AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
EMPRESA DO SECTOR EMPRESARIAL PÚBLICO
NULIDADE DO CONTRATO
Sumário


I. A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho é uma ação de cariz publicista que resulta da atividade da Autoridade para as Condições do Trabalho, com uma tramitação muito simplificada, cujo objeto consiste em apurar a factualidade relevante para qualificar o vínculo existente, e caso se reconheça a existência de um contrato de trabalho fixar a data do início da relação laboral, como impõe o n.º 8 do art.º 186.º-O do Código de Processo do Trabalho.
II. Caso se reconheça a existência de um contrato de trabalho está, então, aberto o caminho para se poder, eventualmente, discutir uma série de questões que poderão ser suscitadas, como por exemplo a validade do contrato, a responsabilidade de quem procedeu à contratação e os direitos do trabalhador.

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:



                                                           I

Relatório:

1. O Ministério Público intentou a presente ação especial de Reconhecimento da Existência de Contrato de Trabalho contra Rádio Televisão de Portugal, S.A., pedindo que seja declarada a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre a ré e AA, com início reportado a 1 de março de 2016.

Para o efeito alegou, em síntese, que no dia 1 de março de 2017 a Autoridade para as Condições do Trabalho iniciou uma ação inspetiva às instalações da ré em relação a AA, verificando que este estava a desempenhar funções que revelavam todas as características de laboralidade previstas no art. 12º do Código do Trabalho.

Concluiu que a ação deve ser julgada procedente, devendo declarar-se a existência de um contrato individual de trabalho entre AA e a ré, desde 1 de março de 2016.

2. A ré contestou invocando a exceção da nulidade da contratação, alegando, em síntese, a proibição às entidades do sector público empresarial de constituição de relações de trabalho subordinado e, consequentemente, a impossibilidade de reconhecer tais situações estando também vedado ao Tribunal esse reconhecimento.

Argumenta que, desde 1 de janeiro de 2013, por força da legislação orçamental, integrando o sector empresarial do Estado, só lhe é permitido celebrar contratos de trabalho mediante a prévia obtenção de autorização governamental, que constitui um requisito prévio à contratação de um trabalhador por conta de outrem. A omissão dessa formalidade prévia fere o contrato de trabalho celebrado de nulidade originária e insuprível, prevalecendo as normas reguladoras da constituição dos referidos vínculos sobre as demais pois são imperativas.

Assim é imperativo concluir que a presente ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho não pode ser aplicada à ré porque está em curso o PREVPAP, sendo este programa o meio adequado e válido para a constituição dos vínculos laborais que eventualmente existirem.

A participação da ACT que deu início aos presentes autos, para além de inválida é também ela extemporânea o que representa uma invalidade formal da participação que não pode ser descorada e impossibilita o Ministério Público de patrocinar a presente ação, por falta de legitimidade para o efeito.

Sem prejuízo da manifesta inaplicabilidade da presente ação à Ré, deve ser ordenada a suspensão da instância ao abrigo do disposto no artigo 269.º, n.º 1, alínea c) e artigo 272.º, n.º 1, do Código de processo Civil já que esta ação só poderá ocorrer depois de concluídos os procedimentos do PREVPAP que estão em curso.

 Conclui que, face às limitações/proibições enunciadas nunca poderia celebrar contratos de trabalho em violação de tais normativos.

3. Foi proferido despacho saneador que decidiu nos termos do disposto nos artigos 577.º, 578.º e 590.º do Código de Processo Civil, julgar verificada a exceção inominada e insuprível, de impossibilidade legal do uso processual correspondente à presente ação especial de reconhecimento de existência de contrato de trabalho e, consequentemente, absolveu a R. da instância.

4. O Ministério Público interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação, que decidiu julgar a apelação procedente, tendo revogado a sentença recorrida para os autos prosseguirem a sua tramitação normal.

5. Inconformada com esta decisão, a ré interpôs recurso de revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

I.  O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa - que revogou a douta Sentença de 1.a instância e determinou que os autos prosseguissem para julgamento - não ponderou minimamente as consequências dessa decisão, fazendo uma errada interpretação e aplicação do Direito.

II. É reconhecido, quer pelas partes quer pelas instâncias, que, caso se conclua que o contrato existente com a Recorrente configura um contrato de trabalho, o mesmo é nulo por não ter sido precedido da indispensável autorização governamental exigida pela legislação orçamental aplicável à Recorrente.

III. Do prosseguimento dos autos pode resultar uma decisão prejudicial ao Interessado e contrária ao fito da própria ARECT: em vez de se proceder à regularização da situação de errado enquadramento contratual, o Interessado pode ficar colocado numa posição pior daquela em que se encontra. Pior ainda, ficar impossibilitado de conseguir a regularização da sua situação através do único meio que o permite, ou seja, através do PREVPAP.

IV. Por isso, nas mais de duas centenas de decisões dos Tribunais do Trabalho que julgaram ações iguais à presente, considerou-se que o processo não devia prosseguir para julgamento.

