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RESPONSABILIDADE DO ESTADO
RESPONSABILIDADE LEGISLATIVA
Sumário
I - O Estado não pode ser condenado em indemnização a lesado de acidente de viação que viu o valor dos seus danos reduzido por aplicação do art. 508.º do C Civil, na anterior redacção. II - Não existe omissão legislativa por parte do Estado na transposição para o direito interno da Directiva Comunitária 85/5/CEE, inexistindo assim responsabilidade extracontratual.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
B………., intentou esta acção declarativa sob a forma ordinária contra o Estado Português, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de 42.780,64 euros, acrescida dos juros de mora legais vincendos desde a citação até pagamento, alegando ter sido vítima de acidente de viação no dia 16.02.1996 e a indemnização que pediu judicialmente ter sido apenas parcialmente procedente por, nas diversas instâncias, ter sido aplicada a limitação do art. 508º, nº 1, do Código Civil, na redacção que lhe foi dada pelos Decs. Lei nº 190/85 de 24.06 e 423/91 de 30.10.
Porque em seu entender, tal se ficou a dever a omissão legislativa do Estado Português, por não ter transposto até 31.12.95 para o direito interno a Segunda Directiva Comunitária 84/5/CEE de 30.12.1983, conforme se havia comprometido, incorreu em responsabilidade extra-contratual, nos termos do artº. 22º da Constituição da República Portuguesa e 483 e ss. do Código Civil, e dai a obrigação de pagar a quantia reclamada a título de indemnização.
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O Ministério Público, em representação do Estado, contestou pugnando pela improcedência da acção e consequente absolvição do pedido formulado, porquanto em seu entender não houve qualquer omissão legislativa, uma vez que o Dec. Lei nº 3/96 de 25.01, ao dar nova redacção ao artº 6º do Dec. Lei nº 522/85 de 31.12, cumpriu a obrigação legislativa decorrente da referida directiva, para além de que, com essa alteração, operou-se a revogação tácita do artº 508º, nº 1, do Código Civil, conforme veio a ser reconhecido pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 3/2004 de 25.03, publicado no Diário da República de 13.05.2004, resultando a improcedência da acção de decisões judiciais que fizeram errada aplicação dessa norma revogada, inexistindo por isso os requisitos da responsabilidade civil extracontratual.
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Foi efectuada audiência preliminar, tendo-se frustrado a tentativa de conciliação entre as partes, sendo então proferido saneador sentença, no qual julgou-se a acção improcedente por não provada, absolvendo-se o R. Estado do pedido contra si formulado pela autora.
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Foram considerados na decisão anterior os seguintes factos;
1- No dia 16.02.1996 a autora foi interveniente num acidente de viação, quando atravessava a Rua ………., no Porto;
2- Em consequência desse acidente de viação, a autora intentou a respectiva acção judicial, tendo a decisão final transitado em julgado (acção ordinária nº …/99 que correu termos na .ª secção desta .ª vara cível e cuja petição inicial, contestação, despacho saneador, sentença de primeira instância, acórdãos do Tribunal da Relação do Porto e do Supremo Tribunal de Justiça constam da certidão de fls. 16 a 65, que aqui se dá por reproduzida na íntegra);
3- No referido processo nº …/99, a final, foi elaborada a conta de custas a cargo da autora (fls. 113, que se dá por reproduzida).
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No se conformando, dela interpôs o presente recurso de apelação, e, após as respectivas alegações, finalizou com as seguintes conclusões:
1ª. Nos termos do artº 22º da Constituição (CRP), assiste direito à Recte o direito de exigir do Estado indemnização pelos prejuízos que lhe foram causados por omissão do dever de legislar quando devido ou por exercício defeituoso na feitura das leis, verificados que sejam dos demais pressupostos gerais do artº 483º do CC.
2ª. A conduta do Estado Português constitui ilícito culposo por, no âmbito do regime de responsabilidade civil automóvel, não haver transposto para o direito interno a 2ª Directiva 84/5/CEEE, “com a especificidade, a exactidão e a clareza requeridas para que seja satisfeita a exigência de segurança jurídica”.
