruente com o actuado no processo e proferido com clareza suficiente de forma a resultar plenamente inteligível, pois todas essas qualidades da decisão são necessárias para que se produza esse assentimento racional ao mandato da sentença e com ele a consequência do seu acatamento e espontâneo cumprimento.” [[29]]   
Sendo a sentença um acto do juiz que ao mesmo tempo actua como pessoa e na sua condição oficial como sujeito dotado da autoridade de Estado, “ao qual deve respeito e obediência”, ela deve reverberar uma procura de justiça e da verdade. [[30]
A sentença, como abside do realizar jurisdicional, deve ser motivada – artigo 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e artigo 154º do Código Processo Civil – o que “implica a introdução na sentença de um discurso lógico, que deixe clara a conexão existente entre cada uma das afirmações fácticas discutidas no processo e a prova que levou o julgador a ter por verificado/acreditado o facto discutido.” [[31]
A sentença, constitui-se como acto indiscernível de julgar e capaz de fornecer uma solução/resolução de conflitos de interesses particulares e/ou entre particulares e entidades públicas, afirmando a sua validade e aceitação formal-substantiva se enformada de requisitos formais e substantivos prescritos no ordenamento respectivo.
A sentença penal – cfr. artigo 374º do Código Processo Penal – compõem-se, na sua estruturação lógico-formal, de um relatório, de uma parte fundamentadora e de um dispositivo.
O dever de fundamentação, ou de fundamentação/motivação, das decisões judiciais vem vincada de forma impertérrita, irrefragável e indelével na ordenação fundamental – cfr. artigo 205º da Constituição da República Portuguesa [[32]] e no artigo 6.I da Convenção Europeia dos Direitos do Homem – o que tem levado o TEDH a afirmar que as sentenças, tanto dos tribunais de instância como dos tribunais superiores, “a oferecer de maneira adequada as razões em que se fundamentam. O alcance de este dever de fundamentação pode ser distinto segundo a natureza da resolução e deverá determinar-se em cada caso”. [[33]

É consabido, e não é demais afirmá-lo, que é através da sentença que o tribunal procede à reconstituição/interpretação de factos históricos, procedendo, depois, à sua integração/valoração à luz de normas jurídicas pré-existentes, concluindo dessa operação com o veredicto jurisdicional que deve ser acatado por aqueles a quem, ou contra quem, o dictum é proferido. 

Neste proceder/refazer histórico, o tribunal socorre-se de regras de experiência e de métodos lógico – racionais que possibilitem demonstrar a verosimilhança da situação reconstituída com o real acontecido – cfr. Paolo Tonini, La prova Penale, Cedam, 200, apg. 27 e segs. e Winfried Hassemer, Fundamentos del Derecho Penal, Bosch, pag. 179 e segs.(Na acepção deste segundo Autor a reconstituição do sucedido prende-se com o princípio da verdade material e da racionalidade do direito da prova e, ainda, da essência da compreensão (aqui nas vertentes da compreensão cénica e da compreensão textual).

 No dizer de Andrea António Dália e Marzia Ferraioli “a sentença tem um duplo conteúdo, porque é, a um tempo uma declaração de vontade e um acto de inteligência: exprime a aplicação da norma no caso concreto e dá razão de tal aplicação” – Manuale di Diritto Processuale Penale, Cedam, pag. 749. É com base nas provas que foram adquiridas para o processo (ou no decurso do processo), que o juiz reconstitui o facto histórico cometido pelo imputado (mottivi “in fatto”); logo (a seguir) interpreta a lei e precisa o “fatto típico”, previsto na norma penal incriminadora (mottivi “in diritto”), finalmente valora (aprecia) se o facto histórico “rientra” no facto típico (giudizio di conformitá) – op. loc. cit. pag. 28.

O tribunal tem a obrigação de expor as razões de facto e de direito que enformam a sua convicção e justificam a sua decisão, num ou noutro dos sentidos possíveis que qualquer situação histórica pode conter. Não pode o tribunal bastar-se com alusões pervagantes dos momentos probatórios em que se vazou a actividade probatória, nem em asserções apodícticas de juízos adquiridos em concepções pré – estabelecidas. Deve o tribunal expor as razões da sua convicção adquirida num “ragionamento” objectivo, lógico e arrimado às regras comummente assimiladas pelo proceder do homem em sociedade e segundo padrões de razoabilidade e bom senso. 

A obrigação de motivação dos actos judiciais está consagrada constitucionalmente e tem o seu vazamento em todos os ordenamentos jurídico-adjectivos.(“O juiz deve dar conta dos resultados probatórios adquiridos e dos critérios com base nos quais valorou tais resultados. Deve, portanto, proceder à exposição concisa, mas exaustiva, dos motivos de facto e de direito sobre os quais funda a decisão, com indicação dos elementos de prova que lhe estiveram na base e a enunciação das razões que o induziram a julgar não atendíveis os elementos de prova contrários”). [[34]]

Deve, pois, o julgador, quando obtém, e depois propõe e assume, uma determinada convicção, elucidar as pessoas a quem se dirige quais foram os caminhos percorridos para chegar até ela e os meios de prova que valorou e quais desbordou para se alçar à decisão conviccional que verteu no texto decisório. Não basta uma simplista e cómoda alusão que, em relação a um determinado facto ou a um conjunto, mais ou menos alargado de matéria factual, bem com a vaga indicação de que ocorreu ausência de prova. Exige-se que o julgador joeire a prova, indique pontos de convergência e de divergência, suscite e convoque os dissídios entre os distintos elementos probatórios em confronto, procure estabelecer a plataforma de consenso que, razoavelmente, e de acordo com as regras normais do proceder e do agir humano e societário, naquela concreta e histórica situação se apresentam como mais plausíveis, aceitáveis e credíveis, por forma a que a verdade histórica e processual fique inconcussa e se perfile como logicamente compreensível. [[35]] É necessário que aquele que tem a função de julgar, em obediência e com arrimo à lei e ao direito, procure explicitar as razões das suas decisões e, mais ainda, que dê a conhecer o iter racional e lógico por que chegou aquela e não a outra decisão.

T. Sauvel, citado por Chaim Perelman, num artigo denominado “Histoire du jugement motivé”, considera que “motivar uma decisão é expressar-lhe as razões. É, deste modo, obrigar quem a toma a tê-las. É afastar toda a arbitrariedade. Somente graças á motivação aquele que perdeu um processo sabe como e porquê. A motivação convida-o a compreender a sentença e não o deixa entregar-se por muito tempo a amargo prazer de “maldizer os juízes”. [[36]] É ainda este autor quem, impressivamente, incute a ideia de que “a sentença motivada substitui a afirmação por um raciocínio e o simples exercício de autoridade por uma tentativa de persuasão. Desempenha, desta forma, no que poderíamos chamar de equilíbrio jurídico e moral do país, um papel absolutamente necessário”.

Através da motivação judiciária associa-se a demonstração e a justificação das decisões judiciais, “afirmando-se um lugar onde para usarmos a terminologia de Robert Alexy, se exprime a justificação interna da decisão ou da justeza do dispositivo da aplicação do direito, de feição demonstrativa, e a justificação externa da decisão, justificação propriamente dita dos motivos que determinaram as escolhas, de feição mais argumentativa e que constitui o paradigma de fundamentação de fundamentação em Filosofia”. [[37]]

“A justificação judicial pode, portanto, cumprir outras funções: “Trata-se de tratar um ser humano racionalmente, isto é, como um ser racional, explicando-lhe, através das razões porque se pode chegar a uma decisão que afecta adversamente os seus interesses. O próprio Luhman considera necessário “que os não participantes cheguem a uma convicção de que nada de estranho está acontecendo, de que a verdade e a justiça estão sendo

estabelecidos com esforço sério, sincero e árduo e que eles também, se for necessário, terão assegurado os seus direitos pelo recurso a esta instituição”. [[38]]
O imperativo jurídico-legal de motivação configura-se como uma necessidade de apresentar a decisão judicial como um exercício lógico-racional e medianamente apreensível ao comum dos destinatários, sob pena de um acto judicial se transverter num exercício de auto-ilusão pessoal e/ou institucional, apenas perceptível pelos detentores do jargão terminológico jurídico, o que vale por dizer por aqueles que não precisam de ser convencidos, ou que menos precisam de o ser, dada a sua familiaridade com a matéria
Intentando estabelecer um linde conceptual entre «motivação», «fundamentação» e «justificação», refere Aliste Santos que, tomando como correcta a definição que do primeiro dos conceitos dá Perelman “motivar é justificar a decisão tomada proporcionando uma argumentação convincente e indicando o bem fundado das opções que o juiz efectua.”
Por seu turno, o termo «fundamentação» refere-se “à origem certa da qual parte o razoamento posterior, quer dizer às premissas nas quais se funda, origina e cimenta o edifício argumentativo da motivação erigido sempre a posteriori. Do mesmo modo que sucede com o caso da «explicação» ambos os conceitos se movem no contexto de descobrimento, no entanto, fundar a decisão jurídica diversamente de explicá-la não supõe fazer explícito o iter mental seguido até à mesma, mas antes em fazer expressas as premissas a partir das quais se desenvolve a explicação posterior que conduz à resolução. O conceito de «argumentação» engloba o conjunto de razões que o proponente (o Juiz) dirige ao auditório (as partes) com o efeito de persuadir sobre a bondade e solidez das mesmas. A argumentação, como diz Nieto, seria a forma de expressar e defender o discursivo justificativo. Pelo contrário, a justificação, na sua pureza (“en puridad”) parece referir-se a um âmbito conceptual posterior à busca das premissas de razoamento, que também vai mais além da «justificação» e da simples «explicação».” [[39]]       
O artigo 374º do Código Processo Penal, ao referir-se, no nº 2, à obrigação de «fundamentação» da decisão não terá deixado de ter presentes os conceitos que atrás se deixaram esquissados e terá querido inculcar uma função fundamentadora, com explicitação dos «motivos» em que assentam e radicam as premissas, lógico-dedutivas, que justificam as razões pelas quais o proponente (o juiz) assume o juízo valorativo em que se irá verter a solução adoptada. Ao fundamentar o proponente (juiz) exprime ou exterioriza as razões, argumentos e razoamento em que funda a sua convicção valorativa advinda do conjunto de elementos probatórios que lhe foram aportados pelos sujeitos processuais.           
A doutrina estrangeira elege a motivação como ponto de toque da estruturação da decisão judicial compelindo, na formulação injuntiva e/ou preceptiva do dever de julgar, a obrigação do tribunal, na sua função extraprocessual, demonstrar a justeza e bondade lógico-racional da decisão que adopta. “[O] juiz está obrigado a racionalizar o fundamento da decisão articulando os argumentos (as «boas razões») em função das quais aquela pode resultar justificada: a motivação é, então, um discurso justificativo constituído por argumentos racionais.” [[40]]           

A motivação é informada, ou perpassada, por um princípio basilar, qual seja o da completude. Finca-se este princípio na necessidade de uma justificação cabal de todas as razões que determinaram a valoração (lógico-racional), tanto de facto como de direito, em que o Juiz se escorou para conferir determinada opção ou eleição decisória.

No ensino de Michele Taruffo o princípio da completude comporta duas implicações. [A] primeira implicação é que a motivação completa deve incluir tanto a chamada justificação interna, que atende à conexão lógica entre premissas de Direito e premissa de facto (a chamada subsunção do facto à norma) que sustenta a decisão final, como a justificação externa, quer dizer, a justificação das eleições das premissas das quais deriva a decisão final. A justificação externa da premissa de facto da decisão concerne às razões pelas quais o juiz reconstruiu e determinou de uma dada maneira os factos da causa: estas razões referem-se, essencialmente, às provas das quais o juiz se serviu para decidir acerca da verdade ou falsidade dos factos.” [[41]]       

No entanto, como adverte este autor, torna-se necessário eliminar um equívoco, consistente em considerar que a motivação é uma espécie de registo do razoamento que o juiz desenvolveu para chegar à decisão. “[P]elo que respeita à motivação do juízo de facto, a motivação seria então uma espécie de narrativa (recuento) do que o juiz havia pensado ao praticar as provas, ao valorá-las e ao derivar delas a decisão final. Trata-se de uma concepção errada: há que distinguir entre o razoamento com que o juiz chegou a uma decisão e o razoamento com que o juiz a justifica. O primeiro razoamento tem um carácter heurístico, procede por hipóteses verificadas e falseadas, inclui inferências abdutivas e articula-se numa sequência de eleições até à eleição final sobre a verdade ou falsidade dos factos. A motivação da decisão consiste num razoamento justificado que - por assim dizer - pressupõe a decisão e está dirigida a mostrar que há «boas razões» e argumentos logicamente correctos, para a considerar válida e aceitável. Naturalmente, pode suceder que haja pontos de contacto entre as duas fases do razoamento do Juiz: o juiz que sabe que deve motivar estará induzido a razoar correctamente ainda quando está valorando as provas e formulando a decisão. O mesmo juiz ao redactar a motivação, poderá completar argumentos e inferências que formulou ao valorar as provas e ao configurar a decisão final. Isto não demonstra, sem embargo, que as duas fases de razoamento do juiz tenham a mesma estrutura e a mesma função, nem muito menos que uma possa considerar-se como uma espécie de reprodução da outra,” [[42]/[43]]

Assim é que, por exemplo, quando um tribunal procede à reapreciação da decisão de facto deve motivar a sua decisão, conformando e satisfazendo a exigência constitucional imposta aqueles a quem a lei confere o poder de administrar a justiça, e como forma de esse poder aparecer aos olhos dos destinatários de veredicto judiciário legitimado e reconhecido pela racionalidade e vinculação a valores de justiça e não por assumir decisões fundadas na discricionariedade, na irrazoabilidade e no arbítrio. Os destinatários da decisão, porque, de ordinário, são por ela afectados na sua esfera de interesses, devem poder conhecer as razões e motivos porque o tribunal assumiu, ou elegeu, uma determinada opção em detrimento de outra. A realização de um juízo de justiça deve, assim, ser suportada pelo razoamento e pela explicitação dos motivos e razões que determinaram um órgão investidos do poder de julgar opcionou num determinado sentido factual e/ou jurídico. E isto, como se deixou aflorado deve ser assumido tanto na sua vertente endoprocessual como extraprocessual, confirmando desta forma uma das funções determinantes da acção jurisdicional na legitimação interna e externa do processo. [[44]]

Entre os aspectos determinantes da função extraprocessual da motivação, Michele Taruffo assinala a instrumentalidade que caracteriza a obrigação constitucional da motivação [c]om respeito às garantias fundamentais relativas á administração da Justiça: é mediante a motivação, com efeito, que se torna possível controlar se em cada caso se cumpriram efectivamente princípios como o da legalidade ou os atinentes ao “devido processo”. “Outro aspecto relevante de la función de la motivación, que está en el lundamenta de su obligatoriedad, es que induce al juez a demostrar, justificando su decisión, que hay razones válidas para considerar la decisión misma como coherente con el sistema jurídico en el que se inserta. En este sentido, la motivación desarrolla una función de legitimación de la decisión, em cuanto muestra que responde a critérios que guían el ordenamiento y gobiernan la muestra la actividad del juez”. [[45]]  

Discorrendo sobre a natureza da motivação este autor assevera que não será correcta a ideia que parece querer impor-se de que o juiz deveria reproduzir o percurso lógico e psicológico da decisão que tomou “[a] a decisão estaria motivada sobre a base de uma espécie de explicação, quer dizer sobre a base de momentos e passagens mediante os quais a decisão se foi formando na mente do juiz”. “Este modo de entender la motivación como un discurso que desenhe la formación de la decisión está bastante difundido pero es impropio y está sustancialmente equivocado por varias razones que se pueden indicar sinteticamente.” [[46]] A primeira é que a psicologia da decisão e a estrutura da sentença não são coisas qualitativamente diferentes e deve ser evitada a confusão entre elas. Por outro lado parece óbvia a impossibilidade de, para o juiz, redactar uma espécie de registo ou reconto das suas próprias passagens mentais para explicar como chegou á decisão: “[el] procedimiento mental  del juez se desarrolla em vários momentos en el curso del proceso, y sóIo al flnal lleva a cabo la decisión final.” “En otros términos lo que se exige al juez cuando se le impone la obligación de motivación, es suministrar una justificación racional de su decisión, es decir, desarrollar un conjunto de argumentaciones que hagan que su decisión resulte justificada sobre la base de critérios y estándares intersubjetivos de razonamiento. Si se acoge, como parece necesario, la concepción «legalracional» de la justicia, em los términos que han sido establecidos claramente por ejemplo, por Jerzy WROBLEWSKI con referencia a ordenamientos que – como el nuestro – están marcados por el principio de la legalidad, resulta evidente que la motivación de la sentencia consiste precisamente en un discurso justificativo en el que el juez enuncia y desarrolla las «buenas razones» que fundamentan la legitimidad e la racionalidad de la decisón”. [[47]]  

Arrancando destes ensinamentos, o juiz que reaprecia a prova, em via de recurso, deve “[S]iempre y cuando eI juez haya motivado su razonamiento probatório, el juez ad quem podrá revisar las declaraciones prestadas por los sujetos del  proceso, y comprobar que efectivamente eran coherentes, estaban corroboradas, contextualizadas y no contenían detalles oportunistas, siempre que cada uno de esos aspectos sea relevante en el caso concreto, […] El juez de apelación, finalmente, puede hacer algo más que descubrir los errores en el razonamiento probatório de la forma indicada. También puede, a raiz del descubrimiento de dichos errores, valorar conjuntamente toda la prueba practicada y extraer una versión diferente a la afirmada por el juez a quo.” [[48]]

Já quanto ao razoamento necessário e institucionalmente validante de uma decisão judicial este Mestre processualista italiano refere que o razoamento do juiz – para aqueles que, como ele, inculcavam à fundamentação (motivação da decisão judicial) uma distinção entre razoamento decisório e razoamento justificativo – se devia desdobrar em dois planos, pois “uma coisa é o procedimento através do qual o juiz chega a formular a decisão final, mediante uma concatenação de eleições, de hipóteses constatadas como falsas ou confirmadas, de mutações que intervêm no curso do processo, de elaborações e valorações que desembocam na decisão final; e outra coisa é o razoamento com o qual o juiz, após haver formulado a decisão final, organiza um razoamento justificativo no qual expõe as «boas razões» em função das quais a sua decisão deveria ser aceitada como válida e compatível.”

Refere o autor que esta distinção e forma de enquadrar o razoamento judicial, se equivale ao context of discovery: “que tinha características estruturais próprias: articula-se no tempo, implica a síntese de diversos factores, procede através de abduções e de trial and error, percorre caminhos que logo são abandonados, inclui a influencia de factores psicológicos e ideológicos, implica juízos de valor, e pode inclusivamente compreender a participação de várias pessoas, como ocorre em todas as hipóteses nas quais a decisão é tomada por um colégio de juízes.” Por outra parte o equivalente do context of justification apresentar-se-ia como sendo verdadeiramente como a motivação da sentença. Esta motivação configurar-se-ia como sendo aquela que surge quando a fase decisória já está esgotada e a decisão final já foi assumida “não tem a função de formular eleições, mas sim mostrar que as eleições que se realizaram foram «boas»; tem uma estrutura argumentativa e não heurística; tem uma função justificativa ; é um discurso – e, portanto uma entidade linguística – e não um iter psicológico; funda-se em argumentos com valência tendencialmente intersubjectivo; está estruturada logicamente: pode incluir inferências dedutivas e indutivas, mas não de abdução, e assim sucessivamente.” [[49]]

Se não se pode saber com o juiz tomou uma decisão, ou seja quais são «as razões reais» pelas quais o juiz elegeu um determinado vector decisório e logo o assumiu como decisão (definitiva), poderá sempre ficar-se a saber quais as «boas razões» que justificam a decisão tomada, se a justificação que for assumida lograr uma concatenação lógico-racional que permita ao destinatário percepcionar e compreender, de forma inteligível, clara e válida que as «boas razões» que estiveram na base e por detrás da decisão tomada se articulam num contexto de sentido racional aceitável e admissível à luz de valorações e princípios comummente aceites pelo substrato ideológico prevalente num determinado e dado contexto societário.     

A motivação (justificativa) deve ser entendida, no ensino do Mestre que vimos citando, “como um discurso elaborado pelo juiz com o intento de tornar evidente (“volver manifesto”) um conjunto de significados: isso significa, para além disso, que a motivação deve ser configurada como um instrumento de comunicação que se insere (“inserta”) num procedimento comunicativo, que tem a sua origem no juiz e que está encaminhado para informar as partes, e também ao público em geral, aquilo que o juiz pretende expressar.” “A motivação não deve ser vista como um todo unitário e homogéneo, mas sim como um conjunto de entidades que, sob certos aspectos, são heterogéneos entre si: tratando-se de um discurso, entendido com um conjunto de proposições, poder-se-ia definir a motivação como o conjunto de signos linguísticos, quer dizer, como um signo complexo, dependendo do que se queira evidenciar a variedade das suas componentes, ou ainda a sua inserção (“ubicación”) num mesmo conjunto” [[50]]            
Já no tocante à fundamentação (motivada) “en cuanto a los supuestos de motivación concisa se refieren a la validez de la motivación que sin necessidad de hacer una exhaustiva justificación acoge un razonamiento justificatorio suficiente de la quaestio facti y de la quaestio iuris. En este sentido, la brevedad en el razonamiento de la resolución judicial no implica falta de motivación, siempre que el expositivo presente el conjunto de premissas suficientes y necessarias, estabeleciendo las relaciones de dependencia ciertas que permitan inferir las conclusiones señaladas en el dispositivo.” [[51]] A jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol expressa que «a exigência de uma motivação suficiente é um elemento essencial do conteúdo de direito à tutela judicial efectiva e expressão da autoridade que deve presidir ao labor dos órgãos judiciais no exercício da função constitucional de julgar e fazer executar o julgado, consistente numa exteriorização do razoamento que conduz desde os factos provados e as correspondentes considerações jurídicas da decisão, nos termos adequados à natureza e circunstâncias concorrentes. A existência de uma motivação adequada e suficiente em função das questões que se suscitem em cada caso concreto constitui uma garantia essencial para “el justiciable”, já que a exteriorização dos traços mais essenciais do razoamento que tenham levado os órgãos judiciais a adoptar a sua decisão permite apreciar a sua racionalidade. Sem embargo, dita exigência constitucional não impõe uma determinada extensão da motivação jurídica, nem um razoamento explicito, exaustivo e pormenorizado de todos os aspectos e perspectivas que as partes possam ter da questão sobre a qual se pronuncia a decisão judicial, sendo que é suficiente que as resoluções judiciais venham apoiadas em razões que permitam conhecer quais tenham sido os critérios jurídicos essenciais fundamentadores da decisão ou, o que é o mesmo, a sua ratio decidendi.” [[52]]           

Quando falte, ou contenha de forma não suficientemente explicita, compreensível ou perceptível, qualquer uma das exigências fundantes da estruturação e composição da sentença, a decisão proferida não cumpre o fim para que tende na sua necessária relação comunicacional com os destinatários, a saber os sujeitos processuais, em primeira linha, e o público ou a comunidade em geral, em derradeira função da administração da Justiça. [[53]]

De forma apodíctica, a fundamentação deve servir, no dizer de Chaïm Perelman, para convencer os destinatários do veredicto do órgão decisório da coerência interna do raciocínio lógico seguido pelo julgador no processo de formação da sua convicção e na justificação do ato decisório que desse processo emana, tendo em linha de conta a vivência normal dos indivíduos numa determinada sociedade, histórico-socialmente situada e as regras de direito aplicáveis ao caso.