V. Os Tribunais do Trabalho alcançaram que o que está em discussão nestas ações não é saber, em abstrato e sem atender aos especiais contornos das situações sub judice, se a nulidade do contrato de trabalho obsta à utilização da ARECT.

VI. A necessidade de ponderar as consequências da decisão obriga a que se atenda à circunstância de, no caso dos autos como nos demais idênticos, a eventual declaração da existência de um contrato de trabalho conduzir à inevitável cessação da relação contratual, impedindo que se regularize a situação através do PREVPAP (que não pode ser desconsiderado, no contexto factual e jurídico em que os presentes autos se inserem).

VII. E como nesta ação não é possível tratar dos efeitos decorrentes da declaração de existência de contrato de trabalho (válido ou inválido), o Interessado não obteria qualquer consequência favorável com o prosseguimento dos autos.

VIII. A decisão sob recurso, ao ordenar o prosseguimento dos autos, fez errada aplicação das regras legais que disciplinam a ARECT, em especial da norma vertida no artigo 186.°-N do CPT, que manda o Tribunal conhecer e julgar das nulidades de que obstam ao prosseguimento da ação.

IX. O não prosseguimento dos autos para julgamento não impede a possibilidade de a ACT sancionar eventuais violações da legislação laboral que se venham a demonstrar ter existido, desde que, naturalmente, se verifiquem os pressupostos e requisitos da responsabilidade contraordenacional.

X. Por seu turno, o Interessado não só manterá a relação contratual com a Recorrente, como poderá ver corrigido, no âmbito do PREVPAP, o enquadramento contratual que lhe foi dado, considerando-se que existe um contrato de trabalho válido e eficaz com os direitos e deveres inerentes.

XI. E na eventualidade de a conclusão apurada em sede do PREVPAP ser no sentido de o contrato do Interessado não constituir um contrato de trabalho, nem por isso este fica impedido de, caso não concorde com a qualificação, fazer valer a sua posição em tribunal, propondo uma ação judicial com processo comum, onde peticionará que o tribunal declare a natureza da relação contratual com a Requerente e a condenação desta nos efeitos daí decorrentes.

XII. O Tribunal da Relação, para além de desatender injustificadamente às consequências da sua própria decisão, desconsidera ainda, inconsistentemente, a vigência e os objetivos do PREVPAP, que no presente se afigura como o mecanismo de combate à precaridade (definido pelo Estado) adequado à regularização da presente situação, ao qual deve ser dado prioridade.

XIII. E a interpretação que se plasmou no Acórdão proferido nos presentes autos mostra-se até contrária ao artigo 202.° da Constituição da República Portuguesa, na medida em que em nada contribui para a justa composição do litígio e agrava a posição do Interessado retirando-lhe a possibilidade de regularizar a sua situação.

XIV. Para além de violar o princípio da limitação dos atos processuais (cfr. artigo 130.° do Código de Processo Civil), destinado a evitar a prática de atos processuais (a audiência de discussão e julgamento) que se revelam, não tanto desnecessários mas sobretudo perniciosos, bem como de se mostrar incompatível com o princípio ínsito no artigo 9.°, n.° 3, do Código Civil.

XV. Pelo que, no quadro de ponderação de consequências, impõe-se que o Supremo Tribunal siga o único caminho que permite a regularização da situação contratual em apreço, revogando, em todo e qualquer caso, a decisão recorrida, repristinando a decisão da primeira instância ou, se assim achar melhor, alterando tal decisão no sentido da absolvição da instância ou até mesmo consentindo na sua suspensão (posição que também tem vindo a ser adotada por vários Tribunais de 1.ª Instância).

6. O Ministério Público contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso interposto pela ré, formulando as seguintes conclusões:

1- A Ação de Reconhecimento da Existência de Contrato de Trabalho visa, sobretudo um interesse social e coletivo de rejeição de recurso ao trabalho subordinado dissimulado mais do que o interesse individual do trabalhador.

2- A finalidade desta ação consiste no reconhecimento da existência de um contrato de trabalho, e aplica-se às entidades privadas e públicas, não obstando ao seu reconhecimento a invalidade ou irregularidade "ab initio".

3- As regras e objetivos do PREVPAPP são completamente distintas da ARECT como resulta do respetivo procedimento.

4- Não existe qualquer moratória de aplicação do Código de Trabalho no programa do PREVPAP, nem a existência deste obsta ao exercício pelos tribunais das funções que lhes cabem quanto ao reconhecimento de relações jurídicas.

5- O acórdão recorrido fez correta interpretação das normas legais pelo que deve ser mantido.

7. Nas suas conclusões, a recorrente suscita a questão de saber se a ação deve prosseguir para julgamento, atenta a natureza da mesma e perante a impossibilidade de a ré poder proceder à, eventual, regularização da situação.

