EMBARGOS DE TERCEIRO
CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
PENHORA DE EXPECTATIVA DE AQUISIÇÃO
Sumário

Penhorada a expectativa de aquisição de um veículo, objecto de contrato de locação financeira, a entidade locadora não pode, com fundamento no seu direito de propriedade, embargar de terceiro, por tal penhora não ser incompatível com este direito.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1.

Por apenso à execução intentada por B………. contra C………., Ldª, D………., SA, deduziu embargos de terceiro.

Alegou para tanto e em síntese ser legítima proprietária do mesmo, por o haver adquirido no âmbito da sua actividade de locadora financeira mobiliária, ofendendo a penhora do aludido bem o seu direito de propriedade.
Que, porém, no âmbito de um contrato de locação financeira, entregou tal veículo à referida C………., Ldª, a qual, com a sua autorização, entretanto cedeu a sua posição em tal contrato a E………. .
Que no aludido processo executivo foi ordenada a penhora de tal veículo.
Requereu fosse ordenado o levantamento da penhora sobre o veículo automóvel de matrícula ..-..-RQ com base na ofensa do seu direito de propriedade.

2.

Foi proferido despacho liminar que, por manifesta improcedência indeferiu liminarmente os embargos.

Para o efeito e em síntese, entendeu o Sr. Juiz que:
«…a penhora recaiu sobre uma expectativa de aquisição do executado respeitante ao veículo alegadamente propriedade do embargante.
Ora, tal como preceitua o nº3, do supra citado artº860-A do C.P.Civil só após a consumação da aquisição a penhora passa a incidir sobre o próprio bem transmitido, pelo que apesar da penhora efectuada a propriedade do mesmo se mantém intocada.
O embargante alega tão só a propriedade do veículo e não a respectiva posse, o que se coaduna com a qualificação da relação jurídica que alega ter com o executado, e tal propriedade revela-se compatível com a penhora da expectativa de aquisição daquele pertencente ao executado…»

3.

Inconformada recorreu a embargante.

Rematando as suas alegações com a seguintes conclusões:

I
A Recorrente é dona e legitima proprietária da viatura Mitsubishi ………., de matrícula ..-..-RQ.
II
Por Contrato de Cessão de Posição Contratual de 05/08/03, a posição de locatária da sociedade C………., Ldª, passou de plena para E………., sendo este que paga as respectivas rendas mensais e terá direito a adquirir a viatura no final do contrato.
III
A sociedade C………., Ldª, é completamente alheia ao contrato de locação financeira em causa, nada tendo a ver com a Recorrente.
IV
Não existe, por isso, expectativa de aquisição da viatura, já que não existe qualquer contrato com a executada.
V
A penhora, com apreensão da viatura ofende a posse e a propriedade da Embargante, estando a acarretar-lhe prejuízos.
VI
Pelo que deverá ser revogada a sentença recorrida, e decretado de imediato o cancelamento da penhora.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 690º do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objecto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

(im)possibilidade de dedução de embargos de terceiro, por (não) afectação do direito de propriedade do locador nos casos em que o bem penhorado é apenas a expectativa de aquisição de tal bem pelo executado.

5.

Os factos a considerar são os resultantes do relatório supra.

6.
Apreciando.

Estatui o artº 1285º do CC:
O possuidor cuja posse for ofendida por diligência ordenada judicialmente pode defender a sua posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei de processo”.
E prescreve o artº 351º, nº1, do CPC na redacção que lhe foi conferida pelo 38/2003, de 8 de Março que:
Se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.
Da interpretação concatenada destes preceitos resulta, que não obstante o alargamento do âmbito dos embargos de terceiro operada pela reforma processual civil de 1995, resulta que, não obstante esse meio poder hoje também defender qualquer outro direito incompatível com a diligência judicial, a defesa da posse ainda é o fundamento nuclear dos embargos de terceiro. – cfr- Ac. do STJ de 19.06.2007, dgsi.pt,p.07A1624.
Tanto assim que, para bem compreender os embargos de terceiro é útil partir da sua configuração tradicional – Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 4ª ed. p.282.
Posto é que o direito invocado pelo terceiro embargante seja ofendido pela penhora.
No caso vertente, como se alcança do teor do requerimento inicial e contrariamente ao expendido pelo recorrente em sede de alegações, ele efectivamente apenas funda os embargos no seu direito de propriedade.
O que nem podia ser de outro modo, na medida em que ele admite e está assente que o veículo locado foi entregue aos sucessivos locatários os quais, assim, sobre ele exercem a posse efectiva e material.
Caímos, destarte, no conceito de direito incompatível.
A incompatibilidade do direito de terceiro afere-se pela virtualidade que ele possa ter para impedir a efectivação da normal função da penhora, qual seja a ulterior venda executiva forçada.
Tal força ou virtualidade tem de ser aferida atento o âmbito ou amplitude com que a penhora é feita, o que passa, desde logo, pela determinação da natureza e efeitos jurídicos do direito do executado que é penhorado – cfr. Autor e Ob. Cits. p.288 e Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, 1998, p.302.