Ainda para este autor, in Lógica Jurídica, Martins Fontes, S. Paulo, p. 238, “as decisões de justiça devem satisfazer três auditórios diferentes, de um lado as partes em litigio, a seguir, os profissionais do foro e, por fim, a opinião pública, que se manifestará pela imprensa e pelas reacções legislativas ás decisões dos tribunais”. Ainda para este autor “motivar uma decisão é expressar-lhe as razões. É, deste modo, obrigar quem a toma a tê-las. É afastar toda a arbitrariedade”.[[54]]

“O dever de fundamentação cumpre, no essencial, a ideia de que o tribunal “administra a Justiça”, tal qual ela se deve precipitar, concretamente, num certo juízo jurisdicional. O que significa que, no concreto juízo jurisdicional, deve estar suficientemente demonstrado que a decisão final tomou em devida consideração todos os argumentos (de facto e de direito) aduzidos pelas “partes” na audiência de julgamento (o que, no nosso processo penal, significa uma decisão fundamentada quanto ao que “resta” de um conflito penal. Assim, este dever de demonstração implica (agora para o processo penal), a possibilidade de reconhecimento de que o concreto juízo jurisdicional corresponde a uma decisão sobre todas as questões cuja apreciação foi solicitada ao tribunal, por parte os sujeitos processuais”, [[55]] “o dever de fundamentação cumpre, no caso de decisão condenatória, não só uma função de garantia perante o arguido (a de que este é condenado, por um juízo que demonstre, através de uma fundamentação, que foram tomados em consideração todos os contributos – as suas declarações e os meios de prova que apresentou), mas representa também a garantia “institucional” de uma condenação que não deixa margem para quaisquer dúvidas, por tal forma que a concreta decisão se afirme como “aceitável” nas suas premissas de facto e de direito”. [[56]]

Na sequência do que entende por dever de fundamentação e dever de motivação, este autor escreve, mais adiante que “o dever de motivação cessa necessariamente onde esteja em causa o princípio da livre apreciação da prova – ou, talvez melhor de livre apreciação das provas. Este aspecto merece alguma atenção, pois que, o dever de motivação levado a extremos, pode implicar a reconsideração do princípio de livre apreciação das provas. Se, de facto, ao tribunal compete necessariamente dar conta das provas decisivas para a decisão (o que, por si, é já um limite à tradicional consideração do princípio da livre apreciação), exigir-se uma motivação profunda que conduza a uma espécie de discurso justificativo sobre toda as operações mentais que levaram o tribunal a dar um “facto” como provado, para além de deparar com dificuldades inerentes à composição dos tribunais colegiais e à sua forma de deliberação, poderia transformar o tribunal de recurso – quando o recurso fosse pensado a partir de uma efectiva “motivação” – num “substitutivo” do sistema de provas legais (por tal forma que o tribunal de recurso fizesse, ele próprio, uma valoração da prova, acabando, ao invés de censurar a decisão, por proceder a um juízo, mas com inversão das regras de audiência de julgamento) ou, então, numa espécie de juízo por parâmetros. Aquilo que o tribunal de recurso pode essencialmente censurar, é a violação de todo o conjunto de princípios que estão subtraídos à livre apreciação das provas (que limitam o arbítrio na sua apreciação), exactamente: as regras [[57]] de experiência comum, o princípio in dubio pro reo, o princípio da presunção de inocência e, em especial, aquele que está directamente ligado à afirmação de uma culpabilidade pelo facto isenta de qualquer referência a características pessoais do arguido”.

Será, pois, nestes precisos limites que o dever de fundamentação se deverá expressar e não já, como parece querer exigir o recorrente, entrar na intima ou interior convicção do julgador, seja ela medida ou aferida por esquemas mentais explorados por Habermas ou Florescu, [[58]] seja mesmo pela exigência de escandir e pontualizar todos os momentos psicológicos que intervieram na formação da convicção. O processo de formação da convicção não é um processo linear e passível de ser descrito sem intervenção e apelo a soluções exteriores, porque interiormente acumuladas com o saber e a experiência de quem decide, sendo passível de serem encontradas fissuras ou descompensações intelectivas que, contudo não podem abalar a compreensão de quem analisa e contextualiza a explicação critica apresentada numa decisão. O processo de formação de um juízo de probabilidade acima de uma dúvida razoável e cerca da certeza histórica constitui-se como um proceder entretecido e entramado de pontos essenciais, que congraçados com alguns outros de menor densidade real/material, se concitam num núcleo mental arrimado a uma realidade histórica que se nos prefigura como plausível e adequada ao acontecer histórico normal e comum.

A falta de fundamentação não se confunde, ou não pode ter a mesma dimensão compreensiva, da falta de convencimento que essa fundamentação opera no destinatário. Para este a fundamentação pode não ser suficiente para os fins que prossegue e que anseia da decisão do órgão jurisdicional, mas esta perspectiva não pode obumbrar o fim constitucional do dever de fundamentação enquanto dever geral e comum de percepção do sentido das decisões por todos aqueles que delas tomem conhecimento ou que delas sejam destinatários.
O tribunal, como parece resultar do ensinamento de Michele Taruffo, Aliste Santos e Jordi Fenoll, não tem que na motivação da decisão de facto referir todos os elementos de prova e fazer menção expressa de os haver tomado em consideração. Adrega de os ter tomado, ainda que de forma implícita, sem se lhe figurar a necessidade de os inscrever na pauta de elementos com se assegurou para formar uma determinada convicção.
Esta carência não inclui o vício de falta de fundamentação/motivação, e muito menos uma omissão tal como a qualifica o ordenamento adjectivo.              

Assim, não se sufraga a irrogação de nulidade com que o recorrente pretende acoimar a decisão sob sindicância.   
II,b).4. – Violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 6º) e da Constituição da República Portuguesa (art. 32º).

No eito dos vícios alanceados à decisão sob sindicância – seguindo a elencagem fornecida pelo recorrente – surge o enunciado. O tribunal com a decisão proferida estaria a violar a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, concretamente o seu artigo 6º, e o artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.  

Para o recorrente “As circunstâncias descritas configuram uma afronta aos mais elementares direitos de defesa do Recorrente que alicerçam o ordenamento jurídico penal de qualquer Estado de Direito e, por essa razão, estão expressamente previstos na Constituição da República Portuguesa (art. 32º), bem como na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 6º).  
No âmbito do exercício do direito de salvaguarda da soberania penal, que o Estado de execução não deixou alienada por virtude do princípio da cooperação judiciária subjacente ao MDE – bem pelo contrário, dele é parte integrante - bem como da obrigação de respeito pelas Convenções Internacionais das quais é membro, pode o mesmos recusar a execução daquele quando tenham, como foi o caso quanto ao Recorrente, sido desrespeitados os direitos de defesa que assistem a qualquer pessoa perseguida criminalmente.
O MDE, que priva a pessoa procurada do direito à liberdade por via da sua detenção e posterior entrega ao Estado de Emissão, pressupõe que a mesma se desenvolva mediante o respeito dos princípios da proporcionalidade, da indispensabilidade e da última intervenção. O Estado de Execução, tendo por base o primado dos direitos, liberdades e garantias fundamentais consagrados na sua Lei Constitucional, tem por imposição o dever controlar e assegurar a sua protecção.”     

Como se tem por sabido – e presume que se tenha – os recursos são meios pata atalhar “injustiças”, vale dizer, escandindo, deficiências, incorrecções, divertidas perspectivas de análise, de facto e de direito, que hajam obtido nas decisões que se impugnam e se pretendem ver revogadas, alteradas ou modificadas. Na ocasião em que o recorre, o recorrente tem de ter como “mira” ou alvo do seu poder impugnatório a decisão que pretende ver revogada ou alterada. Isto porque, em principio, a decisão se debruçou sobre o direito para que pretende, ou requestou, tutela. É o recorrente que, de acordo com as balizas do seu pedido, fornece ao tribunal os temas sobre que este se deve debruçar e fazendo delimita o thema decidendum e as questões que, de forma cogente, submete à apreciação e valoração do tribunal. O tribunal como órgão equidistante e distanciado dos litígios não convoca questões, antes se sujeita a que as partes concitem as questões que intuam o seu direito e as coloquem para resolução.

O pedido formulado ao tribunal, no caso concreto, foi, através da oposição do mandado de detenção europeu, que o tribunal denegasse o pedido formulado pela autoridade judiciária do Estado de emissão.

A oposição alanceada pelo recorrente contra o pedido que lhe foi presente – e que, itera-se, se constitui como pedido fundador do direito que o requerido requesta ao tribunal – vale para delimitar as questões que o requerido pretende ver solucionadas pelo tribunal aquando da apreciação do seu pedido de oposição. É ao requerido enquanto interessado e detentor do direito que pretende ver satisfeito pelo órgão jurisdicional que incumbe confinar, precisar e definir os temas que em seu juízo exornam o direito e sem os quais este não obterá respaldo ou amparo.

O recorrente definiu e delimitou no seu requerimento de oposição os temas que pretendia ver versados pelo tribunal para que a oposição obtivesse provisão. E fê-lo de forma concisa e concreta, como se deixou inerido na nota 27 e que aqui se repercutem (sic): 

I) Deste modo, considerando

i) que o crime de burla está prescrito,

ii) que o Ministério Público conhece a factualidade em causa, desde 2012, tendo arquivado os 16 procedimentos criminais por falta de indícios da prática de crime de burla, nuca tendo chamado o Oponente a intervir naqueles processos, nem nunca tendo dirigido a investigação para o crime de branqueamento,

iii) que não há indícios de o Oponente ter praticado algum facto no território francês ou contra cidadãos franceses,

iv) que o mesmo, a ocorrer, só pode ter ocorrido em Portugal,

v) que o crime de burla não está entre o catálogo daqueles de que a origem dos proveitos dá lugar ao preenchimento do tipo legal do crime de branqueamento, pode este Tribunal efectuar, no âmbito da salvaguarda de uma reserva de soberania penal, de acautelar a realização efectiva da sua jurisdição, o respeito por princípios relevantes do seu sistema constitucional e penal, a competência investigatória por factos praticados no seu território, bem como a protecção de um cidadão português relativamente ao qual o Estado Português não tem – ou, pelo menos, deixou de ter – fundamento para perseguir criminalmente, alicerçado na cláusula da territorialidade, o duplo controle de incriminação e concluir existência de motivo ponderoso para a recusa de execução do mandado de detenção europeu ora em crise, tendo por base a verificação de três causas de recusa facultativa da execução do MDE, previstas, respectivamente, nas als. a), c), e) e h), ponto i) do art. 12º, n.º 1.”        
Estes foram os temas que o recorrente levou à consideração do tribunal e para respectiva apreciação de modo a salvaguardar e defender o direito que faz seu. (Já se atendeu a uma “alteração da causa de pedir”, por aditamento, por via oral, nas alegações, de mais um fundamento de recusa, qual seja a violação do princípio do ne bis in idem, que supra se analisou).  

E sobre cada um deles o tribunal emitiu pronúncia, bem ou mal (para o recorrente mal).       
Sob pena de constranger o tribunal a emitir pronúncia sobre uma questão que não foi objecto de apreciação pelo tribunal recorrido – e aqui seria o tribunal de recurso a incorrer num vício, qual fosse o de promover o excesso de pronúncia («ultra vel petitum»), igualmente crismada e taxada como nulidade da decisão – violentando e vulnerando de forma desabusada o principio da delimitação cognoscitiva da impugnação, não pode o recorrente pedir a apreciação de uma questão que não foi apreciada pelo tribunal recorrido.
Trata-se de uma questão nova no âmbito do processo que exorbita o poder recursivo do recorrente pelo que não deve ser objecto de conhecimento pelo tribunal de recurso.
Porque a questão que o recorrente pretende ver apreciada não constou do elenco das questões ele delimitou no respectivo pedido ao tribunal recorrido para conhecer está-lhe vedado colocar a questão ex novo perante o tribunal de recurso sob pena de violação e vulneração do princípio ao recurso.
Porque assim não se toma conhecimento da questão enunciada neste apartado. 
II.b).5. – Violação dos princípios da proporcionalidade, da indispensabilidade e da última intervenção da execução do MDE.
Reiterando o pedido que já requestara perante o tribunal recorrido, o recorrente/requerido, clama pela violação dos princípios da proporcionalidade, da indispensabilidade e da última intervenção da execução do mandado de detenção europeu.
Incorpora no seu desconforto as sequentes razões (sic): “A Comissão Europeia impõe a proporcionalidade como um dos requisitos a serem observados na ponderação que deve estar subjacente à emissão do MDE, prevendo expressamente no Manual sobre a emissão e a Execução do Mandado de Detenção Europeu o recurso por parte dos Estados Membros a outros meios alternativos de cooperação judicial penal.
Não tendo o Recorrente tido qualquer intervenção processual em França, concretamente nunca foi constituído arguido, nem conheceu uma acusação, para além de residir habitualmente, em lugar certo, na cidade do Porto, onde tem o seu centro de vida pessoal e profissional como advogado, deveria ter o Estado de Emissão recorrido a outro meio alternativo de cooperação penal não privativo da liberdade.
A violação dos referidos princípios que devem estar subjacentes à emissão do MDE é fundamento para a recusa da sua execução quer por via da Constituição da República Portuguesa (cfr. arts. 28º, nº 2, 27º, 18º, nºs 2 e 3, 3º, nº 2), quer da Decisão-Quadro do Conselho 2002/584/JAI (cfr. art. 1º, nº 3).               
O tribunal a quo refutou e rechaçou as indicadas razões, que já constavam da oposição com que pretende pugnar pela recusa da execução do mandado de execução, com a sequente argumentação (sic). “Na oposição que deduziu, o requerido invoca a existência de várias causas de recusa de execução do MDE, mas começa com uma “Nota prévia” em que afirma que este procedimento viola “o princípio da proporcionalidade, da indispensabilidade e da última intervenção do direito penal, que constituem uma das pedras angulares do ordenamento jurídico-penal num Estado de Direito”.

Isto porque tem na cidade do Porto o seu centro de interesses familiares, onde reside com a mulher e uma filha em morada certa e conhecida e onde exerce a profissão de advogado com escritório devidamente registado na Ordem dos Advogados.

Além disso, quando, em 2016, foi convocado (por telefone) pela PJ e pela Interpol, compareceu nas instalações daquela polícia PJ do Porto no dia e hora acordados e forneceu os esclarecimentos que lhe foram solicitados.

Seria assim excessivo, desproporcional, desnecessário o acto de emissão de um MDE para o fazer comparecer perante as autoridades judiciárias francesas.

É inquestionável que a emissão de um MDE tem de respeitar os princípios da legalidade, da subsidiariedade e da proporcionalidade (em sentido amplo), pois que a sua execução traduz-se numa importante restrição de um direito fundamental como é o direito à liberdade [[59]].

Como anotam Joana Gomes Ferreira e Teresa Alves Martins [[60]]: “Tendo presentes as severas consequências da execução do MDE na restrição da liberdade física e de circulação da pessoa visada, afigura-se desejável que na decisão de emitir um mandado se tenham em conta considerações de proporcionalidade, tendo presente o efeito útil a retirar do MDE. Assim, afigura-se de evitar a emissão de um Mandado quando a medida de coacção indiciariamente proporcional, adequada e de aplicação previsível ao caso não for a prisão preventiva.

Neste contexto, é, por exemplo, de evitar a emissão de um Mandado no caso em que, embora sendo admissível a prisão preventiva, se mostre previsível a imposição da medida de coacção termo de identidade e residência (TIR), ou outra medida de coacção não detentiva, que redundará na imediata libertação da pessoa após o seu primeiro interrogatório judicial.

Julga-se esta interpretação mais consentânea com diversas disposições do MDE e a filosofia geral do regime deste, no sentido de o MDE ser um instrumento privilegiado de combate à criminalidade grave e organizada.

É de notar que uma prisão no estrangeiro, por aplicação de um MDE que vier a dar lugar a uma libertação precipitada, por exemplo nas condições acima descritas, poderá eventualmente dar lugar à demanda de Portugal nas instâncias internacionais por violação dos direitos humanos do arguido, com fundamento na desproporcionalidade da medida face ao resultado final que se pretendia obter” [[61]].

Sucede que, como refere o Ministério Público na sua resposta à oposição deduzida (fls. 319 e segs.), cabe, não à autoridade judiciária do Estado de execução, mas à autoridade judiciária do Estado de emissão o controlo da proporcionalidade.

Subjacente à entrega judicial do detido está, necessariamente, a confiança mútua nos sistemas penais e processuais penais dos Estados-Membros, o mesmo é dizer, na execução do MDE os EM deverão confiar no mérito das decisões judiciais que fundamentam o mandado, tendo em conta que todos abdicaram de igual modo (e na exacta medida prevista) deste controlo.

Mas se os EM confiam que os sistemas jurídicos e respectivos processos garantem a qualidade suficiente às decisões, tomadas por autoridades competentes, que dão lugar à execução nos seus territórios, tal não significa que a execução do MDE seja automática, porquanto a lei prevê obstáculos à sua execução.

Apesar da natureza directa da execução das decisões judiciárias estrangeiras (decorrente do princípio do reconhecimento mútuo), o RJMDE admite, efectivamente, causas de recusa de execução do mandado, quer absoluta, quer facultativa [[62]].

No entanto, importa ter bem presente que são excepcionais os casos em que é admissível a recusa de execução do MDE, taxativamente previstos nos artigos 11.º e 12.º da Lei 65/2003, de 23 de Agosto.

No que tange à recusa facultativa, constitui entendimento corrente na jurisprudência que esta não pode ser concebida como um acto gratuito, arbitrário ou meramente voluntarista do tribunal que possa pôr em causa os princípios da cooperação judiciária internacional, antes há-de assentar em argumentos e elementos de facto aportados ao processo susceptíveis de adequada ponderação, nomeadamente invocados pelo interessado, que, devidamente equacionados, levem o tribunal a dar justificada prevalência ao processo nacional sobre o do Estado de emissão [[63]].

