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ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA DA VÍTIMA
Sumário
Não é previsível que surja inopinadamente um peão numa via com três “hemi-faixas” no sentido Sul-Norte e outras três no sentido Norte-Sul, encontrando-se estes dois sentidos separados por blocos de cimento colocados de forma contínua e cuja finalidade é impedir qualquer ponto de passagem entre os mesmos, onde não existe qualquer local devidamente assinalado para o atravessamento de peões.
Texto Integral
Recurso nº 5922/07-1.
1ª Secção Criminal.
Processo nº …/05.1TDPRT.
*
Acordam em audiência de julgamento na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I
Nos autos de processo comum nº …/05.1TDPRT do .º Juízo Criminal do Porto, em que é arguido B………., solteiro, canalizador, nascido a 24.10.1982, filho de C………. e D………, natural da freguesia de .........., Concelho de ………. e residente na Rua ………. n.º.. ..º esquerdo, …., Caldas da Rainha;
foi proferida a seguinte DECISÃO:
A) Face ao exposto, julgo totalmente improcedente a Acusação Pública, por não provada, e consequentemente absolve-se o arguido B……… da prática de um crime de Homicídio por negligência p.p. pelo artº 137 n.º1 do Cod. Penal assim como da prática das contra-ordenações p. p. pelos art.º24 n.º1 e 2, 25 n.º1 j), n.º2, art.º27, todos do C. Estrada.
B) Pelo exposto, julgo ainda totalmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido nos autos, assim como o Pedido de Reembolso deduzido pelo ISSS/CNP, absolvendo a demandada “Companhia de Seguros E………., SA”, de todo o peticionado.
2.
Não se conformando com o teor desta sentença, dela recorreu, para este Tribunal da Relação do Porto a assistente F………. .
Formula as seguintes conclusões:
1º - Vem o presente recurso interposto de toda a matéria da sentença absolutória proferida nos autos supra identificados por se entender que se impõe a revogação da decisão do tribunal “a quo” e, consequentemente, seja proferido Acórdão condenatório.
2º - AS NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS (art. 412º, nº 2, alínea a) do C.P.P.) na sua douta sentença, o tribunal «a quo» violou os comandos legais constantes dos art. 137º nº 1 do Código Penal e dos arts. 24º nº 1 e 2, 25º nº 1 j), nº 2 e 27º todos do Código da Estrada,
3º - O SENTIDO EM QUE, NO ENTENDIMENTO DA RECORRENTE, O TRIBUNAL RECORRIDO INTERPRETOU CADA NORMA OU COM QUE A APLICOU E O SENTIDO EM QUE ELA DEVIA TER SIDO INTERPRETADA OU COM QUE DEVIA TER SIDO APLICADA (art. 412º, nº 2, alínea b) do C.P.P.) é o seguinte: no nosso entendimento, nunca poderia o tribunal «a quo», aquando da sua tarefa de subsunção jurídica, alcançar semelhante solução.
4º - Na verdade, ao contrário da posição perfilhada na douta sentença que vai recorrida, somos do entendimento que, efectivamente, ocorreu, no caso sub judice, uma clara e inequívoca violação ao dever objectivo de cuidado, por parte do arguido, relativamente à qual, o tribunal «a quo», pura e simplesmente, se limitou a fazer tábua rasa, no momento em que proferiu a decisão ora posta em crise.
5º - Certo é, porém que, tal violação ao dever objectivo de cuidado, consubstancia-se no excesso de velocidade a que o arguido conduzia o veículo, ao não ter conseguido fazer parar o mesmo no espaço livre e visível à sua frente, nos termos do disposto no art. 24º nº 1 do Código da Estrada, já que, após ter avistado o atravessamento do peão, alheou-se dos deveres de cuidado e prudência a que estava obrigado e de que era capaz, embatendo-lhe violentamente e provocando-lhe a morte.
6º - Na verdade, o acidente ocorreu por manifesta falta de atenção e inconsideração do arguido, na medida em que, pelo facto de circular em plena recta de muito boa visibilidade, com pouca intensidade de trânsito, a meio da manhã de um dia feriado, em dia de sol, com piso seco e em alcatrão, tais circunstâncias, de acordo com o critério de um «bonus pater familiae», deveriam ter levado a um resultado substancialmente diferente da morte causada.
7º - Esta violação ganha ainda mais força quando o arguido refere que, apesar de avistar a vítima localizada na faixa central, esta não se estava a desviar, nem se tinha acabado de desviar de qualquer outro veículo, donde se conclui que, de facto, o arguido apercebeu-se atempada e perfeitamente da localização da vítima à distância, o que lhe permitia evitar o atropelamento, e nem por isso foi capaz de o fazer.
8º - Assim, o condutor médio, colocado naquelas reais circunstâncias das do arguido, comportar-se-ia de forma diferente daquela que o arguido se comportou.
9º - A atenção e cuidado da vítima encontram-se objectivamente alicerçados em factos concretos, ou seja, o facto da vítima ter sido avistada pelo arguido quando já tinha atravessado metade da faixa de rodagem, sem que qualquer outro veículo que por ali circulava a atropelasse, é suficientemente demonstrativo da inegável atenção e cuidado que a vítima teve, enquanto atravessava a via.
10º - Face às concretas circunstâncias do acidente, mormente, em recta na qual estão delimitadas três hemi-faixas de rodagem, todas com o mesmo sentido norte-sul, que apresentava boa visibilidade, piso seco em alcatrão e em dia de sol, não se vê nem se compreende, como é que pôde o tribunal recorrido entender que o arguido não circulava em excesso de velocidade, se, efectivamente, desde que começou a travar até que parou o veículo, percorreu uma distância entre 75/80 metros.
11º - Acresce que, o tribunal a quo refere que: “No referido local não existe qualquer local definido através de sinais de trânsito verticais ou assinalados na via para a travessia da mesma por peões, os quais têm uma passagem subterrânea para esse efeito. E a referida via tem os dois sentidos de trânsito aí permitidos devidamente delimitados por separadores de cimento de forma contínua, o que é perfeitamente visível nas fotografias juntas aos autos (fls. 420 a 422)” (sublinhado nosso).
12º - No entanto, não é de todo verdade que existisse ou exista qualquer passagem subterrânea pedonal, especialmente construída e concebida para os peões atravessarem a Avenida AEP, local onde ocorreu o atropelamento, existindo somente uma outra artéria adjacente, mais concretamente a Rua de Manuel Pinto de Azevedo, a qual dista mais de 100 metros do local do atropelamento e que forma com a Avenida AEP um mero viaduto rodoviário e não qualquer passagem pedonal subterrânea, pelo que, não fica afastada a responsabilidade do arguido pela produção do acidente.
