LOCAÇÃO FINANCEIRA
IMÓVEIS
DESPESAS DE CONDOMÍNIO
Sumário

1. Na locação financeira, o locatário, enquanto não se tornar dono da coisa locada, tem apenas o direito de gozo da coisa e todos os deveres que o locador lhe impõe; o titular do direito de propriedade é o locador, que conserva em si o poder de exercer sobre a coisa todos os direitos inerentes a tal qualidade, com a ressalva dos inerentes ao direito de gozo cedido ao locatário.
2. Num quadro em que a obrigação de pagar as despesas de condomínio cabe ao locatário, seja por transferência da lei (locação financeira), seja por transferência do locador (arrendamento urbano), a Assembleia de Condóminos, se lhe for comunicada a transferência dessa obrigação, pode exigir o pagamento quer ao locatário, quer ao locador; todavia, o proprietário locador só fica desonerado da dívida se e quando o locatário pagar.

Texto Integral

Recurso n.º 1567/08-2
1.ª Secção Cível
NUIP …../04.5TVPRT-A

Acordam no Tribunal da Relação do Porto.

I

1. B…………….., S.A., deduziu oposição à execução para pagamento de quantia certa que lhe foi movida pelo CONDOMÍNIO C…………….. (Condomínio do prédio da Rua ….. …. a …. e Rua da …… ….) e que corre termos no ….º Juízo de execução do Porto com o n.º …../04.5TVPRT, alegando a sua ilegitimidade passiva, porque, segundo diz, as fracções a que se reporta a dívida exequenda estavam locadas, no regime de leasing, à D…………….., S.A., que é a quem compete pagar as despesas de condomínio das fracções locadas, e, para além disso, impugnou os valores peticionados, com o fundamento de que desconhece se estão em dívida, e ainda os juros de mora, por não se perceber o seu cálculo.

O exequente contestou, defendendo que é o proprietário das fracções individuais que responde perante o condomínio pelo pagamento dos encargos comuns do prédio e, desse modo, concluindo pela legitimidade passiva da oponente, na qualidade de proprietária das fracções a que respeitam as prestações em dívida.

No despacho saneador foi considerado que o processo continha todos os elementos necessários à decisão de mérito, pelo que foi proferida sentença que julgou a oponente parte legítima para a execução, como devedora das prestações reclamadas pelo exequente, mas reduziu a quantia exequenda para o montante de 45.268,72€, a título de capital, multa e juros vencidos até 30-12-2003, acrescida ainda dos juros de mora que se vencessem após aquela data, à taxa legal.

2. Não se conformando com essa decisão, a oponente interpôs o presente recurso, cujas alegações concluiu do seguinte modo:

1º. Foi celebrado um contrato de locação financeira imobiliária, mediante o qual foi conferido à locatária o gozo do imóvel – por si escolhido – objecto da locação.

2º. A locação financeira tem por finalidade financiar a "aquisição" do bem previamente escolhido pelo locatário, que dele retira as utilidades económicas (mediante o seu gozo e fruição) que o determinaram a escolher.

3º. A alínea b) do art. 10.º do Dec. Lei 149/95, de 24 de Junho, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei n.º 265/97, de 21 de Outubro, estabeleceu como obrigação do locatário "pagar, em caso de locação da fracção autónoma, as despesas correntes necessárias à função das partes comuns de edifício e aos serviços de interesse comum".

4º. O regime legal do DL 149/95, de 24/6, alterado pelo 265/97, de 2/10, em vigor à data da celebração dos contratos, é cogente, imperativo, por as suas normas serem gerais e abstractas, não tendo eficácia meramente obrigacional, antes se impondo a terceiros, logo, "in casu" ao condomínio;

5º. O regime legal do citado DL 265/97, de 2/10, é especial em relação ao regime geral previsto no art. 1424.º do CC, afastando assim a aplicação deste normativo.