Como se ponderou no acórdão do STJ, de 09.01.2013 (acessível em www.dgsi.pt), “o funcionamento das causas de recusa facultativa de cumprimento do MDE vêm ao encontro da necessidade de convocar mecanismos preventivos que permitam decisão que evite futuros conflitos positivos de jurisdição ou uma invocação do princípio non bis in idem. Nesta perspectiva, as causas de recusa facultativa não podem (não devem) ser vistas isoladamente, mas, antes, consideradas e aplicadas tendo como critérios de decisão os feixes referenciais que constituem a teleologia da categoria no regime de execução do instrumento europeu de cooperação.” Teleologia essa “relacionada com a possibilidade deixada aos estados de salvaguarda de alguns interesses ligados à soberania penal do Estado da execução, à efectividade da sua jurisdição, ao respeito por princípios relevantes da natureza do seu sistema penal e a um campo (ainda) de resguardo e protecção dos seus nacionais ou de pessoas que relevem da sua jurisdição” (acórdão do STJ, de 10.10.2007).
Afigura-se-nos de meridiano entendimento e percepção intelectual que as recomendações da Comissão Europeia no sentido de que a emissão de um mandado para fazer apresentar um cidadão de um Estado membro às autoridades de outro Estado membro se dirigem e são direccionadas às autoridades do Estado emissor do mandado de detenção europeu.
Como se procurou afiançar supra, e seria ocioso iterá-lo não fora a necessidade de mais uma vez vincar o que temos para nós como seguro, o princípio do reconhecimento mútuo e da confiança que subjaz e entronca na natureza deste instrumento de eficiência e facilitação da realização da justiça a que cada Estado membro se compromete no seu acto de adesão não comporta, sob pena de frustração dos referidos princípios uma sindicância de razões substantivas que estiveram na decisão de emitir um mandado de detenção por parte de um Estado.
Ao Estado de emissão compete, enquanto Estado de Direito (necessário e reconhecido – atente-se a propósito o acto de notificação da Comissão ao Estado polaco a propósito de pretensas e eventuais violações das regras e critérios essenciais e fundantes do Estado de Direito) ponderar, à luz do seu ordenamento e das necessidades de realização e prossecução do sistema de  justiça, se a emissão do mandado cumpre regras de proporcionalidade, necessidade e subsidiariedade que estão inscritos em todos os ordenamentos de feição e assentimento democrático.
A menos que a medida dada para execução de um Estado membro violasse de forma afrontosa o seu ordenamento e os valores inscritos no seu ordenamento cardinal é que seria legitimo ao Estado de execução eximir-se ao cumprimento do mandado, escudando-se, para se recusar, nos valores fundamentais que regem a sua sociedade.
A apresentação de alguém para depor como arguido num processo, não é uma acto que esteja inscrito e seja de considerar abusivo e defraudante de um Estado de Direito. O ordenamento jurídico-processual português prevê a possibilidade de alguém ser detido verificados os circunstancialismos inseridos na normação adrede.
Não se constitui e configura como vulnerador de valores e princípios de um Estado de Direito o pedido a um Estado membro de detenção ed um cidadão para ser presente à justiça de outro Estado membro que contra ele tem pendente um procedimento criminal por crimes que ultrapassam a barreira referida no artigo 2º da normação adrede.
Em nosso juízo o pedido formulado pelas autoridades judiciárias francesas não contende ou comprime de forma desmesurada e imane com o direito à liberdade do requerido. Antes se perfila como um meio idóneo e adequado a fazer prestar contas à justiça de um cidadão que terá violado leis de um outro Estado Membro.      
 II.b).6. – Erro na análise quanto à causa de recusa facultativa de execução prevista no artigo 12.º, n.º 1, al. e) do RJMDE.
Reza o artigo 12º, nº 1 (“A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada”), alínea e) do Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu (RJMDE), que: “tiverem decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu.” 
Para o recorrente, “No MDE resulta haver indícios da prática, pelo Recorrente, a título de cumplicidade, dos crimes de complicite d´escroquerie realisée en bande organisée e de blanchiment, sendo que de acordo com a promoção do Ministério Público, os factos que serviram de base ao MDE constituiriam a prática dos crimes de burla, de burla qualificada e de branqueamento.
O Tribunal a quo na qualificação que fez da burla entrou na discussão do mérito da decisão da autoridade judiciária de emissão, incursão essa para a qual, como o próprio reconhece, não lhe assiste legitimidade, reconhecendo, contudo, não saber qual o valor do prejuízo, tal-qualmente não o sabe o Ministério Público.
Por outro lado, o conteúdo do MDE não aporta informação que, nem mesmo de forma indirecta ou inferida, pudesse permitir ao Tribunal a quo – que prescindiu de solicitar ao Estado de Emissão informações complementares - concluir, como concluiu, pela indiciada prática do crime de burla qualificada p.p. nos termos do art. 218º, nº 2 do Código Penal e, consequentemente, chegar à conclusão que este e o de branqueamento não haviam prescrito.
A causa de recusa deve ser aplicada em situações onde a lei portuguesa é competente – como é reconhecidamente o caso – nas situações em que o ordenamento jurídico considera que, pela sua soberania estadual própria, não deverá haver punição por ter havido uma limitação do seu poder punitivo em razão do decurso do tempo, leia-se, a prescrição do procedimento penal ou do próprio crime.
Aplicando-se a atenuação especial obrigatória aos referidos tipos de ilícito em caso de cumplicidade, temos que o crime de burla será punível com pena de prisão até 2 anos e o crime de burla qualificada será punível com pena de prisão até 3 anos e 3 meses ou com pena de multa até 400 dias.
O prazo de prescrição do procedimento criminal pela prática dos crimes de burla e de burla qualificada, em caso de cumplicidade, é de 5 anos, pelo que tendo a sociedade GG sido dissolvida e liquidada em março de 2012, sempre, por essa via, também haveria o crime de burla prescrito em março de 2017, sendo que o crime de burla dependente de queixa e o prazo para o efeito há muito que havia decorrido, pelo que não pode o Recorrente ser perseguido criminalmente em Portugal, pela alegada prática do crime de burla e, por isso, não pode o Estado Português consentir que o seja em França pelo crime d’escroqueri realisée en bande organisée, sob a forma de cumplicidade.
Os actos imputados ao Recorrente no MDE a não são suscetíveis de, à luz da lei portuguesa, configurarem o crime de branqueamento, o que, por si só, consubstancia motivo para a recusa da execução do MDE, pois, de outra forma, estaríamos perante a entrega de um seu nacional a um outro Estado por alegados factos praticados em território português que nele não são puníveis.
A burla ou a burla qualificada não estão previstas como forma de obtenção de vantagens para efeitos de punição por branqueamento, pelo que esta apenas poderia ocorrer se o crime de base fosse punível com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos, o que não é o caso.
Deste modo, considerando (i) que não há indícios de o Oponente ter praticado algum facto com repercussão em território francês, (ii) que o mesmo, a ocorrer, só pode ter ocorrido em Portugal, (iii) que o crime de burla está prescrito de acordo com a lei portuguesa e (iv) que o crime de burla não está entre o catálogo daqueles de que a origem dos proveitos dá lugar ao preenchimento do tipo legal do crime de branqueamento, é legítimo a este Colendo Tribunal efectuar, no âmbito da salvaguarda do princípio da soberania penal e da protecção de um cidadão português relativamente ao qual o Estado Português não pode, num caso e deixou de poder, no outro, perseguir criminalmente, alicerçado na cláusula da territorialidade, o duplo controle de incriminação e concluir pela recusa de execução do MDE.
O tribunal recorrido solucionou a questão que constitui o tópico ora enunciado com a sequente argumentação (sic):

2. Prescrição do procedimento criminal

Normativo aplicável:

Artigo 12.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto

n.º 1 -   A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:

(…) c) Tiverem decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu;

Artigo 4.º da DQ 2002/584/JAI do Conselho: “A autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu:

(…) 4. Quando houver prescrição da acção penal ou da pena nos termos da legislação do Estado-Membro de execução e os factos forem da competência desse Estado-Membro nos termos da sua legislação penal;

Considerando que o prazo de prescrição do procedimento criminal é determinado em função da pena (abstractamente) aplicável ao crime ou crimes imputados e, em regra, corre desde a data da prática dos factos, importa lembrar que, de acordo com a descrição contida no mandado, o requerido está indiciado, como cúmplice, da prática de factos que terão ocorrido entre Abril de 2011 e Abril de 2013 e poderão integrar, nos termos da lei penal portuguesa, os crimes de burla e de branqueamento.

Apesar de não se saber, exactamente, o valor do prejuízo causado a cada lesado, sabe-se (pela descrição do MDE) que o valor mínimo que cada um “investia” era de € 3 000,00 e que “investidores” houve que se endividaram para poderem investir e com isso ficaram em difícil situação económica, pois perderam todo o dinheiro investido.

Assim, como refere o Ministério Público, na lei penal nacional, os factos consubstanciam crimes de burla qualificada e de branqueamento, previstos e puníveis, respectivamente, pelos artigos 217.º e 218.º, n.º 2, e 368.º-A, n.os 1 e 2, do Código Penal.

O requerido sustenta que “não cometeu, mesmo sob a forma de cumplicidade, os crimes de que vem indiciado” e, em todo o caso, “o crime de burla – mesmo que qualificada – sempre estaria prescrito de acordo com a lei portuguesa”.

Como decorre do normativo supra citado, a prescrição do procedimento criminal, para operar como causa de recusa (facultativa) de execução do mandado, depende da condição prévia de os tribunais portugueses serem competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu e já concluímos que assim sucede neste caso.

Porém, a tarefa primordial da autoridade judiciária do EM de execução é a de, orientado pelo princípio basilar do reconhecimento mútuo, fiscalizar a regularidade formal do MDE e dar-lhe execução.

Da teleologia do MDE está excluído qualquer juízo de mérito sobre a decisão da autoridade judiciária de emissão de proceder criminalmente contra a pessoa procurada, não cabe à autoridade judiciária de execução sindicar o conteúdo e os fundamentos dessa decisão.

O julgamento de mérito da questão de facto e a valoração jurídico-penal dos factos cabe, exclusivamente, à autoridade judiciário do EM de emissão.

O reconhecimento mútuo, permitindo que uma decisão penal definitiva proferida por um tribunal de um EM produza efeito pleno e imediato num outro EM sem qualquer sindicância prévia quanto ao mérito, numa lógica de confiança recíproca, assim o impõe.

Esclarecido este ponto, estamos em condições de afirmar, com total segurança, a inexistência de prescrição do procedimento criminal.

A autoria do crime de branqueamento é, no ordenamento jurídico-penal nacional, punível com pena de prisão de 2 a 12 anos, sendo a cumplicidade punível com pena de prisão cujo limite superior é de 8 anos, pelo que o prazo de prescrição do procedimento criminal é de 10 anos.

A autoria do crime de burla qualificado é punível com pena de prisão de 2 a 8 anos, sendo a cumplicidade punível com pena de prisão cujo limite superior é de 5 anos e 4 meses, pelo que o prazo de prescrição do procedimento criminal é, também, de 10 anos.

Está, assim, em face da lei nacional, muito longe de se esgotar o prazo de prescrição do procedimento criminal.
Como bem diz o Ministério Público na sua contra-alegação a autoridade judiciária rogante fez questão de pontuar no seu pedido que os factos por que o Requerido deveria ser submetido a acção da justiça francesa não se encontravam prescritos.
Quanto a poder verificar-se uma situação de prescrição dos crimes indicados no pedido – cuja factualidade o pedido não descreve, detalhada e concretiza de forma conveniente e absolutamente inteligível – à luz do ordenamento jurídico-penal indígena afigura-se-nos que o razoamento a que o acórdão recorrido procede não se afasta da verdade.

Como se referiu de forma incisiva no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de de 29 de Junho de 2016, relatado pelo Conselheiro Manuel Matos, in www.fgsi.pt., ponderou-se a ponto que “(sic): “Recordamos que o Mandado de Detenção Europeu, constituindo uma decisão de uma autoridade judiciária de um Estado membro dirigida directamente a outra autoridade judiciária de outro Estado membro, na base do princípio do reconhecimento mútuo, prescinde das formalidades burocráticas que estavam ligadas à antiga extradição, já suprimida em benefício de um processo mais ágil (cfr. o art. 4º da Lei 65/2003) e de execução muito mais simplificada, bastando que o Mandado contenha determinados elementos considerados fundamentais, constantes do formulário (cfr. o citado art. 3º da mesma Lei).

Tais elementos serão os bastantes, segundo o princípio da suficiência que orienta o Mandado de Detenção Europeu, para que o Estado da execução possa decidir com a celeridade e simplicidade que se pretende no âmbito de uma cooperação judiciária própria de Estados que fazem parte de uma mesma União (conforme o princípio do reconhecimento mútuo). Também por isso, são estritas e especificadas as causas que podem obstar à execução desses Mandados, e que na nossa Lei (65/2003) estão previstas nos arts. 11º e 12º, como causas de recusa obrigatória e facultativa.

O mandado de detenção europeu pela natureza intrínseca que comporta, conleva e coenvolve de confiança entre os Estados membros de uma mesma comunidade de interesses e comunhão de vontades e princípios rectores não tem que necessariamente uma minuciosa e detalhada descrição dos factos que escoram o pedido de detenção. A confiança impõe que o Estado de execução confie – sem conferir minuciosa e escrupulosamente – que o Estado de emissão, na indicação que faz, no formulário, dos crimes por que o procurado a deter é visado pelas autoridades desse Estado é preciso e veraz.

A forma utilizada para endereçar um pedido de detenção de uma pessoa residente noutro Estado da União Europeia, através de um mandado estabelecido entre os Estados membros, mediante o preenchimento de um formulário aceite – porque certamente discutido entre eles e colocadas as pertinentes questões que cada um, segundo a sua própria legislação estima deverem estar contidos nesse formulário – por  todos os Estados membros não habilita ou favorece o Estado executor a promover pedidos de esclarecimento. A menos que, como já acima se deixou debuxado, que o formulário não contenha elementos essenciais e determinantes para a respectiva aceitação e possibilidade de cumprimento pelas autoridades judiciárias do Estado executor,  v. g. por ausência de elementos reputados imprescindíveis e necessários segundo os regras e princípios fundantes do ordenamento do Estado executor.

Não se encontram no mandado falhas de elementos que impossibilitem e inviabilizem a sua aceitação e cumprimento pelas autoridades nacionais, tanto mais que, como já se deixou, o Estado de emissão fez questão de vincar que os crimes pelos quais o requerido se encontra indiciado não se encontra prescrito.

Não se encontrando prescrito à luz do ordenamento jurídico-penal francês e devendo ser coonestada a argumentação veiculada no acórdão recorrido para a não prescrição dos crimes de burla à luz da ordenação jurídico-penal portuguesa, não colherá aval este segmento das razões de recusa apontadas pelo requerido.   
II.b).7. - Erro quanto à causa de recusa facultativa de execução prevista no artigo 12.º, n.º 1, al. a) e h) subalínea i) do RJMDE.
Para o requerente, tendo corrido em Portugal (sic), “pelo menos, 16 processos crime onde os factos indiciários são os mesmos que estão na base do MDE – “esquema Ponzi” ou “pyramide de Ponzi” – tendo o Ministério Público concluído pelo arquivamento de todos eles pela ausência de indícios da prática por parte de CC, a titulo de autoria, dos crimes denunciados, é evidente que nenhum acto relacionado com o dito “esquema de Ponzi” pode ser imputado ao Recorrente a título de cumplicidade. Como diria Monsieur de La Palisse, se não há autor, não pode haver cúmplice!     
Por sua vez, o Tribunal a quo reconheceu que a factualidade era a mesma, alicerçando a sua argumentação num critério bizarro da “investigação em curso”, ou melhor, da ausência dela (cfr. despacho de fls. 334 e 335).
É evidente a vantagem em fazer prevalecer a jurisdição nacional em detrimento da jurisdição francesa, desde logo, para que, dessa forma, o Estado Português possa garantir os direitos e garantias que reconhece aos seus cidadãos, principalmente quando resulta evidente que esses mesmos direitos e garantias fundamentais foram postos em causa, nos termos que acima se descreveram.
Os fundamentos e motivos de recusa contidos no artigo 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, apresentam-se expostos e descritos de forma minuciosa e pormenorizada de modo que é possível entretecer e pressentir os mesmos motivos – se não de forma expressa e flagrante – nas diversas alíneas em que se esbagoa.
Este facto conduz a que na alegação do recorrente se surpreendam, pela forma como se encontra estruturada a peça alegatória, factos e situações alusivas – factualmente dirigidas e predispostas – que podem servir de base a uma causa de recusa contida em mais de uma alínea. Daí a possibilidade de iteração de argumentos o que não deve ser vista como excesso de pronúncia mas antes como excesso de zelo e premonição de que a não alusão expressa a cada uma das causas elencadas na alegação conduziria a um pedido de esclarecimento e de invectiva de nulidade por omissão de pronúncia.
Posta esta explicação – se não necessária pelo menos reconfortante – cuidemos de mais uma causa de recusa. 
Preceitua o citado artigo preceito na sua alínea a) do respectivo nº 1, que será causa de recusa facultativa de execução do mandado de detenção europeu “o facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu não constituir infracção punível de acordo com a lei portuguesa, desde que se trate de infracção não incluída no nº 2 do artigo 2º”. 
E a alínea h), i), indica como causa de recusa ter a infracção por que se requesta a detenção ter sido “cometida, no todo ou em parte, em território nacional ou a bordo de navio ou aeronaves portuguesas”.     

O tribunal apreciou a questão glosada nos enunciados conclusivos indicados, sob a epigrafe “Incompetência dos tribunais franceses para conhecimento dos factos.”

Para o efeito razoou (sic); “As normas aplicáveis são as seguintes:

Artigo 12.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto

n.º 1 -    A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:

(…)

h) O mandado de detenção europeu tiver por objecto infracção que:

i) Segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, no todo ou em parte, em território nacional ou a bordo de navios ou aeronaves portugueses;

Artigo 4.º da DQ 2002/584/JAI do Conselho:

A autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu:

(…)

7. Sempre que o mandado de detenção europeu disser respeito a infracção que:

a) Segundo o direito do Estado-Membro de execução, tenha sido cometida, no todo ou em parte, no seu território ou em local considerado como tal;

Na tese do requerido, está excluída a competência das Autoridades Judiciárias de França já que “o único elemento de conexão com o território francês é o facto de entre o número de vítimas algumas residirem em França”, sem que, no entanto, estejam identificadas como nacionais deste país.

Os comportamentos, vagos e genéricos, que lhe são imputados (a título de cumplicidade) “sempre haveriam de ter sido praticados em Portugal”.

É a descrição dos factos constante do formulário do MDE que, essencialmente, releva para este efeito e o que dele se colhe é que CC, através de empresas que foi criando (aparentemente direccionadas para a actividade de apostas desportivas), acenando com uma remuneração elevadíssima (da ordem dos 120% ao ano), aliciou milhares de pessoas (cerca de 4 000) a entregar-lhe diversas quantias em dinheiro, sendo o valor mínimo de € 3 000,00, mas tudo isso não passou de um esquema do tipo pirâmide de Ponzi, que naturalmente ruiu, ficando os “investidores” sem o dinheiro e sem qualquer possibilidade de o reaver.

Dos numerosos lesados por esse esquema, cerca de 300 residem em França, no sudoeste, mais exactamente, na região de Aveyron.

CC foi detido no dia 15 de Junho de 2015, indiciado pelos crimes de burla em bando organizado e branqueamento, e, nas declarações que prestou quando sujeito a interrogatório, implicou no esquema o aqui requerido AA que, quer enquanto seu advogado, quer como gerente da sociedade “GG”, ajudou à montagem do esquema.

A entrada nas suas contas bancárias pessoais de montantes que totalizaram mais de € 400 000,00, provenientes da “BB”, sem justificação bastante, permitiria “caracterizar a sua participação no branqueamento do produto da infracção”.

É entendimento geralmente aceite que o crime de burla se consuma quando a coisa sai da esfera de disposição patrimonial do burlado, de modo a já não poder obstar a que ela entre na esfera patrimonial do agente.

Embora a descrição dos factos constante do mandado de detenção seja parca e pouco clara quanto às circunstâncias em que terá sido praticado o crime de burla, é possível inferir que as entregas ou remessas dos valores pecuniários que entraram na esfera patrimonial do referido CC ocorreram em território francês, na aludida localidade de ... Por conseguinte, quanto a esses lesados, o crime de burla terá sido cometido em território do EM de emissão.

O cúmplice, sendo um participante, não intervindo na execução do facto (de que não tem o domínio funcional, sendo a sua intervenção acessória) auxilia o autor, facilita o facto do autor, podendo fazê-lo através de auxílio físico (cumplicidade material) ou psíquico (cumplicidade moral), situando-se a prestação de auxílio em toda a contribuição que tenha possibilitado ou facilitado o facto principal ou fortalecido a lesão do bem jurídico cometida pelo autor.

Tendo a autoridade judiciária do EM de emissão competência para conhecer dos factos praticados pelo autor, também a terá para os factos do cúmplice.

Mas, como expressamente se admite na descrição contida no formulário do MDE, alguns dos factos imputados ao aqui requerido, designadamente aqueles que configurariam uma participação no crime branqueamento, ocorreram em Portugal.

Estaria, então, verificada a hipótese legal do citado artigo 12.º, n.º 1, al. h)-i), da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto. O que não significa que se deva concluir pela verificação de causa de recusa de execução do MDE, pois esta terá que ser justificada nas concretas vantagens que a prevalência da jurisdição nacional sobre a do EM de emissão envolva para a investigação e conhecimento das infracções constantes do MDE.

É esse o entendimento que tem sido, uniformemente, adoptado na jurisprudência, como no acórdão do STJ de 15.09.2011: “II. Consagrando o CP a chamada solução plurilateral ou de ubiquidade, é admissível, em face da própria lei portuguesa, considerar competente a lei e a jurisdição portuguesa, no caso de terem aqui sido praticados factos, ou a francesa, onde se verificou o resultado típico. III.  Estando o crime a ser investigado em França, este é o país que se posiciona em melhores condições para conhecer de toda a actividade criminosa e para proceder ao julgamento do conjunto dos factos, independentemente do lugar em que tenha tido lugar cada uma das parcelas da actividade criminosa ou em que tenha actuado cada um dos respectivos agentes. IV. Mesmo havendo possibilidade de o lugar da prática do facto poder ser também em Portugal, a circunstância de a França se posicionar igualmente como lugar da prática do facto, não justifica o uso da recusa facultativa com fundamento no disposto na al. h), segmento i), do n.º 1 do art. 12.° da Lei 65/2003, de 25-08”.

Tanto quanto se logrou apurar, em Portugal, nunca decorreu, nem está a decorrer, qualquer investigação para determinar eventual responsabilidade do aqui requerido pelos factos que estiveram na origem da emissão do MDE.

Contrariamente, em França, essa investigação está a ser efectuada, abrangendo um leque alargado de possíveis agentes dos crimes, eventualmente, cometidos e nesse país reside parte substancial dos lesados por essa alegada actividade criminosa. Mesmo que se trate de cidadãos portugueses, é de toda a conveniência que aí se proceda ao julgamento do conjunto dos factos. Aliás, se a figura central desse processo é CC, indiciado como autor de crimes de burla em bando organizado e branqueamento, e se foi este quem implicou no esquema fraudulento o aqui requerido AA, será de toda a conveniência para a descoberta da verdade que, no âmbito do mesmo julgamento, este possa contrapor a sua versão dos factos.

A circunstância de o requerido ter o centro da sua vida profissional, familiar e social na cidade do Porto não é razão suficiente para recusa da execução deste mandado.

Coonesta-se o argumentado, precisando que o crime de branqueamento por que é pedido a detenção do requerido vem inscrito no artigo 2º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto como um dos crimes de catálogo por que pode ser pedida a detenção, sem controlo de dupla incriminação.
Alega o recorrente que a legislação nacional não prevê como crime subjacente ao crime de branqueamento o crime de burla. Não se se nos afigura legitimo inferir da narração descritiva contida no formulário que os crime-base, razão ou motivantes da imputação do crime de branqueamento seja o crime de burla, daí que não seja de acolher a argumentação em que o recorrente ancora esta causa de recusa do mandado.
Como se tem por sabido, o crime de branqueamento constitui-se como um crime autónomo e independente dos crimes que possam ter estado na origem da obtenção dos proventos que sejam objecto de introdução no mercado para os tornar “legítimos”.
Daí que não se sabendo, em concreto, em que se fundam as razões pelas quais o requerido se encontra indiciado pelo crime de branqueamento de capitais não seja legitimo afastar a execução do mandado pela não punibilidade do crime indicado não ser punido à luz do ordenamento jurídico-penal português.

