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ACÇÃO DE PETIÇÃO DE HERANÇA
LEGITIMIDADE DO CABEÇA DE CASAL
Sumário
I - A ação de petição da herança e a ação de reivindicação enquadram-se no âmbito dos direitos reais e visam a defesa do direito de propriedade, com eficácia ergna omnes, sendo ações estruturalmente muito próximas. II - A diferença mais marcante entre ambas prende-se com o respetivo elemento central da causa de pedir: na ação de petição da herança este é o reconhecimento da qualidade de herdeiro (sendo a detenção por terceiro dos bens da herança e o pedido respetivo uma decorrência daquele) enquanto na ação de reivindicação este é a detenção ou posse por terceiro (sendo o reconhecimento do direito de propriedade, mais do que um pedido, o objeto da ação). III – Pela similitude das ações e, cumulativamente, por aplicação das disposições legais dos art.º 1404.º e 1405º, n.º 2, do Código Civil, a interpretação necessária do n.º 2 do art.º 2078.º do Código Civil terá que ser a de que o cabeça de casal tem legitimidade para, através de uma ação de reivindicação, pedir, sozinho, a entrega de bens que deva administrar.
Texto Integral
Processo n.º 7279/16.4T8VNG-A.P1
Comarca: [Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia (J1); Comarca do Porto]
Relatora: Lina Castro Baptista
Adjunto: Fernando Samões
Adjunto: Vieira e Cunha
* Acordam no Tribunal da Relação do Porto I - RELATÓRIO
B…, residente na Rua …, n.º .., …, Vila Nova de Gaia, veio, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de sua mãe C…, intentar a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra D… e mulher E…, residentes na Rua …, n.º …, …, Vila Nova de Gaia, pedindo que os Réus sejam condenados a:
A. Reconhecer que o prédio urbano identificado em 4.º da Petição faz parte do acervo patrimonial da herança de C… (mãe da Autora e do Réu-marido);
B. Restituir tal prédio totalmente livre e devoluto ao acervo hereditário de molde a ser partilhado no prazo máximo de 30 dias;
C. Pagar ao acervo hereditário a quantia de €100,00 a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na entrega do dito prédio.
D. Para a eventualidade de assim doutamente se não entender, subsidiariamente que sejam condenados a reconhecer que as benfeitorias, cujo valor estimamos em €62.050,00, fazem parte do acervo hereditário da herança de C… (mãe da Autora e do Réu-marido);
E. Restituir tais benfeitorias totalmente livres e devolutas ao acervo hereditário de molde a serem partilhadas;
F. Pagar ao acervo hereditário a quantia de €100,00 a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na entrega das ditas benfeitorias.
Alega, em síntese, que, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito da sua mãe e do Réu-marido, requereu inventário, o qual corre termos no Cartório Notarial F…, sito em …, sob o número 3887/15.
Declara que, além dela própria e do Réu-marido, figuram outros herdeiros na alegada herança e defende que os mesmos, de acordo com o disposto no art.º 2091.º do Código Civil[1] e art.º 316.º, n.º 1, e 33.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[2], deverão ser chamados a intervir ao seu lado.
Afirma que, no âmbito do alegado processo, foi relacionada a verba única consistente numa casa destinada a habitação, sita na Rua …, n.º …, da freguesia de …, concelho de Vila Nova de Gaia.
Expõe que, em sede de reclamação à relação de bens, a Sr.ª Notária remeteu as partes para os meios comuns, por os aqui Réus aí terem ido declarar que o prédio em causa pertente à herança aberta por óbito de G…, a qual lhes deixou testamento.
Mais alega que o prédio em causa esteve na possa da Inventariada há mais de 40 anos, procedendo à sua limpeza e manutenção, gozando-o o fruindo-o, à luz do dia, sem oposição de ninguém, de forma ininterrupta, à vista de todas as pessoas, na convicção de ser sua legítima proprietária e sem lesar o direito de outrem. Especifica que esta, com o dinheiro angariado ao longo dos anos no seu negócio de flores, comprou e construiu de raiz a casa objecto da presente ação e, depois, fez construir a casa nela implantada.
Diz que os Réus ocupam o prédio em causa, conscientes de que tal bem pertence exclusivamente à herança deixada por óbito da mãe do Réu-marido.
