DESPACHO SANEADOR
OPORTUNIDADE DA DECISÃO
Sumário

Ocorrendo duplicação de descrições prediais, em princípio o conflito será resolvido pela aplicação das regras de direito substantivo, podendo qualquer das partes conflituantes provar que exerceu actos materiais conducentes à aquisição por usucapião.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Sumário:
1. Entre os factos sujeitos a registo não se contam os elementos de identificação predial relativos à área, composição e confrontações, pelo que é lícito à parte alegar e provar que o seu prédio tem uma composição diversa da constante da descrição predial.
2. Ocorrendo duplicação de descrições prediais, em princípio o conflito será resolvido pela aplicação das regras de direito substantivo, podendo qualquer das partes conflituantes provar que exerceu actos materiais conducentes à aquisição por usucapião.
3. A escritura de justificação notarial é um instrumento destinado a obviar à falta de título e permite a inscrição com base numa aquisição originária da propriedade, por usucapião ou acessão.
4. Sendo susceptível de impugnação judicial, cabe ao justificante o ónus da prova da aquisição do direito de propriedade e da validade desse direito.
5. O conhecimento do mérito no saneador apenas tem lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em atenção a visão partilhada pelo juiz da causa, não podendo a segurança ser sacrificada à celeridade.

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Local Cível de Portimão, (…) e mulher (…) (1.ºs AA.), e (…) (2.ª A.), demandaram (…), alegando que têm registada a aquisição a seu favor de determinado prédio misto, descrito nos autos, e que se resto exerceram sobre o mesmo actos de posse conducente à aquisição por usucapião. Visto que o R. lavrou escritura de justificação notarial do imóvel e logrou obter o registo da aquisição a seu favor, duplicando a descrição predial no que concerne à parte urbana do prédio, formulam os seguintes pedidos:
a) declaração de nulidade da escritura de justificação notarial de 19.09.2013, através da qual o R. adquiriu o prédio aí referido por usucapião;
b) declaração da nulidade do averbamento efectuado perante o Serviço de Finanças de Monchique, pelo qual o prédio passou a constar como inscrito em nome do R.;
c) declaração de nulidade da inscrição registral de aquisição por usucapião a favor do R.;
d) cancelamento da descrição predial n.º (…)/20131119 da freguesia de Monchique;
e) reconhecimento dos AA. como únicos e legítimos proprietários e possuidores do prédio urbano inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (…), da freguesia de Monchique, na proporção de 2/3 para os 1.ºs AA. e de 1/3 para a 2.ª A., quer por o terem adquirido por sucessão/doação e compra, respectivamente, quer por usucapião;
f) condenação do R. a restituir o prédio aos AA.;
g) condenação do R. a indemnizar os AA. pela privação de uso do referido prédio urbano, à razão de € 150,00 mensais, desde 19.11.2013 e até integral restituição.

Na contestação, o R. impugna os registos de aquisição do imóvel a favor dos AA. e afirma que foi ele quem exerceu actos materiais conducentes à aquisição por usucapião, motivo pelo qual devem improceder os pedidos dos AA., que deverão, ainda, ser condenados como litigantes de má fé.
Após audiência prévia, considerando que os factos admitidos por acordo e demonstrados por documento permitiam desde logo a decisão, foi proferido saneador-sentença, julgando a causa parcialmente procedente e, assim:
- declarando ineficaz a escritura de justificação notarial identificada nos autos, através da qual se declarou que o R. adquiriu com causa em usucapião o prédio urbano inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Monchique sob o art. (…);
- determinando o cancelamento do averbamento efectuado perante o Serviço de Finanças de Monchique, pelo qual o prédio passou a constar como inscrito em nome do R.;
- determinando o cancelamento da descrição predial n.º (…)/20131119, da freguesia de Monchique, com origem na inscrição de aquisição por usucapião a favor do R.;
- condenação do R. a reconhecer os AA. como proprietários e possuidores do prédio urbano inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (…), da freguesia de Monchique, na proporção constante do registo;
- condenação do R. a restituir o prédio aos AA.;
- e do mais indo AA. e R. absolvidos.