13º - O peão não violou qualquer norma estradal ou comando legal que lhe impusesse a utilização da referida Rua de Manuel Pinto de Azevedo para proceder ao atravessamento da Avenida AEP, local onde ocorreu o atropelamento, posto que, além de tudo, tal artéria tem o seu próprio trânsito e não se destina a servir os peões que pretendem atravessar a Avenida AEP.
14º - Por outro lado, da análise da prova produzida resulta que, à data da prática dos factos, e não na presente data, como erradamente considerou ejulgou o tribunal a quo, posto que, é aquela e não esta a única com interessepara a decisão da causa, efectivamente, existia uma abertura nos ditos separadores de cimento, a qual era regularmente utilizada pelos peões para atravessarem aquela artéria, nomeadamente, para efeitos de tomarem o transporte público na respectiva paragem de autocarros que ali existia e continua a existir, conforme se extrai quer das fotografias juntas aos autos a fls…, quer do depoimento da testemunha G………. .
15º - O Tribunal formou a sua convicção quanto à produção do acidente, no depoimento do arguido, conjugado com os restantes depoimentos, nomeadamente, da testemunha G………. e com as fotografias juntas aos autos o que reforçou a credibilidade do depoimento desta testemunha, bem como, com os depoimentos das testemunhas H………. e I………., este, agente policial que elaborou o croqui de fls. 24/25. Tomou ainda em consideração o depoimento das testemunhas J………, K………., L………., M………., N………., O………. e P………. .
16º - Todavia, o tribunal recorrido julgou incorrectamente os referidos factos e proferiu a decisão ora posta em crise. Assim OS PONTOS DE FACTO QUE A RECORRENTE CONSIDERA INCORRECTAMENTE JULGADOS (art. 412º, nº 3, alínea a) do C.P.P.): o considerar-se como não provado que o arguido imprimia ao veículo que conduzia uma velocidade superior a 80 Km/h e que dada a velocidade excessiva que o arguido imprimia ao veículo, foi o mesmo incapaz de o fazer parar no espaço livre e visível à sua frente vindo a colher o Q………. embatendo-lhe violentamente, bem como ainda que, o arguido, que circulava numa via com grande intensidade de trânsito com excesso de velocidade e manifesta falta de atenção e consideração, alheou-se dos deveres de cuidado e prudência a que estava obrigado e de que era capaz, e quando avistou o peão não foi capaz de deter a marcha do veículo que conduzia no espaço livre e visível à sua frente, embatendo-lhe”.
17º - AS PROVAS QUE IMPÕEM DECISÃO DIVERSA DA RECORRIDA (art. 412º nº 3, alínea b) do C.P.P.) traduzem-se na análise da prova produzida, através da qual ficou amplamente demonstrado que no momento do atropelamento, o arguido imprimia ao veículo que conduzia uma velocidade excessiva.
18º - No entanto, o arguido apresentou uma versão dos factos em julgamento que, caso fosse verdadeira, inquestionavelmente, nunca levaria à violência e mortalidade com que, efectivamente, tal atropelamento ocorreu, ao referir que, circulava a uma velocidade de 70/80Km/H, na hemi-faixa mais à esquerda da faixa de rodagem, avistando o peão a uma distância de 15/20 metros, a atravessar a via, em pleno centro da faixa central.
19º - Mais, o arguido referiu que se apercebeu do atravessamento do peão, buzinou e iniciou a travagem, esclarecendo ainda que, “a partir daqui foi tudo muito rápido” (sublinhado nosso).
20º - Ora, quem conduz o concreto veículo automóvel que o arguido conduzia, ou seja, um Opel ………., ligeiro de mercadorias, cujo peso se situa nos 900 Kg, a uma velocidade de 70/80 Km/H, em pleno traçado recto, de muito boa visibilidade, durante um dia solarengo, com piso seco e em alcatrão, e avista um peão a uma distância de 15/20 metros de si, só por manifesta falta de atenção, descuido ou falta de perícia, não consegue evitar o lamentável e mortal atropelamento, até porque, tal veículo, no seu estado de funcionamento normal, exige ao condutor um menor espaço para alcançar a sua imobilização, quando comparado, por exemplo, com um veículo pesado.
21º - De facto, o arguido bem sabia que circulava a uma velocidade excessiva para o local, por isso, acabou por a confessar em Tribunal quando disse: “a partir daqui foi tudo muito rápido”.
22º - Se na verdade o arguido tivesse percorrido os 15/20 metros que o separavam do local em que veio a colher a infeliz vítima, à velocidade de 70/80 Km/H, certamente, não seria “tudo muito rápido”, nem o arguido teria experimentado sensação tão fugaz como aconteceu, já que tal sensação adveio-lhe, precisamente, da velocidade excessiva que imprimia ao veículo que conduzia.
23º - Particular e especial relevância, donde se infere o excesso de velocidade a que o arguido seguia, e sempre com vista à descoberta da verdade material e boa decisão da causa, revestem as declarações do arguido consubstanciadas nas seguintes afirmações: “A partir daí parei o carro uns metros mais à frente onde a estrada é mais larga” (sublinhado nosso).
24º - Indagado sobre a distância a que o seu veículo ficou imobilizado após o atropelamento da vítima, o arguido respondeu que não sabia e colocado perante a seguinte questão: “Mas parou no seguimento da sua travagem?”, o arguido respondeu: “Sim, parei no seguimento da minha travagem um bocado mais à frente” (sublinhado nosso).
25º - Questionado sobre a existência de rastos de travagem no local, o arguido respondeu: “Na altura havia múltiplos rastos e não foi possível precisar se os rastos eram da minha travagem” (sublinhado nosso).
26º - Apesar do arguido ter respondido que não sabia a que distância o seu veículo ficou imobilizado após o atropelamento da vítima, o tribunal a quo sabe, por força do teor do croqui de fls. 24/25 dos autos, que o arguido apenas conseguiu imobilizar o veículo que conduzia a uma distância de 60,00 metros após o local do atropelamento.
27º - E, ainda assim, muito mal andou o tribunal a quo, na nossa perspectiva, relativamente à desconsideração absoluta de tão importante facto, entendendo, pura e simplesmente, dever fazer tábua rasa dele, para efeitos de julgar excessiva a velocidade a que o arguido circulava quando atropelou a vítima e, consequentemente, no momento em que proferiu a decisão ora posta em crise.
28º - O arguido quando avistou o peão a atravessar a via, encontrava-se ainda a uma distância de 15/20 metros deste, sendo certo que, a somar a tal distância, o arguido necessitou ainda de mais 60 metros para imobilizar completamente o seu veículo, após ter atropelado a infeliz vítima, o que perfaz uma distância total percorrida pelo veículo do arguido de 75/80 metros, desde o local em que avistou o peão ao local em que, efectivamente, conseguiu imobilizar o seu veículo.
