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INSOLVÊNCIA
ALUGUER DE AUTOMÓVEL SEM CONDUTOR
Sumário
I- Em matéria de efeitos da insolvência sobre os negócios em curso, o princípio geral é o de que o cumprimento fica suspenso até que o Administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento (art. 102.º do CIRE). II- O art. 104.º n.º 2 deste diploma contempla a situação especial do contrato de locação, mas apenas quando este tem a cláusula de que a coisa locada se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas as rendas pactuadas. III- No caso de na locação a coisa dever ser restituída findo o contrato, a situação integra-se no art. 108.º do CIRE: a declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mas o administrador pode sempre denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias, se prazo inferior não for exigido pela lei do contrato; o locador pode resolver o contrato com fundamento na falta de pagamento dos alugueres vencidos após a data de declaração de insolvência (n.º 4 desse artigo).
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
B……………, S.A., instaurou, em 9-4-07, no Tribunal Judicial de Santo Tirso, acção com vista à separação e restituição de bens, nos termos do disposto no art.146º do CIRE, contra C……………, UNIPESSOAL, LDA, MASSA INSOLVENTE de C………………, Unipessoal, Lda, e CREDORES DA MASSA INSOLVENTE de C………………, Unipessoal, Lda.
Pede a separação, e consequente restituição, dos veículos marca FORD, com a matrícula ..-..-ZX, marca RENAULT, com a matrícula ..-AC-.., e marca OPEL, com a matrícula ..-AO-.., detidos pela referida massa insolvente.
Alega ter celebrado com a R. C…………….., Unipessoal, Lda, três contratos de aluguer de veículo sem condutor, tendo como objecto mediato aqueles veículos; contratos que, por incumprimento, já após a declaração de insolvência, resolveu.
Não houve contestação, pelo que foram considerados confessados os factos articulados pela A.. Após o que foi decidido julgar a acção improcedente.
Inconformada, a A. interpôs recurso.
Conclui assim, entre o mais:
- o juiz “a quo” aplicou, erroneamente, o disposto no art.104º do CIRE ao contrato aqui em apreço, sendo o mesmo apenas aplicável aos contratos de compra e venda com reserva de propriedade, locação financeira e locação com opção de compra, vulgo ALD;
- o contrato em apreço é um contrato de aluguer operacional, que não concede qualquer opção de compra ao locatário, sendo que o aluguer pago remunera, apenas e tão-só, o gozo do bem, não tendo qualquer vertente de amortização do preço de aquisição, como sucede na locação financeira e no ALD;
- deste modo, é-lhe aplicável o regime do art.108º do CIRE, e não o regime do art.104º daquele diploma legal;
- de acordo com o art.108º do CIRE, a declaração de insolvência não suspende o contrato, e o locador pode resolver o mesmo com fundamento em alugueres vencidos e não pagos após a declaração de insolvência;
- de acordo com a matéria de facto provada, foi o que aconteceu;
- deste modo, assiste à recorrente, nos termos do art.146º do CIRE, o direito à restituição das três viaturas objecto dos três contratos de aluguer.
Não houve contra-alegações.
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Embora não constem da sentença recorrida, os factos relevantes a considerar são os seguintes:
A- No exercício da sua actividade comercial, a A. celebrou com a R. C…………., Unipessoal, Lda, em 10-5-05, o contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor nº363/001, constante de fls 22 a 24, relativo ao veículo marca FORD, modelo TRANSIT CONNECT LONGA, com a matrícula ..-..-ZX, pelo prazo de 48 meses;
B- Após a declaração de insolvência, a R. não pagou o aluguer vencido em 5-2-06, no valor de € 453,55;
C- A A. elebrou, também, com a R. C…………, Unipessoal, Lda, em 17-6-05, o contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor nº363/002, constante de fls 27 a 29, relativo ao veículo marca RENAULT, modelo MEGANE COUPÉ CABRIOLET, com a matrícula ..-AC-.., pelo prazo de 48 meses;
D- Após a declaração de insolvência, a R. não pagou os alugueres vencidos em 20-1-06 e 20-2-06;
E- E celebrou, ainda, com a R. C…………., Unipessoal, Lda, em 26-9-05, o contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor nº363/003, constante de fls 33 a 35, relativo ao veículo marca OPEL, modelo ASTRA ENJOY CARAVAN, com a matrícula ..-AO-.., pelo prazo de 48 meses;
F- Após a declaração de insolvência, a R. não pagou os alugueres vencidos em 20-1-06 e 20-2-06;
G- Por carta registada com aviso de recepção, de 23-2-06, a A. solicitou ao Administrador da Insolvência o pagamento, no prazo de 5 dias, dos alugueres em dívida, sob pena de resolver os contratos;
H- Apesar disso, tais alugueres não foram pagos;
I- Pelo que, por carta com aviso de recepção de 4-8-06, comunicou ao Administrador da Insolvência a resolução dos contratos, solicitando a restituição das viaturas;
J- As viaturas, todavia, não foram entregues à A..
