CONTRATO DE SEGURO DE CAÇADOR
INTERPRETAÇÃO
ÂMBITO
CONTRATO
Sumário

I – O contrato de seguro de caçador, como seguro obrigatório de responsabilidade civil, de que beneficia terceiro lesado que não (só) o segurado, tem a natureza de contrato a favor de terceiro (art. 443º, do CC), podendo aquele, no exercício do seu direito e em excepção ao princípio da relatividade dos contratos, demandar directamente a seguradora, exigindo desta a prestação a que a promitente (seguradora) se obrigou.
II – Na presença do negócio formal do seguro, em atenção ao que dispõe o art. 238º, nº1, do CC, a declaração não pode “valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”, sentido que passa a valer (ainda que sem correspondência verbal no texto do documento) se a) – corresponder à vontade real das partes e b) – as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade, de forma que se privilegie a interpretação que respeite a real vontade das partes e conduza ao maior equilíbrio das prestações.
III – Nestes contratos, o sentido hipotético da declaração que deve prevalecer no quadro objectivo da respectiva interpretação não pode prescindir de um mínimo de correspondência no texto do documento, como decorrência do carácter solene do negócio, prevalecendo, na dúvida, o sentido mais favorável ao aderente, como protecção da parte mais fraca.
IV – Se , no seguro, para efeitos de cobertura (arts. 1º e 3º), as partes não fizeram depender a garantia do facto do acidente se produzir no âmbito da perigosidade típica (fazer fogo ou tiro – embora se entenda e aceite ser essa especial perigosidade a razão ou a causa da imposição do seguro obrigatório), deve o respectivo âmbito alargar-se a qualquer acidente que, no local de caça e no exercício da caça, seja causado pela arma (de fogo), independentemente de resultante de disparos, lançamento de projécteis ou, mesmo, explosão inerente ao manejamento da arma.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1) – B………., residente no ………., freguesia de ………., concelho de Celorico de Basto, intentou contra Companhia de Seguros C………., SPA, com sede na ………., Lisboa, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, pedindo a condenação desta a pagar-lhes a quantia global de € 139.634,85 (sendo € 18.900,00 da proveniência referida em 33 do seu articulado inicial, € 95.734,85 euros por danos de natureza patrimonial, e € 25.000,00 euros por danos de natureza não patrimonial) bem como a quantia que se venha a liquidar em execução de sentença pelos demais danos de natureza patrimonial que venha a suportar, uma vez que as lesões ainda se não consolidaram, sendo previsível que tenha que vir a ser submetido a novos tratamentos e intervenções cirúrgicas, e cuja liquidação requer seja relegada para execução de sentença;

Alega que, no dia 2 de Fevereiro de 2003, pelas 08,00 horas, quando o autor circulava com armas, em Mirandela, ocorreu um determinado sinistro, em que foram intervenientes o autor e D………., sendo que o D………., de forma distraída e inopinada, virou a sua arma para a direita, a qual se encaixou no meio das pernas do autor que se travou na mesma, desequilibrou-se e caiu a cerca de 15 metros abaixo da encosta em que seguiam.
O acidente ocorreu por culpa do referido D………., que tinha a sua responsabilidade civil pelo exercício da actividade de caçador transferida para a ré.
O autor sofreu graves danos, de natureza patrimonial e não patrimonial, que devem ser indemnizados.

Citada regularmente, a ré não contestou.
Considerados confessados os factos articulados pelo autor, foi a acção julgada parcialmente procedente e a RÉ condenada a pagar ao AUTOR a quantia de global de quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove euros (€ 49.879,00, acrescida de juros sobre a quantia de dezoito mil e novecentos euros (€ 18.900,00), desde a citação, e sobre o restante montante, desde a data da sentença até integral e efectivo pagamento, contados à taxa de 4%.

2) - Dessa sentença traz a ré o presente recurso de apelação.
A encerrar as suas doutas alegações, conclui:
I. Não prevendo o contrato de seguro em causa o direito de acção do apelado directamente sobre a apelante aquele não a podia demandar, por, em relação a esse contrato, ser res inter alios, pelo que o tribunal a quo ao não o considerar violou o previsto no artº 406° do CC, devendo a apelante ser, pois, absolvida do pedido.
II. O acidente descrito nos autos, não tendo decorrido da especial perigosidade da arma de fogo enquanto tal, mas apenas do seu uso igual a de um outro qualquer objecto que, fisicamente, se metesse entre as pernas do apelado e o fizesse cair, não está coberto pelo contrato de seguro em apreço, pelo que o tribunal recorrido, ao considerá-lo, violou o disposto no DL. 30/86, de 27.08. e no DL. 227-B/2000, de 15.09. e no artº 406º do CC, devendo a apelante ser, pois, absolvida do pedido.
III. Não foi alegado nem ficou provado nos autos que o apelado fosse sofrer quaisquer lucros cessantes futuros de perdas de rendimento, não bastando, para esse efeito, a mera prova de que aquele ficou, como sequela, com uma “IPP de 27,28%”, pelo que o tribunal recorrido ao considerar o contrário, violou o disposto nos artºs 563° e ss. do CC, e nos artºs 559° e 564° do CPC, devendo a apelante ser absolvida do pagamento de € 100.000,00 fixados para esse efeito.