29º - No Infracode, de G. Pascal e S. Plumelle figuram as tabelas que foram insertas no Manual de Acidentes de Viação de Dario Martins de Almeida (a págs. 484 e ss. da 2ª ed.), segundo as quais, a distância total para a paragem, no caso em apreço, portanto, entre 75/80 metros, indica uma velocidade entre os 110/120 Km/H, pelo que, não restam dúvidas, então, em concluir, irremediavelmente, pela demonstração e consequente prova da velocidade excessiva a que o arguido ali circulava, quando atropelou a vítima.
30º - Não colhe sequer, atenta a sua falsidade, a justificação apresentada pelo arguido em julgamento, com o intuito de procurar afastar a velocidade excessiva a que circulava, quando referiu que: “… parei o carro uns metros mais à frente onde a estrada é mais larga”.
31º - De facto, é inteiramente falso que no local onde o arguido veio a conseguir imobilizar o veículo, a faixa de rodagem seja mais larga, conforme se extrai, por um lado, do teor do croqui de fls. 24/25 dos autos, onde é perfeitamente visível que o veículo conduzido pelo arguido ficou imobilizado na hemi-faixa mais à esquerda da faixa de rodagem, onde, aliás, o próprio arguido referiu que vinha a circular quando avistou o peão, o atropelou e, consequentemente, como também referiu: “…parei no seguimento da minha travagem um bocado mais à frente”.
32º - Por outro lado, a testemunha I………., agente da P.S.P. que se deslocou ao local e elaborou o respectivo auto de acidente, pôde em julgamento confirmar a inexistência de qualquer alargamento da via, na parte mais à esquerda do sentido de circulação rodoviária, que possibilitasse ao arguido o estacionamento do veículo, de modo a não perturbar a circulação do trânsito, esclarecendo ainda que o único local onde o arguido tinha espaço para estacionar o veículo, seria do lado direito.
33º - Desta forma, conclui-se que o facto que consequenciou a imobilização pelo arguido do veículo que conduzia na hemi-faixa mais à esquerda da faixa de rodagem, foi mesmo a velocidade excessiva, e não o alargamento da via, como pretendeu ardilosamente convencer o tribunal, mas, neste caso, sem êxito, dado que naquele local não há nem havia qualquer alargamento da faixa de rodagem, como ficou provado.
34º - Tal como é falso que a imobilização do veículo tenha ocorrido na hemi-faixa mais à esquerda da faixa de rodagem, para não prejudicar a boa circulação do trânsito, posto que, para atingir tal fim, o arguido só se poderia servir da berma situada no lado oposto, portanto, à direita da hemi-faixa mais à direita da faixa de rodagem, como bem foi referido pela testemunha I………… e o arguido bem sabia e sabe.
35º - Questionado acerca da existência de rastos de travagem no local, o arguido respondeu o seguinte: “Na altura havia múltiplos rastos e não foi possível precisar se os rastos eram da minha travagem” (sublinhado nosso).
De igual forma, o depoimento da testemunha I………., acerca da mesma matéria, vai, justamente, no mesmo sentido, ou seja, confirma a existência dos referidos rastos.
36º - Conjugando assim o depoimento do arguido com o da supramencionada testemunha, não subsistem quaisquer dúvidas em concluir que, efectivamente, rastos de travagem o arguido deixou.
37º - Além disso, o arguido circulava na hemi-faixa mais à esquerda da faixa de rodagem, quando atropelou a vítima, pelo que, naturalmente, só o poderia fazer por uma de duas razões: ou porque imprimia ao veículo por si conduzido uma velocidade, no mínimo, superior à dos veículos que circulavam nas restantes hemi-faixas, afinal o trânsito de veículos na hemi-faixa mais à esquerda da faixa de rodagem pressupõe isso mesmo, ou seja, uma circulação mais rápida que os restantes, ou porque pretendia mudar de direcção à esquerda, o que no caso não se concebe por, segundo referiu em tribunal, pretendia tomar a hemi-faixa mais à direita da faixa de rodagem, uma vez que seguia em direcção às Caldas da Rainha, portanto, mudar de direcção sim, mas à direita e não à esquerda.
38º - O tribunal a quo deu como provado que a viatura do arguido apresentou danos resultantes do acidente no guarda-lamas do lado direito, pilar frontal do lado direito, pára-brisas do lado direito.
Todavia, da análise da prova produzida nunca poderia resultar provada tal factualidade, porquanto, as fotografias juntas aos autos para efeitos probatórios, não tem, nem poderiam ter tal virtualidade, ao não se encontrarem datadas, nem permitirem tão pouco identificar o veículo em causa.
39º - Ora, ante tudo o que acaba de se expor, conclui-se que deveria o tribunal recorrido ter considerado a supra referida prova produzida, aquando da elaboração da sentença recorrida, por a mesma se revelar determinante e decisiva. Como tal, impunha-se, e impõe-se, a CONDENAÇÃO DO ARGUIDO.
40º - No entanto e sem prescindir, admitindo-se por mera hipótese que o peão possa ter contribuído com alguma responsabilidade na produção do acidente, deverá ser repartida a culpa nos rigorosos e precisos termos encontrados.
Termos em que deve conceder-se integral provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a douta sentença recorrida, tudo em conformidade com o acima exposto e com as legais consequências.
3.
Ao recurso da assistente respondeu o arguido - fls. 525 a 530 -, pugnando pela sua improcedência.
4.
Respondeu também o Ministério Público em 1ª instância, concluindo em síntese, que:
4.1 - A prova produzida em audiência foi correctamente apreciada, não existindo pontos de facto indevidamente provados ou não provados.
4.2 - A sentença recorrida não contém qualquer insuficiência, contradição ou erro notório na apreciação da prova.
4.3 - A sentença recorrida faz uma correcta aplicação dos preceitos legais.
4.4 - Pelo que deve o recurso ser julgado improcedente.
5.
Nesta Instância o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer de fls. 365 a 368 que, embora com algumas reservas apontadas quanto à matéria de facto apurada, entende que o recurso não merece provimento.
6.
Colhidos os vistos, teve lugar a audiência de julgamento.
II
Delimitação do objecto do recurso:
São as seguintes as questões suscitadas pela recorrente nas suas conclusões, sem prejuízo das questões de que o tribunal pode conhecer oficiosamente.
1. Matéria de facto incorrectamente julgada, ao considerar-se como não provado que o arguido imprimia ao veículo que conduzia uma velocidade superior a 80 Km/h.
2. A violação, pelo arguido, do dever objectivo de cuidado, consubstanciada no excesso de velocidade a que o arguido conduzia o veículo, ao não ter conseguido fazer parar o mesmo no espaço livre e visível à sua frente.
III
São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida:
No dia 8.2.2005, cerca das 10,15h., na Avenida A.E.P. nesta comarca, no sentido Norte/Sul, o arguido seguia aos comandos do veículo ligeiro de mercadorias, veículo que adquiriu em Setembro de 2001, com o número de matrícula ..-..-SI, pela respectiva hemi-faixa esquerda.