Recorre o R. e nas suas conclusões conclui:
1.ª Há omissão de pronúncia uma vez que a sentença recorrida deveria ter apreciado a alegada posse publica pacífica e de boa-fé por parte do recorrente e omitiu essa realidade.
2.ª É notória a confusão dos autores que começam na P.I. por reivindicar o art.º (…), para depois o reconhecerem como sendo do recorrente e passarem a reivindicar o art.º (…),
3.ª O art.º matricial n.º (…), criado de novo em 1993, engloba a totalidade das divisões que os art.º matriciais n.º (…) e (…) tinham à data da sua criação.
4.ª A provar essa realidade encontram-se nos autos os docs. 2 e 3, requerimento de resposta ref. N.º 21979465 enviado ao tribunal em 29/02/2016,
5.ª As cadernetas prediais mencionam que o art.º (…) tem 60,00 m2 com 5 divisões, cozinha, casa de banho e logradouro, e o art.º (…) tem 58,8 m2, menos 1,2 m2, praticamente a mesma área e apenas menciona 2 divisões,
6.ª Confirma-se assim que o art.º (…), criado no ano de 1993, destinava-se a abarcar os dois artigos matriciais, o Art.º … (com 2 divisões) e o art.º … (com 3 divisões)
7.ª A autora mulher indicou ao funcionário do Município de Monchique onde devia colocar os art.º matriciais, trocando deliberadamente a localização e juntou esse documento aos autos para confundir;
8.ª Constatou-se agora que de facto se encontra, descrito na CRP a favor dos autores/recorridos, parte do identificado Imóvel urbano (…) nas proporções de 28,5 /110 avos para uns e 15/110 avos para o outro,
9.ª O recorrente registou na CRP sob o n.º …/20131119 a totalidade do imóvel objecto do presente litígio a seu favor com data anterior à dos recorridos, mantendo a sua posse e por isso, devem as quotas partes registadas posteriormente ser anuladas;
10.ª Ainda que não seja esse o douto entendimento de V. Ex.ª, a parte restante do Imóvel, ou seja, a parte não registada foi adquirida pelo recorrente, através de aquisição originária, a usucapião do Imóvel,
11.ª O recorrente por si e por intermédio dos seus antepassados, pelo menos desde o início do século XX que tem mantido a posse do imóvel à vista de toda a gente, isto é de forma pública, pacífica e de boa-fé até à actualidade.
12.ª Os imóveis (murada de casas) que é referida em diversos documentos, situam-se todas no terreno rústico art.º (…) secção DI1 e DI2 que é propriedade do recorrente, para confirmar, basta observar a planta anexa ao doc. 1 da DGT e doc. 8 da C. Municipal de Monchique juntos com a contestação.
13.ª O tribunal “a quo” também não analisou correctamente o texto da escritura de doação datada de 14 de Fevereiro de 1927, pois a doação aí referida foi de uma casa a favor de (…) e o terreno para construção a favor da neta (…) – Tia-Avó do recorrente.
14.ª A Escritura de Usucapião celebrada pelo recorrente foi instruída com toda a documentação necessária, nomeadamente com a certidão passada pela C.R.P. de Monchique em como o prédio não estava descrito e obviamente com as três testemunhas conhecedoras da realidade;
15.ª O nosso ordenamento jurídico dá preferência à usucapião, e não ao registo, o qual entre nós, não tem eficácia constitutiva, mas meramente declarativa.
16.ª Já assim foi decidido pelo STJ no processo n.º 447/08.4TBCBR.C1.S1 o qual pode ser consultado em www.dgsi.pt/jstj;
17.ª O recorrente está de boa-fé, tem a posse pública e pacífica do Imóvel a que corresponde o art.º (…) da matriz, sem oposição de ninguém e beneficia do prazo previsto no art.º 1296 da C. Civil, para adquirir por usucapião.
