COMPENSAÇÃO
EXIGIBILIDADE JUDICIAL
Sumário

A Lei não faz depender a compensação do facto do crédito compensando estar já judicialmente reconhecido, ou seja, previamente reconhecido em Tribunal.

Texto Integral

I – RELATÓRIO:
«B………., S.A.» com sede na Rua ………., n.º .., .º, Sala ., intentou procedimento de injunção contra «C………., Ldª», com sede na Rua ………., …..., ………., Valongo, pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia global de €7.001,80, acrescida de juros de mora vencidos, no montante de €175,00, e vincendos, até efectivo e integral pagamento.
Alega, para tanto e em síntese, que, no exercício da sua actividade comercial vendeu à ré, por encomenda desta, os produtos do seu comércio que vêm descritos nas facturas que junta aos autos, todas com data de vencimento a 45 dias, pelos preços ali indicados, que a ré não pagou na sua totalidade.
Regularmente citada, a ré apresentou oposição à acção, onde conclui pela total improcedência da mesma.
Com efeito, não contestando os fornecimentos a que se referem as facturas mencionadas na petição inicial, nem o preço dos mesmos, afirma ser detentora de um crédito sobre a autora, no montante global de €9.928,57 que declara pretender compensar com o crédito que é objecto dos presentes autos.
Conclui pela procedência da excepção de compensação até ao limite do pedido da autora e sua absolvição do pedido, sem prejuízo de poder vir a exigir o remanescente do seu crédito sobre a autora em futura acção.
Foi proferido despacho saneador-sentença onde se julgou improcedente a aludida excepção peremptória de compensação deduzida pela ré e se conheceu do mérito da causa, julgando-se provada e procedente a acção e, em consequência, se condenou a ré no pedido.
Deste saneador-sentença foi interposto recurso pela ré, devidamente admitido como apelação.
A ré nas alegações de recurso apresenta as seguintes CONCLUSÕES:

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A recorrida não apresentou contra alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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2. Fundamentação
2.1. os Factos