II.b).8. – Erro na análise quanto à causa de recusa facultativa de execução prevista no artigo 12.º, n.º 1, al. c) do RJMDE.

Reza o artigo 12º, nº 1 (“A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada”), alínea c) do Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu (RJMDE), que “sendo os factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu do conhecimento do Ministério Público, não tiver sido instaurado ou tiver sido decidido pôr termo ao respectivo processo por arquivamento.”   

Glosando o preceito normativo, em proposição positiva, poder-se-á asserir que, nos termos da citada alínea, a autoridade judiciária requerida/executora pode recusar a respectiva execução quando i) o Ministério Público tenha, por incumbência da sua função, conhecimento dos factos que determinam ou constam do formulário como sendo aqueles que o Estado de emissão imputa requerido, em qualquer das formas de participação criminosa previstas no ordenamento jurídico-penal português: ii) que estando da posse (cognitiva e intelectual) dos factos constantes do formulário do mandado de detenção a) não tiver instaurado procedimento contra o autor, co-autor ou cúmplice; b) ou tendo-o instaurado, por qualquer das formas previstas no ordenamento adjectivo tenha posto termo ao processo.

Dando palco ao asseverado na decisão sob sindicância escreveu-se a ponto que (sic): “Artigo 12.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto

n.º 1 -    A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:

(…) c) Sendo os factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu do conhecimento do Ministério Público, não tiver sido instaurado ou tiver sido decidido pôr termo ao respectivo processo por arquivamento;

Artigo 4.º da DQ 2002/584/JAI do Conselho: “A autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu:

 (…)

3. Quando as autoridades judiciárias do Estado-Membro de execução tiverem decidido não instaurar procedimento criminal, ou pôr termo ao procedimento instaurado, pela infracção que determina o mandado de detenção europeu ou quando a pessoa procurada foi definitivamente julgada num Estado-Membro pelos mesmos factos, o que obsta ao ulterior exercício da acção penal;
Como decorre do que se considerou assente, o caso não é desconhecido do Ministério Público em Portugal, houve, pelo menos, dezasseis denúncias que deram origem a outros tantos inquéritos e o desfecho foi o arquivamento dos autos “por insuficiência de indícios da prática de crime de burla qualificada, ao abrigo do disposto no artº 277º n.º 2 do Código de Processo Penal”.

Com a consagração desta causa de recusa facultativa, visa-se, não só impedir a dupla punição, mas também a repetição do procedimento criminal contra a mesma pessoa.

No entanto, como sustenta o Sr. Procurador da República na sua resposta à oposição deduzida (fls. 319 e segs.), não existe identidade subjectiva nem o objecto do processo, no seu aspecto material, é o mesmo.

Em nenhum dos mencionados processos o aqui visado foi denunciado, suspeito ou arguido nem os factos susceptíveis de configurar cumplicidade no crime de burla e, sobretudo, no crime de branqueamento foram objecto de investigação e de decisão de arquivamento do inquérito.

Por tudo isto se conclui que não se verifica, no caso, motivo de recusa da execução do mandado.”

A causa de recusa contida nas alíneas mencionadas foi recentemente objecto de análise capaz e diserta num acórdão relatado pelo Exmo. Senhor Juiz Conselheiro, que figura neste colectivo, na qualidade de adjunto.   

Demos-lhe voz.

Alega ainda o requerido, na sua oposição, que se verificam as causas de recusa facultativa previstas no nº 1 do art. 12º, alíneas c), h)i e h)ii, da Lei 65/2003 de 23.08, pois ele nunca representou qualquer das sociedades ou pessoas referidas no MDE, nunca manteve contacto profissional com cidadãos que não fossem portugueses ou fora de Portugal, nenhuma conexão existe com o território espanhol ou cidadãos espanhóis.

Lembramos que o Mandado de Detenção Europeu assenta no princípio da confiança e do reconhecimento mútuos, em que os Estados-Membros prescindem de uma parcela da sua soberania penal para reconhecerem, também, as pretensões punitivas estrangeiras, abrindo as fronteiras nacionais às decisões judiciais dos outros Estados-Membros. Como se disse supra, o objectivo geral deste princípio é conferir à decisão judicial eficácia total e directa, em todo o território da União Europeia, criando operacionalidade ao exercício das acções por parte de cada um dos seus Estados-Membros.

Ainda assim, o art. 12º da Lei 65/2003 de 23.08 estabelece causas de recusa facultativa de execução do Mandado de Detenção Europeu.

Nos termos do nº 1 deste normativo, a execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:

c) Sendo os factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu do conhecimento do Ministério Público, não tiver sido instaurado ou tiver sido decidido pôr termo ao respectivo processo por arquivamento;

Ora, desde logo, e relativamente ao disposto na alínea c) supra citada, desconhecemos se os factos que motivam a emissão do MDE são do conhecimento do Ministério Público e se este não decidiu instaurar procedimento criminal. Trata-se de questão que carecia de prova documental e ela não foi apresentada. Todavia, estamos em crer que se o Ministério Público tivesse conhecimento dos factos, certamente já teria instaurado procedimento criminal.

Mas, também, nos termos do nº 1 do mesmo art. 12º, a execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:

h) O mandado de detenção europeu tiver por objecto infracção que:

i) Segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, em todo ou em parte, em território nacional ou a bordo de navios ou aeronaves portugueses; ou

ii) Tenha sido praticada fora do território do Estado membro de emissão desde que a lei penal portuguesa não seja aplicável aos mesmos factos quando praticados fora do território nacional.

Decorre do próprio MDE em causa que a fraude/burla foi também realizada através de empresas espanholas e portuguesas, uma das quais a BB; que o requerido está vinculado à BB com funções de publicidade, orador e captador de sócios em eventos a favor da BB, tendo relações com os arguidos CC (presumível chefe do grupo) e DD (líder da BB).

Assume o requerido que colaborou com a BB mas sempre em território português. Ora independentemente de tal colaboração ter sido ou não praticada em Portugal, resulta do MDE, como dissemos, actividade em Portugal e em Espanha, com consequências em vários outros países (33), estando em causa uma rede criminosa transfronteiriça.

O que nos leva à necessidade de abordagem da questão da competência dos tribunais portugueses para conhecer os factos subjacentes à emissão do Mandado.

No que respeita à aplicação da lei penal no espaço dispõe o art. 4º do Cód. Penal que “salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados: a) em território português, seja qual for a nacionalidade do agente; ou b) a bordo de navios ou aeronaves portugueses” – é a consagração do chamado princípio da territorialidade.

Prevê, todavia, o art. 5º do Cód. Penal vários casos em que ainda é aplicável a Lei penal portuguesa a factos cometidos fora do território nacional, mas com as restrições previstas no art. 6º, ou seja, “a aplicação da lei portuguesa a factos praticados fora do território nacional só tem lugar quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação” (nº 1 daquele art. 6º).

Vemos, assim, que o caso previsto na alínea h) ii do art. 12º que se tem vindo a citar, não pode ser chamado à colação.

Já quanto à previsão da alínea h) i do mesmo artigo, poderia ela consubstanciar recusa facultativa da execução do MDE.

Todavia, a jurisprudência do nosso STJ tem vindo a entender que a recusa facultativa da execução do mandado com base nesta alínea só pode acontecer em casos ponderosos e justificados.

Com efeito, como consta do Sumário do Acórdão do STJ de 15-03-2006 (proferido no âmbito do Proc. 06P782) “(…) III - Nos termos do art. 12.º, n.º 1, al. b), do diploma em análise, a execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando estiver pendente em Portugal procedimento contra a pessoa procurada pelo facto que motiva a emissão do mandado. E, em conformidade com o disposto na al. h)-i), a execução pode ser recusada quando o mandado tiver por objecto infracção que segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, no todo ou em parte, em território nacional ou a bordo de navios ou aeronaves. IV - A recusa facultativa regulada no art. 12.º tem de assentar em motivos ponderosos, ligados fundamentalmente às razões que subjazem, por um lado, ao interesse do Estado que solicita a entrega do cidadão de outro país para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de pena ou de medida de segurança privativa da liberdade, e, por outro, ao interesse do Estado a quem o pedido é dirigido em consentir ou não na entrega de um nacional seu. V - No caso dos autos, dada a circunstância de a maior parte dos factos ter ocorrido em Espanha, envolvendo um outro arguido, e de o processo em curso nos tribunais portugueses se encontrar numa fase incipiente, conhecendo-se neste momento apenas o teor da queixa apresentada por uma das ofendidas, enquanto o processo em Espanha se encontra em fase adiantada, já com acusação deduzida, é de considerar que inexistem razões ponderosas para que o Estado português recuse a execução do mandado de detenção emitido pela autoridade judiciária espanhola. (…)”.
No mesmo sentido veja-se o Sumário do Acórdão do STJ de 15.09.2011: “ (…) II. Consagrando o CP a chamada solução plurilateral ou de ubiquidade, é admissível, em face da própria lei portuguesa, considerar competente a lei e a jurisdição portuguesa, no caso de terem aqui sido praticados factos, ou a francesa, onde se verificou o resultado típico. III. Estando o crime a ser investigado em França, este é o país que se posiciona em melhores condições para conhecer de toda a actividade criminosa e para proceder ao julgamento do conjunto dos factos, independentemente do lugar em que tenho tido lugar cada uma das parcelas da actividade criminosa ou em que tenha actuado cada um dos respectivos agentes. IV. Mesmo havendo possibilidade de o lugar da prática do facto poder ser também em Portugal, a circunstância de a França se posicionar igualmente como lugar da prática do facto, não justifica o uso da recusa facultativa com fundamento no disposto na al. h), segmento i), do n.º 1 do art. 12.° da Lei 65/2003, de 25-08.”

E veja-se também o recente Acórdão do STJ de 22.1.2014, proferido no âmbito do Proc. 140/13.6YREVR.S1, onde se escreve que “(…) IV – No caso previsto na al. h), i), do art. 12.º, que constitui uma “reserva de soberania”, ao admitir que o Estado receptor recuse o MDE quando a infracção for cometida, no todo ou em parte, no território nacional, a recusa terá que ser justificada, nas concretas vantagens que a prevalência da jurisdição nacional sobre a do estado emissor envolva para a investigação e conhecimento das infracções constantes do MDE.”

Ora, no caso concreto, é patente a dificuldade da investigação em crimes como aqueles que estão descritos no MDE, não só porque está em causa o crime de associação criminosa, como porque a fraude/burla se espalhou por diversos países. Assim, não se vê quais seriam as vantagens que a prevalência da jurisdição nacional sobre a do estado emissor envolva para a investigação e conhecimento das infracções constantes do MDE, até porque o processo em Espanha já se encontra numa fase de investigação adiantada e em Portugal, que se saiba, essa investigação não existe.

Pelo que entendemos não existir motivo para a recusa de execução do MDE.” [[64]]     

A simples razão de que parte dos crimes, que o mandado indica como tendo sido cometidos pelo requerido lhe  ser imputada a título de cumplicidade não justifica a recusa do mandado. De mais a mais a participação do requerido é a nível de cumplicidade, ou seja um plano de participação só possível de ser averiguada se conexionada com a autoria material que ajudou a concretizar.

A comparticipação como cúmplice [[65]], ou como adjutor de uma actividade que é primacialmente cumprida e executada pelo autor principal, não pode ser desligada da averiguação e posteriormente pela apreciação e valoração da actividade que ajudou a perpetrar. Daí que o Estado emissor considere e estime que a presença do cúmplice se torne essencial para, no julgamento em que estiverem em tela de juízo os factos praticados pelo autor material, se possa avaliar qual o grau de ajuda e colaboração que foi prestada pelo cúmplice na consecução do resultado antijurídico.      

Importa numa apreciação factual em que alguém interveio como colaborador e adjutor de beneficio para conclusão de uma actividade criminosa que o tribunal pondere conjuntamente as respectivas formas de participação criminosa como modo de destrinçar e formar juízo concreto de que forma é que a participação do cúmplice conlevou a actividade autoral e poder concluir pelo doseamento da culpabilidade de cada um. Ao próprio cúmplice importará e favorecerá estar em confronto directo e imediato com os factos de modo a poder esclarecer a sua comparticipação – se existiu, bem entendido – e expor, justificando, as razões porque teve – ou não – aquela ou outra concreta forma de participação na realização do ilícito típico que lhe é assacado.

Subscrevendo, as considerações asseridas no douto acórdão citado e pelas razões adjuvantes que adiantamos, estimamos que também esta causa de recusa se não verifica.     


III. – DECISÃO.

Na defluência do exposto, decidem os juízes que constituem este colectivo, na 3ª secção (criminal) do Supremo Tribunal de Justiça, em:

- Em negar provimento ao recurso, mantendo, consequentemente, o acórdão recorrido;

- Condenar o recorrente nas custas, fixando em 3 (três) Uc´s a taxa de justiça.

Gabriel Catarino (Relator)

  Lisboa, 11 de Janeiro de 2018     

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[1] Os tramos de texto das sínteses relativas à oposição e à resposta do Ministério Público foram sacados do acórdão recorrido.
[2] Com algumas correcções gramaticais justificadas pela má qualidade da tradução do original na língua francesa para a língua portuguesa.
[3] De forma desenvolvida escreveu-se no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Setembro de 2010, in www.dgsi.pt,, que “Como é sabido, com o advento do Mandado de Detenção Europeu, criado pela Decisão-Quadro do Conselho n.º 2002/584/JAI, de 13 de Junho de 2002, introduzido no direito interno pela Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, alterou-se por completo o panorama da extradição, em vigor no País, desde 1975, enquanto instrumento de cooperação entre os Estados Membros da União.
O mandado de detenção europeu corresponde a uma forma de entrega de cidadãos sujeitos a procedimento criminal, ou condenados, mais eficaz, mais rápida e flexível, com um processo simplificado, na tentativa, por um lado, de responder à nova realidade criminológica, internacionalizada e globalizada, e por outro, como projecção no plano da cooperação judiciária dos avanços no processo de integração europeia, procurando implementar-se um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, com o reconhecimento de que uma decisão tomada por uma autoridade judiciária competente de um Estado Membro deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União.
Esta nova forma de cooperação internacional e de entrega entre Estados da Comunidade entronca na Convenção Europeia de Extradição, feita em Paris, em 13 de Dezembro de 1957, a que se seguiu o Primeiro Protocolo Adicional, feito em Estrasburgo em 15 de Outubro de 1975 e o Segundo Protocolo Adicional, feito em Estrasburgo em 17 de Março de 1978, os quais vieram a ser aprovados, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 23/89, sendo a Convenção assinada em 27-04-1977 e os dois Protocolos assinados, igualmente em Estrasburgo, em 27-04-1977 e em 27-04-1978, tendo sido ratificada a Convenção pelo Decreto do Presidente da República n.º 57/89, ambos publicados no DR-I Série, de 21-08-1989.
O procedimento extradicional veio a ter outros desenvolvimentos ao nível do direito convencional comunitário.
Assim acontece, desde logo, com um instrumento relevante para este novo processo - cfr. artigo 4.º da Lei n.º 65/2003 - o Acordo Relativo à Supressão Gradual dos Controlos nas Fronteiras Comuns, assinado em Schengen, a 14 de Junho de 1985 e a Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de Junho de 1985, assinada em Schengen, em 19 de Junho de 1990, cujos Protocolo e Acordo de Adesão foram aprovados em 2 de Abril de 2002 pela Resolução da Assembleia da República, publicada sob o n.º 53/93, no DR, n.º 276, Série I-A, de 25-11-1993 e ratificados pelo Decreto do Presidente da República n.º 55/93, publicado no mesmo Diário da República - cfr. Capítulo IV - artigos 55.º a 66.º.
Os Estados-Membros da Comunidade com o Tratado da União Europeia (TUE), assinado em 07-02-1992 e entrado em vigor em 01-11-1993 (Tratado de Maastricht), afirmaram a existência de um domínio de cooperação comum relacionados com a justiça e assuntos internos, impulsionando a cooperação judicial em matéria penal, como expressamente foi inscrito no Título VI - “Disposições relativas à cooperação policial e judiciária em matéria penal”, criando-se então o terceiro pilar da União Europeia.
Na sequência são firmadas e estabelecidas, com base no então artigo K.3 do referido TUE, a Convenção relativa ao Processo Simplificado de Extradição entre os Estados Membros da União Europeia, assinada em Bruxelas em 10-03-1995, aprovada em 27-02-1997 para ratificação por Resolução da Assembleia da República e ratificada por Decreto do Presidente da República, de 22-05-1997, ambos publicados sob o n.º 41/97, in DR, I Série - A, n.º 138, de 18-06-1997 e a Convenção relativa à Extradição entre os Estados –Membros da União Europeia, assinada em Dublin, em 27-09-1996, aprovada em 28-05 -1998, para ratificação por Resolução da Assembleia da República e ratificada em 18-08-1998 por Decreto do Presidente da República, ambos publicados sob o n.º 40/98, in DR, I Série - A, n.º 205, de 05-09-1998, modificando esta Convenção o regime da Convenção de 1957, sendo que tais convenções não chegaram a entrar em vigor na totalidade dos Estados-Membros, uma vez que não foram ratificadas por todos eles.
A construção de um espaço judiciário comum e a cooperação judiciária em matéria penal ganha nova dimensão a partir do Tratado de Amesterdão, assinado em 02-10-1997, que entrou em vigor em 01-05-1999, ratificado por Decreto do Presidente da República n.º 65/99, in DR, I Série – A, de 19-02-1999, que teve por ambição suprimir os entraves jurídicos à circulação das decisões judiciais, com a introdução de novos instrumentos normativos, passando os Estados Membros a dispor em matéria penal de “decisões” e “decisões-quadro”, com natureza vinculativa para os Estados Membros, quanto aos fins a alcançar.
Com o Plano de Acção de Viena, aprovado em 03-12-1998, estabeleceu-se a adopção de medidas tendentes a facilitar os procedimentos de extradição entre os Estados-Membros, assegurando que as duas convenções de extradição existentes adoptadas ao abrigo do TUE fossem efectivamente implementadas na prática.
Com o Conselho Europeu de Tampere, realizado em 15 e 16 de Outubro de 1999, operou-se avanço significativo.
Concluiu-se então que o procedimento formal de extradição deveria ser abolido entre os Estados-Membros no que dizia respeito às pessoas julgadas à revelia cuja sentença já tivesse transitado em julgado e substituído por uma simples transferência de pessoas.
No sentido da construção do tal espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça propugnado em Amesterdão, concluiu-se deverem as sentenças e decisões serem respeitadas e aplicadas em toda a União, para o que se mostrava necessário alcançar um mais elevado grau de compatibilidade e de convergência entre os diferentes sistemas jurídicos.
Lançam-se as bases do princípio da confiança mútua, com a verificação de que os Estados-Membros “atingiram um tal grau de integração económica e de solidariedade política que não é insensato partir do postulado de que devem confiar uns nos outros no domínio judiciário”, devendo os Estados prescindir de uma parcela da sua soberania penal para reconhecer, também, as pretensões punitivas estrangeiras, abrindo as fronteiras nacionais às decisões judiciais estrangeiras, consagrando-se, como pedra angular da cooperação judiciária, o princípio do reconhecimento mútuo.
O objectivo geral deste princípio é conferir à decisão judicial eficácia total e directa, em todo o território da União Europeia, criando operacionalidade ao exercício das acções por parte de cada um dos seus Estados Membros.
O Conselho, em Novembro de 2000, adoptou um programa de medidas destinado a dar execução ao princípio, afirmando-se que “o reconhecimento mútuo assume (…) formas diversas, devendo ser procurado em todas as fases do processo penal, antes e depois da sentença”.
Entretanto, outro sinal é ainda avançado a partir do Tratado de Nice, que altera o Tratado da União Europeia, os Tratados que Instituem as Comunidades Europeias e Alguns Actos Relativos a Esses Tratados, assinado em Nice, em 26 de Fevereiro de 2001, ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 61/2001, e aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 79/2001, como o antecedente publicado no DR, I-A Série, n.º 291, de 18 de Dezembro de 2001.
No artigo 1.º altera, i. a., o artigo 31.º do Tratado da União Europeia, colocando – n.º 1, alínea b) - como um dos objectivos da acção em comum no domínio da cooperação judiciária em matéria penal, facilitar a extradição entre os Estados membros.
Os acontecimentos verificados nos Estados Unidos da América, em 11 de Setembro de 2001, precipitaram esta evolução, sendo o impulso dado no Conselho Europeu extraordinário, que se realizou dez dias depois, assinalando-se o acordo obtido quanto à introdução do mandado de detenção europeu, que permite a entrega de pessoas procuradas directamente entre autoridades judiciárias, conferindo-se carácter prioritário à sua implementação
O Conselho da União Europeia adoptou a Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre Estados-Membros.
Este regime inovador substituiu as Convenções até então vigentes sobre extradição nas relações entre os Estados Membros da União.
Portugal adaptou o seu direito interno à Decisão Quadro através da publicação da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto (diploma interno de transposição).
Previamente, através de revisão constitucional - a 5.ª - que aditou o n.º 5 ao artigo 33.º da Constituição da República Portuguesa (O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação das normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia) e alterou o n.º 6 do mesmo preceito, que passou a dispor: (Não é admitida a extradição, nem a entrega a qualquer título, por motivos políticos ou por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física), viabilizou a extradição ou a entrega de cidadãos nacionais em consequência dos compromissos assumidos no domínio da cooperação judiciária penal no âmbito da União Europeia - Lei Constitucional n.º 1/2001, de 12 de Dezembro.
O MDE constitui a primeira concretização do princípio do reconhecimento mútuo e por força da sua aplicação, a Decisão Quadro – considerando 11 – acaba com o processo de extradição entre os Estados Membros da União.
Como refere Anabela Miranda Rodrigues, O Mandado de Detenção Europeu - na via da construção de um sistema penal europeu: um passo ou um salto? na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 13, n.º 1, págs. 23 e ss., a decisão quadro “substitui as convenções aplicáveis em matéria de extradição nas relações entre os Estados-Membros, sem prejuízo da sua aplicação nas relações entre Estados–Membros e Estados terceiros (art. 31.º, n.º 1) …”.
Nas relações entre os Estados da Comunidade, por força do MDE, o elemento chave do processo de “entrega” passou a ser o próprio “mandado” de detenção emitido pela autoridade judiciária competente, diversamente do que ocorre nas relações com o exterior do «território único», em que o elemento chave continua a ser o ”pedido”, o que se justificará por nesses casos não se estar perante os pressupostos (confiança recíproca entre os Estados Membros, o reconhecimento mútuo e o postulado do respeito efectivo pelos direitos fundamentais em toda a União Europeia) que justificam a judiciarização do processo de detenção e de entrega.
A propósito desta evolução vejam-se, para além do trabalho referido, “O princípio do reconhecimento mútuo e o mandado de detenção europeu”, por Ricardo Jorge Bragança de Matos, na mesma Revista, ano 14, n. º 3, págs. 325 a 367, “A importância da cooperação judiciária internacional no combate ao branqueamento de capitais”, por Euclides Dâmaso Simões, na Revista citada, ano 16, n.º 3, págs. 423 a 473, e “O controlo da dupla incriminação e o mandado de detenção europeu”, por Mário Elias Soltoski Júnior, no mesmo número da citada Revista, págs. 475 a 494.”