A referida via traduz-se na existência de três hemi-faixas cuja circulação de realiza no sentido Norte-Sul, e outras três hemi-faixas no sentido sul-norte, encontrando-se estes dois sentidos separados por blocos de cimento colocados de forma continua e cuja finalidade é impedir qualquer ponto de passagem entre os mesmos.
A certa altura, o arguido apercebeu-se que Q………. atravessava a via, fazendo-o da direita para a esquerda, ao mesmo tempo que falava ao telemóvel.
O arguido, que imprimia ao veículo que conduzia uma velocidade não apurada, ao avistar a vítima já na hemi-faixa central da via, buzina e trava a viatura, tendo então a infeliz vítima estancado sobre a linha tracejada que separa a hemi-faixa esquerda da hemi-faixa central.
Simultaneamente, o arguido guina a sua viatura para a esquerda, evitando contudo chocar com os separadores em cimento então aí colocados, ao mesmo tempo que a infeliz vítima avança tentando alcançar os referidos separadores.
È então que o arguido colhe o Q………. embatendo-lhe violentamente, originando-lhe por força do impacto, as lesões que se mostram descritas no relatório de autópsia constante a fls. 109 a 115, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, as quais foram causa directa e necessária da sua morte.
A vítima faleceu às 12h45 m do dia 08.02.2005.
A artéria em causa apresenta sentido único, com três hemi-faixas de rodagem, piso em alcatrão, seco em bom estado de conservação e boa visibilidade.
Na referida artéria não existe qualquer local devidamente assinalado para o atravessamento de peões, sendo que a via, a qual tem dois sentidos de circulação, encontra-se delimitada a meio por separadores de cimento que impedem que os dois sentidos tenham qualquer ponto de contacto.
À data do acidente o tempo estava solarengo, frio e seco.
O arguido trabalha na firma «S………., Lda.” com sede nas Caldas da Rainha onde aufere €. 650,00 mensais.
O arguido concluiu o 11.º ano de escolaridade.
O arguido reside em casa de sua mãe.
O arguido não tem antecedentes criminais.
O arguido conduz regularmente viaturas automóveis desde os seus 19 anos de idade não tendo cadastro estradal.
A viatura do arguido apresentou danos resultante do acidente no guarda-lamas do lado direito, pilar frontal do lado direito, pára-brisas do lado direito.
A identificada Avenida AIP é notoriamente um local de intenso tráfego de automóveis onde, segundo a experiência comum, a travessia de peões em local não assinalado para esse efeito, é um comportamento de risco.
Os demandantes são, respectivamente, esposa e filhos da vítima.
Os demandantes pagaram à T………., Lda. a quantia de €. 1862.76 euros pela realização do funeral da infeliz vítima.
À data da sua morte, a vítima era uma pessoa saudável, bom trabalhador e dedicado chefe de família. Esta trabalhava na firma «U……….» com sede no Porto, onde auferia mensalmente a quantia de 765 euros dos quais entregava 650 euros para o seu agregado familiar.
À data dos factos a viúva não trabalhava.
A filha menor é estudante.
Todos os demandantes sofreram profundo abalo, tristeza e angústia com a morte da infeliz vítima por quem nutriam um forte sentimento de amor e carinho.
O Instituto de Segurança Social S./Centro Nacional de Pensões pagou, até 12.06.2007, e no montante global de €. 12.006,93, quantia referente às pensões de sobrevivência por morte do beneficiário Q………. .
FACTOS NÃO PROVADOS:
Que a certa altura, o arguido apercebeu-se que Q………. iniciou o atravessamento da via;
Que o arguido imprimia ao veiculo que conduzia uma velocidade superior a 80km/h.
Que dada a velocidade excessiva que o arguido imprimia ao veículo, foi o mesmo incapaz de o fazer parar no espaço livre e visível à sua frente vindo a colher o Q………. embatendo-lhe violentamente.
Que o arguido, que circulava numa via com grande intensidade de trânsito com excesso de velocidade e manifesta falta de atenção e consideração, alheou-se dos deveres de cuidado e prudência a que estava obrigado e de que era capaz, e quando avistou o peão não foi capaz de deter a marcha do veículo que conduzia no espaço livre e visível a sua frente embatendo-lhe.
Que o arguido não adequou a velocidade do veículo que conduzia a aproximação do peão e não se assegurou de que, em caso de necessidade, podia deter a marcha do veiculo em segurança.
Que o acidente se verificou por manifesta falta de atenção e inconsideração do arguido, que se alheou dos deveres de cuidado e prudência a que estava obrigado e de que era capaz.
Que o arguido agiu bem sabendo a sua conduta proibida.
Qual o local concreto, face ao acidente, do sinal vertical de limitação de velocidade a 70 Km/h existente no local.
Que o acidente tenha ocorrido quando a viatura do arguido seguia a uma velocidade não superior a 40/50 Km/hora.
Que em preparativos para o funeral a viúva tenha dispendida a quantia de €.2500 euros.
Que na altura do acidente o “de cujus” tivesse vestido e calçado vestuário no valor global de 500 euros.
Que a viúva nunca tenha trabalhado.
Nada se apurou em concreto no que toca à situação económica dos demais filhos da vítima.
IV
Apreciando as questões suscitadas pela recorrente/assistente:
1º questão:
Matéria de facto incorrectamente julgada, ao considerar-se como não provado que o arguido imprimia ao veículo que conduzia uma velocidade superior a 80 Km/h.
Nos termos do art. 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal[1], quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
- Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
- As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
- As provas que devem ser renovadas.
E nos termos do n.º 4 do mesmo preceito legal, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
Ora, analisando o teor da motivação e conclusões de recurso, verifica-se que a recorrente deu cumprimento ao disposto na alínea a) – indicou o ponto de facto que considera incorrectamente julgado[2], mas já não deu cumprimento ao disposto nas alíneas b) e c) e nº 4, daquele artigo 412º - não indicou as provas que impõem decisão diversa da recorrida, nem faz referência aos suportes técnicos.
É expressiva neste aspecto, a fórmula usada pela assistente para indicar a prova que impõe decisão diversa:
AS PROVAS QUE IMPÕEM DECISÃO DIVERSA DA RECORRIDA (art. 412º nº 3, alínea b) do C.P.P.) traduzem-se na análise da prova produzida, através da qual ficou amplamente demonstrado que no momento do atropelamento, o arguido imprimia ao veículo que conduzia uma velocidade excessiva.
Ou seja, a assistente limita-se a remeter para a prova produzida, na sua globalidade, para concluir que a decisão deve ser diferente.
E na verdade, ao indicar os suportes técnicos da gravação da prova, a assistente indica o princípio e o fim da gravação - v. fls. 495 e ss...