A final, pede que sejam chamados a intervir na presenteação, ao seu lado, os demais herdeiros identificados no articulado.
Os Réus vieram apresentar Contestação, contrapondo, em sede de impugnação e reconvenção, que a referida habitação com o terreno era exclusivamente pertença de G… irmã da Autora e do Réu-marido e, entretanto, falecida.
Especificam que esta adquiriu o dito prédio através de escritura de compra e venda outorgada em 30 de junho de 1981, passando, desde então, a usar e fruir o mesmo, designadamente procedendo a obras de reparação, reconstrução e ampliação da construção existente, na convicção de ser a dona, como tal se comportando e assim sendo reputada pela generalidade das pessoas.
Bem como que a mesma, por testamento público, instituiu o seu único herdeiro o seu irmão e aqui Réu-marido, passando ele e mulher a tomar posse imediata da respectiva casa e terreno, até aos dias de hoje e comportando-se como únicos titulares.
Concluem pedindo que a presente ação seja julgada improcedente, por não provada, absolvendo os Réus dos pedidos contra si formulados, com as legais consequências.
Mais pedem que seja julgada procedente, por provada, a Reconvenção e, em consequência:
I. Que se declare que o prédio identificado no art.º 10.º foi da propriedade da G… por ter adquirido da Escritura de Compra e Venda e ainda por usucapião;
II. Que se declare que, por sua morte, aquele prédio pertence à herança da falecida G… e dela institui seu único herdeiro testamentário D…;
III. Que se condene a Autora e os Chamados a reconhecer tal direito;
IV. Que se ordene o cancelamento de qualquer registo sobre o identificado prédio de inscrições registrais, seja a favor dos Autores, seja da herança aberta ou herdeiros por óbito de C….
A Autora veio apresentar Réplica, impugnando a matéria de facto da Reconvenção e reiterando a tese exposta na Petição Inicial.
Foi proferido despacho a indeferir a requerida intervenção principal provocada, com – no essencial – a seguinte fundamentação jurídica: “(…) No caso dos autos a autora não pede a final o reconhecimento da sua qualidade de herdeira. No entanto, dos primeiros artigos da petição resulta inequívoco que tal pedido se mostra implícito no pedido de restituição formulado a final. Por outro lado, sendo pedido o reconhecimento de que o bem em causa integra o acervo hereditário e a sua restituição à herança, julga-se que outra classificação não pode ter a presente acção que não a da petição de herança (cf. neste sentido os Ac. Da RE de 11/05/2017 e da RC de 18/05/2010, disponíveis em www.dgsi.pt). Assim, permitem os arts. 2075.º e 2078.º/1 do CCivil, que a autora a interponha por si só, não sendo necessária a presença dos demais herdeiros no lado ativo da ação. Não se verificam, portanto, os requisitos de que depende a procedência do pedido de intervenção principal provocada.”
Inconformada com esta decisão, a Autora veio interpor recurso, rematando com as seguintes
CONCLUSÕES:
1) Ao apresentar a p.i., conf. se extrai da mesma (vide doc.1), logo no cabeçalho, a recorrente/autora apresenta-se como cabeça de casal na herança aberta por óbito de sua mãe, C… e identifica devidamente os demais herdeiros da indicada herança (cfr. artigo 3.º da p.i.), requerendo a intervenção destes para estar ao seu lado na ação ao abrigo do disposto no artigo 2091.º do Código Civil e, bem assim, nos artigos 316.º, n.º 1 e 33.º, n.º1 do Código de Processo Civil. 2) E, portanto, ao longo da sua petição, a recorrente/autora não apresenta qualquer dúvida quanto à sua qualidade de herdeira e, bem assim, quanto à qualidade como herdeiros dos pretensos intervenientes. 3) Tanto assim que, na p.i. a recorrente/autora alega que a presente ação teve origem em decisão proferida em sede de reclamação à relação de bens no processo de inventário n.º 3887/15, a correr termos no Cartório Notarial, no qual, como é evidente, se encontram devidamente identificados todos os herdeiros. 4) Mais ainda, embora sob a epígrafe “Ação Declarativa Comum”, porquanto a lei processual a isso obriga, compulsada a petição inicial, resulta da mesma que o escopo principal da recorrente/autora foi reivindicar a propriedade do prédio identificado no artigo 4.