18.ª Além de que o novo da matriz, o art.º (…), criado em 1993, desde essa data que agrupou num só, os art.ºs (…) e (…), passando a constar nele exactamente o número de divisões (cinco, cozinha e casa de banho) que os dois tinham e têm na actualidade,
19.ª Não tendo sido eliminado da matriz o art.º (…) por erro dos serviços – Serviço de Finanças de Monchique.
20.ª E, finalmente, é nosso entendimento que a Sentença recorrida para além de outras não indicadas, violou claramente as seguintes disposições legais: Artigos 335.º, n.º 2 do art.º 345.º, art.º 347.º e o art.º 1296.º todos do Código Civil e também o art.º 44.º, n.º 3 e 4, do Código do Registo Predial.

Na resposta sustenta-se a manutenção do decidido.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

Os factos que a primeira instância considerou provados são os seguintes:
1. A descrição do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Monchique sob o n.º …/20131119, da freguesia de Monchique, a favor do Réu, por aquisição com causa em usucapião, referente a prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…), com a área total de 58,80 m2, encontra-se parcialmente duplicada com a n.º …/20141022, esta extractada da n.º (…), fls.43, do Livro B-30.
2. O referido prédio (…) provém dos prédios originariamente descritos na Conservatória do Registo Predial de Monchique sob os n.º (…), fls. 20v, do Livro B-22, e o referido n.º (…), fls. 43, do Livro B-30.
3. O referido prédio (...) encontra-se inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo (…) e na matriz predial urbana sob o artigo (…), da freguesia de Monchique, incluindo casa com dois pavimentos (58,80 m2).
4. Mediante a inscrição n.º (…) de 29 de Dezembro de 1961 ficou inscrita a favor de (…) a transmissão de seis cento e dez avos indivisos do prédio descrito sob o n.º (…), fls. 20v, do Livro B-22, inscrito na matriz predial rústica sob o art. (…) e na matriz predial urbana sob o art. (…), por haver comprado a (…) e (…), por escritura de 13 de Agosto de 1955.
5. Mediante a inscrição n.º (…), de 18 de Maio de 1962, ficou inscrita a favor de (…), também conhecido por (…), de (…) e de (…), a transmissão em comum e sem determinação de parte ou direito de quinze cento e dez avos indivisos do prédio descrito sob o n.º (…), fls. 20v, do Livro B-22, inscrito na matriz predial rústica sob o art. (…) e na matriz predial urbana sob o art. (…), por lhes haverem ficado a pertencer na qualidade de meeiro e únicos e universais herdeiros respectivamente de sua mulher e mãe (…).
6. Mediante inscrição de 18 de Maio de 1962 ficou inscrita a favor de (…) a transmissão de quinze cento e dez avos indivisos do prédio descrito sob o n.º (…), fls. 20v, do Livro B-22, inscrito na matriz predial rústica sob o art. (…) e na matriz predial urbana sob o art. (…), por o haver comprado a (…), (…) e (…), por escritura de compra e venda de 15 de Março de 1960.
7. Mediante escritura pública de doação, de 29 de Julho de 1981, (…) doou ao A., com reserva de usufruto, “três quartas partes do direito a 30/110(…)[1] indivisos de uma courela de terra (…) e uma morada de casas (…), não descrita na Conservatória do Registo Predial de Monchique (…) inscrita na respectiva matriz predial rústica sob o artigo número (…) e na matriz predial urbana sob o artigo número (…)”.
8. Por escritura pública de compra e venda de 04 de Julho de 1967, (…) e mulher (…), pais do A., adquiriram por compra a (…) e mulher (…), com reserva do usufruto vitalício a favor destes, o direito a seis cento e dez avos indivisos de uma courela de terra de semear com diferentes árvores de fruto e uma morada de casas, descrita na Conservatória do Registo Predial de Monchique sob o número (…), registada a favor do outorgante marido pela inscrição n.º (…), e inscrita nas respectivas matrizes prediais, no todo, sob os artigos (…), rústico, e (…), urbano, aquisição registada pela Ap. (…) de 1967/07/11.