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Questões a decidir:
- natureza dos contratos celebrados entre a A. e a sociedade C…………., Unipessoal, Lda;
- efeitos da declaração de insolvência sobre aqueles contratos.
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Após qualificar os contratos celebrados entre a A. e a sociedade C…………, Unipessoal, Lda, como contratos de aluguer de veículos sem condutor, escreveu-se na sentença recorrida: “tal contrato, atenta a respectiva natureza, queda-se no âmbito do regime previsto no art.104º, nºs 2, e 3, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, que expressamente se dirige aos negócios como o vertente nos autos e que constitui estatuição de natureza imperativa e que não pode ser objecto de derrogação contratual (art.119º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas).
Uma vez celebrado contrato de locação financeira em que o insolvente assumia a posição de locatário e tratando-se de contrato bilateral, o cumprimento fica suspenso até que o Administrador declare optar pela execução ou recusar o cumprimento (art.s 104º, nº3 e 102º, nº1, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas).
Significa isto que a partir da data da sentença de declaração de insolvência não se venceram quaisquer prestações, pois o cumprimento ficou suspenso, falecendo, nesta senda, o fundamento que é tido como pressuposto desta acção.
Não sendo exigível, por suspensão do cumprimento do contrato, o pagamento das prestações, não pode falar-se em incumprimento e decorrente resolução como fonte de pedido de separação e restituição de bens apreendidos.
Incumbia, pois, à requerente alegar e provar que o Administrador da Insolvência declarou optar pela recusa de cumprimento em vez da execução do contrato (art.102º, nº1, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas), ou que lhe fixado prazo razoável para efectuar tal declaração findo o qual o silêncio equivaleria a recusa, com direito, aí sim, à separação e restituição (art.s 102º, nºs 2 e 3, e 104º, nº3, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas)”.
Como a A. não o fez, concluiu-se pela improcedência da acção.
Será assim?
Vejamos.
Os efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso vêm previstos no Capítulo IV do Título IV do CIRE – art.s 102º e ss.
Assim, o princípio geral nesta matéria vem consagrado no art.102º do CIRE, dispondo-se no seu nº1: “sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento. E acrescenta o nº2: “a outra parte pode, contudo, fixar um prazo razoável ao administrador da insolvência para este exercer a sua opção, findo o qual se considera que recusa o cumprimento”.
Por sua vez, o art.104º do CIRE, que consagra um regime especial relativamente à “venda com reserva de propriedade e operações semelhantes”, estipula no seu nº1: “no contrato de compra e venda com reserva de propriedade em que o vendedor seja o insolvente, a outra parte poderá exigir o cumprimento do contrato se a coisa já lhe tiver sido entregue na data da declaração de insolvência”. Quanto ao nº2: “o disposto no número anterior aplica-se, em caso de insolvência do locador, ao contrato de locação financeira e ao contrato de locação com cláusula de que a coisa locada se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas todas as rendas pactuadas”. E no nº3: “sendo o comprador ou o locatário o insolvente, e encontrando-se ele na posse da coisa, o prazo fixado ao administrador da insolvência, nos termos do nº2 do artigo 102º, não pode esgotar-se antes de decorridos cinco dias sobre a data da assembleia de apreciação do relatório, salvo se o bem for passível de desvalorização considerável durante esse período e a outra parte advertir expressamente o administrador da insolvência dessa circunstância”.
E foi o regime resultante da conjugação destas disposições legais que foi aplicado na sentença recorrida. Isto porque se entendeu que os contratos em causa se enquadravam no âmbito do art.104º do CIRE, ou seja, como “operação semelhante” ao contrato de compra e venda com reserva de propriedade.
Parece, todavia, que não ser o melhor entendimento.
Aquele preceito legal – art.104º do CIRE – contempla, desde logo, o contrato de compra e venda com reserva de propriedade, ou seja, aquele em que o alienante reserva para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou “até à verificação de qualquer outro evento” – art.409º do C.Civil.
Ali se prevê, igualmente, o contrato de locação financeira, ou seja, o “o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados” – art.1º do DL nº149/95 de 24 de Junho. Contrato que tem de característico, assim, a existência de uma relação trilateral ou triangular, pela interposição entre o locador e o locatário de uma terceira pessoa: o produtor ou fornecedor do bem. E no qual, por outro lado, é concedida ao locatário a faculdade de adquirir o bem locado, findo o prazo do contrato.