º da indicada peça. 5) Por isso, em primeira linha a recorrente/autora pediu que os réus fossem condenados a reconhecer que prédio urbano identificado em 4.º da p.i. faz parte do acervo patrimonial da herança de C…. 6) E por saber que carece de legitimidade para por si só reivindicar a dita propriedade, a recorrente/autora identificou devidamente os demais herdeiros e pediu a intervenção destes para o seu lado (cfr. artigo 2091.º do Código Civil e 316.º, n.º 1 e 33.º, n.º1 do Código de Processo Civil). 7) Em momento algum, ainda que implicitamente, a recorrente/autora pediu que fosse reconhecida a sua qualidade como herdeira. 8) Aliás, jamais alguém questionou a sua qualidade como herdeira e, bem assim a qualidade de herdeiros dos pretensos intervenientes. 9) Pelo que, explicitamente, a recorrente/autora identificou-se como herdeira e pleiteou no sentido da acção de reivindicação e nunca como petição de herança. 10) Salvo o mui devido respeito pelo entendimento perfilhado, embora semelhantes, tais acções estão individualizadas em termos substantivos (cfr. artigos 1311.º, 2091.º, n.º 1 e 2075 do C.Civil), sendo entendimento unânime da nossa mais conceituada jurisprudência que a acção de reivindicação pode e deve ser intentada por todos os herdeiros (cfr. Ac.STJ de 06.10.2009). 11) Enquanto a acção de petição da herança tem como pedido principal, o reconhecimento judicial da qualidade sucessória do herdeiro e pode ser intentada por um só herdeiro, a ação de reivindicação tem como pedido principal o reconhecimento do direito de propriedade e tem que ser intentada por todos os herdeiros, tratando-se, portanto, de ações distintas (cfr. Ac. do STJ de 10.07.2003). 12) Como doutamente entendeu este Venerando Tribunal (cfr. Ac. de 15.12.2010) e também nós entendemos, “a mera circunstância de estar em causa uma acção por via da qual se reclama a entrega de bens pertencentes a uma determinada herança não implica, necessariamente, que esteja em causa uma acção de petição de herança, já que nada obsta a que os herdeiros intentem uma verdadeira acção de reivindicação.” 13) Face ao supra exposto, mal andou a M.ma Juíz “a quo” ao indeferir o chamamento dos herdeiros identificados no artigo 3.º da p.i. para intervirem na ação ao lado da recorrente/autora.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido como recurso de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
* II- DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
As questões a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:
- Distinção ação de petição da herança/ação de reivindicação;
- Legitimidade ativa singular da Autora, na qualidade de cabeça de casal, para intentar a presente ação.
*
III – DISTINÇÃO AÇÃO DE PETIÇÃO DA HERANÇA/AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
A decisão recorrida defende estarmos perante uma ação de petição da herança, por ter sido pedido o reconhecimento de que o bem em causa integra o acervo hereditário, ainda que implicitamente, e a sua restituição à herança.
No presente recurso, a Recorrente sustenta – diversamente – que se identificou como herdeira e pleiteou no sentido da ação de reivindicação e nunca como petição da herança.
O diferendo assenta, pois, na classificação da causa de pedir da ação.
A disposição legal do art.º 581.º, n.º 4, do CP Civil, na construção dos vários tipos de causas de pedir, apela simultaneamente para os factos e para as normas que se alegam como fundamento da ação respetiva.
Deve, por inerência, entender-se que a causa de pedir é um conjunto de factos naturais alegados à luz de uma certa e concreta perspetiva jurídica, que se invoca[3].
Passando diretamente para a análise das espécies de ações em confronto, decorre do disposto no art.º 2075.º, n.º 1, do C Civil que “O herdeiro pode pedir judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória, e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles.”
A doutrina e a jurisprudência têm vindo a analisar esta ação judicial específica de forma coincidente, no essencial.