9. Por averbamento de 23 de Agosto de 1983 ficou cancelada a inscrição do usufruto, por óbito dos usufrutuários.
10. (...) faleceu em 05 de Janeiro de 1998 e sua mulher (…) havia falecido em 01 de Julho de 1991, deixando o filho (…), o aqui A., como seu único herdeiro, o qual é casado com a A. (…), no regime de comunhão de bens.
11. Por inscrição de 07 de Junho de 1962 ficou inscrita a favor da A. (…), Holding AG a transmissão de quinze cento e dez avos indivisos do prédio misto descrito sob o n.º (…), fls. 20 v, do Livro B-22, inscrito nas respectivas matrizes prediais, no todo, sob os artigos (…), urbano, e (…), rústico, por o haver comprado a (…) e mulher (…), mediante escritura pública de compra e venda de 31 de Maio de 1962.
12. O prédio com descrição em livro sob o nº (…) encontrava-se descrito na Conservatória do Registo Predial como prédio misto composto de uma courela de terra de semear com diferentes árvores de fruto e uma morada de casas, nas Caldas de Monchique, freguesia de Monchique, com os artigos matriciais (…), rústico, e (…), urbano, e ficou inscrito a favor do Autor pela Ap. n.º (…) de 28 de Setembro de 1981.
13. Ao referido prédio descrito em livro sob o n.º (…) corresponde actualmente o prédio misto com a descrição sob o n.º …/20141022, encontrando-se parcialmente duplicada com a n.º …/20131119, e em duplicação com a n.º (…), que foi inutilizada na data de 24-11-2014.
14. A descrição sob o n.º …/20141124 correspondia ao prédio com descrição em livro sob o n.º (…), Livro n.º 22.
15. Da caderneta predial urbana do art. (…), localizado nas Caldas de Monchique, emitida pela Repartição de Finanças de Monchique, em 24 de Maio de 1995, constam como titulares do direito ao rendimento (…), (…), Sociedade Thetis Holding e (…), compondo-se de casa com dois pavimentos, com superfície coberta de 58,80 m2.
16. Da caderneta predial urbana emitida em 19-01-2013 consta a inscrição do art. (…), casa com dois pavimentos, superfície coberta 58,80 m2, e sendo titulares o Autor, 2/3, e a Autora (…) Holding AG, 1/3.
17. Por escritura de justificação outorgada em 19 de Setembro de 2013, no Cartório Notarial a cargo da Notária Júlia Maria Mateus da Silva, sito na Av. (…), n.º (…), 5.º-Esq.º, em Lisboa, exarada de fls. 68 a 69v, do Livro 134-B, compareceu o R., como justificante.
18. Declarou, designadamente, “Que é dono e legítimo possuidor, com exclusão de outrem, de um prédio urbano, para habitação, sito em Caldas de Monchique, freguesia e concelho de Monchique, com a área total de cinquenta e oito vírgula oitenta metros quadrados, casa com dois pavimentos, prédio em propriedade total sem andares nem divisões susceptíveis de utilização independente, confrontando do Norte com (…), do Sul com (…), do Nascente com o próprio e do Poente com Estrada Nacional, omisso na Conservatória do Registo Predial de Monchique e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Monchique sob o artigo (…), com o valor patrimonial de quatrocentos e vinte e oito euros e oitenta e sete cêntimos, e a que para efeitos deste acto atribui igual valor”.