[4] Cfr. Mário Elias Soltoski Júnior, “O Controlo da Dupla Incriminação e o Mandado de detenção Europeu”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 16, nº 3, Julho-Setembro de 2006, págs. 481 e segs. “Duas soluções são apresentadas para a realização dessa necessária ‘‘abertura de fronteiras”: a natural, da harmonização, e a mais original, do reconhecimento mútuo. A via da harmonização se apresenta imediatamente inaplicável, primeiro porque ilusório é tentar harmonizar tudo, depois, os Estados-membros estão fortemente ligados às suas particularidades, sendo o processo de aproximação das legislações um tanto lento, portanto, torna-se mais viável o reconhecimento mútuo.

No âmbito da União Europeia, o Tratado de Amsterdão, em seu artigo 29º, consagrou como objetivo da União ‘‘facultar aos cidadãos um elevado nível de protecção num espaço de liberdade, segurança, e justiça, mediante a instituição de acções em comum entre os Estados-Membros no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal”. Para atingir esse fim, o exercício da soberania penal de cada Estado-membro deve ocorrer em partilha com os outros membros da União Européia, ou seja, para se alcançar o objetivo delineado no Tratado, os Estados devem, baseados na confiança mútua existente, prescindir de uma parcela da sua soberania penal para reconhecer, também, as pretensões punitivas estrangeiras. Assim, para a abertura das fronteiras nacionais às decisões judiciais estrangeiras, o Conselho Europeu de Tampere consagrou, como pedra angular, o Princípio do Reconhecimento Mútuo.

Pelo Princípio do reconhecimento mútuo, uma decisão judicial, tomada por uma autoridade judiciária de um Estado-membro será reconhecida e executada pela autoridade judiciária de outro Estado-membro com efeitos equivalentes aos por esta tomados. Tal reconhecimento é baseado na confiança recíproca depositada em cada um dos diferentes sistemas jurídicos e judiciários, determinada mia presunção de que todos os Estados-membros apresentam sistemas jurídicos pertinentes e sofisticados, tanto em relação às disposições legais, quanto na correta aplicação dessas normas. O reconhecimento ainda se reforça no fato de que todos os Estados-membros fundam suas leis nos princípios da liberdade, da democracia e do respeito dos direitos do homem e liberdades fundamentais, bem como do Estado de Direito.

De tal modo, o objetivo geral do reconhecimento mútuo é conferir à decisão judicial eficácia total e direta, em todo o território da União Europeia, criando operacionalidade ao exercício das acções por parte de cada um dos seus Estados-membros.

3.2. Reconhecimento mútuo e confiança mútua

O Princípio do reconhecimento mútuo é fundado na premissa de que os Estados-membros confiam mutuamente na qualidade de seus procedimentos penais nacionais. Essa confiança permite que a cooperação judiciária entre eles seja alargada.

Questão inicial é saber se essa premissa é verdadeira. Defende-se, inclusive pelo Conselho, que a confiança mútua, entre os sistemas penais dos Estados-membros, justifica-se facilmente na medida em que todos partem de um nível de desenvolvimento comum, assim como de uma visão comum sobre as garantias processuais, presumida na adesão comum à Convenção européia de salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e, ainda, na submissão ao Tribunal europeu dos direitos do homem. Essa confiança fundamenta-se no artigo 6º do Tratado da União Europeia, que consagra ser esta assentada nos princípios de liberdade, democracia e no respeito aos direitos fundamentais do homem e das liberdades fundamentais.

Com essa assertiva, afirma-se que o espaço europeu está baseado na confiança mútua. Entretanto, apenas o contrário é verdadeiro, ou seja, a confiança mútua é que deve decorrer da existência do espaço judicial europeu, e este ainda resta construir, pois a confiança, no terreno, não se decreta. É irreal imaginar que as autoridades judiciárias executarão o princípio do reconhecimento mútuo sem uma redução das divergências entre as legislações penais dos Estados-membros.

Por outro lado, o controle efectuado pelo Tribunal europeu dos direitos do homem não poderia, por várias razões, ser suficiente. Além de o controle ser realizado a posteriori, ele apenas poderá ser utilizado após o esgotamento de todas as vias internas, por possuir caráter excepcional. Já o tribunal de Justiça das comunidades europeias, segundo o artigo 35º, do Tratado da União Européia, está fortemente limitado no quadro do terceiro pilar.

Enfim, não obstante a importância da jurisprudência do Tribunal europeu dos direitos do homem sobre a aproximação dos procedimentos penais, existem divergências importantes entre os sistemas repressivos dos Estados-membros. A afirmação da confiança mútua entre os Estados-membros ignora, ainda, a questão do alargamento da União Européia, que introduziu novas diferenças no seu seio. Ou seja, a intensiva relação mantida entre o direito penal e as liberdades fundamentais justifica, em si, a recusa de todo o relaxamento de vigilância entre os Estados-membros a título individual.

3.3. A aplicação do princípio do reconhecimento mútuo

Vê-se, com o reconhecimento mútuo, na cooperação em matéria penal entre os Estados-membros da União Europeia, uma nova lógica.

A consequência notável introduzida por esse processo reside na “judiciarização’’ completa do mecanismo de auxílio mútuo judicial. O auxílio mútuo clássico, baseado no diálogo entre Estados soberanos, não tem mais curso aqui, porque toda a decisão de um juiz poderá ser transmitida diretamente aos outros juízes sobre o território da União Europeia, ser aí reconhecida e aplicada, sem que sobre ela ocorra qualquer controle político. É, por conseguinte, natural que inquietudes surjam dessa inovação.

Dentro desse contexto, é uma aproximação setorial e não global que foi retida para conduzir a concretização do princípio cio reconhecimento mútuo em matéria penal. A diligência progressiva se funda no "programa de medidas destinadas à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo nas decisões penais’’, adotada pelo conselho.

 A primeira aplicação concreta do princípio do reconhecimento mútuo se fez pela aprovação, em 13 de junho de 2002, da Decisão-quadro do conselho, relativa ao Mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-membros da União Europeia.

Pela definição realizada pelo artigo 1.º, da Decisão-quadro, o Mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado-membro com o propósito da detenção e entrega por um outro Estado-membro de uma pessoa procurada para o exercício de uma acção penal ou para a execução de uma penalidade ou uma medida de segurança privativas de liberdade. O Mandado de detenção europeu pode ser emitido tendo em vista fatos punidos pela lei do Estado-membro de emissão com penalidade ou medida de segurança privativas de liberdade com duração máxima não inferior a doze meses ou, quando uma condenação a uma pena ou uma medida de segurança foi aplicada, para condenações pronunciadas com duração maior que quatro meses.

3.4. Reflexos do mandado de detenção europeu

O Mandado de detenção europeu assumiu, de acordo com o citado dispositivo, a natureza de decisão judiciária, ou seja, ao contrário do procedimento da extradição, o Mandado de detenção europeu dispensa totalmente, a intervenção do Poder Executivo de cada um dos Estados-membros, tornando mais célere o procedimento de entrega.

Tal procedimento é baseado em um modelo “harmonizado” de decisões judiciais, fundamentadas na confiança depositada em cada um dos diferentes sistemas jurídicos e judiciários, que podem ser emitidas qualquer juiz, ou tribunal com competência penal de um Estado-membro (29) com a finalidade de deter uma pessoa que se encontre no território de outro Estado—membro (30), pelos motivos elencados, e supra analisados, no artigo 2.º. da Decisão-quadro. Assim, o procedimento de “entrega’’ deixa de ser ditado pelo “pedido de entrega’’ para ser ditado pelo ‘‘mandado’’ de detenção, emitido pela autoridade competente.

Diante dessa ‘‘despolitização’’, o procedimento de entrega produzir-se-á em um prazo muito menor frente aos prazos praticados nos procedimentos de extradição, que, não raro, duravam anos.

Outro reflexo, no Mandado de detenção europeu do Princípio do reconhecimento mútuo, é que se deixa de falar em “causas de recusa de execução", isto é, devido ao alto grau de confiança recíproca, revelou-se um "aligeiramento" das condições que "podem representar um endurecimento penal no espaço europeu".

A judiciarização do procedimento implica ainda a " manutenção de uma pessoa em detenção obedece à mesmas condições que valem para qualquer pessoa detida, previstas no direito processual interno" gozando, o detido, de garantias como ser, a qualquer tempo, colocado em liberdade provisória; ser  informado sobre a existência e o conteúdo do mandado; sobre a possibilidade de consentir ou não, e suas implicações, na sua entrega; de beneficiar-se dos serviços de um defensor e de um interprete; assim como, por consequência jurídica da sua entrega, beneficiar-se do instituto do desconto.
Diante de todo o exposto, o Mandado de detenção europeu apresenta-se com vários reflexos positivos, entretanto, em algumas considerações devem ser reexaminadas.”
[5] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Setembro de 2010, em cujo sumário se escreveu “ VIII - Previamente, através de revisão constitucional – a 5.ª – que aditou o n.º 5 ao art. 33.º da CRP (O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação das normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia) e alterou o n.º 6 do mesmo preceito (que passou a dispor: Não é admitida a extradição, nem a entrega a qualquer título, por motivos políticos ou por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física), viabilizou a extradição ou a entrega de cidadãos nacionais em consequência dos compromissos assumidos no domínio da cooperação judiciária penal no âmbito da União Europeia – Lei Constitucional 1/2001, de 12-12. IX - O MDE constitui a primeira concretização do princípio do reconhecimento mútuo e por força da sua aplicação, a Decisão Quadro – considerando 11 – acaba com o processo de extradição entre os Estados Membros da União. X - O cumprimento do disposto no art. 3.º, ditando o conteúdo do mandado, nada tem a ver com fixação de matéria de facto, que o STJ não pode sindicar, atenta a sua função de tribunal de revista, antes visando fornecer os elementos essenciais à boa execução do mandado. XI - O MDE não pode transformar-se num processo de investigação de factos e de produção de provas, que, para além do mais, apenas retardaria a entrega solicitada, num processo simplificado e urgente, sendo que tal tipo de defesa não configura fundamento de oposição ao mandado. XII - O recorrente não pode opor-se ao mandado procurando demonstrar que não praticou os factos imputados. XIII - Nesta primeira fase do processo de decisão sobre a execução do mandado europeu está em causa apenas a apreciação da suficiência das informações e da regularidade do mandado, no que respeita ao respectivo conteúdo (enunciação dos factos, descrição da natureza e qualificação jurídica da infracção, as circunstâncias em que foi cometida, incluindo o momento, o lugar e o grau de participação nela assumido pela pessoa procurada, o que assume especial relevância no sentido de proporcionar ao visado a pronúncia sobre a faculdade de renunciar ao benefício/princípio da regra da especialidade, sobre a sua posição de exprimir vontade no sentido de desejar ou consentir que seja executado o mandado, ou ao invés, opor-se à sua execução, exercendo o direito de recusa, seja ela obrigatória ou facultativa, verificação de amnistia, invocação do princípio ne bis in idem, do decurso dos prazos de prescrição, do princípio da territorialidade, ou exprimir declaração relativa à prestação de garantia pelo Estado de emissão, nos termos do art. 13.º, da Lei 65/2003) e à forma do mesmo. XIV - Nesta apreciação apenas há que conhecer da conformidade legal do próprio mandado, no sentido de o poder executar, sendo inoperante/irrelevante uma defesa em que se vise discutir se o procurado cometeu ou não os crimes imputados, a qual só será exercitável no Tribunal do Estado que emitiu o mandado, único a quem compete a decisão judiciária e perante o qual o procurado terá de exercer, com pleno contraditório, os direitos de defesa relativos ao procedimento criminal em curso. XV - A execução de um MDE não se confunde com o julgamento do mérito da questão substantiva de facto, que lhe subjaz, a ter lugar perante a jurisdição do Estado emissor. XVI - A excepção de prescrição de procedimento criminal poderá ser conhecida pelos tribunais portugueses, no pressuposto de que estes sejam competentes para apreciar os factos imputados, o que envolve a necessidade de concluir pela competência dos tribunais portugueses, como questão prévia. XVII - A necessidade de abordagem da questão da competência dos tribunais portugueses para conhecer os factos subjacentes à emissão do mandado, determinada pela invocação da prescrição do procedimento criminal, implica, como questão prévia, a discussão da aplicabilidade da lei penal portuguesa a tais factos, o que nos remete para a questão da aplicação da lei penal/fiscal/tributária no espaço. XVIII - Em matéria de contribuições e impostos, de alfândegas e de câmbios, a execução do MDE não pode ser recusada pelo facto de a legislação do Estado-Membro de execução não impor o mesmo tipo de contribuições e impostos ou não prever o mesmo tipo de regulamentação em matéria de contribuições e impostos, de alfândegas e de câmbios que a legislação do Estado-Membro de emissão – art. 4.º, n.º 1, da Decisão-Quadro do Conselho (2002/584/JAI) de 13-07-2002, norma transcrita na Lei 65/2003. no art. 12.º, n.º 2. XIX - Sobre aplicação da lei tributária no espaço rege o art. 13.º da LGT, na versão originária (e inalterada) e art. 4.º do RGIT, em tudo semelhante ao art. 4.º do CP, consagrando o princípio da territorialidade na aplicação da lei penal no espaço, o qual já encontrava consagração no art. 53.º, n.º 1 (com a excepção do § 1.º) e n.º 2, do CP 86. XX - Segundo este princípio-regra basilar, que continua a dominar a aplicação da lei penal no espaço, a legislação penal do Estado pune todas as infracções cometidas no seu território (definido no art. 5.º da CRP), cometidas por qualquer cidadão, entendendo-se território nacional com a extensão conferida pelo princípio corolário daquele, o chamado princípio da bandeira ou do pavilhão, podendo ver-se o caso de alargamento da aplicação no espaço das leis penal e contra-ordenacional portuguesas, a casos de ilícitos cometidos a bordo de aeronaves civis em voos comerciais, constante do DL 254/2003, de 18-10. XXI - O princípio- regra da territorialidade, por não assegurar, só por si, eficaz protecção visada pelo ordenamento penal, é complementado por outros princípios que funcionam subsidiariamente, concretamente, pelos princípios da protecção dos interesses nacionais, da nacionalidade – da personalidade activa e da personalidade passiva – e da plurilateralidade da prática do crime, também designado de princípio da competência ou da aplicação universal da lei penal ou princípio do direito mundial (segundo este último princípio, o Estado pune todos os crimes cometidos segundo o seu próprio direito, independentemente do lugar onde tenham sido praticados, de quem os cometeu, ou de quem é o ofendido). XXII - Estes princípios mostram-se consagrados no art. 5.º do CP, prevendo-se os casos em que ainda é aplicável a lei penal portuguesa a factos cometidos fora do território nacional, com as restrições previstas no art. 6.º (segundo o n.º 1, a aplicação da lei portuguesa a factos praticados fora do território nacional só tem lugar quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação). XXIII - A aplicação do princípio da territorialidade da lei penal pressupõe resolvida a questão da sede do crime. XXIV - A propósito da determinação do lugar da prática da infracção debatem-se as doutrinas da actividade ou execução e do evento. XXV - A aceitação cumulativa das duas doutrinas, resultante de premências da vida moderna e da facilidade e frequência de prática de crimes à distância, deu origem à chamada solução plurilateral, já defendida anteriormente pela doutrina, como Eduardo Correia, Direito Criminal, 1, pág. 179 (defendendo ser a solução exigida pelo interesse de que, em virtude de diferentes critérios usados pelas leis de diferentes países, os criminosos não fiquem impunes) e a que Hans-Heinrich Jescheck chama teoria da ubiquidade. XXVI - No Ac. do STJ, de 21-12-83, in BMJ n.º 332, pág. 341, dizia-se: «O actual Código Penal no seu artigo 7º consagra a teoria da ubiquidade quanto ao lugar do delito, em clara consonância com a ideia da plenitude da soberania portuguesa sobre o território nacional, anotando-se aí que a teoria da ubiquidade é a mais ampla concepção da sede do delito já que tem em conta o lugar, o processo de execução, o resultado e o efeito intermédio». XXVII - As infracções tributárias consideram-se praticadas no momento e no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, ou naqueles em que o resultado típico se tiver produzido, sem prejuízo do disposto no n.º 3 (art. 5.º RGIT). XXVIII - São imputados ao procurado cidadão nacional os crimes de sonegação do imposto sobre o volume de vendas, sonegação do imposto salarial, sonegação do imposto sobre a renda da pessoa moral e sonegação do imposto industrial. XXIX - Trata-se de crimes omissivos, crimes de mera inactividade, em que a omissão integradora do ilícito consiste na violação da obrigação de declaração de facto tributável e entrega do imposto, consubstanciando-se a final na não entrega, total ou parcial, do que estava obrigado a entregar à administração tributária, ou, no caso do imposto salarial, às instituições de segurança social. XXX - A acção esperada por parte do requerido, de sinal contrário à omissão verificada, ou seja, o cumprimento das obrigações fiscais, devia ter lugar na Alemanha. XXXI - O lugar em que a omissão teve lugar, lesando os interesses da Fazenda alemã, o património do Estado alemão, ocorreu na Alemanha e não em Portugal; a tributação reporta-se a actividade industrial desenvolvida em território alemão, a produção de riqueza naquele País, a salários pagos por trabalho produzido na cidade de Augsburg, aí correndo o processo crime respectivo, não havendo aqui e agora que tecer considerações sobre eventual dupla tributação, devendo essa questão ser suscitada no local próprio, no tribunal alemão, onde terá cabimento apresentar os documentos juntos. XXXII - A aplicação extraterritorial da lei penal justifica-se quando estão em causa bens ou interesses que não admitem a impunidade da respectiva ofensa, entrando-se no campo do princípio da universalidade ou da aplicação universal, que tem na cooperação internacional a sua mais lídima expressão, e daí a ressalva dos tratados e convenções, procurando-se com a mesma garantir a tutela de interesses ou bens que importam a toda a Humanidade e partilhando outros interesses com alguns ou todos os demais Estados, em termos de se justificar, a propósito, a punição dos crimes correlativos, sejam quais forem os seus agentes. XXXIII - No nosso caso não há que convocar o princípio da competência ou da aplicação universal, pois não estão em causa situações de cooperação internacional enquadráveis no DL 144/99 e Lei 52/2003, para as quais faz sentido a aplicação dos princípios aludidos. XXXIV - No âmbito dos crimes tributários os tribunais portugueses só têm competência, salvo tratado ou convenção internacional em contrário, para os factos praticados em território português ou a bordo de navios ou aeronaves portuguesas, o que aqui não se verifica. XXXV - O instituto de entrega, como o de extradição, tem como finalidade o permitir a realização de um julgamento criminal pelo Estado territorialmente competente para o fazer, e como se sabe a nossa lei – art. 4.º do CP – consagra como primordial o mencionado princípio da territorialidade, princípio determinativo da competência para o julgamento dos factos ilícitos, o qual só é derrogado em casos excepcionais, que na situação presente não se justificam. XXXVI - O cumprimento de MDE por parte dos vários Estados membros da comunidade, quer para efeitos de procedimento criminal quer para cumprimento de penas já impostas, assenta no princípio do reconhecimento e no respeito mútuo e da confiança entre todos os Estados, não existindo, por isso, fundamento legal para a recusa do seu cumprimento. XXXVII - Quando a pessoa sobre a qual recai um MDE para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente do Estado-Membro de execução, a entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado-Membro de execução para nele cumprir a pena ou medida de segurança privativas de liberdade proferida contra ela no Estado-Membro de emissão. XXXVIII - A consignação desta possibilidade não implica a formulação de um juízo, sendo apenas decorrência da lei (que suscitará algumas dificuldades, uma vez que a natureza urgente deste procedimento não é compatível com a efectivação da prestação de garantias), mas de colocar em termos efectivos apenas no caso de eventual condenação, o que será pouco compaginável com o princípio da presunção da inocência; a condição só faz sentido para o facto futuro e incerto (incertus an, incertus quando) de cumprimento de uma pena privativa da liberdade, que só terá lugar se e quando o cidadão for condenado em pena de tal natureza. XXXIX - O cumprimento da pena em Estado diverso do da condenação é uma situação que se situa já no âmbito da execução de uma decisão condenatória de natureza penal já transitada em julgado, pois só com o trânsito a sentença condenatória ganha força executiva, como decorre do art. 467.º do CPP.”
[6] Cfr. Clara Penín Alegre, “La Orden de Detención Europea”, in “Cooperación Judicial Penal en Europa”, Dirigida por Miguel Carmona Ruano; Ignacio U. Gonzalez Veja; Victor Moreno Catena, Editorial Dykinson, Madrid, 2013, p. 497 e 501.
[7] Clara Penín Alegre, op. loc. cit. págs. 502-504.