                                                           II

A) Fundamentação de facto:

As instâncias consideraram a seguinte factualidade:

1- A ré é uma empresa pertencente ao sector público empresarial do Estado Português;

2- Desde 01 de março de 2016, AA presta a sua atividade para a ré, tendo, entre eles, e para o efeito, subscrito documento contendo um acordo denominado “Contrato de Prestação de Serviço”, por dozes meses, sucessivamente renovado;

3- A prestação dessa atividade e a subscrição do referido “contrato de prestação de serviço” e respetivas renovações não foram, previamente, objeto de autorização governamental.

B) Fundamentação de Direito:

B1) Os presentes autos respeitam a uma ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho instaurada em 27/06/2017, tendo o acórdão recorrido sido proferido em 10/01/2018.

Assim sendo, o regime processual aplicável é o seguinte:

- O Código de Processo do Trabalho, na versão operada pela Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto;

- O Código de Processo Civil, na versão conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

B2) Como já se referiu, a recorrente suscita a questão de saber se a ação deve prosseguir para julgamento, atenta a natureza da mesma e perante a impossibilidade de a ré poder proceder à, eventual, regularização da situação.

O Tribunal da 1.ª Instância, no despacho saneador, decidiu julgar verificada a exceção inominada e insuprível, de impossibilidade legal do uso processual correspondente à presente ação especial de reconhecimento de existência de contrato de trabalho e, consequentemente, absolveu a ré da instância.

Por seu turno, o Tribunal da Relação decidiu julgar a apelação procedente, tendo revogado a sentença recorrida para os autos prosseguirem a sua tramitação normal.

A Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça já tomou posição sobre esta questão, nomeadamente nos acórdãos datados de 21/03/2018, proferidos nos processos n.os 17082/17.9T8LSB.L1.S1 e 20416/17.2T8LSB.L1.S1, em que foi aduzida, em síntese, a seguinte fundamentação:

A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho está inserida no Título VI do Código de Processo do Trabalho, referente aos processos especiais, encontrando-se regulada nos artigos 186.º-K a 186.º-R, resultando da alteração ao Código de Processo do Trabalho introduzida pela Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto, com início de vigência em 1 de setembro de 2013.

Trata-se de uma ação de cariz publicista que resulta da atividade da Autoridade para as Condições do Trabalho, como se pode observar pelo teor do art.º 186.º-K, que se estriba no procedimento previsto no art.º 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, que aprovou o regime processual aplicável às contraordenações laborais e de Segurança Social.

É uma ação de carácter oficioso que se inicia sem a intervenção processual do trabalhador, que pode, em fase posterior, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentando articulado próprio e constituir mandatário, como está previsto no n.º 4, do art.º 186.º-L, do Código de Processo do Trabalho.

A tramitação desta ação é muito simplificada, pois o seu objeto consiste em apurar a factualidade relevante para qualificar o vínculo existente, e caso se reconheça a existência de um contrato de trabalho fixar a data do início da relação laboral, como impõe o n.º 8, do art.º 186.º-O, do diploma citado.

Caso se reconheça a existência de um contrato de trabalho está, então, aberto o caminho para se poder, eventualmente, discutir uma série de questões que poderão ser suscitadas, como por exemplo a validade do contrato, a responsabilidade de quem procedeu à contratação e os direitos do trabalhador.

A discussão de todas estas questões só poderá ter lugar a jusante da primeira etapa, que é a qualificação do vínculo. 

O caso concreto dos presentes autos é idêntico aos já decididos pelo que não se vislumbram razões para alterar a orientação adotada.

Na verdade, como bem se referiu no acórdão recorrido, há que, antes de mais, apurar a factualidade relevante para qualificar o vínculo existente, e caso se reconheça a existência de um contrato de trabalho fixar a data do início da relação laboral.

A discussão atinente à validade do contrato, que determinou a decisão do Tribunal da 1.ª Instância, bem como a alegada impossibilidade de a empregadora poder proceder à regularização da situação da trabalhadora, só poderá, eventualmente, ter lugar em momento posterior.

O mesmo se diga quanto às consequências da eventual nulidade do contrato, que só faz sentido serem discutidas caso se chegue à conclusão de que estamos perante uma relação laboral. 

Também não se vislumbra, ao contrário do que defende a recorrente, que a interpretação feita no acórdão recorrido seja contrária ao artigo 202.° da Constituição da República Portuguesa, pois, no seu entender, tal interpretação em nada contribui para a justa composição do litígio e agrava a posição do interessado, retirando-lhe a possibilidade de regularizar a sua situação.

Como já se referiu estamos perante uma ação de cariz publicista, cujo objeto consiste em apurar a factualidade relevante para qualificar o vínculo existente, clarificando assim uma situação indefinida com vista a abrir caminho para a eventual discussão de uma série de questões emergentes dessa situação.

Esta faceta da ação especial de Reconhecimento da Existência de Contrato de Trabalho insere-se plenamente na função jurisdicional dos tribunais, definida constitucionalmente, visando a tutela dos direitos dos cidadãos.

                                                           III

            Decisão:

Face ao exposto acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas a cargo da recorrente.

Anexa-se sumário do acórdão.

Lisboa, 04/04/2018

Chambel Mourisco (Relator)

Pinto Hespanhol

Gonçalves Rocha