6º. Face ao regime jurídico da locação financeira, – alínea b) do art. 10.º do Dec. Lei 149/95 – o pagamento das despesas de condomínio da fracção, dada em locação financeira, é da exclusiva responsabilidade da locatária.

7º. Ao não entender assim, a sentença da 1.ª instância fez uma incorrecta interpretação da disposição legal identificada na conclusão anterior.

Pretende, em consequência, que se revogue a decisão recorrida.

2.1. Contra-alegou o exequente, pronunciando-se no sentido de que:

1) O entendimento proposto pela Apelante, implicaria que enquanto o dono das fracções recebia as rendas e enriquecia com os proventos que a locação lhe proporcionava, eram os restantes condóminos que teriam que suportar os custos de o dono ter escolhido mal o seu locatário;

2) Do vertido no DL 149/95 não se pode retirar qualquer apoio à tese sufragada pela Apelante mas, apenas e tão só, que o pagamento das despesas comuns pode ser exigido ao locatário financeiro, designadamente pelo locador. Este, porém, não fica desobrigado de tal pagamento, dado que o referido diploma em nada derrogou o vertido no art. 1424.º do Código Civil.

3) Até porque o locador só deixará de ser o proprietário do imóvel locado no final do contrato de locação se e só se o locatário exercer o correspondente direito de opção de compra. E neste caso até sucede que o contrato de locação respeitante às fracções em apreço foi rescindido, o que fez com que desaparecesse o aludido direito de opção de compra.

Conclui que deve ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.

3. Sendo o objecto do recurso delimitado pelo teor das conclusões que o recorrente extrai das suas alegações, como se infere do disposto nos arts. 684.º, n.ºs 2 e 3, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, uma única questão se suscita no presente recurso, que consiste em apreciar se é o oponente que responde pelas prestações do condomínio que constituem a dívida exequenda.

Cumpridos os vistos legais, cabe decidir.


II

4. Na sentença recorrida foram tomados em conta os seguintes factos provados:

1) A executada foi até 07-11-2002 proprietária das fracções autónomas designadas pelas letras VG, VH, VI, VJ, AAG, AAH, AAI, AAJ, FU, FV, FX, GR, GS, GT, GU, GV, IA, IB, IC, ID, IE, IS, IT, IU, do prédio constituído em propriedade horizontal sito na Rua ……… …. a …. e Rua ….., ….., Porto, com a permilagem num total de 51,40.

2) A executada, apesar de interpelada para o efeito, não pagou as quotas das despesas de condomínio relativas a essas fracções autónomas respeitantes a todos os trimestres do ano de 2001 e 2002, não tendo pago também atempadamente as quotas do ano de 2000 respeitantes às preditas fracções.

3) As quotas do ano de 2000 respeitantes às citadas fracções autónomas foram do montante de 15.793,14€, conforme o teor da deliberação da Assembleia de Condóminos de 04-01-1999, que aprovou o orçamento para 1999, o qual vigorou também em 2000, junta a fls. 9 a 10 dos autos de execução cujo teor aqui se dá por reproduzido.

4) As quotas do ano 2001 respeitantes às mesmas fracções foram do montante de 14.212,10€, conforme o teor da acta de fls.12 a 32 da execução, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

5) As quotas do ano 2002 respeitantes às mesmas fracções foram do montante de 15.484,25€, conforme o teor do documento junto a fls. 33 a 50 da execução, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

6) Dá-se por integralmente reproduzido e integrado o teor do Regulamento do Condomínio junto a fls. 50 a 67 da execução, sendo que tais quotas deviam ser liquidadas até ao dia 8 de cada mês do respectivo trimestre.

7) As preditas fracções estiveram por todo o período a que se reportam as quotas e despesas de condomínio peticionadas, dadas de locação financeira à sociedade D…………….. S.A., conforme o teor do contrato junto a fls. 53 a 84 destes autos cujo teor aqui se dá por reproduzido.

8) Por força do Regulamento do Condomínio, atento o artigo 17.º, o condómino que se constituir em mora fica sujeito ao pagamento da multa fixada em 25% da quantia em débito a que acresce os juros de mora até efectivo pagamento.