[8] É sabido que a confiança é um pressuposto indispensável de realização do princípio do reconhecimento mútuo. Mas a confiança não se decreta, antes exige que as garantias processuais sejam semelhantes em todos os Estados-Membros, para além do grau de homogeneidade que assegura a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Por isso (cfr. texto), vem-se observando a deslocação do sector prioritário da harmonização do âmbito penal material para o processual. Sobre a importância da tarefa da harmonização a este nível, num momento em que se dão passos decisivos no domínio do reconhecimento de decisões judiciárias tomadas nas fases de investigação, designadamente, com o mandado de detenção europeu, cfr. ANABELA MIRANDA RODRIGUES, RPCC, 13 (2003). Cfr. a este propósito o que foi escrito no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Janeiro de 2007, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar, de que se deixa transcrita a parte interessante. ““As decisões de Tampere em matéria de justiça inspiraram-se na noção de “espaço europeu”, ultrapassando as formas tradicionais de cooperação judiciária. A mudança radical consistiu na afirmação do princípio do reconhecimento mútuo, como “pedra angular” da cooperação judiciária em matéria penal.

A primeira concretização no domínio penal do princípio do reconhecimento mútuo no âmbito do espaço de segurança e justiça foi a Decisão-Quadro de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros (cfr. Anabela Miranda Rodrigues, “O mandado de detenção europeu - Na via da construção de um sistema penal europeu: um passo ou um salto?”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 13ª, nº 1, Janeiro-Março, 2003, pág. 27 segs; Ricardo Jorge Bragança de Matos, “O princípio do reconhecimento mútuo e o mandado de detenção europeu”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 14º, nº 3, Julho-Setembro, 2004, págs. 325 segs.).

Nos “considerandos”, a Decisão-Quadro estabelece a finalidade que tem em vista realizar:

-Abolição do processo formal de extradição no que diz respeito às pessoas julgadas embora ausentes cuja sentença já tenha transitado em julgado – “considerando” (1);

-O objectivo que a União, fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados-Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias, sendo que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permite suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos […] procedimentos de extradição; as relações de cooperação clássicas que […] prevaleceram entre Estados-Membros devem dar lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça – “considerando”;

- O mandado de detenção europeu previsto na Decisão-Quadro constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de «pedra angular» da cooperação judiciária - “considerando”;

- O mandado de detenção europeu deverá substituir, nas relações entre os Estados-Membros, todos os anteriores instrumentos em matéria de extradição – “considerando”.

Os fundamentos e as finalidades, expressamente assumidos ao longo da extensa exposição de motivos da Decisão-Quadro, constituem elementos essenciais de interpretação do próprio instrumento normativo da União, como das pertinentes disposições de diploma interno de transposição, a Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.

O mandado de detenção europeu constitui, pois, com a sua regulamentação jurídica, o instrumento operativo que, em aplicação do princípio do reconhecimento mútuo em matéria penal, substitui nas relações entre os Estados-Membros «todos os anteriores instrumentos em matéria de extradição».

É, pois, no círculo de delimitação material das finalidades do novo e específico instrumento de cooperação no espaço da União que há-de ser interpretado o respectivo regime e cada uma das particularidades que apresente – e o critério nuclear será o que resulta da intenção assumida de substituição, nesse espaço, do regime de extradição.

As referências fundamentais do regime e que moldam os conteúdos material e operativo resumem-se a dois pressupostos base: o afastamento, como regra, do princípio da dupla incriminação, substituído por um elenco alargado em catálogo de infracções penais e a abolição da regra, típica da extradição, da não entrega ou extradição de nacionais.

Moldadas na finalidade do instrumento específico de cooperação e nos pressupostos essenciais que lhe estão subjacentes (mútuo reconhecimento; substituição da extradição), as normas aplicáveis a cada situação têm de ser interpretadas no contexto dos referidos âmbito e finalidades, e na conjugação ainda entre as exigências decorrentes do reconhecimento mútuo e os deveres assumidos e a permanência de alguns espaços de soberania estadual em matéria penal.

As matérias elencadas na enunciação da Decisão-Quadro através da indicação de campos ou áreas materiais de criminalidade - referências genéricas que permitem compreender e abranger matérias ou espaços de criminalidade independentemente das especificidades de descrição típica em espaços não harmonizados - justificam-se por suporem um tendencial de convergência de critérios materiais e âmbito de incidência em sociedades com avançada integração e com princípios, valores e referências comuns.

A “lista” de domínios materiais-penais que estão fora da tradicional exigência de dupla incriminação na cooperação penal internacional, constitui um pressuposto e ao mesmo tempo consequência do princípio do reconhecimento mútuo que fundamenta o mandado de detenção europeu.

Na construção de um espaço comum de liberdade, segurança e justiça tem de haver, necessariamente, um território comum de valores que federem sociedades, e princípios livremente partilhados que constituam âncoras de liberdade e de segurança. Por isso, a confiança que têm de partilhar na aceitação dos valores e dos sistemas materiais e procedimentais que os garantam.

Nesta medida, uma comunidade de segurança, liberdade e justiça supõe a existência de valores e bens jurídicos comuns que devem ser tutelados pelo direito penal, aceitando os seus membros que a incriminação de comportamentos que afectem tais valores é inerente à partilha de valores comuns, independentemente dos nomina próprios de cada sistema. A incriminação está, assim, intrínseca nos princípios que federam as sociedades e os Estados que se agregam e integram em comunidade, dispensando, materialmente, a verificação da dupla incriminação; uma tal exigência estaria em contradição com a aceitação de valores essenciais comuns.

Mas esta ordenação e ponderação valem para o que é essencial à liberdade e segurança e ao espaço comum de justiça na protecção de valores que são o cimento de sociedades que assumem espaços muito relevantes de integração.

Esta é a função da “lista” dos campos materiais de incriminação do artigo 2º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto – reconhecimento de um consenso sobre o próprio “princípio da incriminação”.

Mas por ser assim, a dimensão é material, não podendo ser apenas formal; os equilíbrios e as acomodações necessárias, se não permitem verificar a dupla incriminação nas matérias em que é pressuposta (sem o que não existira espaço comum de liberdade e segurança com a protecção penal de valores e bens essenciais), também supõem que a pertença das matérias aos campos definidos deve ser verificada em função dos factos que determinaram a emissão do mandado e das qualificações da lei interna do Estado da emissão e não de meras indicações formais e genéricas constantes do mandado.

[…] Estas considerações permitem determinar, na intenção subjacente à criação do instrumento de cooperação e no modelo instituído, o tipo de controlo que caberá á autoridade judiciária do Estado da execução. Este controlo terá de ser «genérico, ou seja, verificar se o facto ou factos que dão origem ao mandado fazem parte da lista, referindo-se a um “domínio de criminalidade” ai previsto; depois, um controlo jurídico, que se analisa num controlo da incriminação do facto ou factos no Estado de emissão. Nesta segunda fase do controlo, a autoridade judiciária fica subordinada à definição dos factos pelo direito do Estado de emissão, isto é, tem de se ater aos elementos constitutivos do tipo legal de crime tal como eles estão previstos na lei do Estado de emissão e não aos elementos constitutivos na lei do seu Estado».

[…] Deste modo, se os factos que determinam a emissão do mandado, tal como constam e com a qualificação jurídica e a integração típica que as autoridades da emissão assumiram, não puderem integrar-se, numa razoável e comum dimensão material, no elenco de um dos “domínios de criminalidade” fixados na Decisão-Quadro, o Estado da execução poderá efectuar, nas condições que considere adequadas, a verificação (facultativa) da dupla incriminação; a limitação do alcance das soberanias só poderá valer para os valores e princípios comuns, que livremente se aceitaram, podendo o Estado da execução, em situações de desfasamento entre os factos e a qualificação e o círculo e as finalidades da construção dos domínios de criminalidade da “lista”, afastar-se das referências formais e genéricas do mandado, que não tenham suporte material.

[…] E, como se salientou, a delimitação comum não é arbitrária ou destituída de fundamentação material. Trata-se de proteger através do direito penal valores e bens jurídicos que constituem o suporte das exigências e garantias de liberdade e segurança num espaço comum de liberdade, segurança e justiça, e não de condutas que «relevam de uma certa Weltanschauung e, por isso, incriminadas nuns Estados e não noutros» (cfr. Anabela Miranda Rodrigues, loc.cit., p. 40).

[…] Moldadas na finalidade do instrumento específico de cooperação e nos pressupostos essenciais que lhe estão subjacentes (mútuo reconhecimento; substituição da extradição), as normas aplicáveis a cada situação têm de ser interpretadas no contexto dos referidos âmbito e finalidades, e na conjugação ainda entre as exigências decorrentes do reconhecimento mútuo e os deveres assumidos e a permanência de alguns espaços de soberania estadual em matéria penal.

Nesta perspectiva complexa, o estabelecimento de causas facultativas de não execução do mandado relevam dos compromissos assumidos no âmbito da União e dos consensos possíveis na conjugação do binómio espaço único e soberania estadual.

Tratando-se, no caso, de um modelo de substituição integral da extradição, simplificado e inteiramente jurisdicionalizado, tudo quanto fosse anteriormente regulado pelo regime da extradição, deve ser integrado no regime do mandado de detenção europeu no que respeita ao respectivo âmbito objectivo e subjectivo de aplicação.”
[9] Em termos procedimentais toda a estrutura de cumprimento do mandado tem subjacente o propósito que de criar um instrumento ágil com base na confiança mútua, e num quadro de respeito por princípios fundamentais, como é o exercício do direito de defesa, que estão inscritos na matriz de criação da EU.

Assim, e precisando alguns dos termos de tal procedimento, interpretados dentro daquela teleologia:

-O mandado de detenção europeu deve compreender toda uma série de informações sobre a identidade da pessoa, a autoridade judiciária de emissão, a decisão judicial definitiva, a natureza da infracção, a pena, etc. (um modelo do formulário encontra-se junto em anexo à decisão-quadro).

Em geral, a autoridade de emissão comunica o mandado de detenção europeu directamente à autoridade judiciária de execução. Está prevista a colaboração com o Sistema de Informação de Schengen (SIS), bem como com os serviços da Interpol. Se a autoridade do Estado-Membro de execução não for conhecida, a rede judiciária europeia presta assistência ao Estado-Membro de emissão.

Os Estados-Membros podem adoptar as medidas coercivas necessárias e proporcionais contra uma pessoa procurada. Quando uma pessoa procurada for detida, tem o direito a ser informada do conteúdo do mandado, bem como a beneficiar dos serviços de um defensor e de um intérprete.

A autoridade de execução tem o direito de decidir manter a pessoa em detenção ou libertá-la sob certas condições.

Enquanto se aguarda uma decisão, a autoridade de execução (em conformidade com as disposições nacionais) procede à audição da pessoa em causa. O mais tardar 60 dias após a detenção, a autoridade judiciária de execução deve tomar uma decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu. Em seguida, a autoridade judiciária de execução informa imediatamente a autoridade de emissão da decisão tomada.

Todavia, se as informações comunicadas forem consideradas insuficientes, a autoridade de execução pode solicitar à autoridade de emissão informações complementares.

O período de detenção relativo ao mandado de detenção europeu deve ser deduzido do período total da pena de privação de liberdade eventualmente aplicada.

A pessoa detida pode declarar que consente na sua entrega, de forma irrevogável e em plena consciência das consequências do seu acto. Neste caso, a autoridade judiciária de execução deve tomar uma decisão definitiva sobre a execução do mandado no prazo de dez dias a contar da data do consentimento.

Os Estados-Membros podem prever que, sob certas condições, o consentimento seja revogável. Para este efeito, devem fazer uma declaração aquando do acto de adopção da presente decisão-quadro indicando as modalidades práticas que permitem a revogação do consentimento.

O Estado-Membro recusa a execução do mandado de detenção europeu se:

-Tiver sido proferida uma decisão transitada em julgado por um Estado-Membro pelos mesmos factos e contra a mesma pessoa (princípio "ne bis in idem");a infracção for abrangida por uma amnistia no Estado-Membro de execução; o Estado-Membro de execução, a pessoa em causa não puder, devido à sua idade, ser responsabilizada.

A autoridade judiciária de execução pode recusar a execução do mandado na presença de outras condições (prescrição da acção penal ou da pena nos termos da legislação do Estado-Membro de execução, decisão transitada em julgado pelos mesmos factos por um país terceiro, etc.).

A não execução do mandado de detenção europeu deve ser sempre fundamentada.
O mandado é traduzido na língua oficial do Estado-Membro de execução. Além disso, é transmitido por quaisquer meios que permitam ter o seu registo escrito e verificar a sua autenticidade pelo Estado-Membro de execução.

[10] Disponível em www.dgsi.pt. No mesmo sentido o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Julho de 2015, em que se escreveu: “O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro com vista á detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativa de liberdade-artigo 1º da Lei 65/2003. 

A adequação do procedimento, ou o seu campo de aplicação, exprime-se na equação entre o fim concretamente pretendido e a finalidade designada na lei para aquele procedimento, ou seja, a propriedade, ou impropriedade, do procedimento é uma questão de ajustamento da pretensão formulada ao perfil inscrito na lei.  

Nos autos essa pretensão concreta é deduzida em termos formalmente correctos e para conseguir uma finalidade que é a constante da Lei, ou seja, pretende o Estado Bulgaro a entrega de um cidadão Português fim de exercer o procedimento criminal por crimes cuja prática está indiciada. 

Sendo patente essa convergência entre o pedido formulado e a norma estruturante do procedimento não compete ao Estado requerente entrar em consideração com factores exógenos que se inscrevem noutro contexto processual.  

Para a validade do mandado apenas releva a sua adequação á finalidade pretendida sendo certo que não são invocados motivos de recusa da entrega. 

III. - Importa agora equacionar a interpelação da requerente em relação à detenção de privação de liberdade de que é objecto.

Num breve apelo à raiz do instituto importa relembrar que o Tratado de Amesterdão, em vigor desde 1 de Maio de 1999, instituiu o Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça - ELSJ (artigo 29.°).A cooperação judiciária em matéria penal continuou a fazer parte do III Pilar, não tendo sido "comunitarizada", como o foram a cooperação em matéria civil e as matérias de asilo e emigração. Realçam-se as importantes alterações introduzidas a nível da cooperação penal a qual deixou de ser uma cooperação meramente intergovernamental, dado o crescente papel da Comissão e do Parlamento Europeu. 

Efectivamente, passou a existir a possibilidade de adopção de decisões-quadro para efeitos de aproximação legislativa (instrumento de contornos semelhantes ao da directiva do I Pilar mas sem efeito directo);  

- a Comissão passou a ter direito de iniciativa  

- previu-se, em termos a definir, a participação de autoridades judiciárias e de polícia criminal em acções a realizar no território de um outro Estado Membro;  

- a nível das relações externas, o artigo 38 do TUE veio permitir à União Europeia concluir por, unanimidade, acordos interna­cionais com Estados terceiros ou organizações internacionais em matérias relevantes do III pilar.  

Por outro lado, o Tratado de Amesterdão integrou o "acquis Schengen" no acervo da União Europeia. Um dos objectivos do Tratado de Amesterdão foi facultar aos cidadãos um elevado nível de protecção num espaço de liberdade, segurança e justiça, mediante a instituição de acções em comum no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal, através da prevenção e combate à criminalidade, organizada ou não, em especial o terrorismo, o tráfico de seres humanos, os crimes contra as crianças, o tráfico ilícito de armas, o tráfico de droga e o combate à corrupção e à fraude através, quer de uma cooperação mais estreita entre autoridades judiciárias e outras autoridades competentes dos Estados Membros, quer da aproximação de disposições de direito penal dos Estados Membros.  

O Tratado de Nice, que entrou em vigor a 1 de Fevereiro de 2003, não introduziu grandes alterações institucionais em matéria de cooperação judiciária penal, traduzindo antes um quadro de continuidade. 

A importância conferida ao Espaço de Segurança, Liberdade e Justiça pelo Tratado de Amesterdão foi reafirmada pelos Chefes de Estado e de Governo, tendo sido realizado um Conselho Europeu em Tampere, em 15 e 16 de Outubro de 1999, exclusivamente dedicado a estas matérias, cujas conclusões são invocadas como fundamento do trabalho da União Europeia em matéria de cooperação judiciária penal nos últimos cinco anos. Mais do que um mero enunciar de princípios, constituíram um desenvolvimento qualitativo nos trabalhos da União Europeia e um momento essencial na história do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. Para além das múltiplas áreas aí elencadas (protecção das vítimas, prevenção da criminalidade, luta contra a Criminalidade - Eurojust, Task Force Chefes de Polícia, equipas de investigação conjuntas, Academia Europeia de Polícia, reforço da Europol, Estratégia contra a droga - acção específica contra o branqueamento de capitais), que foram efectivamente incrementadas, foi retomada a ideia de um Plano de Acção para Concretização do ELSJ, tendo-se concluído que o reconhecimento mútuo de decisões se deveria tomar o eixo essencial da cooperação judiciária na União Europeia tanto em matéria penal como em matéria civil, aplicável quer a sentenças judiciais, quer a outras decisões de autoridades judiciárias.  

Para implementação deste princípio foi adoptado um Programa de medidas destinadas a aplicar o princípio do reconhecimento mútuo de decisões penais com um conjunto de medidas a adoptar e respectivo prazo de adopção.  

O programa de medidas destinado a dar execução ao princípio do reconhecimento mútuo das decisões penais, referido no ponto 37 das conclusões do Conselho Europeu de Tampere, e aprovado pelo Conselho em 30 de Novembro de 2000, aborda a questão da execução mútua de mandados de detenção.  

Na elaboração da decisão quadro que conduziu á criação do mandado de detenção europeu foi determinante o objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça o que conduziu à supressão da extradição entre os Estados-Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias.  

A instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças, ou de procedimento penal, permitiu suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos actuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que, até á criação da referida figura, prevaleciam entre os Estados-Membros deram lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial, como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.  

O objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduziu à supressão da extradição entre os Estados-Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Acresce que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas, ou suspeitas, para efeitos de execução de sentenças, ou de procedimento penal, permitiu suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos actuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleciam entre Estados-Membros deram lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial como transitada em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça.  

O mandado de detenção europeu previsto na decisão-quadro de 2002 constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de "pedra angular" da cooperação judiciária. Pode-se afirmar que o mecanismo do mandado de detenção europeu é baseado num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros substituindo, nas relações entre os Estados-Membros, todos os anteriores instrumentos em matéria de extradição, incluindo as disposições nesta matéria do título III da Convenção de aplicação do Acordo de Schengen.  

O seu núcleo essencial reside em que, «desde que uma decisão é tomada por uma autoridade judiciária competente, em virtude do direito do Estado-Membro de onde procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União». O que significa que as autoridades competentes do Estado-Membro no território do qual a decisão pode ser executada devem prestar a sua colaboração à execução dessa decisão como se tratasse de uma decisão tomada por uma autoridade competente deste Estado. 

IV. - O mecanismo do mandado de detenção europeu baseia-se, assim, sempre num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros. E, desse modo, uma decisão tomada por uma autoridade judiciária competente de um determinado Estado-Membro de onde procede, de acordo com as normas legais deste Estado, essa decisão tem um efeito pleno no Estado que recebe tal ordem. 

Na lógica do procedimento do MDE as autoridades do Estado no território no qual a decisão é executada devem prestar a sua colaboração à execução dessa decisão como se tratasse de uma decisão tomada por uma autoridade competente deste, sendo vedada qualquer indagação sobre as razões de substância ou de procedência em relação ao objecto e ao mérito da questão conforme aponta o do STJ de 29-5-2008, Processo n.º 08P-1891, in wvvw.dgsi.pt. - Acórdãos do STJ). 

Resulta do exposto que a decisão relativa à medida de coacção, entre as que constam previstas no Código de Processo Penal (art. 18°, n. ° 3 da lei 65/2003), tem que equacionar a natureza específica do mandado de detenção europeu e as razões subjacentes à sua emissão que, no caso vertente, se destina a efectivação do procedimento criminal e apresentação da arguida á autoridade judiciária búlgara onde está pendente o processo. Tal como refere a decisão recorrida, justificada que se mostra a emissão do MDE por parte da Bulgária, os factos são puníveis em Portugal com pena de prisão, tendo sido considerado que a medida de coacção de prisão preventiva era a medida mais adequada e proporcional à satisfação das inerentes finalidades do mandado em causa. 

Sob a designação genérica de detenção compreendem-se duas etapas de privação da liberdade. A primeira corresponde a uma prisão precária que tem por objectivo a audição do indivíduo detido pela autoridade judicial competente. Embora seja uma medida parecida com a detenção no âmbito das medidas cautelares e de polícia previstas no processo penal comum, não é idêntica a elas porque, em princípio, não se impõe a obrigação de avaliar em concreto se a privação da liberdade é realmente necessária para encaminhar o visado à audição judicial. A segunda etapa é semelhante à prisão preventiva, mas em nenhuma hipótese poderia ser considerada uma medida equivalente. Com efeito, e ao contrário do que sucede com a prisão preventiva, a aplicação da detenção no âmbito da cooperação judiciária não está expressamente dependente da avaliação de requisitos cautelares, nem parece levar em consideração o carácter de ultima ratio da privação da liberdade dentro das medidas de coacção. Além disso, as regras de contagem dos prazos de cada uma das medidas são completamente distintas. 