3ª. O prejuízo sofrido pela Recte, vítima de acidente de viação em que não se verificou culpa do conduto, decorre do facto de a última instância de recurso – STJ – haver limitado o montante da indemnização ao dobro da alçada da relação pº no segmento do nº 1 do artº 508º do CC e não a haver fixado de acordo com o limite mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel fixado no artº 6º do DL 522/85, na redacção do DL 3/96, em obediência às exigências da 2ª directiva, e de haver pago nas instâncias de recurso (Relação e Supremo).
4ª. O Estado Português com a publicação do DL 190/85 já havia previsto a necessidade de, no futuro quadro da comunidade europeia, harmonizar as exigências da 2ª Directiva com os limites máximos do referido segmento do nº 1 do artº 5º do CC.
5ª. Não obstante estar ciente das especificidades da matéria de responsabilidade civil automóvel no contexto comunitário, o Estado Português enquanto legislador não acautelou, como seria exigível dele esperar, os interesses das vítimas a proteger, antes permitindo, durante mais de uma década, o – passe a expressão – “enriquecimento sem causa” (cp. segº. obrigº - dobro da alçada) das seguradoras, automobilistas segurados e FGA..
6ª. Os factos alegados pela Recte como causa de pedir, uns constam das certidões judiciais que julgaram em definitivo a causa, enquanto outros, juízos de facto atendíveis, nomeadamente, quanto á ilicitude, culpa e nexo de causalidade, são do conhecimento oficioso do tribunal. (artº 514º do CPC)
7ª. Ao invés da douta sentença recorrida que entende ser, no caso, objecto de censura os Acórdãos da relação do Porto e do Supremo Tribunal de Justiça que desatendera a pretensão da Recte, o invocado AUJ 3/2004 é insusceptível de arredar a alegada conduta ilícita do Estado Português, antes é ele próprio indiciador da ambiguidade e imperfeição técnica do interpretado DL 522/85, pois que este é premissa do próprio interpretante DL 59/2004.
8ª. O facto de o Estado Português ter entendido redigir e publicar a lei interpretativa DL 59/2004 não é de todo irrelevante para a apreciação do mérito da causa, contrariamente ao entendimento da douta sentença recorrida.
9ª. O Recdº Estado Português ao excepcionar, na contestação, a culpa da Recte. por omissão da faculdade prevista no artº 732º-A/ do CPC, não cumpriu o disposto no artº 488º do mesmo diploma: especificação de Ac. do STJ julgando em sentido oposto ao do Ac. do STJ que desatendeu a Revista da Recte.
10ª. De qualquer modo, não era exigível à data dos factos o dever de acesso por parte da Recte. à jurisprudência não publicada dos acórdãos do STJ com condição para o exercício do direito de pedir indemnização por actos de produção legislativa omissiva e deficiente do Estado.
11ª. As vítimas, e a Recte em particular, enquanto “decisivos destinatários” das alterações introduzidas por via comunitária e de direito de seguros interno, ao “plafond” do revogado artº 508º do CC assistiram à inércia do Estado, enquanto produtor legislativo e enquanto fiscalizador e defensor dos interesses colectivos, sem que seja conhecido o resultado da prestação de contas a que, por lei, estava obrigado. (artº 76º - 2 da Lei 60/98)
12ª. A douta decisão recorrida fez, no despacho saneador, errada interpretação e aplicação do direito e violou a lei, nomeadamente o disposto nos artºs 22º da CRP e 483º do CC, devendo ser revogada e substituída por outra que atenda à pretensão formulada na petição inicial.
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O R. contra-alegaram, pedindo a improcedência do presente recurso e consequente manutenção do decidido, apresentando também eles conclusões:
I. Em cumprimento do determinado pela Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30.12.83, Portugal alterou em tempo as suas disposições legais nacionais;
II. Com a alteração dos montantes globais mínimos para danos corporais e materiais por sinistro pelos quais o seguro é obrigatório, e com a revogação tácita do nº 1 do artigo 508° do Código Civil, operada pelo artigo 6° do Dec. Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Dec. Lei n° 3/96, de 25 de Janeiro,
III. Foi completamente transposta para o direito nacional aquela Segunda Directiva.
IV. Não se verifica conduta omissiva por parte do Estado Português. Nem se verificam as condições referidas pelo Supremo Tribunal de Justiça para que o Estado possa ser responsabilizado pela reparação dos prejuízos peticionados.