TERMOS EM QUE o presente recurso deverá ser julgado procedente,
revogando-se ou alterando-se a sentença recorrida como atrás concluído,
assim se fazendo
JUSTIÇA!”

Em doutas contra-alegações o apelado defende a confirmação do julgado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

3) - É a seguinte a factualidade provada, não impugnada em recurso:
1. O A nasceu em 13 de Março de 1943.
2. No dia 02 de Fevereiro de 2003, cerca das 08,00 horas, o A. deslocava-se a pé, próximo da localidade de ………., em Mirandela, transportando armas de caça e no exercício dessa actividade, na companhia de D………., subindo um monte a fim de melhor se posicionarem para o exercício da caça,
3. O D………., que seguia lado a lado com o A., na sua mão direita, transportava a arma de fogo com a qual iria caçar, e distraiu-se e inopinadamente virou a sua arma para a sua direita, a qual se encaixou no meio das pernas do A., que se travou na mesma, desequilibrou-se e foi cair cerca de 15 metros abaixo da encosta em que seguiam.
4. O referido D………., de imediato assumiu a responsabilidade pelo sucedido.
5. O D………., mediante escrito titulado na Apólice n.º ………… tinha, pela contrapartida do pagamento de um prémio em dinheiro, acordado com a Ré Seguradora transferir para esta a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros na sua actividade de caçador até ao limite da cobertura obrigatória nos termos das condições gerais e particulares da apólice citada, contrato esse que à data era válido e estava em vigor.
6. De facto, a R. fez vistorias ao local do acidente e aos danos e aceitou a sua responsabilidade na indemnização ao A.
7. Em virtude do acidente, o A. foi transportado para o Hospital de Mirandela, onde recebeu os primeiros tratamentos.
8. Foi transferido para o hospital de Vila Real, onde lhe foi imobilizado o membro superior direito e dali foi posteriormente transferido para o Hospital de Fafe, onde lhe foi efectuado um TAC, à articulação do ombro, vindo, no dia 06 de Fevereiro de 2003, a ser transferido para o Hospital de Santo António no Porto onde foi submetido a uma intervenção cirúrgica, com a colocação de uma prótese nessa articulação, onde permaneceu internado até 11 de Fevereiro de 2003, sendo novamente transferido para o Hospital de Fafe.
9. Em consequência da queda, dita em 2, o A. sofreu fractura do membro superior direito que determinou colocação de uma prótese na articulação com o ombro.
10. Por causa das lesões físicas que apresentava, foi operado no Hospital de Santo António, no dia 06 de Fevereiro de 2003.
11. Foi-lhe colocada uma prótese e um aparelho suspensor.
12. Só após 5 semanas iniciou diariamente tratamentos de fisioterapia pelo período de 9 meses, sob supervisão periódica do médico de consulta externa de ortopedia do hospital de Santo António.
13. Tendo-lhe sido sugerida a prática de natação 3 vezes por semana e muito cuidado no levantamento e transporte de pesos.
14. Somente passados 9 meses pôde retomar o trabalho.
15. Manteve acompanhamento médico na consulta externa de ortopedia no Hospital de Santo António.
16. Para se deslocar ao hospital e aos sucessivos tratamentos, teve de recorrer à ajuda de amigos e familiares.
17. Apresenta como sequelas do acidente:
- Dores intensas e permanentes na face anterior da raiz do antebraço direito, que aumentam de intensidade ao longo do dia e que o impedem de descansar durante a noite;
- Está limitado na condução do automóvel;
- Receia qualquer toque no braço, mesmo acidental, que lhe poderá danificar a prótese;
- Apresenta cicatriz que abrange a região superior da face anterior do Tórax e face anterior da raiz do membro superior direito com 13 cm de comprimento e direcção obliqua (de cima para baixo e de dentro para fora;
- Dismorfia do contorno do musculo da deltóide direito;
- Rigidez da articulação do ombro, com limitação na sua flexão anterior 90º, e flexão posterior 20º, bem como abdução (90º);
- Não é capaz de elevar o membro superior direito, a um nível situado acima da cabeça;
- Impossibilidade de bater palmas com as mãos;
- Ausência de rotação externa, da articulação e limitação na sua rotação interna;
- Dificuldade em atingir o dorso acima da região lombar;
- Apresenta amputação da cabeça do úmero, substituída pela prótese metálica;
- Limitação da mobilidade do ombro;
- Não pode levantar objectos cujo peso ultrapasse 5 kgs., mesmo que por curtas distâncias;
- Impedido de pegar numa criança para a colocar ao seu colo;
- Impedido de levantar uma botija de gás;
- Impedido de levantar qualquer saco de compras de supermercado que exceda os 5 kg;
- Impedido de levantar uma mala de viagem;
- Limitação estomatológica/medicina dentária, pois qualquer extracção dentária tem que ser precedida por antibioterapia adequada a definir pela especialidade de estomatologia;
- IPP de 27,28%, contudo a delegação regional de saúde do Norte atribui-lhe uma incapacidade global de 71%.
18. Foi submetido a uma intervenção cirúrgica, sob o efeito de anestesia geral.
19. O A. é uma pessoa particularmente agitada, nervosa, rabugenta que não era antes do acidente.
20. Nos dias que se seguiram, à intervenção a que foi sujeito, teve sempre muitas dores, tendo necessitado do auxílio da esposa e dos filhos até mesmo para se deslocar para a casa de banho e cuidar da sua higiene.
21. Somente retomou, por ordens do médico, a sua actividade em 31 de Outubro (data da consolidação das fracturas).
22. No entanto nunca o pôde realizar convenientemente, uma vez que as dores continuavam, como continuam a acometê-lo, além das dores no antebraço direito, que sentia e sente quando tinha e tem de realizar algum trabalho que lhe exija ter de fazer força.23. Adorava desporto e praticava regularmente a caça, da qual era aficionado, tendo em consequência das lesões físicas sofridas, abandonado tal actividade que não pode mais praticar.
24. Todas as referidas lesões e sequelas resultaram deste acidente.
25. O A., também em consequência do acidente, sofreu receio pela própria vida, e angústia que recorda constantemente.
26. Na intervenção cirúrgica, com colocação de prótese, a que foi sujeito, receou pela sua integridade física e pela própria vida.
27. A cicatriz que abrange a região superior da face anterior do Tórax e face anterior da raiz do membro superior direito com 13 cm de comprimento e direcção oblíqua (de cima para baixo e de dentro para fora) impede o A. de se desnudar, na praia, por vergonha da mesma.
28. As dores e padecimentos sofridos são quantificáveis em grau 3 numa escala numérica de 7 graus.
29. O A. esteve sem trabalhar e auferir qualquer vencimento entre 02/02/2003 e 31/10/2003 num total de 271 dias (9 meses) em que deixou de auferir a quantia média mensal de 2.100,00€, que auferia a titulo de colaboração com várias empresas que geria e acompanhava no seu dia a dia, designadamente E………., duas Lojas de venda ao público de F………. (G……… – Felgueiras e Fafe), dois cafés, um na freguesia de ………., concelho de Fafe e outro na cidade de Fafe,
30. Durante todo esse período não recebeu da Ré qualquer quantia às perdas patrimoniais.
31. Ficou incapaz de conduzir um automóvel de caixa manual.
32. Não tinha, antes do acidente, qualquer deficiência física.
33. À data do acidente o Autor era saudável e robusto, tinha 60 anos de idade sem qualquer defeito físico e apresentava uma saudável alegria de viver.
34. O A. poderá vir a ser submetido a novas intervenções cirúrgicas e tratamentos, factos que lhe acarretará novas perdas de rendimento do seu trabalho.