Consequentemente, percebe-se que a detenção - de aplicação aparentemente automática, ou ao menos "natural", segundo os regimes jurídicos da extradição e do mandado de detenção europeu - tem características muito próprias, que impedem que se lhe atribua a designação geral de medida cautelar ou medida de coacção para efeitos de aplicação do CPP, mesmo que se admita que (também) ela visa realizar finalidades cautelares, como evitar uma possível fuga e garantir a extradição ou a entrega.

E, por ter como única finalidade a garantia de execução de uma futura e eventual decisão de extradição ou entrega, a aplicação de uma medida de coacção só pode ser fundamentada na fuga ou no perigo de fuga, não sendo fundamento idóneo para a sua imposição os demais requisitos do art. 204.º do CPP129.

Em relação à detenção é legítimo presumir uma predisposição da pessoa requerida de não se apresentar espontaneamente à autoridade judiciária. Em consequência, o meio menos gravoso de garantir a presença do indivíduo perante o juiz é a detenção, sendo certo que nenhuma outra medida poderia atender com eficácia a esta finalidade. Assim, em função da inadequação ou insuficiência de qualquer outra medida, a imposição da detenção está em consonância com o princípio da subsidiariedade.[1]

A finalidade específica é a entrega do detido desde que solicitada de forma válida e legal, no cumprimento dos mecanismos da Lei 65/2003. Como se refere em decisão deste Supremo Tribunal de Justiça de 12-7-2007, proc. n.° 07P2712, in http://www.dgsi.pt/. Ac. do STJ "a detenção, para efeitos de execução de MDE, é menos exigente quanto aos requisitos da prisão preventiva, até pelos prazos mais curtos previstos no art. 30.° da Lei n.° 65/03 (cfr., ainda neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.° 228/97 - quanto à detenção para extradição). Por outras palavras na ponderação dos requisitos da adequação, proporcionalidade e necessidade a gravidade dos crimes indiciados conjuga-se com a necessidade de resposta positiva ao pedido internacional de detenção. 

É nessa lógica que se pronuncia o Tribunal Constitucional quando, em decisão proferida no Acórdão 228/97 refere, a propósito da verificação de eventual discriminação entre uma prisão preventiva para efeitos de extradição e de uma prisão para efeitos processuais penais na ordem nacional que: "No caso em apreço, não existe qualquer discriminação não só porque as situações não são verdadeiramente comparáveis como também porque a detenção provisória ou solicitada para efeitos de extradição não é susceptível de ser comparada no que aos respectivos prazos respeita com a prisão preventiva para efeitos penais. 

É um facto inegável existir em ambos os casos uma privação da liberdade: porém, as finalidades que tal privação visa realizar em cada um dos casos são substancialmente diversas. Assim, na extradição - englobando aqui, quer os casos em que há um pedido prévio de detenção provisória quer os casos de detenção antecipada não solicitada - esta detenção destina-se unicamente a permitir tomar uma decisão sobre a extradição por forma, a que esta seja garantidamente efectivada. Pelo seu lado, a prisão preventiva em processo penal visa diferentes fins: garantir a presença do arguido durante o procedimento penal, quando haja fundado receio de fuga, evitar o perigo de perturbação da instrução do processo, caso o arguido se mantivesse em liberdade, receio, fundado de perturbação da ordem ou da tranquilidade pública ou da continuação da actividade criminosa, em razão da natureza do crime ou da personalidade do delinquente." 

Igualmente o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 21-11-2012 acentua o perfil próprio que caracteriza o decretar de medidas de coacção em sede de MDE referindo que: Detenção e entrega são assim os únicos objectivos do mandado de detenção europeu, visando a primeira a efectivação da segunda. Isto é, a detenção no âmbito do mandado de detenção europeu tem por finalidade a entrega de pessoa procurada ao Estado emissor, entrega que, obviamente, só tem lugar após a tomada de decisão sobre a validade da detenção e sobre a verificação dos requisitos legais de que depende a execução do mandado (detenção constitucionalmente prevista conforme preceito da alínea c) do n.º 3 do artigo 27º da Constituição Política. 

Por isso, em princípio, a detenção efectuada no âmbito do mandado de detenção europeu, quando validada pelo tribunal, deve ser mantida até à entrega, sem embargo de poder (e dever) ser substituída por medida de coacção, como estabelece o n.º 3 do artigo 18º da Lei n.º 65/03, designadamente quando a detenção se mostre desnecessária à obtenção do desiderato do mandado, ou seja, à efectivação da entrega. 

Daí a estrutura específica e urgentíssima atribuída ao procedimento relativo ao mandado de detenção europeu, traduzida na imposição estabelecida no artigo 29º, segundo a qual a pessoa procurada deve ser entregue no mais curto prazo possível, numa data acordada entre o Tribunal e a autoridade judiciária de emissão, no prazo máximo de 10 dias a contar da decisão definitiva de execução do mandado, nos curtíssimos prazos estabelecidos no artigo 30º para a duração máxima da detenção (60 dias sem que seja proferida pelo Tribunal da Relação decisão sobre a execução do mandado, 90 dias se for interposto recurso ordinário daquela decisão e 150 dias se for interposto recurso para o Tribunal Constitucional) e na celeridade imposta no artigo 33º no processamento da execução do mandado, norma que impõe se pratiquem fora dos dias úteis, das horas de expediente dos serviços de justiça e das férias judiciais todos actos processuais relativos ao processo de execução do mandado de detenção europeu[, e que declara decorrerem em férias os prazos relativos àquele processo. 

Daí que o período de tempo de privação da liberdade à ordem de mando de detenção europeu só possa ser tomado em conta no prazo de duração ou cumprimento de pena, não tendo qualquer repercussão na medida de coacção de prisão preventiva, como estabelece o n.º 1 do artigo 10º da Lei n.º 65/03.

Concordando com tais pressupostos é evidente também a conclusão de que que, atentas as específicas finalidades que o mandado de detenção europeu visa prosseguir, a detenção e entrega de pessoa procurada se encontram submetidas, em pleno, ao regime jurídico-processual da prisão preventiva, sendo menores as exigências quanto aos requisitos da detenção/prisão e sua manutenção. A manutenção da detenção, suposta a sua validação deve ser equacionada em função das circunstâncias objectivas em que o mandado foi emitido com a finalidade de entrega da pessoa procurada, pelo que a detenção deve ser mantida até à entrega, a menos que se mostre desnecessária. 
Sendo menores as exigências da manutenção da detenção no âmbito do mandado de detenção europeu, aferindo-se a sua aplicação pelas circunstâncias objectivas em que o mandado foi emitido, são também menores as exigências de fundamentação da decisão que a determina.” 

[11] É do seguinte teor o referido normativo:

«2. Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.

3. Exceptua-se deste princípio a privação de liberdade pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes:

a)…

b)…

c) Prisão, detenção ou outra medida coactiva sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão».

[12] Neste sentido pronunciou-se o acórdão deste Supremo Tribunal de 07.07.12, proferido no Processo n.º 2712/07, ao decidir que a detenção para efeitos de mandado de detenção europeu é menos exigente quanto aos requisitos que a prisão preventiva, sendo a sua aplicação de aferir nas circunstâncias objectivas em que o mandado foi emitido, o que não colide com os princípios constitucionais, tendo em conta nomeadamente o disposto na alínea f) do n.º 3 do artigo 27º da Constituição, ao permitir a prisão preventiva com o fim de assegurar a comparência de pessoa perante autoridade judiciária competente.

Em sentido coincidente também decidiu o acórdão deste Supremo Tribunal de 09.04.30, proferido no Processo n.º 1043/09.4YRLSB-A.S1.

[13] Actos processuais com prazos curtíssimos, como é o caso do recurso da decisão que mantém a detenção e do recurso da decisão final sobre a execução do mandado, actos estes cujo prazo é de 5 dias, recursos que são julgados na primeira sessão após o último visto, independentemente de inscrição em tabela e com preferência sobre os outros.
[14] Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 08.07.10, proferido no Processo n.º 2396/08, o tempo de privação da liberdade à ordem de MDE apenas poderá ser tomado em conta no prazo de duração da pena, não tendo qualquer repercussão na medida de coacção, o que bem se percebe, uma vez que as medidas de coacção se subordinam não às finalidades das penas mas aos princípios da necessidade e adequação, em termos de exigências cautelares, sem prejuízo do princípio da proporcionalidade.
[15] Disponível em www.dgsi.pt.
[16] Disponível em www.dgsi.pt
[17] Cfr. Para maiores desenvolvimentos, de la Oliva Santos, Andrés e Diez-Picazo Giménez, Ignacio, in “Derecho Procesal Civil - El proceso de declaración”, Editorial Universitária Ramón Areces, 3.ª edición. 2008, págs. 445-466
[18] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, págs. 142-143 nota 5 e 53 e segs.; J. Rodrigues Bastos, Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. III, pág. 247 nota 5 e 228 nota 2.
[19] J. Rodrigues Bastos, Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. III, pág. 228 nota 2.
[20] Vd. Ac. do STJ de 09-07-1982: B.M.J. 319 pág. 199.
[21] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, págs. 49 e segs.; J. Rodrigues Bastos, Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. III, pág. 228 nota 2.; J. Lebre de Freitas e outros, Cód. Proc. Civil Anot, Vol. 2, Coimbra Editora – 2001, págs. 645-646 nota 2. No sentido de que os motivos, argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos não figuram entre as questões a apreciar no art.º 660.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, como jurisprudência unânime, pode ver-se, de entre muitos exemplos, p. ex., RT 61º-134, 68º-190, 77º-147, 78º-172, 89º-456, 90º-219 citados apud Abílio Neto Cód. Proc. Civil Anot. 8.ª Ed. (1987), págs. 514-515 nota 5, em anotação ao art.º 668º. Vd. ainda, v. g., Ac. do STJ de 01-06-1973: B.M.J. 228 pág. 136; Ac. do STJ de 06-01-1977: B.M.J. 263 pág. 187. 
[22] Vd.. Rodrigues Bastos, Notas ao Cód. Proc. Civil, Vol. III, pág. 228 nota 2.
[23] Disponível em www.dgsi.pt
[24] Acórdão do STJ de 04.01.2007, proc. nº 06P47607, Relator Henriques Gaspar - “a limitação do alcance das soberanias só poderá valer para os valores e princípios comuns, que livremente se aceitaram, podendo o Estado da execução, em situações de desfasamento entre os factos e a qualificação e o círculo e as finalidades da construção dos domínios de criminalidade da "lista", afastar-se das referências formais e genéricas do mandado, que não tenham suporte material.”
[25] Acórdão do STJ, de 08.01.2009, proc. 3861/08, Relator Pires da Graça; 
[26] Mário Elias Soltoski Júnior, “O Controlo da Dupla Incriminação e o Mandado de detenção Europeu”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 16, nº 3, Julho-Setembro de 2006, págs. 481 e segs.“
[27] Na oposição o requerido/recorrente havia enunciado as seguintes questões (sic).

I) Deste modo, considerando

i) que o crime de burla está prescrito,

ii) que o Ministério Público conhece a factualidade em causa, desde 2012, tendo arquivado os 16 procedimentos criminais por falta de indícios da prática de crime de burla, nuca tendo chamado o Oponente a intervir naqueles processos, nem nunca tendo dirigido a investigação para o crime de branqueamento,

iii) que não há indícios de o Oponente ter praticado algum facto no território francês ou contra cidadãos franceses,

iv) que o mesmo, a ocorrer, só pode ter ocorrido em Portugal,

v) que o crime de burla não está entre o catálogo daqueles de que a origem dos proveitos dá lugar ao preenchimento do tipo legal do crime de branqueamento, pode este Tribunal efectuar, no âmbito da salvaguarda de uma reserva de soberania penal, de acautelar a realização efectiva da sua jurisdição, o respeito por princípios relevantes do seu sistema constitucional e penal, a competência investigatória por factos praticados no seu território, bem como a protecção de um cidadão português relativamente ao qual o Estado Português não tem – ou, pelo menos, deixou de ter – fundamento para perseguir criminalmente, alicerçado na cláusula da territorialidade, o duplo controle de incriminação e concluir existência de motivo ponderoso para a recusa de execução do mandado de detenção europeu ora em crise, tendo por base a verificação de três causas de recusa facultativa da execução do MDE, previstas, respectivamente, nas als. a), c), e) e h), ponto i) do art. 12º, n.º 1.”  

[28] Por comodidade de arrumação estrutural da decisão optou-se por transcrever a totalidade do tramo do acórdão concernente com a motivação/fundamentação de direito.
[29] Luis Benéytez Merino, Deontologia de la Decisión Judicial, in “Ética del Juez y Garantías Procesales”, Consejo General del Poder Judicial, Manual de Formación Continuada 24, 2005, p. 318-319.   
[30]A construção da sentença constitui um processo lógico de natureza específica, que pressupõe a realização de uma série complexa de operações, que se referem tanto ao mundo dos factos, que se hão-de estabelecer, como ao mundo normativo, no qual se há-de inquirir sobre a norma aplicável, sobre o seu sentido e extensão, sobre o seu valor normativo e, como antes se indicou, sobre a sua coerência com valores e princípios constitucionais. O termo «enjuiciamiento» que dá o nome às nossas leis processuais, no seu arcaísmo, constitui uma correcta denominação dessa operação lógica, que é a aplicação da norma pertinente. A sentença cume da actividade jurisdicional é, em suma, um iudicium, é o acto de julgar, que define a própria função do Poder Judicial no plano constitucional. Certamente aplicar a Lei julgando e fazendo executar o julgado é primariamente uma estrutura lógica cuja compreensão tem como condição necessária o conhecimento da trama intima da norma enquanto regra jurídica.
A regra jurídica que institucionalmente há-de ser abstracta e geral tem a forma externa de mandato hipotético. As suas partes constitutivas são o suposto de facto e a consequência jurídica. (…) Em concordância com esta estrutura o «iudicium» da sentença consiste em afirmar que se produziu o suposto de facto descrito na norma e, por isso, se pronuncia a consequência jurídica prevista nela. Há uma correspondência unívoca entre norma e sentença, de modo que o mandato da sentença não é mais que o mandato com o caso concreto. A conclusão, a que pretendemos chegar desde a consideração da estrutura lógica da sentença não é outra de que a reflexão sobre as exigências éticas da sentença como acto de consciência há-de fazer-se, separando o juízo sobre o facto do juízo sobre o direito.” Luis Benéytez Merino, op. loc. cit. p.333.              
[31] Luis Benéytez Merino, op. loc. cit. p. 340.
[32]A obrigação de motivar garantida constitucionalmente assume um valor político fundamental: é o instrumento por meio do qual a sociedade está em disposição de conhecer e de verificar das razões pelas quais o poder jurisdicional é exercido em determinados modos nos casos concretos. – Michelle Taruffo, “La motivación de la Sentencia Civil”, Editorial Trotta, Madrid, 2011, pág. 19. (a tradução do castelhano é da nossa responsabilidade).  
[33] Citado por Burkhard Hess e Othmar Jauernig, in Manual de Derecho Procesal Civil, Marcial Pons, 2015, pág. 344.
[34] Cfr. Andrea Antonio Dalia e Marzia Ferraioli, in Manuale di Diritto Processuale penale, Cedam, 2003, pag. 748.
[35] Sobre a necessidade de, em direito penal, dever existir uma verdade como correspondência “lo mas aproximado posible de la motivación com las normas aplicadas e los hechos juzgados”, de modo a tornar aceitáveis as decisões penais, ver Luigi Ferrajoli, in Derecho e Razón, Teoria del Garantismo penal, Editorial Trotta, 7ª edição, pag.68. Acrescenta, ainda este autor que “sólo si se refieren a la verdad como correspondência, los critérios de la coherencia y de la aceptabilidad justificada pueden en realidad impedir la prevaricación punitiva contra el particular de intereses o voluntades más o menos generales y vincular el juicio a la estricta legalidad, o sea, a los hechos empíricos previamente denotados por la ley como punibles”.   
[36] Vide Chaim Perelman, in Lógica Jurídica, Martins Fontes,S. Paulo,2000, pag.210.
[37] Hermenegildo Borges, in Vida, Razão e Justiça, Racionalidade Argumentativa na Motivação Judiciária, Minerva Coimbra, 2005, 179.
[38] A propósito da justificação das decisões judiciais, vide Robert Alexy, in Teoria da Argumentação Jurídica, A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica, Landy Editorial, pag.215 e segs. 
[39] Aliste Santos, Tomás-Javier, in “La Motivación de las Resoluciones Judiciales”, Marcial Pons, Madrid, 2011, pág. 240. A estes conceitos, o Autor chama ou crisma de elementos ou vectores lógico-racionais positivas, do mesmo passo que aos conceitos de «arbitrariedade», «discricionariedade» e «arbítrio» qualifica como “elementos limitadores negativos da motivação judicial.”   
[40] Taruffo; Michele, in “Paginas sobre Justicia Civil”, Marcial Pons, Madrid, 2009, pág. 535.
[41] Taruffo; Michele, in “Paginas sobre Justicia Civil”, Marcial Pons, Madrid, 2009, pág. 536.
[42] Taruffo; Michele, in “Paginas sobre Justicia Civil”, Marcial Pons, Madrid, 2009, pág. 537.
[43] Cfr. no mesmo sentido Nieva Fenoll, Jordi, in “La valoración de la Prueba”, Marcial Pons, Madrid, 2010, pág. 196 a 199 ou ainda Taruffo, Michele, in “Simplemente la Verdad. El Juez y la construción de los hachos”, Marcial Pons, Madrid, 2010, 232 a 274, em especial de págs. 266 a 274. 
[44] Cfr. Taruffo, Michele, in “Paginas sobre Justicia Civil”, Processo e Direito, Marcial Pons, Madrid, 2009, pág. 516 e 517. Para este autor a motivação desdobra-se numa dupla função, uma de cariz ou índole endoprocessual e outra de feição extraprocessual. “La función endoprocesaI es aquella gue desarrolla la motivación de la sentencia, entendida como requisito técnico del pronunciamiento jurisdiccionaI, em el interior del proceso. Esta función está conectada directamente com la impugnación de la sentencia y se articula em dos aspectos principales: a) la motivación es útil para las partes que pretenden impugnar la sentencia, dado que el conocimiento de los motivos de la decisión facilita la identificación de los errores cometidos por el juez y em cualquier caso de los aspectos criticables de la decisión misma, y, por tanto, hace más fácil la identificación de los motivos de impugnación. (…), La motivación de la sentencia és también útil para el juez de la impugnación, dado que facilita la tarea de reexaminar la decisión impugnada, tomando em consideración las justificaciones aducidas por el juez inferior”. “La función extraprocesal de la motivación se conecta directamente com la dimensión constitucional y la naturaleza garantista de la correspondiente obIigación, y al mismo tiempo se explica y justifica em la absoluta generalidad y la consecuente imposibilidad de entenderla como derogable ad libitum por el legislador ordinário (y mucho menos como derogable ad libitum por el juez o las partes). Tal función no se plantea, obviamente, como altemativa a la función endoprocesal recién descrita, sino que se añade a ella, ubicandose por lo demás en un nivel diverso y de mayor relevância político-institucional. Consiste funndamentalmente en el hecho de que la motivación se encuentra destinada a hacer posible un control externo (es decir, no limitado al contexto del proceso concreto en el que se pronuncia la sentencia, y no limitado a Ias partes y al juez de la impugnación) sobre las razones que sustentan la decisión judicial. Em este sentido, laigación de motivación se entiende como una expresión importante (obviamente no la única) de la concepción democrática del poder, y en particular del poder judicial, con base en la cual una condición esencial para el correcto y legítimo ejercicio del poder consiste precisamente en la necesidad de que los órganos que lo ejercen se sometan a un control externo, el cujo sólo puede llevarse a cabo suministrando las razones por las cuales aquel poder se ha ejercido de esse modo.”   
[45] Cfr. Michele Taruffo, op. loc. Cit, pág. 518.
[46] Cfr. Michele Taruffo, op. loc. Cit, pág. 519.
[47] Cfr. Michele Taruffo, op. loc. Cit, pág. 520.
[48] Cfr. Nieva Fenoll, Jordi, in “La valoración de la Prueba – La impugnación de la valoración de la Prueba”, Marcial Pons, Madrid, 2010, págs. 346 a 356. “El tribunal de apelación está en perfectas condiciones de reinterpretar toda la resultancia probatoria, com lo que podrá resolver el litigio, desde luego de manera más justa, practicando incluso pruebas complementarias en los casos em que el ordenamiento le autorice para ello.”   
[49] Cfr. Michelle Taruffo, “La motivación de la Sentencia Civil”, Editorial Trotta, Madrid, 2011, pág. 15.                  
[50] Michelle Taruffo, “La motovación de la Sentencia Civil”, Editorial Trotta, Madrid, 2011, pág. 116. Adentrando-se na estruturação da motivação poder-se-ia perguntar se ela deve designar (el designatum) ou denotar (el denotatum), entendido o primeiro como o “conjunto orgânico dos significados próprios das proposições que compõem o discurso, mediante o qual o juiz expressa os argumentos destinados a justificar, quer dizer, a tornar racionalmente válida, legitima e aceitável a decisão”, e o “denotatum” “como o razoamento justificativo que o juiz planteia como sustentação da decisão.”       
[51] Aliste Santos, Tomás-Javier, in “La Motivación de las Resoluciones Judiciales”, Marcial Pons, Madrid, 2011, pág. 234.
[52] STC, de 12 de Dezembro de 2005, citado por Aliste Santos, in op. loc. cit. pág. 234.

[53] A propósito do dever constitucionalmente assumido de fundamentação dos actos judiciais escreveu-se no acórdão do Tribunal Constitucional nº 27/2007, proferido no processo nº 784/05: “[…] Em particular, a dimensão normativa em causa é confrontada com o dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais, cons­tante do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição.