In casu o que foi penhorado foi apenas a expectativa de aquisição do veículo por parte do executado que o detém em conformidade com um contrato de locação financeira.
O que está de acordo quanto ao seu regime jurídico decorrente do estatuído no DL149/95, de 24/6 no que tange aos direitos e deveres das partes.

Na verdade e nos termos do artº 1º do referido diploma: O contrato de locação financeira é um contrato duradouro cuja finalidade consiste em proporcionar a uma das partes, o locatário, um financiamento mediante a atribuição da posse e utilização para certo fim pelo locador que, por sua vez, o adquire para esse uso, tudo mediante o pagamento de uma renda, por certo período de tempo, com a faculdade de, no respectivo termo, o locatário poder adquirir, por compra, o bem por um preço convencionado, em princípio coincidente com o valor residual do bem não recuperado pelas rendas pagas.
A locação financeira é um contrato misto que inclui elementos próprios do contrato de locação e do mútuo e da compra e venda.
Assim, o locador é o proprietário da coisa locada até ao fim do prazo contratual, mantendo reserva legal em seu benefício dessa propriedade em garantia do financiamento prestado durante a vigência da execução contratual -art. 9º do cit. DL.
Por seu turno o locatário não adquire, por efeito do contrato qualquer direito de natureza real sobre o bem, apenas integrando na sua titularidade jurídica o direito de o usar e fruir, e, findo o contrato, o direito potestativo de o adquirir, pelo preço acordado - art. 10º.
Perante esta e outras realidades jurídicas – vg. a posição do promitente comprador em contrato de transmissão ou constituição de direitos reais sobre imóveis ou móveis sujeitos a registo, com eficácia real: artºs 413º nº1 e 830º nº1 do CC; a posição do titular do direito de preferência, com eficácia real, a quem não foi dado conhecimento da venda: artºs 421º e 422º do CC; o direito de cedência ou transferência dos profissionais de futebol: artº 19º da Lei 28/98 de 26 de Junho - a lei processual, com a Reforma de 95/96, passou a consagrar a possibilidade de penhorar direitos ou expectativas de aquisição de bens determinados por parte do executado – artº 860º-A do CPC.

Ora nestes casos o que é penhorado não é o bem ou a propriedade do mesmo, mas apenas situações jurídicas activas que, afectando em termos reais um bem, permitem que o titular possa no futuro adquiri-lo para si.
Assim, uma de três situações podem ocorrer.
Se antes antes da venda executiva, ocorrer a aquisição do bem pelo executado o n.º 3 deste último preceito prevê que a penhora passe a incidir sobre o próprio bem adquirido.
O que acontece por “conversão automática «evitando qualquer vazio por desaparecimento do objecto inicial da penhora»,
Mudando assim – mas só nesta fase processual - o objecto da penhora de “posição contratual para “direito real”.
Devendo, na circunstância, o agente de execução proceder à realização da penhora correspondente – de imóveis, nos termos do art. 838º e sgs. ou de móveis, em conformidade com o previsto no art. 848º.
Se tal aquisição não ocorrer, a penhora como penhora da posição contratual - direito de crédito - e inerente expectativa de aquisição, mantém-se e é esse o direito que é levado á venda.
Se - por qualquer causa de extinção do contrato - a posição jurídica do executado se extinguir, a penhora também se extingue por desaparecimento do objecto – cfr. Ac. do STJ de 13.11.2007, dgsi.pt, p. 07A3590.

In casu está apenas apurado que penhorado foi somente a expectativa de aquisição do veículo.
O que significa que, se até à venda deste direito, a propriedade do bem não for adquirida pelo executado, o que é vendido è apenas esta expectativa e não o veículo.
Consequentemente, pelo menos neste momento e fase processual, não se pode concluir que o direito do executado penhorado prejudique ou, até, de qualquer modo constranja o direito de propriedade da embargante, o qual, no processo executivo e se tudo continuar como está, se manterá incólume.
Logo, não se pode dizer que, pelo menos neste momento, se verifique a legalmente exigível e supra mencionada incompatibilidade.
Por outro lado o facto de a embargante alegar ter sido cedida a posição contratual de locatário para um terceiro, em nada altera os dados da questão.
Porque, em primeiro lugar, invocando ela apenas – repete-se - como fundamento dos embargos, o seu direito de propriedade, este continua a não ser afectado, independentemente da qualidade e identidade do locatário, o qual permanece na posse do automóvel.
Porque, em segundo lugar, o facto de a executada já não ser locatária e possuidora do carro e, assim, não inserindo na sua esfera jurídico-patrimonial a expectativa da sua aquisição, mostra-se irrelevante em sede de embargos de terceiro, apenas podendo, eventualmente, sustentar embargos de executado.

Revelando-se, decorrentemente, inadmissíveis os embargos deduzidos.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente.

Porto, 2007.12.04
Carlos António Paula Moreira
Maria da Graça Pereira Marques Mira
António Guerra Banha