19. Mais declarou: “Que no ano de mil novecentos e sessenta e oito, sendo o estado civil dele primeiro outorgante solteiro, ajustou com (…), divorciada, residente em Caldas de Monchique, sua tia-avó, a doação do supradito prédio, não tendo, todavia, sido celebrada a competente escritura; Que, porém, logo nesse momento entrou na posse material e efectiva do mencionado imóvel, por este lhe ter sido entregue pela citada (…) e desde então até hoje, sem interrupção e à vista de toda a gente, passou a habitá-lo, nele recebendo familiares a amigos, suportando do seu bolso as despesas relativas aos consumos de água e de electricidade efectuados naquele local, para ali lhe sendo endereçada tanto por particulares, como por entidades públicas, a correspondência a ele dirigida, promovendo os actos necessários para a conservação e manutenção do imóvel e custeando todas as despesas inerentes e pagando todas as contribuições, impostos e taxas relativas ao dito prédio, agindo sempre pela forma correspondente ao exercício do direito de propriedade do mesmo e na firme convicção de ser na verdade o proprietário pleno dele; Que esta posse, adquirida e mantida sem violência, logo pacífica, ostensivamente, consequentemente à vista de toda a gente e, por isso, pública, ininterruptamente, tudo por um período de tempo superior a 20 anos, conduziu à aquisição do prédio acima descrito por usucapião, causa de aquisição que ora invoca, justificando o seu direito de propriedade para efeito de registo, dado que a citada causa de aquisição não pode ser comprovada por qualquer outro título formal extrajudicial.”.
20. As testemunhas intervenientes na referida escritura de justificação são (…), (…) e (…), e confirmaram as declarações prestadas pelo R..
21. Uma vez na posse da escritura, requereu o R. a actualização da respectiva matriz predial urbana, referindo a respectiva caderneta, emitida em 21-11-2014, ao art. (…) como prédio em propriedade total sem andares nem divisões susceptíveis de utilização independente, para habitação, dois pisos, duas divisões, com área de 58,80 m2, constando como titular único, bem como requereu, junto da Conservatória do Registo Predial de Monchique, pela apresentação n.º (…), de 19/11/2013, a inscrição de aquisição a seu favor, por usucapião, do prédio com a identificação referida na escritura de justificação, inscrição de aquisição essa que por dizer respeito a prédio tido como não descrito deu origem à nova descrição n.º …/20131119, da freguesia de Monchique.
22. Decorreu o processo de Inventário Orfanológico n.º 2/1936, no Tribunal Judicial da Comarca de Monchique, sendo inventariado (…).
23. Mediante escritura pública de compra e venda celebrada em 18 de Março de 1976, (…) e mulher (…) venderam a (…) e mulher (…) uma casa térrea com dois pavimentos situada nas Caldas de Monchique ou Barranco do Banho inscrito na respectiva matriz sob o art. (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Monchique sob o n.º (…), e o direito a cinco cento e dez avos indivisos de uma courela de terra no sítio do Barranco do (…), inscrito na respectiva matriz sob o art. (…) e não se acha descrito.
24. Encontra-se registada a aquisição pelo Réu, por sucessão hereditária, em averbamento pela Ap. (…) de 2013/06/07, relativa a transmissão de posição, da Ap. (…) de 1994/10/10, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Monchique sob o n.º (…), da freguesia de Monchique, inscrito na matriz urbana respectiva sob o art. 5047.
25. Por escritura de doação de 14 de Fevereiro de 1927, (…) doou a (…) uma casa e um terreno para construção de casa sem descrição na Conservatória do Registo Predial mas que faziam parte do prédio n.º (…), repetido sob os números (…) e (…).

Para melhor esclarecimento, descrevem-se ainda os factos que a decisão recorrida considerou não provados, mas que declarou, igualmente, terem “efectivo relevo para a decisão da causa”:
- O prédio com o art. (…) sempre esteve na posse de (…) desde 1936;
- Quando do falecimento do pai do R., pela comunicação da relação de bens às Finanças, o art. (…) foi ampliado à custa do art. 955;
- Os artigos urbanos 955 e 956 deram origem a um novo artigo que é actualmente o art. 5047, descrito na Conservatória do Registo Predial de Monchique sob o n.º (…);
- AA. e R. adquiriram o prédio a que corresponde o art. 955 urbano por usucapião.

Aplicando o Direito.