III

5. Perante esta factualidade, importa apreciar a questão que a recorrente suscita, a qual, embora apresentada como se tratando da sua (i)legitimidade passiva para a execução, afigura-se consubstanciar antes uma questão de (i)legitimidade material, e não apenas processual, que é saber quem responde pelas prestações do condomínio em dívida, relativas às fracções autónomas de que a executada é proprietária, mas que se encontravam locadas no regime de “leasing”.

É que, de acordo com o disposto no n.º 1 do art. 55.º do Código de Processo Civil, “a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor”. O que quer dizer que a legitimidade processual relativa às acções executivas resolve-se em função do que constar do título executivo: tem legitimidade activa quem no título figurar como credor e tem legitimidade passiva quem no título figurar como devedor.

Neste caso, o título executivo é constituído pela acta da reunião da assembleia de condóminos, lavrada e assinada nas condições referidas no n.º 1 do art. 1.º do Decreto-Lei n.º 268/94, de 25/10, que deliberou sobre o montante das contribuições a pagar pelos condóminos, relativas às despesas de conservação e fruição das partes comuns do prédio em regime de propriedade horizontal. A que a lei confere a força de título executivo para efeitos de cobrança coerciva da quota-parte de cada condómino que deixar de pagar (art. 6.º do referido decreto-lei). A força executiva desta acta impõe-se em relação a todos os condóminos, quer tenham estado presentes ou não na dita reunião, e quer tenham votado favoravelmente, ou não, a deliberação aprovada (art. 1.º, n.º 2, do mesmo decreto-lei e arts. 1424.º e 1432.º, n.ºs 3 e 4, do Código Civil).

Por condómino entende-se “o proprietário” de cada fracção autónoma individual. Di-lo expressamente o n.º 1 do art. 6.º do Decreto-Lei n.º 268/94: “constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte”; e di-lo o n.º 1 do art. 1420.º do Código Civil: “condómino é (o) proprietário … da fracção que lhe pertence”.

Assim, face ao que consta da acta que nesta execução constitui o título executivo e não se colocando dúvida alguma de que a recorrente é a proprietária de todas as fracções a que respeitam as prestações em dívida, ficaria resolvida a questão da sua legitimidade passiva, perante o disposto no art. 55.º n.º 1 do Código de Processo Civil.

Só que a questão que a recorrente coloca está aquém desse aspecto formal da lide e tem que ver com a titularidade da obrigação de pagar essas despesas de condomínio quando as fracções individuais estão cedidas a terceiros no regime de locação financeira. Trata-se, assim, de uma questão de direito substantivo, e não de um mero pressuposto processual, que consiste em determinar quem é o devedor das prestações em dívida.

6. O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre esta questão (ac. de 19-03-2002, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 01A3861), precisamente em recurso de revista interposto de acórdão desta Relação, e analisou-a e decidiu-a do seguinte modo:

«Entendemos que, independentemente da qualificação jurídica a atribuir à obrigação do pagamento de despesas comuns por não condóminos, arrendatário ou locatário financeiro, a solução não pode deixar de ser a de responsabilizar o condómino (se só ele ou também o arrendatário ou o locatário financeiro é problema que não tem de ser aqui e agora apreciado).
Na verdade a sua obrigação de pagamento despesas comuns resulta tanto do disposto no art. 1424.º do Código Civil como do disposto no art. 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de Outubro, sendo certo que o número dois do artigo 1.º deste diploma estatui que "as deliberações devidamente consignadas em acta são vinculativas tanto para os condóminos como para os terceiros titulares de direitos relativos às fracções".
Isto é, os preceitos legais atinentes, mesmo sabendo-se que o ordenamento jurídico já impõe, directamente ou por estipulação das partes, a obrigatoriedade de os locatários suportarem as despesas do condomínio, não exonera da sua obrigação os proprietários locadores.
Nem podia ser de outra maneira.
Com efeito as despesas do condomínio têm muito a ver com a manutenção, conservação e reparação dos imóveis.
Nesta perspectiva, o proprietário é o principal interessado em que essas despesas se realizem e daí que a lei lhe imponha, em primeira mão, o dever de contribuir para essas despesas.
Por outro lado, se se aceitasse o princípio de que, havendo um outro responsável pelo despesas comuns, para além do proprietário condómino, este ficaria liberto daquele dever, isso seria colocar, em muitos casos, em situação difícil ou mesmo irremediável a administração do condomínio.
Basta equacionar a hipótese de os arrendatários ou locatários financeiros não cumprirem aquelas obrigações ou estarem impossibilitados de mesmo coercivamente as cumprirem.
O próprio preâmbulo do Decreto-Lei n.º 268/94, já referido, esclarece que "as regras aqui consagradas ... têm o objectivo de procurar soluções que tornem mais eficaz o regime da propriedade horizontal, facilitando simultaneamente o decorrer das relações entre os condóminos e terceiros". E a eficácia do regime da propriedade horizontal e respectiva administração passa por continuar a responsabilizar os condóminos pelas despesas comuns, independentemente de igual responsabilidade para com ele ou mesmo para com o condomínio caber a terceiros.
Entende-se, pois, que o condómino de fracção autónoma dada em locação financeira é parte legítima na execução contra ele movida pela administração do condomínio a fim de obter o pagamento das despesas comuns proporcionais à quota parte da respectiva fracção.»

O acórdão da Relação do Porto que foi confirmado por este acórdão do Supremo Tribunal de Justiça é de 04-06-2001, está disponível em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ proc. n.º 0150683, e considerou que as disposições dos artigos 1424.º, n.º 1, do Código Civil, que impõe aos condóminos a obrigação do pagamento das despesas comuns, e do artigo 10.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 149/95, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 Outubro, que defere para o locatário a obrigação de pagar essas despesas, não colidem entre si por terem natureza diferente: a primeira tem natureza real, impondo-se “erga omnes”, dada a conexão funcional entre a obrigação e o titular do direito real (é obrigado quem é titular do direito real); a segunda reveste natureza obrigacional, sendo apenas vinculativa “inter partes”. De modo que, mesmo tratando-se de confrontar uma norma geral (a do art. 1424.º do Código Civil) com uma norma especial (a do art. 10.º do DL 149/95), as duas normas de modo algum se excluem, antes se conciliam e complementam entre si.

Contra esta posição, a recorrente invoca as decisões proferidos nos acórdãos também desta Relação de 20-12-2001 e 14-03-2005 (ambos em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ procs. n.º 0131742 e 0457272, o primeiro apenas sumariado), que consideraram que “no regime de propriedade horizontal, em que a fracção seja objecto de contrato de locação financeira, a responsabilidade fixada no artigo 1424.º do Código Civil para o condómino recai, nesse caso, sobre o locatário e não sobre o locador”, com o fundamento de que “o regime legal do DL 265/97 … é cogente, imperativo, por as suas normas serem gerais e abstractas, não tendo eficácia meramente obrigacional, antes se impondo a terceiros, logo, … ao condomínio” e “o regime legal do … DL 265/97 … é especial em relação ao art. 1424° do CC, afastando a aplicação deste normativo”.

Ora, em primeiro lugar, e ressalvado o devido respeito, não se percebe o porquê da relação entre o carácter geral e abstracto das normas do Decreto-Lei n.º 265/97 e a ilação sobre a sua eficácia imperativa em relação a terceiros. O que, de resto, até colide, ou pelo menos, não casa com as citações doutrinárias que ali são referidas.