Assim, já em 1983, Galvão Telles[4] dizia: “A petição de herança envolve dois pedidos: o reconhecimento da qualidade de herdeiro e a restituição de bens hereditários. A petição de herança supõe que bens pertencentes à herança estão a ser possuídos por outrem que não o herdeiro. O herdeiro demanda esse outrem, solicitando que seja reconhecida a sua qualidade sucessória e que, consequentemente, seja o réu condenado a abrir mão dos bens em seu poder, fazendo deles entrega.”
Também Lopes Cardoso[5] explica: “A ação de petição de herança comporta, por assim dizer, dois pedidos, pois nela o demandante não só pede que se lhe reconheça a qualidade que se arroga (a de herdeiro) como também do demandante exige a restituição dos bens que diz pertencerem-lhe.”
Exatamente no mesmo sentido, recentemente Diogo Leite de Campos[6] refere: “A ação de petição de herança tem um duplo fim. Visa, por um lado, o reconhecimento judicial da qualidade sucessória que o autor se arroga; por outro, a restituição e integração dos bens no ativo da herança que o demandado possuía como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título.”
Por sua vez, a jurisprudência tem, da mesma forma, vindo a declarar que “A ação de petição de herança (art.º 2075.º do CC) visa o reconhecimento judicial da qualidade sucessória e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título.”[7] ou que “Essencial na ação de petição de herança é o duplo fim a que ela visa; por um lado, o reconhecimento judicial da qualidade sucessória que o autor se arroga; por outro, a restituição e integração dos bens que o demandado possui no ativo da herança ou da fração hereditária pertencente ao herdeiro.”[8] – decisões referidas a título meramente exemplificativo.
Aqui chegados, podemos sintetizar que a causa de pedir da ação de petição da herança é a qualidade de herdeiro e a detenção ou posse por terceiro de bem ou bens pertencentes à herança. Os pedidos típicos respetivos são o reconhecimento da qualidade de herdeiro e a restituição para a herança desse bem ou bens a ela pertencentes, à luz das disposições legais dos art.º 2075.º e ss. do C Civil.
O paralelismo com a ação de reivindicação é notório, já que nesta a causa de pedir é o título invocado como aquisitivo da propriedade e a detenção ou posse por terceiro de bem ou bens a pertencentes ao autor. Por seu turno, os pedidos típicos são – correspetivamente – o reconhecimento do direito de propriedade e a restituição desse bem ou bens pertencentes ao autor, à luz das disposições legais dos art.º 1311.º
Isto é, ambas as ações se enquadram no âmbito dos direitos reais e visam a defesa do direito de propriedade, com eficácia ergna omnes[9].
Por particularmente incisivas, citam-se as palavras de Galvão Telles[10]: “A hereditatis petitio, para além da atestação da qualidade de herdeiro (…), envolve a reivindicação de bens. Sob este aspeto é uma verdadeira ação real, tentando fazer valer direitos sobre bens que fazem parte do acervo hereditário mas que se encontram de facto na posse de terceiro. Por ele se visa efetivar uma pretensão real, dimanada de um ius in re em estado de insatisfação ou violação, e orientada no sentido de o mero possuidor ou detentor ser adstringido a entregar à herança bens que são desta.”
A diferença mais marcante entre estas ações prende-se com o respetivo elemento central da causa de pedir: na ação de petição da herança este é o reconhecimento da qualidade de herdeiro (sendo a detenção por terceiro dos bens da herança e o pedido respetivo uma decorrência daquele) enquanto na ação de reivindicação este é a detenção ou posse por terceiro (sendo o reconhecimento do direito de propriedade, mais do que um pedido, o objeto da ação).
Decidiu-se neste sentido designadamente no Acórdão desta Relação de 27/11/2007, tendo como Relator o aqui 2º Adjunto Vieira e Cunha[11], onde se refere: “Por comparação entre a ação de petição de herança e a ação de reivindicação, a primeira engloba a segunda, no que concerne aos aspetos patrimoniais do pedido, mas acrescenta à segunda o aspeto pessoal do reconhecimento da qualidade de herdeiro, como elemento imprescindível à justificação patrimonial.”
Aliás, este diferente enfoque justifica a possibilidade de a ação de petição da herança poder ser intentada por referência, não a um ou uns bens específicos, mas a uma universalidade de bens. Por outro lado, justifica que, no que toca à ação de reivindicação, seja possível pedir-se somente a restituição da coisa, entendendo-se implícito o pedido de reconhecimento da propriedade[12].