V. A improcedência da acção n° .../1999 da .ª Vara Cível do Porto, .ª Secção ficou a dever-se à interpretação aí dada aos diplomas legais que operaram a transposição da Segunda Directiva para o Direito Nacional, o que consubstancia erro de julgamento.
VI. A douta decisão recorrida não violou qualquer preceito legal, designadamente os invocados nas conclusões do recurso.
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Corridos os vistos legais, cumpre-nos então apreciar e decidir, tendo em atenção que seremos balizados pelas respectivas conclusões das alegações, sem prejuízo naturalmente daquelas outras cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no disposto nos artºs 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, e 690º, todos do CPC (Código de Processo Civil)[1].
São duas as questões que identificamos trazidas pelo presente recurso, saber se o Estado Português transpôs a devido tempo a Segunda Directiva nº 84/5/CEEE, de 30.12.83, proveniente do Conselho das Comunidades Europeias, ou se o fez defeituosamente, frustrando com esse comportamento a indemnização a que a apelante teria direito por via dos danos sofridos em consequência de um acidente de viação ocorrido em 16.02.96, perante o decidido nas instâncias aquando do processo anterior instaurado contra a seguradora.
Aquela mencionada Directiva, dispunha no seu artº 1º, nº 1, que o seguro referido no nº 1 do artº 3º da Directiva nº 72/166/CEEE de 24.04.72 (esta posteriormente alterada pela de nº 72/430/CEE de 28.12.72), deve obrigatoriamente cobrir danos materiais e corporais, acrescentando no nº 2, e sem prejuízo de montantes superiores já previstos em Estados-membros, que os valores pelos quais tal seguro é obrigatório, devem situar-se pelo menos em 350.000 ECUs[2] quanto a danos corporais havendo uma única vítima, devendo ser multiplicado pelo número de vítimas havendo mais que uma devido ao mesmo sinistro, 100.000 ECUs por sinistro e relativamente a danos materiais seja qual for o número de vítimas, podendo ainda ser estabelecido um montante mínimo de 500.000 ECUs para danos corporais sempre que haja mais de uma vítima em consequência do mesmo sinistro, ou um montante global mínimo de 600.000 ECUs por sinistro para danos corporais e materiais seja qual for o número de vítimas ou a natureza dos danos.
Ao aderir em 12.06.85 à então Comunidade Económica Europeia e à Comunidade Europeia de Energia Atómica, através do artº 5º do Anexo I, parte IX, F), Portugal, por derrogação, salvaguardou o prazo até 31.12.95 para aumentar os montantes de garantia para os valores previstos acima, tal como o havia feito então a Grécia e segundo o escalonamento alí previsto[3].
Foi no sentido de transpor a referida Directiva 84/5/CEE que veio a ser publicado o DL 522/85, de 31.12, dispondo no artº 6º, nºs 1 e 2 que o capital obrigatoriamente seria de 3.000 contos por lesado, com limite de 5.000 contos no caso de coexistência de vários lesados, e que o limite de capital em caso de coexistência de vários lesados seria de 10.000 contos no seguros relativos a transportes colectivos e de 500.000 contos referentes a provas desportivas, valores que foram sucessivamente alterados pelos DL nº 436/86, de 31.12, nº 394/87, de 31.12, nº 18/93, de 23.01, e, finalmente, pelo DL nº 3/96, de 25.01, este com efeitos a partir de 01.01.96, tendo sido reiterado em todos eles a prossecução daquele objectivo.
O último diploma citado, decorrido o prazo de derrogação, ao alterar os valores relativos ao capital mínimo seguro, referidos no artº 6º do DL 522/85, completou as exigências impostas pela Directiva nº 84/5/CEE, e assim a sua transposição, passando a ser então de 120.000 contos por sinistro para danos corporais e materiais, seja qual for o número de vítimas ou a natureza dos danos, e 240.00 contos tratando-se de transportes públicos e 960.000 contos em provas desportivas, estes por sinistro e com o limite por lesado de 120.000 contos, valores fixados pelo DL nº 301/01, de 23.11, para 600.000 €, 1.197.500,00 €, 4.788.500,00 € e 600.000,00 €, respectivamente, por necessidade de reajustamento da taxa de conversão das moedas dos países que integram a zona euro.