Da impugnação da justificação notarial
A decisão recorrida considerou que “das consequências lógicas da demonstração dos factos relativos à titularidade do prédio urbano inscrito sob o art. (…) resultou a impossibilidade (…) de demonstração da matéria alegada (…) como fundamento de usucapião – de parte a parte.”
Mais especificamente, no que respeita ao R., considerou-se que as suas alegações contraditórias relativas à descrição predial e inscrição matricial do imóvel que afirma pertencer-lhe tornavam irrelevante ou impossível a demonstração dos factos relativos à aquisição por usucapião.
A contradição residiria, na perspectiva da decisão recorrida, de se alegar que o prédio descrito na CRP Monchique sob o n.º (…) englobava os artigos matriciais urbanos (…) e (…) – apesar de ali só se mencionar o artigo matricial urbano (…), que teve origem no (…) – para, em momento posterior, recorrer-se a uma escritura de justificação notarial e autonomizar o artigo matricial urbano (…) numa nova descrição predial, a n.º (…) da CRP de Monchique, criada através da apresentação de 19.11.2013.
Mas será assim? Vejamos.
Como pacificamente se aceita na jurisprudência e na doutrina, o art. 7.º do Código do Registo Predial apenas estabelece uma presunção ilidível da existência de certas relações jurídicas sobre o prédio, mas não prova os elementos constantes da respectiva descrição, como a área, a composição ou as confrontações.
Na verdade, o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário – art. 1.º do respectivo Código – possuindo natureza meramente declarativa, e não constitutiva. Como afirmava Manuel de Andrade[2], “o registo não dá direitos, apenas os conserva.”
De facto, no dizer de Vaz Serra[3], o registo não visa garantir que “o direito pertença na realidade à pessoa que figura no registo como seu titular ou que esse direito não esteja desfalcado no seu valor por quaisquer encargos: em primeiro lugar, porque não estão sujeitos a registo todos os actos que o deviam estar; em segundo lugar, porque o registo não sana radicalmente os defeitos de que porventura enfermem os títulos apresentados para o registo.”
Deste modo, quando o art. 7.º do Código do Registo Predial determina que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”, estabelece tão só uma dupla presunção:
a) que o direito registado existe;
b) que o mesmo pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
A presunção resultante do registo deixa assim de fora necessariamente quer a área, quer as confrontações do prédio, pois apenas os factos identificados nos arts. 2.º e 3.º do Código do Registo Predial se encontram sujeitos a registo, e entre esses não se contam os elementos de identificação predial relativos à área, composição e confrontações[4].
Na linha desta orientação doutrinal e jurisprudencial, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2017, de 23.02.2016 e publicado no DR, I Série, de 22.02.2017, decidiu que «verificando-se uma dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, nenhum dos titulares registais poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7.º do Código do Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções.»
Deste modo, verificando-se que o prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o art. (...) se encontra duplicado nas descrições prediais n.ºs (…) e (…) da CRP de Monchique, era lícito a qualquer das partes alegar e provar que exerceu sobre o dito prédio actos materiais de posse conducentes à sua aquisição por usucapião.
Note-se, ainda, que também se fixou jurisprudência – Acórdão Uniformizador n.º 1/2008, de 04.12.1007, publicado no DR, I Série, de 31.03.2008 – no sentido de «na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial.»
A escritura de justificação notarial constitui um dos meios de estabelecimento do trato sucessivo, permitindo “aos interessados um meio de titulação de factos jurídicos relativos a imóveis que ou não possam ser provados pela forma original ou cuja eficácia se desencadeia legalmente sem necessidade de observância de forma escrita, como a usucapião ou a acessão.”[5]
Tratando-se, pois, de um instrumento destinado a obviar à falta de título, permitindo a inscrição com base numa aquisição originária da propriedade, por usucapião ou acessão, a escritura de justificação notarial é susceptível de ser impugnada judicialmente, caso em que caberá ao justificante, na linha do AUJ n.º 1/2008, o ónus da prova da aquisição do direito de propriedade e da validade desse direito.