No caso dos autos, a Autora alega – em síntese – que, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito da sua mãe e do Réu-marido, requereu inventário, o qual corre termos no Cartório Notarial F….
Mais alega que, no âmbito do alegado processo, foi relacionada a verba única consistente numa casa destinada a habitação, sita na Rua …, n.º …, da freguesia de …, concelho de Vila Nova de Gaia, mas que a Sr.ª Notária remeteu as partes para os meios comuns, por os aqui Réus aí terem ido declarar que o prédio em causa pertente à herança aberta por óbito de G…, a qual lhes deixou testamento. Acrescenta que este bem foi adquirido pela sua mãe por usucapião, mas que os Réus têm estado na sua posse, conscientes de que o mesmo não lhes pertence.
Pede, a final e em sede principal, que se reconheça que o prédio urbano identificado em 4.º da Petição faz parte do acervo patrimonial da herança de C… (mãe da Autora e do Réu-marido); que se condenem os Réus a restituir tal prédio totalmente livre e devoluto ao acervo hereditário de molde a ser partilhado no prazo máximo de 30 dias e a pagar ao acervo hereditário a quantia de €100,00 a título de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na entrega do dito prédio.
Em face destas alegações e pedido, é para nós claro que o enfoque da causa de pedir e pedidos formulados está na detenção por terceiro de um bem alegadamente pertencente à herança da mãe da Autora. Por inerência, e face ao acima exposto, entendemos tratar-se de uma ação de reivindicação, nos precisos termos defendidos pela Recorrente.
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IV – LEGITIMIDADE ATIVA SINGULAR DA AUTORA, NA QUALIDADE DE CABEÇA DE CASAL, PARA INTENTAR A PRESENTE AÇÃO
Neste ponto específico, a Recorrente defende que a ação de reivindicação pode e deve ser intentada por todos os herdeiros, devendo ser admitida a por si requerida intervenção principal dos demais herdeiros.
A herança indivisa assume a natureza de um património autónomo, até à efetiva partilha dos bens[13].
A administração do património da herança pelo cabeça de casal é estruturalmente temporária e transitória e destina-se essencialmente à sua conservação, sendo os seus poderes concedidos por lei instrumentais desta função[14].
Capelo de Sousa[15] traça da seguinte forma o perímetro da atuação do cabeça de casal: “A este respeito, parece-nos que os poderes de administração do cabeça-de-casal se balizam entre os poderes do curador da herança jacente (art.º 2048.º), no limite inferior, e os poderes do administrador dos bens comuns do casal (arts. 1678.º a 1682.º), no limite superior. Na verdade, o cabeça-de-casal detém mais poderes-deveres de administração do que o curador da herança jacente (pois as suas atribuições não se limitam, a nosso ver, a evitar a perda ou deterioração dos bens da herança, mas desde logo a fazê-los frutificar), porém goza de menos poderes do que o administrador de bens comuns do casal que usufrui de maiores faculdades de alienação (art.º 1682.º, n.º 1 e 2) e que não tem de prestar contas da sua administração (art.º 1681.º).”
Assim sendo, compreende-se que, de acordo com o estatuído no art.º 2091.º, n.º 1, do C Civil, enquanto a herança permanecer indivisa, os herdeiros exerçam em conjunto a generalidade dos direitos relativos a esta (já que os mesmos “ainda” não têm qualquer direito próprio aos bens que a integram).
No entanto, esta mesma disposição ressalva expressamente que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros “Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º (…).”
Em nosso entendimento, a situação em análise nestes autos enquadra-se precisamente numa destas situações excecionais, designadamente a prevista no art.º 2078.º, de onde decorre que qualquer herdeiro tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder de terceiro e que, simultaneamente, o cabeça de casal pode pedir a entrega dos bens que deva administrar.
Apesar de tal disposição legal estar incluída no Capítulo VII relativo à Petição da herança, terá que se considerar diretamente aplicável igualmente à situação, que vimos ser paralela, da ação de reivindicação. Também por isso, a interpretação necessária do n.º 2 deste art.º 2078.º terá que ser a de que o cabeça de casal tem legitimidade para, sozinho, reivindicar os bens que deva administrar.