Tal sucede quando, citando o Prof. Henrique Mesquita, (em A Propriedade Horizontal no Código Civil Português, RDES, XXIII, 130), reconhece que “a obrigação de contribuir para estas despesas é uma típica obrigação propter rem – uma obrigação decorrente não de uma relação creditória autónoma, mas antes do próprio estatuto do condomínio” e, por isso, “mesmo quando as obrigações que impendem sobre os condóminos resultem do título constitutivo (e não directamente da lei), a sua força vinculativa decorre da eficácia real do estatuto do condomínio e não de um acto de aceitação por parte daqueles”. Efectivamente assim é, de tal modo que a obrigação de contribuir para as despesas comuns não radica nem depende da efectiva utilização das fracções individuais, mas da mera qualidade de ser titular dessas fracções (cfr. ac. do STJ de 24-02-2005, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 05B094; ac da Relação do Porto de 11-10-2001, em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ proc. n.º 0131262; e ac. da Relação de Lisboa de 03-11-2005, em www.dgsi.pt/jtrl.nsf/ proc. n.º 7805/2005-8). Basta pensar nos casos dos apartamentos adquiridos para uso temporário ou sazonal, ou que se encontram fechados por os respectivos donos se encontrarem ausentes, cujos donos se mantêm vinculados à contribuição para os encargos comuns do prédio ao longo de todo o ano, e não apenas nos períodos em que utilizam os apartamentos.

O mesmo sucede quando, citando o Prof. Menezes Cordeiro (em Manual de Direito Bancário, 1998, p. 550-553), também diz que “a locação financeira é um contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, … (que) postula uma intervenção de três sujeitos: o fornecedor, o locador e o locatário”, pelo que, “tomando-a, na sua globalidade, a locação financeira é um contrato oneroso, sinalagmático, bivinculante, temporário mas originando relações duradouras e de feição financeira”. Se, como aqui se diz (e nós concordamos), a locação financeira é um “contrato bivinculante”, em que intervêm três sujeitos (o fornecedor, o locador e o locatário), que tem por objecto “a cedência do gozo temporário da coisa mediante retribuição” — a que acresce apenas a particularidade de, findo o contrato, o locatário ter direito a adquirir para si a coisa locada mediante o pagamento de um valor residual (art. 10.º, n.º 2, al. e), do DL. 149/95, de 24/06) — donde, então, emerge a eficácia erga omnes que se pretende atribuir ao regime legal deste contrato? Não é também verdade que o regime legal do contrato de locação regulado nos arts. 1022.º e seguintes do Código Civil, é, na sua globalidade, constituído por normas, gerais e abstractas, imperativas? E, todavia, não consta que se lhe atribua eficácia erga omnes.

Ora, as citações referidas não deixam dúvidas de que o locatário, mesmo no regime de locação financeira, enquanto não se tornar dono da coisa locada (o que até pode nunca vir a acontecer), tem apenas o direito de gozo da coisa e todos os deveres que o locador lhe impõe. Não mais do que isso. O titular do direito de propriedade é o locador, que conserva em si o poder de exercer sobre a coisa todos os direitos inerentes à sua qualidade de proprietário, com a ressalva dos inerentes ao direito de gozo cedido ao locatário (cfr. arts. 9.º e 10.º do DL. 149/95). Por que é que então não haveria de continuar a responder perante terceiros pelos deveres que cabem ao proprietário, independentemente do que convencionou no contrato de locação?

Em segundo lugar, a posição que a recorrente pretende ver sufragada também não esclarece em que é que os dois regimes dos arts. 1424.º do Código Civil e 10.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/06, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 265/97, de 21/10, se sobrepõem e não se complementam, ou se excluem e não se conciliam.

Por um lado, se é certo que o regime legal do contrato de locação financeira que incida sobre fracção autónoma, atribui ao locatário a obrigação de pagar as despesas de condomínio, não é menos certo que não impede que as partes convencionem de forma diferente. É, pois, um regime negociado e acordado “inter partes”, que apenas a estas diz respeito e vincula, e que não interfere nem pode interferir com os direitos de terceiros totalmente alheios a esse contrato. Inexistindo, neste aspecto, qualquer norma legal que o distinga da globalidade dos outros contratos, e designadamente do contrato de locação regulado no Código Civil, que lhe serve de paradigma (como, aliás, se depreende da citação que a recorrente faz de Pedro Romano Martinez, em Contratos Comerciais, p. 61).