Não é essa a referência que o legislador pretende que a recorrente faça, pois que nada acrescenta à que consta das actas de audiência.
O que a assistente fez foi remeter para o tribunal da Relação a tarefa de procurar na transcrição, os trechos das declarações e depoimentos capazes, de acordo com a sua tese, de poder contrariar pontualmente a matéria de facto que foi dada como provada.
Mas o que a lei lhe impõe é o ónus de especificar, quanto aos depoimentos, as afirmações ou partes do depoimento que impõem decisão diversa da recorrida.
No fundo, a recorrente vem fazer uma apreciação/valoração diferente daquela que fez o Tribunal a quo, no sentido que lhe é mais favorável.
Assim como o Tribunal a quo tem o poder-dever de a apreciar e valorar de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, ao abrigo do artigo 127º, do Código de Processo Penal, também a assistente tem o dever de fundamentar a sua divergência nos termos exigidos.
1.1 É elucidativa a este propósito a explicação dada no ac. do TC de 21.12.99, in DR, II série, de 28.02.2000, sobre a matéria:
“O ónus de motivar ou fundamentar, em termos concludentes, o recurso, visa precisamente demonstrar e convencer que ocorreu determinado erro na valoração das provas e só pode considerar-se satisfatoriamente cumprido se o recorrente começar por demonstrar na sua alegação, quais foram as provas relevantes e qual foi o resultado probatório delas emergente. Na verdade, pretender impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto sem proceder a uma expressa e concreta referenciação das provas realmente produzidas em audiência e a uma análise crítica da sua valoração pelo julgador – tendo em conta o teor efectivo e completo dos depoimentos produzidos – não traduzirá seguramente exercício fundado e adequado do “direito ao recurso”, que não comporta a possibilidade de vagas, genéricas e indemonstradas imputações de erros de julgamento…sobre a matéria de facto”.
Entendemos que assim é.
A decisão recorrida sobre a matéria de facto encontra-se motivada, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal a quo, nenhuma delas sendo proibida por lei e todas de livre apreciação pelo julgador segundo as regras da experiência comum e sua convicção.
É, pois, a seguinte, a motivação:
“Na determinação da factualidade dada como provada, o Tribunal formou a sua convicção essencialmente:
Quanto à produção do acidente:
- nas declarações do arguido o qual apresentou um depoimento lógico e sequencial e compatível com o traçado e condições da via; este depoimento foi conjugado com os restantes depoimentos, nomeadamente o da testemunha G………., este confrontado ainda com o teor das declarações de fls. 93 e 413, as quais aqui se dão por reproduzidas) e com as fotografias juntas aos autos o que reforçou a credibilidade deste depoimento;
- nas declarações da já referida testemunha G………., agente policial, que à data dos factos circulava numa artéria que desembocava na via onde ocorreu o acidente e sensivelmente no local onde o mesmo ocorreu, estando esta testemunha já a chegar ao sinal de stop aí existente; refere ter ouvido o veículo do arguido a apitar várias vezes e tentar ainda chegar-se o mais possível aos separadores centrais da via para evitar o embate, e seguidamente presenciar o embate do mesmo com a infeliz vítima; esta testemunha, em audiência, não é precisa quanto ao local do embate (se entre a hemi-faixa esquerda e a central se entre esta última e a hemifaixa direita) e confrontada com as suas declarações em inquérito refere que do local onde se encontrava e face ao ângulo de visão que tinha não lhe é possível referir com precisão onde é que se deu o embate. O facto de nessas declarações (fls.413) referir que o arguido se aproximou dos separadores de cimento para evitar o embate convence este tribunal que o veículo seguia efectivamente na referida hemi-faixa esquerda. Confirma a existência de um telemóvel no chão da via o qual encontrou após o embate. Segundo o mesmo o local não tem qualquer passagem para peões assinalada. Não assinalou rastros de travagem;
- nas declarações de H………., a qual seguia com o arguido aquando do acidente dos autos; refere a mesma que a velocidade a que seguiam não divergia da adoptada pelas restantes viatura que circulavam nas circunstâncias de facto ora em apreço, não podendo contudo precisar a mesma; apercebe-se da vítima já esta circulava na hemi-faixa central a falar ao telemóvel e de jornal debaixo do braço. Sente então o arguido a travar e a apitar, estancando o peão na risca separadora da hemi-faixa central da hemi-faixa esquerda, e quando o arguido guina para a esquerda o peão também avança nessa direcção pelo que choca na viatura rebolando sobre o pára-brisas e batendo no espelho retrovisor do lado direito; refere ainda que seguia uma viatura na hemi-faixa central ligeiramente à frente do veículo do arguido recordando-se que quando avista o peão não lhe vê o corpo todo.
Note-se que os pormenores observados quer pelo arguido quer por esta testemunha – telemóvel e jornal – indiciam que os mesmos apenas viram o peão quando o mesmo já se encontrava próximo da viatura o que desde logo limita o condutor na sua capacidade e velocidade de reacção para evitar o embate, assim como indicia a inexistência de uma velocidade excessiva a qual, a existir, impediria aqueles de se aperceberem de tais objectos.
- Nas declarações de I………., agente policial qual elaborou o croqui junto a fls.25, o qual, tendo chegado ao local após o acidente, esclareceu o tribunal no que toca às condições da via e vestígios do acidente, referindo que não foi possível concluir pela existência de rastros de travagem no local atento o facto de serem inúmeros os mesmos decorrentes de outros acidentes na referida via.
No documento de fls.325/326 quanto à circunstância de à data do acidente a responsabilidade civil do condutor do veículo supra identificado se encontrar transferida para a demandada Companhia de Seguros.
O Tribunal teve ainda em atenção o croqui de fls.24/25 quanto ao local e condições da via em que ocorreu o acidente.
Essencial ainda o teor de fls.205 a 227 para aferir dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.
Teor de fls.411 – CNP.
Fotografias de fls. 420/423 e fls.392/394”.
1.2.
Perante esta motivação, verifica-se que o tribunal a quo cumpriu os requisitos e o dever de fundamentação, sendo esta esclarecedora sobre a convicção dos depoimentos e a sua razão de ciência.
Mas, se alguma dúvida subsiste na convicção da recorrente quanto ao factualismo provado, lendo os depoimentos[3] que se encontram transcritos pela própria, nos autos, somos levados a concluir e a aceitar que andou bem o julgador ao considerar como não provado que o arguido circulasse a uma velocidade superior a 80Km/hora.
A assistente é demasiado temerária ao pretender retirar de expressões assumidamente subjectivas, conclusões concretas e definidas.
Entre elas merecem destaque o facto de o arguido dizer que quando se encontrava a cerca de 15/20 metros da vítima que “a partir daqui foi tudo muito rápido”; de a assistente dar como certo que o arguido, depois do embate, necessitou ainda de mais 60 metros para imobilizar por completo o veículo; tudo para concluir que o arguido desde que avistou a vítima e imobilizou a viatura, percorreu cerca de 75/80 metros, pelo que a sua velocidade seria de 110/120Km/hora.