Foram dados como provados no saneador sentença recorrido os seguintes factos, por confissão das partes e documentos:
1. A requerente forneceu à requerida, a pedido desta e para a sua actividade comercial, as máquinas, ferramentas, produtos e serviços identificados nas facturas a seguir discriminadas, todas elas emitidas nas datas dos fornecimentos respectivos:
- Factura n.º …….886, emitida em 1 de Junho de 2006, no montante global de €1.179,75;
- Factura n.º …….338, emitida em 7 de Junho de 2006, no montante global de €43,20;
- Factura n.º …….617, emitida em 12 de Junho de 2006, no montante global de €15,25;
- Factura n.º …….018, emitida em 16 de Junho de 2006, no montante global de €101,64;
- Factura n.º …….269, emitida em 21 de Junho de 2006, no montante global de €457,38;
- Factura n.º …….483, emitida em 22 de Junho de 2006, no montante global de €36,75;
- Factura n.º …….495, emitida em 22 de Junho de 2006, no montante global de €22,97;
- Factura n.º …….802, emitida em 27 de Junho de 2006, no montante global de €80,22;
- Factura n.º …….614, emitida em 6 de Julho de 2006, no montante global de €101,04;
- Factura n.º …….908, emitida em 21 de Julho de 2006, no montante global de €78,37;
- Factura n.º …….924, emitida em 24 de Julho de 2006, no montante global de €4,65;
- Factura n.º …….082, emitida em 25 de Julho de 2006, no montante global de €314,60;
- Factura n.º …….144, emitida em 25 de Julho de 2006, no montante global de €2.456,30;
- Factura n.º …….738, emitida em 2 de Agosto de 2006, no montante global de €26,20;
- Factura n.º …….986, emitida em 4 de Agosto de 2006, no montante global de €37,14;
- Factura n.º …….787, emitida em 29 de Agosto de 2006, no montante global de €105,88;
- Factura n.º …….878, emitida em 31 de Agosto de 2006, no montante global de €20,32;
- Factura n.º …….441, emitida em 11 de Setembro de 2006, no montante global de €163,35;
- Factura n.º …….477, emitida em 12 de Setembro de 2006, no montante global de €163,35;
- Factura n.º …….800, emitida em 29 de Setembro de 2006, no montante global de €438,66;
- Factura n.º …….822, emitida em 29 de Setembro de 2006, no montante global de €20,32;
- Factura n.º …….844, emitida em 29 de Setembro de 2006, no montante global de €576,93;
- Factura n.º …….230, emitida em 4 de Outubro de 2006, no montante global de €280,43;
- Factura n.º …….232, emitida em 4 de Outubro de 2006, no montante global de €20,32;
- Factura n.º …….051, emitida em 26 de Outubro de 2006, no montante global de €18,98;
- Factura n.º …….528, emitida em 2 de Novembro de 2006, no montante global de €400,23;
Tudo conforme documentos juntos a fls. 70 a 95, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
2. Em cada uma dessas facturas constava como data de vencimento. 45 dias após respectiva emissão;
3. A autora emitiu as três notas de crédito a favor da ré que estão juntas a fls. 96, 97 e 98 – com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido, respectivamente, nos valores de €101,04, €36,75 e €21,67;
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I- DO RECURSO:
Apreciemos o recurso tendo em conta que:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – artºs 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil;
Nos recursos apreciam-se questões e não razões;
O recurso está limitado pela questão e decisão recorrida.
A única questão que importa decidir consiste em saber se o saneador-sentença recorrido apreciou devidamente a compensação de créditos.
Vejamos.
No artº 3º CPC estão consagrados dois princípios fundamentais do processo civil português vigente:
- o princípio do dispositivo, desenvolvido depois pelas previsões dos artºs 264º, nº1 (iniciativa e impulso processual), 467º, nº 1, al. d) (necessidade de formular pedido), 660º, nº2, 664º e 666º, al.d) e e) (disponibilidade do objecto do processo) e 661º (limites da condenação), entre outros normativos do Código de Processo Civil, que se traduz no ónus do impulso processual inicial pelo autor ou reconvinte e o ónus da alegação e prova do material fáctico da causa.
-o princípio do contraditório, que se traduz no direito de defesa do réu/demandado ou do reconvindo.
No desenvolvimento do princípio dispositivo, cabe ao autor, na petição inicial em que propõe a acção, deduzir a sua pretensão, ou seja formular o pedido, e expor os factos concretos donde emerge o direito que pretende ver tutelado, podendo, ainda, indicar as razões de direito em que fundamenta essa pretensão, ou seja formular o pedido e apresentar a respectiva causa de pedir, nos termos dos artºs 151º, 467º, n1, al. d) e e) e 498º, nºs 3 e 4, CPC.
O artº 268º CPC consagra o princípio da estabilidade da instância, no sentido de que “citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei”
Quanto às alterações objectivas (pedido e causa de pedir), prevê o artº 272º CPC, em princípio, a possibilidade de acordo das partes e o artº 273º CPC prevê possibilidade de alteração ou ampliação da causa de pedir na réplica ou se for consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor.
Evidentemente que, quanto às questões de conhecimento oficioso do tribunal que emanem dessa causa de pedir e que ainda não foram conhecidas nos autos, pode sempre o tribunal delas conhecer até ao trânsito em julgado da decisão, nos termos do artº 660º, nº 2, 664º, 671º, nº 1 e 673º, todos do CPC.
Dispõe o artº 510º, nº 1 do Código de Processo Civil vigente, redacção do DL 180/96, de 25.09, aplicável a este processo que:
1. Findos os articulados, se não houver que proceder à convocação da audiência preliminar, o juiz profere, no prazo de 20 dias, despacho saneador destinado a