Entretanto, o nº 1 do artº 508º do Código Civil, com a redacção resultante do DL nº 190/85, de 24.06, previa como limite máximo de indemnização em caso de acidente de viação ocorrido quando não houvesse culpa do responsável, responsabilidade objectiva ou pelo risco, um montante correspondente ao dobro da alçada da relação[4] em caso de morte ou lesão de uma pessoa, ou, havendo várias pessoas atingidas, tal montante para cada uma delas, com o máximo total do sêxtuplo daquela mesma alçada, sendo apenas esta em singelo ocorrendo tão só danos em coisas.
Tal diploma surgiu por necessidade de colmatar o prejuízo decorrente da erosão do valor da moeda num domínio particularmente sensível e relevante como o era a responsabilidade objectiva que não poderia ela ser ilimitada, e, reconhecendo-se ali a proximidade entre a responsabilidade e o seguro, relegando-se a revisão dessa matéria objecto do DL nº 408/79, de 22.09 para momento posterior, mas cuja necessidade se previa face à Directiva 84/5/CCE, alteração que, vimos já, veio efectivamente a acontecer.
A evolução legislativa enunciada veio a dar origem a duas correntes jurisprudências e doutrinais[5], uma entendendo que o artº 6º do DL nº 522/85, na redacção dada pelo DL nº 3/96, revogou o artº 508º, nº 1, no segmento em que estabelecia um limite máximo de indemnização decorrente de responsabilidade objectiva inferior ao seguro obrigatório, por entender-se que configurando o seguro obrigatório uma medida que visava salvaguardar um mínimo de protecção ao lesado[6], não faria sentido estabelecer um limite máximo de responsabilidade inferior a esse mínimo, e, uma outra corrente que entendia estar este último preceito em vigor, por, como se diz no acórdão do STJ constante dos autos[7], datado de 18.12.02 o artº 6º é alheio ao regime substantivo de responsabilidade civil.
Essa divergência, havia já sido já precipitada pelo acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 14.09.2000 proferido no processo C-348/98, resultante de reenvio prejudicial accionado pelo Tribunal de Setúbal nos termos do artº 234º do Tratado da União Europeia, no qual veio a decidir que “obstam à existência de limites máximos de indemnização inferiores aos montantes mínimos do seguro obrigatório nele fixados”, e, embora sabendo-se da força de precedente no sentido das decisões que são alí tomadas e que é ele o órgão máximo na interpretação do direito comunitário, o qual tem ainda prevalência sobre o direito interno, o caso julgado produzido tem os seus efeitos limitado ao processo pendente no tribunal nacional posto que se trata de um reenvio prejudicial e não de uma acção de incumprimento contra um Estado-membro prevista nos artºs 226º a 228º do Tratado da EU[8].
Há que acrescentar que não sendo dotadas as directivas de efeito horizontal, isto é, não podem ser invocadas pelos particulares nas relações entre si como fonte de direitos e obrigações, mas têm tão só efeito vertical, obrigando os Estados-membros à sua transposição através de acto legislativo próprio para que possam valer na ordem jurídica do país, conforme dispõe o artº 247º do Tratado da União Europeia, pelo que, não o fazendo ou fazendo-o defeituosamente, em caso de incumprimento vale dizer, incorrem em responsabilidade civil perante os particulares nos termos do artº 22º da Constituição da República[9].
Foi na sequência dessa discrepância e no seu agudizar que veio a ser proferido o Acórdão do STJ de 25.03.04, no qual se decidiu, visando a uniformização da jurisprudência, consagrar a interpretação de “que o segmento do artº 508º, nº 1, do Código Civil, em que se fixam os limites máximos da indemnização a pagar aos lesados em acidentes de viação causados por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos em que não haja culpa do responsável, foi tacitamente revogado pelo artº 6º do DL 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 3/96, de 25 de Janeiro”.