Sem prejuízo do que ainda se dirá a propósito da questão seguinte quanto ao excesso de velocidade, no que a esta situação respeita, dir-se-á que a afirmação do arguido de que “a partir daqui foi tudo muito rápido”, é normalíssima nos acidentes de viação. Duvidoso seria se assim não fosse. 15/20 metros, mesmo a uma velocidade de 60/70Hm/hora, percorrem-se em cerca de 1 (um) segundo, de acordo com a tabela reproduzida no C. Estrada antigo, de Júlio Serras/Francisco Martins, edição de autor, Fevereiro de 1985, 6ª edição, em anotação ao artigo 7º, fls. 42[4].
Por sua vez, o facto de o arguido ter imobilizado o veículo a uma distância de cerca de 60 metros do local do embate, não significa nem garante em termos probatórios[5], que o mesmo necessitou efectivamente de percorrer esta distância para imobilizar o veículo.
O seu depoimento aponta precisamente que o mesmo foi imobilizar o veículo num local que não impedisse a circulação rodoviária, num local apropriado para o efeito, sem a preocupação do momento de parar o veículo no mais curto espaço e tempo.
Embora resulte do próprio depoimento do arguido que o mesmo ainda travou, não foi possível apurar qual o rasto de travagem efectuado, pois no local existiam várias travagens.
A existir tal travagem bem como os metros exactos desta, seria sim, possível, de um modo aproximado e de acordo com as tabelas matemáticas, sempre com a ressalva de não serem infalíveis mas apenas elemento de trabalho, calcular a velocidade provável do arguido.
Mas, inexistindo o principal elemento de trabalho, não é possível chegar a qualquer veredicto nesta matéria, por esta via.
2ª questão:
A violação, pelo arguido, do dever objectivo de cuidado, consubstanciada no excesso de velocidade a que o arguido conduzia o veículo, ao não ter conseguido fazer parar o mesmo no espaço livre e visível à sua frente.
Como primeira observação, refere-se que, vigorando como vigora entre nós o princípio da presunção de inocência[6], não é ao arguido que compete demonstrar esta mas sim à acusação pública ou particular que compete demonstrar a culpabilidade do arguido.
Toda a valoração e interpretação da matéria de facto provada, feita pela assistente, vai no sentido de afirmar que o arguido violou, com a sua condução, um dever objectivo de cuidado, traduzido pelo excesso de velocidade, ao não ter conseguido parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
Em contrapartida, a vítima não violou qualquer norma estradal ao atravessar a via no local e do modo como o fez:
Não lhe era exigível que o fizesse pela Rua de Manuel Pinto de Azevedo que ficava a mais de 100 metros do local do atropelamento; à data do embate, existia no separador central de cimento uma abertura que permitia a passagem de uma pessoa para o outro lado da via; tendo o arguido avistado a vítima quando esta já tinha atravessado metade da faixa de rodagem sem que qualquer veículo que por ali circulasse a tivesse atropelado, é demonstrativo da inegável atenção e cuidado que a vítima teve enquanto atravessava a via.
2.1.
Sobre a circulação dos veículos e no que ao caso interessa, atenta a via em causa, dispõem os artigos do C. da Estrada, o seguinte:
Artigo 15º:
“Sempre que existindo mais de uma via de trânsito no mesmo sentido, os veículos devido à intensidade da circulação, ocupem toda a largura da faixa de rodagem destinada a esse sentido, estando a velocidade de cada um dependente da marcha dos que o precedem, os condutores não podem sair da respectiva fila para outra mais à direita, salvo para mudar de direcção, parar ou estacionar”.
Artigo 24º
“O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever, e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”
E no que aos peões interessa, regula o artigo 101º:
“1- Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente”.
2.2.
Decidiu-se na sentença recorrida:
“E sublinhe-se que atenta a configuração da via, (claramente traduzida nas fotografias juntas aos autos), não era exigível ao arguido, ou a qualquer condutor nas mesmas circunstâncias de lugar, e de acordo com o critério de um «bonus pater familiae», que estivesse com especial atenção na condução por força da possibilidade de existirem peões a atravessar tal artéria, atravessamento esse claramente inviável e perigoso, quer pela existência de separadores de cimento quer pelas características do trânsito no local.
Donde se conclui que o acidente ocorreu por manifesta desatenção e falta de cuidado da infeliz vítima a qual decidiu atravessar a referida via em local não destinado a esse efeito, até porque, a meio da mesma, e separando os diferentes sentidos de circulação, existiam placas de cimento, e também onde o trânsito de viaturas é intenso, (o que é do conhecimento comum de qualquer morador da cidade do Porto). Acresce ainda que da conduta do arguido não se pode concluir que o mesmo tenha violado qualquer norma estradal ou outro dever especial de cuidado. Na verdade, não se apurou nomeadamente que o mesmo seguisse a velocidade excessiva para o local, (na verdade não foi possível apurar rastros de travagem sendo que também nada indica que o peão tenha sido projectado pelo ar com o choque; circunstâncias que indiciariam a existência de uma velocidade excessiva) mas antes se apurando que o mesmo, logo que avistou o peão, travou e buzinou tentando evitar o embate ao guinar para a esquerda, o que teria logrado conseguir caso não fosse a própria vítima a invadir a hemi-faixa esquerda supra identificada, assim causando o choque que resultou na sua própria morte.
De acordo com a matéria de facto apurada, e face às circunstâncias concretas do caso em apreço, o arguido agiu de acordo com o critério de um «bonus pater familiae” assumindo os cuidados e atenções possíveis e adequados à situação”.
2.3.
Mostra-se correcta, em nosso entender, esta apreciação e subsunção jurídica.
Como já se aflorou na primeira questão, a recorrente insiste na velocidade excessiva do arguido, na medida em que o mesmo, embora apercebendo-se da presença da vítima, não parou ou imobilizou o veículo no espaço que tinha livre e visível à sua frente.
Ora, este conceito não tem um valor absoluto, necessitando de ser contextualizado num momento e lugar concreto para se avaliar da sua verificação ou não.
Ou seja, pela simples razão de o arguido não ter imobilizado o veículo que conduzia evitando embater na vítima, não é sinónimo de excesso de velocidade.
O que está subjacente a este conceito de excesso de velocidade é efectivamente que um condutor deve adequar a sua velocidade de modo a, em caso de necessidade, conseguir para o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
Mas este espaço livre e visível é determinado pela própria via onde se circula e pressupõe a não verificação de condições anormais ou obstáculos inesperados, sobretudo os derivados da imprevidência alheia.