No caso de ter sido invocada a aquisição por usucapião – como ocorreu no caso dos autos – o justificante tem o direito de alegar e produzir prova acerca dos actos materiais de posse que conduzem à verificação daquele modo de aquisição originária do direito de propriedade.
Tendo o R. invocado na escritura de justificação notarial o exercício de actos materiais de posse sobre o prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o art. (…), por período de tempo bastante à sua aquisição por usucapião, impugnando os AA. tais declarações e voltando aquele a reafirmar a sua versão dos factos no articulado de contestação, deverá ser aplicada a regra constante do art. 343.º, n.º 1, do Código Civil, uma vez que está em causa uma acção de simples apreciação negativa, na qual compete ao demandado a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga.
Deste modo, apesar da contradição detectada na decisão recorrida – do R. sustentar que o prédio descrito na CRP Monchique sob o n.º (…) englobava os artigos matriciais urbanos (...) e (...), para, em momento posterior, recorrer a uma escritura de justificação notarial do art. (...) e criar uma nova descrição predial, a n.º (…) – tal circunstância não fez precludir o seu direito de efectuar a prova da invocada aquisição por usucapião, tanto mais que, como já vimos, a presunção resultante do registo não abrange os elementos relativos à área, composição e confrontações do prédio, e ocorrendo duplicação de descrições prediais, o conflito dever ser resolvido, em princípio, pela aplicação das regras de direito substantivo (AUJ n.º 1/2017).

De acordo com o art. 595.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil, o despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.
Reconhecendo-se que o conhecimento imediato do mérito pode derivar de inconcludência do pedido, procedência ou improcedência de excepção peremptória e procedência ou improcedência do pedido, tal apenas deverá ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em atenção a visão partilhada pelo juiz da causa.[6]
Como escreveu o insigne Prof. Alberto dos Reis[7], “todas estas precauções se resumem a um mandamento superior: a segurança não deve ser sacrificada à celeridade. Segurança, neste caso, quer dizer acerto e justiça. Julga com segurança o tribunal que só emite a sua decisão quando está de posse de todos os elementos necessários para proferir um veredictum consciencioso, ponderado e justo.”
Como vimos, ocorrendo duplicação de descrições prediais, o tribunal recorrido não podia ignorar, sem mais, as alegações – produzidas por ambas as partes – relativas à aquisição por usucapião do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo (…).
Tal matéria revela-se essencial à decisão conscienciosa do pleito, segundo as várias soluções plausíveis de direito, motivo pelo qual o recurso procede, devendo os autos prosseguir para a fase de julgamento, a fim de serem apurados os factos ainda controvertidos.

Decisão.
Destarte, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida e determina-se a sua substituição por outra que identifique o objecto do processo e enuncie os temas da prova, seguindo os autos para a fase de julgamento.
Custas do recurso pelos AA..
Évora, 7 de Junho de 2018
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
__________________________________________________
[1] ou seja, 22,5/110.
[2] In Teoria Geral das Relações Jurídicas, vol. II, pág. 19.
[3] In Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 118.º, pág. 312, citado por Antunes Varela.
[4] E assim se decidiu, de resto no seguimento de jurisprudência praticamente uniforme, nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29.10.1992 (Proc. 082672) e do Tribunal da Relação do Porto de 14.01.2014 (Proc. 4514/12.1TBVFR.P1), ambos publicados em www.dgsi.pt.
[5] José Alberto Vieira, in “Registo de usucapião titulada por escritura de justificação notarial e presunção de titularidade do direito”, publicada nos Cadernos de Direito Privado, n.º 24, 2008, pág. 37.
[6] Entre a diversa jurisprudência acerca deste tema, cita-se a título meramente exemplificativo o Acórdão da Relação de Guimarães de 11.07.2017 (Proc. 114815/16.8YIPRT.G1), também em www.dgsi.pt.
[7] In Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pág. 190.