Por outro lado, se é certo que o n.º 1 do art. 1424.º do Código Civil permite que a obrigação de pagar as designadas “despesas de condomínio” seja transferida pelo proprietário para um terceiro, como também se prevê no regime do arrendamento urbano (arts. 40.º e 41.º do RAU e art. 1078.º do Código Civil na redacção actual), isso não significa que o proprietário fique desvinculado dessa obrigação perante a Assembleia de Condóminos. O que só se compreenderia em caso de aceitação por esta da transmissão da dívida para o locatário, nos termos previstos no art. 595.º, n.º 2, do Código Civil. Porém, sendo a Assembleia de Condóminos totalmente alheia ao contrato e à transmissão da obrigação para o locatário, mesmo que esta transmissão decorra da lei, o proprietário só fica desonerado da dívida se e quando o locatário pagar. Enquanto o locatário não pagar, o proprietário não fica desonerado da obrigação e a Assembleia de Condóminos pode exigir-lhe o pagamento das prestações em dívida.

Qualquer outro entendimento deixaria os restantes condóminos numa posição extraordinariamente enfraquecida e onerada pelos efeitos de um contrato em que não intervieram e a que são totalmente alheios, já que, se não lhes fosse permitido exigir do proprietário da fracção locada as contribuições para as despesas do condomínio que por lei lhe cabe pagar, ficariam totalmente desprotegidos da garantia de cumprimento que neste caso é assegurada pelo valor da própria fracção. Em evidente desigualdade com os restantes condóminos, que teriam que ser eles a assumir os encargos que por lei cabem às fracções locadas mas que o locatário não pagou.

Assim, concluindo: num quadro em que a obrigação de pagar as despesas de condomínio cabe ao locatário, seja por transferência da lei, como sucede no contrato de locação financeira, seja por transferência do locador, como pode suceder no arrendamento urbano, a Assembleia de Condóminos, se lhe for comunicada a transferência dessa obrigação, pode exigir o pagamento quer ao locatário quer ao proprietário. Todavia, o proprietário locador só fica desonerado da dívida se e quando o locatário pagar.

O direito, como regulador de conflitos entre particulares, só faz sentido se conduzir a soluções socialmente equilibradas e justas. E ninguém de boa fé pode aceitar como socialmente equilibrada e justa uma solução em que o proprietário de um conjunto elevado de fracções pertencentes a um prédio no regime de propriedade horizontal pretende eximir-se ao pagamento dos encargos de condomínio relativos a essas fracções sob o pretexto de que estavam locadas no regime de locação financeira e o seu pagamento cabia ao locatário, quando se constata que: foi o proprietário dessas fracções que, totalmente à margem do conhecimento e do interesse dos restantes condóminos, negociou e contratou com o locatário que só ele aceitou; foi o proprietário quem daí retirou todos as vantagens económicas e quem recebeu, em seu proveito exclusivo, todos os lucros financeiros que tal contrato proporcionou; enquanto vigorou o contrato, não cuidou o proprietário de saber se o seu locatário pagava ou não os encargos de condomínio que a lei impõe a todos os condóminos; e foi também o proprietário quem, no seu exclusivo interesse e à margem de qualquer intervenção da Assembleia de Condóminos, resolveu por termo a esse contrato.

Como apropriadamente diz o exequente, a propósito da pretensão da recorrente, o proprietário das fracções recebia para si todas as vantagens que o contrato de locação lhe proporcionou ao longo desses anos; os restantes condóminos ficavam com os ónus resultantes do incumprimento do contrato pelo locatário, designadamente o ónus de terem que suportar as consequências de o proprietário ter escolhido mal o seu locatário. O que resume o paradoxo de tal interpretação.


IV

Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente a apelação e confirma-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante (art. 446.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


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Relação do Porto, 06-05-2008
António Guerra Banha
Anabela Dias da Silva
Maria do Carmo Domingues