Deste dever de fundamentação das decisões judiciais decorre que, nas decisões sobre matéria de facto, é obrigatória a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. A imposição constitucional referida só fica satisfeita com a explicitação das razões dessa decisão, feita pelo seu próprio autor, em termos de habilitar o seu destinatário a, ciente dessas razões, se conformar com a decisão ou impugná-la de forma consciente e eficiente. O exame crítico das provas credibiliza a decisão, viabiliza o recurso e permite revelar «o raciocínio lógico do tribunal relativamente à própria decisão», como foi sublinhado já na Conferência Parlamentar sobre a Revisão do Código de Processo Penal, em 7 de Maio de 1998 (cf. as intervenções de Luís Nunes de Almeida, Germano Marques da Silva e Eduardo Maia Costa, entre outros, em Código de Processo Penal - Processo Legislativo, 2.° vol., t. 2, ed. da Assembleia da República, 1999, pp. 68, 85,86,90 e 95 e segs.).

Ocupando essa garantia de fundamentação das decisões judiciais um lugar central no sistema de valores nos quais se deve inspirar a admi­nistração da justiça no Estado democrático moderno (cf. Michele Taruffo, «Notte sulla garanzia costitutionale della motivazione», in Bole­tim da Faculdade de Direito, Coimbra, 55.° vol., 1979, pp. 29 e segs.). Ela deve ser susceptível, como se escreveu já em acórdão deste Tribunal, «de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros, sobretudo tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da livre apreciação pelo julgador, devendo também indicar as razões de direito que conduziram à decisão con­cretamente proferida» (cf. o Acórdão n.º 680/98, publicado no Diário da República, 2.a série, de 5 de Março de 1999).

A respeito da exigência constitucional de fundamentação das deci­sões judiciais, pode ler-se também no Acórdão nº 61/2006 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):

«Foi a primeira revisão constitucional (1982) que, com a inserção do novo n.º 1 do então artigo 210.º da CRP, veio proclamar que "As decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos ter­mos previstos na lei", formulação que, sem alteração de redacção, transitou, com a segunda revisão constitucional (1989) para o n.º 2 do artigo 208.° A remissão para a lei, não apenas da modulação dos termos, mas também da definição dos casos em que a fun­damentação das decisões dos tribunais era devida (muito embora sempre se entendesse que "a discricionariedade legislativa nesta matéria não [era total], visto o dever de fundamentação [ser] uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito demo­crático (cf. o artigo 2.°), ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como ins­trumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso"), representando "a falta de consagração constitucional de um dever geral de fundamentação das decisões judiciais", surgia como "pouco congruente com o prin­cípio do Estado de direito", para além de não se compreender que "a garantia de fundamentação seja constitucionalmente menos exigente quanto às decisões judiciais do que quanto aos actos admi­nistrativos (artigo 268.°, n.º 3)" (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.a ed., Coimbra, 1993, pp. 798-799) - preceito este último que impunha a "fundamentação expressa" dos "actos administrativos [ ... ] quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos" .

Foi a revisão constitucional de 1997 que deu à norma em causa a sua localização (artigo 205.°, n.º 1) e formulação ("As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei") actuais. Estabeleceu-se, assim, com dig­nidade constitucional, a regra geral do dever de fundamentação de todas as decisões judiciais, com a única excepção das de mero expediente, remetendo-se para a lei ordinária a definição, já não dos casos em que a fundamentação é devida, mas tão-só da forma de que se pode revestir.

O alcance desta alteração foi salientado por este Tribunal, no Acórdão n.º 680/98, nos seguintes termos:

"7 - Dispõe a Constituição, no n.º 1 do artigo 205.º, que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fun­damentadas na forma prevista na lei”. Este texto, resultante da Revisão Constitucional de 1997, veio substituir o n.º 1 do artigo 208.º, que determinava que “as decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei”. A Cons­tituição revista deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamen­tação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação ver­dadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas “nos termos pre­vistos na lei”para o serem “na forma prevista na lei”. A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legis­lativa na conformação concreta do dever de fundamentação."

Também o Acórdão n.º 147/2000 salientou que a "actual redacção do artigo 205.°, n.º 1, imprimiu contornos mais precisos ao dever de fundamentação, pois, onde a Constituição remetia para a lei os “casos”em que a fundamentação era exigível, passou a con­cretizar-se que ela se impõe em todas as decisões “que não sejam de mero expediente”, mantendo-se apenas a remissão para a lei quanto à “forma” que ela deve revestir", acrescentando:

"Este aprofundamento do dever de fundamentação das decisões judiciais reforça os direitos dos cidadãos a um processo justo e equitativo, assegurando a melhor ponderação dos juízos que afec­tam as partes, do mesmo passo que a elas permite um controlo mais perfeito da legalidade desses juízos com vista, designadamente, à adopção, com melhor ciência, das estratégias de impugnação que julguem adequadas.

De todo o modo, a persistência daquela remessa para a lei faz com que o mandado constitucional de fundamentação continue a ser um mandado aberto à actuação constitutiva do legislador, a quem incumbirá definir a “forma” em que a fundamentação se deve traduzir, sem que, contudo, ele possa esvaziar o sentido útil daquele mandado (cf. o Acórdão nº 59/97, in Diário da República, 2.a série, nº 65, de 18 de Março de 1997) - qualquer que seja essa forma, ela terá sempre que permitir o conhecimento das razões que motivam a decisão.

[ ... ] Mas se a relevância da fundamentação das decisões judiciais é incontestável como garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático, ela assume, no domínio do processo penal, uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos, muito embora o texto constitucional não contenha qualquer norma que disponha especificamente sobre a fundamentação das decisões judi­ciais naquele domínio."»

A exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais tem uma função não apenas endoprocessual, mas também dirigida ao exterior do processo: ela visa explicitar a ponderação que integrou o juízo decisório e permitir às partes - no caso, ao arguido - o perfeito conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, em ordem a facultar-lhes a possibilidade de optar pela reacção (impugnatória ou não) que entendam mais ade­quada à defesa dos seus direitos (e por esta via, a obrigação de fun­damentação possibilita também, mediatamente o exercício do direito ao recurso que possa caber no caso). Mas a exigência de fundamen­tação visa também possibilitar o próprio conhecimento pela comu­nidade das razões que levaram a uma determinada decisão, e, pela via da exigência de lógica ou racionalidade da fundamentação (contida na exigência de fundamentação), contribui também para a própria legitimação da actividade decisória dos Tribunais.

5 - O tribunal do julgamento tem, pois, que explicitar as razões que o levaram a convencer-se de que o arguido praticou os factos que deu como provados.

Importa, porém, notar que, como este Tribunal também já afirmou, «a fundamentação não tem de ser uma espécie de assentada, em que o tribunal reproduza os depoimentos de todas as pessoas ouvidas, ainda que de forma sintética» (Acórdão n.º 258/2001, com texto integral disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Nem, por outro lado, a fundamentação tem de obedecer a qualquer modelo único e uniforme, podendo (e devendo) variar de acordo com as circunstâncias de cada caso e as razões que neste determinaram a convicção do tribunal.

Com o dever de fundamentação das decisões judiciais, a Cons­tituição não impõe, na verdade, um modelo único de fundamentação, com descrição ou, ainda mais, transcrição, de todos os depoimentos apresentados no julgamento, ou a menção do conteúdo de cada um deles. Estes depoimentos, mesmo quando são depoimentos da arguida e das testemunhas de defesa, podem, com efeito, não ter sido decisivos para a formação da convicção do tribunal, podendo então bastar que o tribunal indique aqueles que o foram. Isto, sendo certo que, por um lado, o que está em causa em sede de fundamentação das sentenças não é um princípio de paridade de consideração e explicitação da prova produzida por todos os sujeitos processuais, mas antes de expli­citação do juízo decisório e das provas em que este se baseou, e que, por outro lado, não compete ao Tribunal Constitucional controlar a forma como concretamente o tribunal formou a sua convicção. Como se referiu, não está, aliás, em causa no presente recurso o controlo do exame crítico das provas feito na decisão em causa, nem uma admissão da mera elencagem «tabelar» das provas produzidas”.
[54] Vide op. loc. cit. p. 210.
[55] Neste sentido José Manuel Damião da Cunha, in “O Caso Julgado Parcial – Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num processo de Estrutura Acusatória”, Publicações Universidade Católica, Porto, 2002, p. 564. 

[56] Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 11.10.2007; Proc. n.º 07P3240., onde se escreveu: “Mais exigentemente, pois que agora se deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas "nos termos previstos na lei" para o serem "na forma prevista na lei". A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação.

A fundamentação das decisões judiciais continua, pois, dependente da lei a que é atribuído o encargo de definir, com maior ou menor latitude, o âmbito do dever de fundamentação, sem que isso signifique total discricionariedade legislativa, “uma vez que o dever de fundamentação é uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso. Nestes casos, particularmente, impõe-se a fundamentação ou motivação fáctica dos actos decisórios através da exposição concisa e completa dos motivos de facto, bem como as razões de direito que justificam a decisão” (V. Moreira e G. Canotilho, CRP Anotada, 2.ª Edição, 798-9)

Foi devolvido ao legislador o seu “preenchimento”, a delimitação do seu âmbito e extensão em termos prudentes evitando correr o risco de estabelecer uma exigência de fundamentação demasiado extensa e, por isso, inapropriada e excessiva. Limitou-se a consagrar o aludido princípio “em termos genéricos”, deixando a sua concretização ao legislador ordinário. (cfr. o ac. nº 310/94 do T. Constitucional – DR IIS de 29.8.94), sem que isso signifique, como se viu, que assiste ao legislador ordinário uma liberdade constitutiva total e absoluta para delimitar o âmbito da obrigatoriedade de fundamentação das decisões dos tribunais, em termos de esvaziar de conteúdo a imposição constitucional.

Têm sido atribuídas à fundamentação da sentença diversas funções:

— Contribuir para a sua eficácia, através da persuasão dos seus destinatários e da comunidade jurídica em geral;

— Permite, ainda, às partes e aos tribunais de recurso fazer, no processo, pela via do recurso, o reexame do processo lógico ou racional que lhe subjaz;

— Constitui um verdadeiro factor de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre a qual repousa o dever de dizer o direito no caso concreto (iuris dicere). E, nessa medida, é garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões (cfr. citado Ac. 680/98).

E a norma, que desenhou o dever de fundamentação no processo penal, cumpre todas estas funções, como vêem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional (cfr. Ac. TC n.ºs 680/98 e 636/99, 102/99, 258/2001, 382/98 e AcSTJ de AcSTJ de 11.11.2004, proc. n.º 3182/04-5)”. E ainda no mesmo sentido o ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 09-01-2008 - Proc. n.º 4457/07. “[…] VIII - Através da exigência de fundamentação consegue-se que as decisões judiciais se imponham não por força da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que  lhes subjaz (Marques Ferreira, in Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 230). Ao mesmo tempo, permite-se a plena observância do princípio do duplo grau de jurisdição, podendo o tribunal superior verificar se, na sentença, se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 294), sem olvidar que, face aos princípios da oralidade e da imediação, é o tribunal de 1.ª instância aquele que está em melhores condições para fazer um adequado usado do princípio de livre apreciação da prova. IX - Antes da vigência da Lei 59/98, de 25-08, entendia-se que o art. 374.º, n.º 2, do CPP não exigia a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão-só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não impondo a lei a menção das inferências indutivas levadas a cabo pelo tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contraprovas, nem impondo que o julgador expusesse pormenorizadamente o raciocínio lógico que se encontrava na base da sua convicção, pelo que somente a ausência total da referência às provas que formaram a fonte da convicção do tribunal constituía violação do art. 374.º, n.º 2, do CPP, a acarretar nulidade da decisão nos termos do art. 379.º do mesmo diploma legal. X - Actualmente, face à nova redacção do n.º 2 do art. 374.º do CPP – introduzida pela Lei 59/98, de 25-08, e inalterada pela Lei 48/2007, de 29-08 –, é indiscutível que tem de ser feito um exame crítico das provas, ou seja, é necessário que o julgador esclareça “quais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, de forma a que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra”. XI - O dever constitucional de fundamentação da sentença (art. 205.º, n.º 1, da CRP) basta-se com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como com o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas também dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que aquela se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência. XII - A fundamentação decisória não tem que preencher uma extensão épica, sem embargo de dever permitir ao seu destinatário directo e à comunidade mais vasta de cidadãos, que sobre o julgado exerce um controlo indirecto, apreender o raciocínio que conduziu o juiz a proferir tal decisão. Não basta, pois, uma mera referência dos factos às provas, torna-se necessário um correlacionamento dos mesmos com as provas que os sustentam. XIII - Aplicada aos tribunais de recurso, a norma do art. 374.º, n.º 2, do CPP não tem aplicação em toda a sua extensão, nomeadamente não faz sentido a aplicação da parte final de tal preceito (exame crítico das provas que serviram para formar a livre convicção do tribunal) quando referida a acórdão confirmatório proferido pelo Tribunal da Relação. Se a Relação, reexaminando a matéria de facto, acolheu a fundamentação do acórdão recorrido que se apresenta detalhada, justificando-o na parte respectiva, então as instâncias cumpriram suficientemente o encargo de fundamentar, sendo que a discordância quanto aos factos apurados não permite afirmar que não foi (ou não foi suficientemente) efectuado o exame crítico pelas instâncias. XIV - O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento na 2.ª instância. Dirige-se somente ao exame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos em recurso e das provas que impõem decisão diversa (e não indiscriminadamente de todas as provas produzidas em audiência). XV - O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127.° do CPP. A livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em 1.ª instância. O art. 127.° indica um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.
[57] Vide op. loc. cit., p.566.                                                     
[58] Para mais desenvolvimentos sobre esta temática, vide Robert Alexy, in Teoria da Argumentação Jurídica – A Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica, Landy Editora, 2001, p. 100; e Hermenegildo Borges, in “Vida, Razão e Justiça, Racionalidade argumentativa na Motivação Judiciária”, Minerva Editora, Coimbra, 2005, p.177. “(…) a convicção que suporta uma decisão dificilmente assume um grau de certeza, isto é, o grau superior de convicção e que, existindo, exclui qualquer possibilidade de erro, uma vez que perante ela se atinge o grau mais rigoroso da motivação lógico-material”.
 
[59] Assim, o acórdão da Relação de Coimbra, de 21.11.2007 (Des. Jorge Gonçalves), acessível em www.dgsi.pt
[60] In “Manual de Procedimentos Relativos à Emissão do Mandado de Detenção Europeu – Anotações ao Formulário do MDE”.
[61] Nesta linha de entendimento se situa o acórdão desta Relação de 20.10.2010 (Des. Cravo Roxo), disponível em www.dgsi.pt, em que se considerou que “Se o arguido faltou à audiência de julgamento e se encontra ausente no estrangeiro, não se justifica a emissão de mandado de detenção europeu, a fim de assegurar a sua presença na audiência, se está sujeito apenas a termo de identidade e residência e não se pretende impor-lhe medida de coacção mais gravosa”.
[62] Como se refere no acórdão da Relação de Évora de 15.05.2007 “as causas de recusa facultativa de execução constantes do artigo 12.º, n.º 1, da Lei n° 65/2003, de 23 de Agosto, têm, quase todas, um fundamento ainda ligado, mais ou menos intensamente, à soberania penal: não incriminação fora do catálogo, competência material do Estado Português para procedimento pelos factos que estejam em causa, ou nacionalidade portuguesa ou residência em Portugal da pessoa procurada”.
[63] Cfr., entre outros, o acórdão da Relação de Évora de 18.11.2010, Proc. n.º 176/10.9 YREVR, e o acórdão da Relação de Guimarães de 29.03.2011 (de que foi relatora a Desembargadora Maria Luísa Arantes que aqui intervém como adjunta).

[64] Cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Junho de 2016, relatado pelo Conselheiro Manuel Matos, in www.fgsi.pt.

[65] Sobre o conceito da forma de participação criminosa a título de cumplicidade escreveu-se no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 31 ed Março de 2004, que “A cumplicidade, traduzida no auxílio doloso, material ou moral e por qualquer forma, à prática por outrem de um facto doloso, é punível com a pena fixada para o autor, especialmente atenuada - cf. art. 27º, n.ºs 1 e 2, do Cod. Penal.
Na comparticipação criminosa, em cujas formas se inscreve a cumplicidade, "cada comparticipante responde pelo mesmo facto típico, porque todos os participantes concorrem para a prática do mesmo facto. O modo de cooperação é que é diverso; o objecto a que se dirige a cooperação de todos é o mesmo: o facto, o crime" - Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, Parte Geral, Vol.II; Ed. Verbo, 1998, pag. 280.
Diferencia-se da co-autoria, pela ausência do domínio do facto; o cúmplice limita-se a facilitar o facto principal, através de auxílio físico (material) ou psíquico (moral), situando-se esta prestação de auxílio em toda a contribuição que tenha possibilitado ou facilitado o facto principal ou fortalecido a lesão do bem jurídico cometida pelo autor.
"A linha divisória entre autores e cúmplices está em que a lei considera como autores os que realizam a acção típica, directa ou indirectamente, isto é, pessoalmente ou através de terceiros (dão-lhe causa), e como cúmplices aqueles que não realizando a acção típica nem lhe dando causa, ajudam os autores a praticá-la" cfr., Germano Marques da Silva, ob. cit., pag. 179.
A cumplicidade é uma forma de participação secundária na comparticipação criminosa, destinada a favorecer um facto alheio, portanto, de menor gravidade objectiva, mas embora sem ser determinante na vontade do autor e sem participação na execução do crime, traduz-se sempre em auxílio à prática do crime e, nessa medida, contribui para a sua prática, configurando-se como uma concausa do crime - Cf. Germano Marques da Silva, ob. cit., pgs. 283 a 291.
Tal como Cavaleiro Ferreira, in Lições de Direito Penal, I, 1987, pags. 352-353, também Faria Costa, in Jornadas de Direito Criminal, As Formas do Crime, Centro de Estudos Judiciários, 1983, pags. 153 a 184, apela à ideia de subalternização da cumplicidade, relativamente à autoria, em que infracção seria sempre praticada, só que o seria em outro tempo, lugar ou circunstância.
A cumplicidade (artigo 27º, nº 1, do Código Penal - «é punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso») pressupõe, pois, um apoio doloso a outra pessoa no facto antijurídico doloso cometido por esta; não há na cumplicidade domínio material do facto, pois o cúmplice limita-se a favorecer a prática do facto.
E isto mesmo sem o conhecimento do autor do facto ("cumplicidade clandestina"), relevando apenas a atitude do cúmplice.
Prestar ajuda ou auxiliar tanto pode consistir numa acção material e física, como intelectual ou moral - a "cumplicidade psíquica", podendo, assim, serem ilimitados os meios de intervenção na cumplicidade.
Na cumplicidade material haverá sempre a exterioridade de um comportamento, uma acção exterior, revelada e visível, dirigida ao favorecimento do agente do facto.
A cumplicidade psíquica (auxílio moral) supõe, também, um qualquer meio, palavra, gesto, ou comportamento que revele a vontade de reforçar a acção do agente do facto; a mera cogitatio ou a aceitação passiva não pode constituir cumplicidade, não revelando, neste perspectiva, o ponto de vista do agente do facto, nem o que sinta ou suponha, mas apenas a perspectiva e a vontade do suposto cúmplice.
A cumplicidade só pode, pois, revelar-se através da causalidade; especialmente na cumplicidade psíquica, sem elementos reveladores de causalidade não se pode responder à questão de saber se há auxílio ou se houve favorecimento do facto principal.
Por outro lado, o auxílio na cumplicidade é doloso: o cúmplice deve actuar dolosamente tanto em relação ao auxílio, como na direcção do auxílio em relação ao facto do agente (dolo duplo).
Nesta medida, no domínio da causalidade relevante na cumplicidade não basta uma qualquer solidarização activa que não seja também causal do resultado. Mas a circunstância de que o influxo psíquico tenha surtido efeito é irrenunciável como constitutiva da causalidade, e tem de ser revelada nos factos provados (cfr., v. g., Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend, "Tratado de Derecho Penal, Parte General", 5ª ed., 2002, pág. 744, segs; Günter Jakobs, "Derecho Penal", Parte General", 2ª ed., 1997, pág,810, segs.).
A jurisprudência dos nossos tribunais espelha a doutrina indicada: cfr. os acórdãos. do STJ, de 17-08-81, Proc. n..38264 (este referindo-se, especificamente a uma situação de cumplicidade em crime de violação), de 16-01-90, Proc. n.º 40378, de 04-04-90, Proc. n.º 40425, de 21-10-92, Proc. n.º 42952, de 03-11-94, Proc. n.º 48885, de 05.04.95, Proc. n.º 48898 (in www.itij.mj.pt), de 14.11.96, Proc. n.º 48588, de 13-11-97, Proc. n.º 962/97-3, de 27-11-97, Proc. n.º 291/97-3 (in S. ac. STJ). de 10-12-97, Proc. n.º 916/97-3 (in BMJ 472º/116), de 20-01-98, Proc. n.º 1202/97-3, de 04-06-1998, Proc. n.º 235/98-3, de 15-10-98,Proc. n.º 784/98.3 (in S. A. STJ), de 22-03-01, Proc. n.º 473/01-5 (in. Ac. STJ, Ano IX, Tomo I-2001, 260), de 02-05-01, Proc. n.º4112/00-­3, de 07-06-01, Proc. n.º 949/01-5, de 06-12-01, Proc. n.º 3160/01-5 (S.Ac. STJ), de 30-­10-02.
«O cúmplice pode participar no acordo e na fase da execução (embora não tenha necessariamente de assim suceder, ao contrário do que acontece com o co-autor) mas, contrariamente ao que se verifica com este - e nisso consiste a característica fundamental de diferenciação entre as duas formas de comparticipação - o cúmplice não tem o domínio funcional do facto ilícito típico. Tem apenas o domínio positivo e negativo do seu próprio contributo, de forma que, se o omitir, nem por isso aquele facto deixa de poder ser executado. A sua intervenção, sendo, embora, concausa do concreto crime praticado, não é causal da existência da acção. » (acórdão deste Supremo Tribunal de 21-11-01, Proc. n.º 2758/01-3 in Sumários de Acs. do STJ).”