No nosso caso, o arguido teria que contar essencialmente com a circulação dos outros veículos, adequar a sua distância ao veículo que seguia à sua frente para, se necessário, parar sem embater no mesmo e efectuar a eventual mudança de faixa nos termos referidos no artigo 15º do C. da Estrada, respeitando eventual sinal de limite de velocidade e, não se tendo provado que este existia[7], respeitar o limite geral de velocidade para o local.
Ora, o espaço livre e visível à frente do arguido, era dado pela sua visibilidade normal da via e condicionado pelo demais tráfego rodoviário.
De todo, não dependia nem será de admitir que dependa, do aparecimento de um peão, a atravessar as faixas de rodagem, por entre o respectivo tráfego, surgindo à vista do arguido a cerca de 15/20 metros[8].
E entende-se que não deve depender nem que é previsível que surja inopinadamente um peão, pois para um «bonus pater familiae», aqui representado pelo condutor/arguido, não é de prever e esperar que um peão faça o que fez a infeliz vítima: tentar atravessar no local em causa.
É que a via tem três hemi-faixas cuja circulação se realiza no sentido Norte-Sul e outras três hemi-faixas no sentido Sul-Norte, num total de seis, encontrando-se estes dois sentidos separados por blocos de cimento colocados de forma continua e cuja finalidade é impedir qualquer ponto de passagem entre os mesmos.
Na referida artéria não existe qualquer local devidamente assinalado para o atravessamento de peões, sendo que a via, a qual tem dois sentidos de circulação, encontra-se delimitada a meio por separadores de cimento que impedem que os dois sentidos tenham qualquer ponto de contacto.
A identificada Avenida AIP é notoriamente um local de intenso tráfego de automóveis onde, segundo a experiência comum, a travessia de peões em local não assinalado para esse efeito, é um comportamento de risco[9].
2.4.
Os deveres de cuidado são recíprocos, para o condutor e para o peão.
O arguido, mesmo perante a imprevisibilidade do aparecimento de um peão a atravessar esta via, revelou que conduzia atento:
Apercebeu-se da presença da vítima a cerca de 15/20 metros já na hemi-faixa central da via, buzinou e travou a viatura, tendo então a infeliz vítima estancado sobre a linha tracejada que separa a hemi-faixa esquerda da hemi-faixa central.
Simultaneamente, o arguido guina a sua viatura para a esquerda, evitando contudo chocar com os separadores em cimento então aí colocados, ao mesmo tempo que a infeliz vítima avança tentando alcançar os referidos separadores[10].
Este procedimento do arguido, adequa-se a uma condução atenta e responsável.
Face ao momento e à distância a que o arguido se apercebe da vítima[11], aquele não poderia eventualmente mudar de faixa de rodagem para evitar o embate: só existiam faixas de rodagem à sua direita e só se deve mudar de faixa nas situações indicadas no citado artigo 15º do C. da Estrada, sob pena de, para se evitar um embate, se provocar um outro. E não era possível passar a circular mais à sua esquerda, pois o arguido já circulava nesta faixa.
E, finalmente, se o arguido tivesse optado por imobilizar o veículo, parando, a fim de evitar embater na vítima, dificilmente o teria conseguido, para não dizer que seria manifestamente impossível, pois como já se anotou, a distância de 15/20 metros é percorrida num segundo a uma velocidade de cerca de 60/70Km/hora.
Mesmo que a velocidade fosse inferior, as fracções de segundo a mais, continuariam a ser insuficientes para parar o veículo antes de chegar ao local onde se encontrava o peão.
Acresce que, conforme resulta provado, com o buzinar do arguido, a vítima estancou sobre a linha tracejada que separa a hemi-faixa esquerda da hemi-faixa central. Esta conduta da vítima, face às normais regras da experiência de circulação rodoviária, tanto mais tendo em conta o lugar exacto onde se estavam a desenrolar os factos - via com três faixas de rodagem, intenso trânsito, separador central, sem passadeira ou lugar indicativo de passagem de peões - levava a crer que a mesma continuasse parada e reiniciasse a travessia da última faixa, logo que o pudesse fazer com segurança, logo que circulasse outra viatura por aquela faixa a uma distância que lhe permitisse atravessar sem correr o risco de ser atropelada/embatida.
Se o aparecimento da vítima era já de si, um facto imprevisível, imprevisível continuou a ser o avançar daquela, depois de ter estancado perante o buzinar do veículo do arguido.
Apesar do arguido ainda ter desviado o veículo o mais possível para junto do separador central, de modo a não embater com a vítima, o embate acabou por acontecer, segundo a versão do arguido, no guarda-lamas do carro, lado direito[12]. O que não deixa de haver lógica neste depoimento, pois resultou provado que “ a viatura do arguido apresentou danos resultantes do acidente no guarda –lamas do lado direito, pilar frontal do lado direito e pára-brisas do lado direito”.
Já no que respeita à conduta da vítima, enquanto peão, a mesma enferma de várias violações às regras normais/estradais e cuidado a ter no atravessamento de uma via.
No local não existia passadeira nem outro sinal indicativo para a travessia de peões.
E embora não existisse nenhum sinal de trânsito a proibir expressamente a travessia de peões no local onde a vítima o fez, existia um elemento a ter em consideração e que só por si determinava uma proibição para o atravessamento: o separador central em cimento aí colocado, separando os dois sentidos de trânsito da via.
Se se deve avaliar o comportamento do condutor segundo o padrão médio, o mesmo deve ser feito ao peão.
E não temos dúvida que o «bonus pater familiae» na veste de peão, interpretaria o separador de betão como uma proibição de atravessar a via. É que, numa situação normal, qualquer peão para o fazer, teria que transpor, saltando, o separador de cimento.
E não releva para esta proibição, o facto de, na altura dos factos, existir em tal separador, uma abertura por onde era possível passar uma pessoa de anatomia média, abertura que já tem uma chapa[13].
Esta abertura não significa ou corresponde a uma passagem, não sendo idónea como tal, tudo indicando que a mesma correspondia a um eventual defeito na colocação do separador.
A existência deste separador é um obstáculo intencional para a não travessia da via pelos peões, a qual como se provou, tem três faixas em cada sentido e o trânsito é muito intenso.
Mesmo que não existisse este separador de cimento, qualquer peão médio teria o bom senso ou receio suficiente de não atravessar a via neste local.
Pensamos mesmo que o peão, a dar cumprimento ao disposto no artigo 101º, nº 1, do C. da Estrada[14], dificilmente iniciaria o atravessamento por não ver verificadas as condições para o fazer.
Mas, ultrapassando o factor proibição traduzido pelo separador central de cimento, como se acaba de anotar, para uma travessia da via no local dos autos, o peão teria que dar cumprimento ao disposto no artigo 101º, do C. da Estrada.
E resultou provado que, pese embora a vítima atravessasse uma via com três faixas em cada sentido[15], fazia-o falando ao telemóvel.