Poucos dias antes do aresto atrás mencionado, em 19.03, foi publicado o DL nº 59/04, que dando conta da divergência entre o montante mínimo estabelecido para o seguro obrigatório em decorrência da Directiva 84/5/CEE e o limite máximo fixado para a responsabilidade civil objectiva, e ainda que não seja naquela estabelecida diferença entre esta e a responsabilidade civil subjectiva referindo-se tão só o seguro obrigatório, deverá o limite mínimo fixado valer para ambas, alterou então o artº 508º do CC, estabelecendo no seu o nº 1 que o limite máximo da responsabilidade objectiva ou pelo risco seria o montante do seguro obrigatório.
Tal como é referido no acórdão uniformizador atrás indicado, esse diploma assume natureza interpretativa autêntica, posto que realizada pelo próprio legislador, destinada a “decidir uma questão de direito cuja solução é controvertida ou incerta, consagrando um entendimento que a jurisprudência, pelos seus próprios meios, poderia ter chegado”[10], e sendo assim, por força do artº 13º, nº 1, do CC, integra-se na lei interpretada, ficando salvos porém os efeitos já produzidos, entre outros, por sentença passada em julgado[11].
Podemos no caso vertente que o diploma referido, o DL nº 59/04 convergiu com o AUJ nº 3/04 na mesma interpretação, ou seja, a jurisprudência, que se encontrava dividida na interpretação e aplicação das normas indicadas, não por deficiente técnica legislativa mas pela complexidade e alcance dessas mesmas normas, chegou também à solução indicada pela intervenção do legislador, por pouco não tornando esta última desnecessária.
De tudo quanto fica mencionado podemos então concluir que o Estado Português cumpriu a obrigação que sobre ele impendia de transpor para a ordem jurídica interna a Segunda Directiva nº 84/5/CEE, através do DL nº 522/85 e todos os diplomas que se lhe seguiram até ao DL nº 3/96, atingindo com este, dentro do prazo fixado, até 31.12.95, o valor estipulado para o seguro obrigatório, fixado no artº 6º[12], o qual, concomitantemente, revogou tacitamente o artº 508º, nº 1, do CC, na parte em que previa um limite de indemnização inferior ao montante do seguro obrigatório, nos termos do artº 7º, nº 2, do CC.
A pretensão decorre de não se ter entendido assim no acórdão do STJ proferido nos autos em que a apelante demandou a seguradora, com cópia de fls 59 a 64, antes da publicação do DL nº 59/04, e naturalmente também do Acórdão Uniformizador 3/2004, filiando-se numa determinada corrente jurisprudencial que reconhecia aplicabilidade ao nº 1 do artº 508º do CC quando estabelecia um limite para a indemnização correspondente ao dobro da alçada da Relação e cuja bondade não está aqui em causa.
A complexidade da questão foi reconhecida no acórdão do STJ de 13.02.03, invocado quer pela apelante quer pelo Mº Pº, mas cuja fundamentação não corresponde rigorosamente àquela que foi utilizada no AUJ nº 3/04, e que pode constatar-se, essa complexidade, na circunstância de que aquela primeira decisão recebeu um voto de vencido, coincidente com a posição daquele outro de 28.05.02 e próximo ainda daquele cuja cópia encontra-se de fls 59 a 64, vindo depois o seu autor a relatar aquele mesmo AUJ nº 3/04, sufragando uma posição diversa daquela assumida inicialmente, e tendo sempre presente o acórdão do TJC de 14.09.00, o qual não constitui caso único.
Reconhecia-se, o que não era feito antes e designadamente pelo aresto invocado de 13.02.03, que a transposição da Segunda Directiva 84/5/CEE havia sido concluída com o DL nº 3/96, e que com essa transposição revogou-se tacitamente o nº 1 do artº 508º, pelo que o problema situa-se já no domínio interno no conflito gerado entre tais normas e não por falta de transposição ou o ter sido feito sem a clareza e nitidez que comprometeram o fim visado, tendo sido na interpretação dessas normas e no domínio de aplicação de cada uma delas que foi proferido o acórdão do STJ de 18.12.02, decisão que cabia dentro dos poderes desta instância superior, que deve ser exercida com independência tal como dispõe o artº 203º da Constituição da República, a qual compreende a autonomia na interpretação do direito, bem como o artº 4º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, a Lei nº 21/85, de 30.07[13].