E contempla o preceito legal em causa, ainda, o contrato de locação, “contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição” – art.1022º do C.Civil. Tratando-se de coisa imóvel, diz-se arrendamento, e de coisa móvel, diz-se aluguer – art.1023º do C.Civil.
Trata-se, assim, de um contrato com eficácia meramente obrigacional, pelo que o locatário, findo o contrato, está obrigado a restituir a coisa locada – art.1038º, al. i), do C.Civil.
No que diz respeito ao contrato de aluguer, a lei prevê, especialmente, o contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor – DL nº354/86 de 23 de Outubro.
Mas a prática veio consagrar, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, o contrato vulgarmente designado por aluguer de longa duração, “ALD”. Contrato que, por sua vez, pode conter uma promessa de venda – ou, até, uma proposta irrevogável de venda – ocorrendo a transferência de propriedade com a celebração do contrato definitivo.
Este contrato, nesta modalidade, tem sido caracterizado, embora de forma não unânime, como “um contrato indirecto em que o tipo de referência é o aluguer e o fim indirecto é a venda a prestações com reserva de propriedade” – PEDRO PAIS DE VASCONCELOS in Contratos Atípicos, 245.
Trata-se de um contrato em que o locador recebe, não a contrapartida pela cedência do gozo do bem, mas o que pagou pelo veículo, acrescido de um lucro financeiro, valor que, no termo daquele, fica integralmente pago – ver GRAVATO DE MORAIS in Contratos de Crédito ao Consumo, 41 e ss.. Por outro lado, e diferentemente da locação financeira, na qual o locatário tem uma opção de compra, aqui, impõe-se ao locatário o dever de adquirir o bem locado, expirado o prazo contratual, em cumprimento do contrato-promessa.
Ora, o art.104º, nº2, do CIRE contempla, de facto, o contrato de locação, mas, apenas, nesta modalidade que acabámos de referir: “com a cláusula de que a coisa locada se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas todas as rendas pactuadas”.
Ou seja, é a transferência de propriedade, ou a faculdade dessa transferência, que une os três contratos ali previstos: a compra e venda com reserva de propriedade, a locação financeira e o contrato de locação. É o seu traço comum.
Por isso, porque o bem em causa, em caso de cumprimento do contrato, integrará, ou poderá integrar, a massa insolvente, aquele cumprimento suspende-se até que o administrador da insolvência declare se opta pela sua execução ou recusa o cumprimento.
Mas, se assim é, já tal regime não se justifica nos casos em que tal transferência não ocorrerá. Ou seja, naqueles casos em que, findo o contrato, o bem deva ser restituído ao seu proprietário. Como é o caso da locação.
Ora, no caso em apreço, embora se trate de contratos com a duração de 48 meses cada, não foi clausulada a transferência da propriedade dos veículos, findos os respectivos prazos contratuais, para a locatária. Antes, vem expressamente prevista a obrigação da sua restituição, após a cessação dos contratos – cláusula 23ª das respectivas cláusulas gerais – o que também decorreria do regime geral da locação, consoante já assinalámos.
Onde integrar, então, a situação em apreço?
A mesma vem, claramente, prevista no art.108º do CIRE, com a epígrafe “locação em que o locatário é o insolvente”, situação actual da locatária C……………., Unipessoal, Lda.
E dispõe o nº1 daquele preceito legal que “a declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário, mas o administrador da insolvência pode sempre denunciá-lo com um pré-aviso de 60 dias, se nos termos da lei ou do contrato não for suficiente um pré-aviso inferior”. E o nº4: “o locador não pode requerer a resolução do contrato após a declaração de insolvência do locatário com algum dos fundamentos seguintes: a- falta de pagamento das rendas ou alugueres respeitantes ao período anterior à data da declaração de insolvência; b- deterioração da situação financeira do locatário”.
Ora, resulta provado que a A. resolveu os contratos de aluguer celebrados com a sociedade C……………, Unipessoal, Lda, com fundamento na falta de pagamento dos alugueres vencidos após a data da declaração de insolvência. Em conformidade, portanto, com aquele preceito legal.
Pelo que, resolvidos os contratos, assiste-lhe o direito à separação e consequente restituição dos veículos locados.
Procede, assim, a apelação
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Acorda-se, em face do exposto, e concedendo provimento ao recurso, em ordenar a separação, e consequente restituição à A., dos veículos acima identificados, com as matrículas ..-..-ZX, ..-AC-.. e ..-AO-.. .
Custas pelos R.R..
Porto, 14 de Janeiro de 2008
Abílio Sá Gonçalves Costa
Anabela Figueiredo Luna de Carvalho
António Augusto Pinto dos Santos Carvalho