Não se compreenderia que um qualquer herdeiro pudesse sozinho pedir o reconhecimento desta sua qualidade e a restituição dos bens em poder de terceiro, mas que o cabeça de casal não pudesse, dando por assente tal qualidade de herdeiro, pedir – da mesma forma – a restituição para a herança de um bem possuído por terceiro.
A nossa conclusão é, portanto, a da legitimidade ativa da Recorrente, como cabeça de casal, desacompanhada dos demais herdeiros, para intentar a presente ação de reivindicação[16].
Noutra perspetiva, pode ainda justificar-se a legitimidade singular ativa da Recorrente para a interposição desta ação, com base na aplicação da disposição legal do art.º 1405.º, n.º 2, (e art.º 1404.º) do C Civil, do seguinte teor: “Cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que ela lhe não pertence por inteiro.”
Dando por nossas as palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/05/2003, tendo como Relator Salvador da Costa[17]: “Dada a natureza da realidade a que se reportam, as normas relativas à compropriedade são aplicáveis a todas as situações de indivisão, designadamente à herança indivisa, por se tratar de um património autónomo coletivo.”
A conclusão final é, assim, a da improcedência do recurso, ainda que com base em argumentos jurídicos diversos dos esgrimidos na decisão recorrida.
* V – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso da Recorrente/Autora, confirmando-se a decisão recorrida, ainda que com base em diferentes argumentos jurídicos.
*
Custas a cargo da Recorrente - art.º 527.º do CP Civil.
*
Notifique e registe.
(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)
Porto, 24 de abril de 2018
Lina Baptista
Fernando Samões
Vieira e Cunha
_____
[1] Doravante apenas designado por C Civil.
[2] Doravante apenas designado por CP Civil.
[3] Que, obviamente, não terá que ser acatada pelo tribunal, face ao disposto no n.º 3 do art.º 5.º do CP Civil.
[4] In “Mandato sem Representação” in Coletânea de Jurisprudência, 1983, Tomo 3.º, pág. 11.
[5] In Partilhas Judiciais, Volume I, Almedina, 2000, pág. 21.
[6] In Lições de Direito das Sucessões, 2017, Almedina, pág. 127.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 06/03/2012, tendo como Relator Salazar Casanova, proferido no Processo n.º 6752/08.2TBLRA.C1.S1 e disponível em www.dgsi.ptna data do presente Acórdão.
[8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/07/2003, tendo como Relator Azevedo Ramos, proferido no Processo n.º 04ª126 e disponível em www.dgsi.ptna data do presente Acórdão.
[9] Veja-se, neste sentido, Capelo de Sousa in Lições de Direito das Sucessões, Volume II, 3ª Edição, 2002, Coimbra Editora, pág. 39, nota 64; Lopes Cardoso, ob. Cit., pág. 21, e Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1988, pág. 131.
[10] Ob. Cit., pág. 11.
[11] Proferido no Processo n.º 0726231 e disponível em www.dgsi.ptna data do presente Acórdão.
[12] Veja-se, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. Cit., Vol. III (em anotação ao art.º 1311.º), pág. 113.
[13] Para maiores desenvolvimentos, veja-se designadamente Oliveira Ascensão in Direito Civil – Sucessões, Coimbra Editora 2000, pág. 506, e Lopes Cardoso, ob, cit., pág. 11, Refere Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, Volume I, Almedina, 2000, pág. 11, onde este último refere: “A herança é um património autónomo de afetação especial, enquanto constituída por situações jurídicas ativas e passivas, em que as responsabilidades dos herdeiros não ultrapassam o valor dos bens que recebem (Código Civil, arts. 2068.º e 2098.º) e os credores dela preferem aos que o são do herdeiro (Código Civil, art.º 2070.º, n.º 1).”
[14] Veja-se, neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 01/07/2010 in C.J. Tomo 3.º, pág. 188 e ss.
[15] Ob. Cit. Pág. 54.
[16] Veja-se, em sentido contrário, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/10/2009, tendo como Relator Moreira Camilo, proferido no Processo n.º 158/1999.S1 e disponível em www.dgsi.ptna data do presente Acórdão.
[17] Proferido no Processo n.º 03B1412 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.