De todo o modo e embora não suscitada directamente, mas aflorada ainda que superficialmente, podemos acrescentar que a responsabilidade civil do Estado por via do exercício da actividade jurisdicional, também nos termos do artº 22º da CRP, e ainda que os seus titulares possam não ser responsabilizados nos termos do artº 216º, nº 2, desse mesmo diploma, assenta, dentre os demais pressupostos da responsabilidade civil que terão de verificar-se igualmente, na culpa do juiz, que deverá emergir da prática de um erro grosseiro, evidente, crasso, palmar, da falta de razoabilidade do julgador na decisão, impondo-se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria sentenciado da forma que foi feito na decisão em causa[14], o que não poderia acontecer no caso vertente, quer pelo mérito próprio do acórdão proferido, da corrente jurisprudencial e da reconhecida complexidade das questões tratadas.
Não existem portanto, em nosso entender, os pressupostos invocados pela apelante e que possam fundamentar a obrigação de indemnizar por parte do Estado.
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Face a tudo quanto fica exposto, acordam pois os Juízes que compõem a 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a presente apelação, confirmando-se em consequência o saneador-sentença.
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Custas pela apelante.
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Porto, 26 de Novembro de 2007
Paulo Neto da Silveira Brandão
Maria Isoleta de Almeida Costa
Abílio Sá Gonçalves Costa
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[1] Cf. Fernando Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 7ª ed., pg 152 e sgs; Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pg 358 e sgs; Aníbal de Castro, “Impugnação das Decisões Judiciais”, Petrony, 1981, pg 30; Manuel de Oliveira Leal Henriques, “Recursos Em Processo Civil”, Almedina, 1984, pg 28 e sgs
[2] O valor da unidade de conta referida como ECU resultava do artº 1º do Regulamento nº 3180/78/CEE
[3] Cf. Tratado de Adesão de Portugal e Espanha, cujo texto foi publicado no DR, 1ª Série, de 18.09.85
[4] Esse valor estava fixado em 400 contos pelo DL nº 264-C/81, de 03.09, alterado sucessivamente para 2.000 contos pela Lei nº 38/87, de 31.12, para 3.000 contos pela Lei nº 3/99 de 13.01, fixando-se em 14.963,94 € pela alteração da Lei nº 105/03, de 10.12.
[5] Cf. a indicação de uma e outra constante nas notas 6 e 7 do Acórdão Uniformizador 3/2004, RR Iª Série, de 13.05.04.
[6] A Directiva 84/5/CEE refer que os montantes do seguro obrigatório devem permitir, em toda e qualquer circunstância, que seja garantida às vítimas uma indemnização suficiente, que o DL 522/85 apelida no seu preâmbulo de medida de alcance social inquestionável.
[7] Também publicado em CJ-STJ, Ano X, Tomo 3, pg 167.
[8] Cf. João Mota Campos e João Luís Mota de Campos, “Manual de Direito Comunitário”, 4º vol., pg 437 e 458-461
[9] Cf. JJ Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª ed., pgs 168-169; João Mota Campos e João Luís Mota de Campos, ob. cit., pg 459
[10] Citação do Prof. Baptista Machado feita no “Código Civil Anotado”, Vol. I, 3ª ed., pg 62, dos Profs Pires de Lima e Antunes Varela.
[11] Cf. Declaração de voto que acompanha o mesmo Acórdão Uniformizador nº 3/2004 e aqueles outros manifestados quanto à natureza interpretativa ou não do aludido DL º 59/04.
[12] Cf. Entendimento nesse mesmo sentido expresso no Acórdão 3/2004, a pg 3030, 4º parágrafo.
[13] Cf. JJ Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pg 795
[14] Cf. Acs STJ de 20.10.05 e 15.02.07, em www.itij.pt