b)Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória”.
No regime do Código de Processo Civil, redacção do DL nº 47 129, de 28.12.1961 era entendimento pacífico na jurisprudência o expresso no Ac. RL, de 24.7.1981: BMJ, 314.°-361, no sentido que “As expressões «necessária confiança» e «decisão conscienciosa», contidas no art. 510º, nº 1,alínea c), do Cód. Proc. Civil, apontam claramente para o entendimento de que só deve conhecer-se do pedido se o processo contiver, seguros, todos os elementos que possibilitem decisões segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não somente aqueles que possibilitem a decisão de conformidade com o entendimento do juiz do processo.
Assim, se uma dessas soluções impuser prosseguimento do processo em ordem ao apuramento dos factos alegados, não pode proferir-se decisão sobre o mérito de causa.
Tal entendimento continua a ser pacífico na jurisprudência actual, bem como na doutrina.
Conforme ensina o Prof.Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, vol 2º, pág. 373, “O juiz conhece do mérito da causa no despacho saneador, total ou parcialmente, quando para tal, isto é, para dar resposta ao pedido ou à parte do pedido correspondente, não haja necessidade de mais provas do que aquelas que já estão adquiridas no processo”.
Caso contrário, deve o juiz do processo em processo ordinário proceder á selecção da matéria de facto assente e á da base instrutória que interesse á boa decisão da causa, nos termos do artº 511º, nº1, CPC.
Acrescenta o Prof. Lebre de Freitas, na obra citada, pág. 381, “A selecção – quer dos factos assentes, quer dos controvertidos – é feita tendo em conta as várias soluções plausíveis da questão de direito. Quer isto dizer que o juiz não pode limitá-la aos factos essenciais, ou relevantes, para a solução daquelas questões que, no seu entendimento., são pertinentes: seja qual for a sua visão da que deva ser a decisão jurídica da causa e o caminho para a atingir, o juiz tem de seleccionar também os factos que interessem a outras vias de solução possível do litígio, tidas em conta as posições assumidas pelas partes quanto à fundamentação jurídica das pretensões e excepções e as correntes doutrinárias e jurisprudenciais formadas em torno dos tipos de questão que elas levantem”.
Cremos que esta sucinta exposição, à laia de introdução, será útil para fundamenta a decisão do recurso que se segue.
Ora, no saneador o tribunal a quo considerou que o processo estava isento de nulidades, excepções dilatórias e conheceu da excepção peremptória de compensação deduzida pela ré na oposição, julgando-a improcedente por e conheceu do pedido da autora por via da acção, concluindo pela sua procedência.
Decidiu pois sobre o mérito da causa.
Para tal considerou a sentença recorrida que, no caso, a compensação não era admissível por falta do requisito da exigibilidade do crédito invocado pela ré sobre a autora.
Invoca a sentença recorrida, em defesa dessa tese, a anotação ao artº 847º do Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela e Ac. RL de 24.11.1992 e de 21.10.1999 e RP de 21.02.1994 e 19.01.2006, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Ora, diga-se que não é defendida essa tese nem pelos referidos professores de direito, nem nos aludidos arestos a situação decidida é semelhante à dos presentes autos.
Situações semelhantes à dos autos são as relatadas nos arestos do STJ, de 11.11.03 e de 22.11.1995, disponíveis em www.dgsi.pt nºs STJ 200311110030286 e 199511220868491, de onde resulta que a reconvenção foi admitida.
Diga-se, aliás que a tese defendida pelo Ac. RP de 19.01.2006, desta Secção, foi revogada em recurso subsequente do STJ, segundo informação do respectivo relator que, aliás, não perfilha já essa tese.
O thema decidendum centra-se na questão de saber se devem ou não dar-se por preenchidos os requisitos da compensação de créditos invocada pela Ré, ora recorrente.
Recorde-se que A R. não satisfez oportunamente a obrigação de pagar o preço da mercadoria que lhe foi vendida pela autora estando em dívida com a quantia global de €7.001,80, a que acrescem juros de mora.
A R. pretende exonerar-se dessa obrigação compensando-a com o alegado crédito no montante €9.928,57, que corresponde à soma dos prejuízos sofridos pela ré em virtude da resolução de contratos de compra e venda de várias máquinas e acessórios industriais que adquiriu à autora por apresentarem defeitos, que reclamados não foram reparados em devido tempo e reparação tardia de outros.
Tais contratos de compra e venda são outros que não os invocados na petição inicial.