Este facto em si mesmo revela uma falta de cuidado que se repercute inevitavelmente na atenção que a vítima deveria dedicar ao trânsito. Sendo o risco da travessia já de si elevado, ao fazê-lo falando ao telemóvel, a vítima aumentou consideravelmente esse risco.
Pois do mesmo modo que o falar ao telemóvel aumenta o risco de acidente para o condutor por diminuição da sua concentração, atenção e capacidade de resposta a qualquer obstáculo, o mesmo acontece relativamente ao peão, embora porventura em grau diferente.
Finalmente, a vítima não revelou cuidado ao não manter-se parada no momento em que o arguido buzinou, continuando a sua travessia da última faixa, quando o pudesse fazer em segurança. Ao continuar a sua travessia, tendo-o feito de um modo considerado precipitado, a vítima caminhou inevitavelmente para um embate com o veículo, que infelizmente aconteceu e lhe tirou a vida.
E dizemos que a vítima deveria ter permanecido parada sobre a linha tracejada que separa a hemi-faixa esquerda da hemi-faixa central, porque numa via com estas características, é a única possibilidade, ainda assim e apesar do elevado risco, de o conseguir fazer sem qualquer acidente. Pois não é exigível que, de um momento para o outro, todos os veículos, em todas as faixas de rodagem, parem, para permitir a travessia de um peão, num momento de tráfego intenso e porventura a circularem a velocidades diferente.
2.5.
Por se revelar elucidativo, ajudando a melhor compreender a situação por nós apreciada e porque se afigura oportuno, citamos o ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 26.6.2005, proferido no processo nº 05B1387, podendo ser consultado in www.dgsi.pt.jstj, onde se decidiu:
“ Ora, existindo separador central, deixa de relevar a aludida regra da existência de passadeira a maior ou menor distância. É que um separador central significa um reforço material duma proibição jurídica como é o do traço contínuo. Não só é proibido atravessar, como, atenta a especial perigosidade do atravessamento, criam-se as condições de facto para evitar que a proibição legal seja realmente acatada. Logo, como assinalaram as instâncias, o separador significa na realidade essa mesma proibição.
O risco que ela pretende prevenir é o do atropelamento dos peões, em vias, que pelas características do trânsito não permitem que seja feita em segurança o seu atravessamento.
…
No caso dos autos verifica-se que o peão cruzou a via em local em que tal era proibido, acabando por ser atropelado. Sendo que tal proibição visava…prevenir esse mesmo efeito danoso, forçoso é concluir da mesma forma que as instâncias, ou seja, que a culpa do acidente pertenceu exclusivamente à sua vítima”.
2.6.
Da leitura por nós feita de toda a dinâmica do acidente e suas consequências, somos levados a concluir que a responsabilidade/culpa do mesmo se ficou a dever exclusivamente à conduta da vítima, não se nos afigurando, atento o factualismo provado, que a conduta do arguido tenha contribuído, ainda que apenas a título de réstia, também com alguma.
IV
Decisão
Por todo o exposto, decide-se:
1. Negar provimento ao recurso da recorrente/assistente, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, com a taxa de justiça que se fixa em 8 (oito) UCs.
Porto, 11/06/2008
Luís Augusto Teixeira
José Alberto Vaz Carreto
Joaquim Arménio Correia Gomes
José Manuel Baião Papão
__________________________
[1] Na redacção anterior à Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto.
[2] A referida velocidade não superior a 80Km/hora.
[3] Mesmo sem a vantagem do princípio da imediação.
[4] Embora com a noção de que as tabelas, nesta situação e essencialmente naquelas em que se pretende avaliar a velocidade de acordo com a distância percorrida - esta medida ou traduzida pelo rasto de travagem acrescido do tempo de reacção do condutor, a que não deixam de ser alheias as condições do piso e viatura -, não são infalíveis mas apenas referências ou indicativas da velocidade aproximada. Neste sentido v. ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.1998, proferido no processo nº 98ª706, podendo ser consultado em www.dgsi.pt.jstj, onde se afirma “As tabelas de velocidade apenas são elemento de trabalho
- têm um valor relativo e não se lhes pode conferir rigor matemático” e ac. do Tribunal da Relação de Évora de 5.4.2005, proferido no processo nº 2997/04-1, podendo ser consultado em www.dgsi.pt.jtre.
[5] De acordo com os elementos que resultam dos autos.
[6] Artigo 32º, nº 2, da CRP/76.
[7] De acordo com o factualismo provado.
[8] Neste sentido v. acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 15.2.2007 proferido no processo nº 07B302, e de 6.7.2006, proferido no processo nº 06B2216, ambos in www.dgsi.pt.jstj e ac. RLisboa de 12.7.2007, proferido no processo nº 1664/2007-7, podendo ser consultado em www.dgsi.pt.jtrl, onde a dado momento se afirma neste último:
“Existindo no local do embate intenso trânsito automóvel e uma passagem aérea destinada ao atravessamento de peões a 6,80m de distância, a cerca de 7 metros dessa passagem aérea e onde passam a existir quatro faixas de rodagem para o trânsito que circulava no sentido do JN, o assistido atravessou a via a correr, esquivando-se por entre os veículos que circulavam nas faixas de rodagem mais à esquerda da ocupada pelo veículo […], indo de encontro a este que, encontrando-se a cerca de 5 metros, travou de imediato.
Ora se não se questiona que o condutor deve regular a velocidade de modo a que possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever nomeadamente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, n.º 1, do art.º 24, do CEst, considerando este último como o situado à frente do condutor, correspondente à secção da via abrangida pelo seu campo visual, não pode ser esquecido, que o dever de cuidado, ou mesmo se quisermos, de previsão, não pode ir até ao ponto de ser imposto a um condutor que tenha em conta as condutas culposas de outrem, ou a ocorrência de situações inesperadas, caso do surgimento, inopinado de um peão na via, por onde transita”.
[9] Segundo o factualismo provado.
[10] V. factos provados.
[11] Não se tendo apurado sequer que era possível tê-la avistado antes, pois não se pode olvidar que a vítima atravessava a via por entre veículos em circulação, o que tudo indica que a sua visibilidade não seria fácil quando se encontrava nas outras faixas de rodagem.
[12] Afirma o arguido - transcrição a fls. 496:
“Eu guinei o máximo possível para o lado esquerdo, portanto, contra o separador de betão, e na mesma altura a vítima corre para o mesmo lado esquerdo, embatendo no guarda-lama do carro, tombando sobre o capôt e sendo colhida pelo pilar frontal do carro”.
[13] V. depoimento da testemunha G……., transcrito a fls. 492.
[14] Que diz “Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente”.
[15] Pois se não tivesse ocorrido o embate a vítima ainda que teria de atravessar as outras três faixas em sentido contrário para atingir a berma do seu lado oposto.