Conforme estatui o art. 847º do C. Civil, no seu nº 1, "quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor".
A compensação é o meio de o devedor se livrar da obrigação, por extinção simultânea de crédito equivalente de que disponha sobre o seu credor - conf. Antunes Varela, in "Das obrigações em Geral", vol II, 7ª ed, pág.197.
Segundo este autor, "logo que verificados determinados requisitos, a lei prescinde do acordo de ambos os interessados para admitir a extinção das dívidas, compensáveis, por simples imposição de um deles ao outro. Diz-se, quando assim é que as dívidas (ou os créditos) se extinguem por compensação legal (unilateral)" - (sic).
Requisitos esses que os arts. 847º a 856º do Código Civil, estabelecem como sendo: a existência de dois créditos recíprocos; a exigibilidade do crédito do autor da compensação; a fungibilidade e homogeneidade das prestações; a não exclusão da compensação por lei; a declaração da vontade de compensar.
Declaração essa de carácter receptício (art. 224º do C. Civil), configuradora de um direito potestativo a exercitar, quer por via judicial quer por via extrajudicial.
Nos termos do nº 3 do artº 847º, do Código Civil, a iliquidez da dívida não impede a compensação.
Finalmente, de acordo com o disposto no artº 847º, nº 2, Código Civil, se as duas dívidas não forem de igual montante, pode dar-se a compensação na parte correspondente.
É assente doutrinal e jurisprudencialmente que, sendo a compensação causa extintiva da obrigação, pode ser invocada como excepção peremptória, caso o contra crédito do réu seja igual ou inferior ao crédito peticionado pelo autor ou em sede de reconvenção caso seja superior, devendo em sede de sentença decidir-se o que for compensável e no restante condenar o autor no que for devido ou relegar para liquidação em execução de sentença no caso de não ser possível liquidar a obrigação na respectiva acção de acordo com o disposto no artº 661º, nº 2 CPC.
Ora, na situação dos autos verificam-se todos os requisitos legais da invocada compensação, nomeadamente a exigibilidade judicial da obrigação da autora para com a ré de acordo com o alegado pela ré em sede de excepção peremptória, atento o disposto no artº 493º, nºs 1 e 3 CPC, tendo-se tornado efectiva a compensação com a notificação da oposição à autora, nos termos do artº 848º, nº 1, Código Civil.
A Lei não faz depender a compensação do facto desse crédito estar já judicialmente reconhecido, ou seja, previamente reconhecido em Tribunal - o que, aliás, não faria qualquer sentido e só se compreenderia através de uma abusiva e errada interpretação da função primordial dos tribunais e do princípio de economia processual: se o direito de crédito da Recorrente estivesse já reconhecido judicialmente então tê-lo-ia executado judicialmente não fazendo sentido que estivesse a aguardar a propositura da acção pela devedora (autora) para contrapor o seu crédito por compensação.
Dessa interpretação resultaria até que não poderia haver lugar a reconvenção no caso de o contra crédito do réu ser superior ao crédito do autor, visto que aquele estaria já declarado judicialmente.
No sentido por nós defendido veja-se o Ac RP de 09.05.07, JTRP00040344.
Como os factos alegados pela ré em que assenta a invocada compensação formulada em termos de excepção peremptória foram impugnados especificadamente pela autora na resposta de 09.05.2007, encontram-se controvertidos e interessam à boa decisão da causa.
Daí que deva ser elaborada base instrutória relativamente a tal factualidade, nos termos do artº 511º, nº 1, CPC, em sede de audiência preliminar ou não nos termos dos artºs 508º-A e 508º-B, CPC ex vi artº 7º, nº 2, DL nº 32/2003, de 17.02, redacção do DL107/2005, de 01.07.
Carece esta Relação de todos os elementos de prova sobre essa matéria de facto controvertida para poder proferir decisão de mérito.
Do exposto resulta que entendemos que o processo deve prosseguir para julgamento, com a fixação dos factos assentes e da base instrutória e a final ser decidido do mérito da acção e da excepção peremptória de compensação.
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3- DECISÃO:
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso de apelação da ré e, consequentemente, revoga-se o despacho saneador-sentença n aparte que julgou improcedente a excepção peremptória de compensação e conheceu do mérito da acção e ordena-se que o tribunal a quo proceda à fixação da pertinente factualidade assente e base instrutória, prosseguindo o processado os devidos termos posteriores.
Sem custas.

Porto, 14-02-2008
Manuel Lopes Madeira Pinto
Carlos Jorge Ferreira Portela
Joana Salinas Calado do Carmo Vaz