4) – Perante esta factualidade, vejamos se assiste razão à recorrente que suscita as seguintes questões, a pedir decisão:
a) se o autor não podia demandar directamente a apelante;
b) se o acidente não está a coberto da garantia do seguro e
c) se não há a considerar, por não alegados, prejuízos por lucros cessantes.

4.1.) – Quanto á primeira das questões, é manifesta a falta de razão da apelante.
O contra de seguro que serve de base à alegada responsabilidade desta é um seguro obrigatório de responsabilidade civil (arts. 25º da Lei 173/99, de 21/9, e 72º do DL 227-B/2000, de 15/9.
Estabelece o citado artigo 25º/1 (Seguro de responsabilidade civil) – “para o exercício da caça os caçadores têm de ser detentores de seguro obrigatório de responsabilidade civil por danos causados a terceiros”.
Por sua vez, o artigo 72º/1 referido preceitua – “para o exercício da caça os caçadores devem ser detentores de seguro de responsabilidade civil contra terceiros, no montante mínimo de 10.000.000$00 no caso de acto venatório com arma de caça e de 2.000.000$00 nos restantes casos”.
Está clausulado no artigo 1º das Condições Gerais da Apólice que “TERCEIRO: aquele que, em consequência de um sinistro coberto por este contrato, sofra uma lesão que origine danos susceptíveis de, nos termos da lei civil e desta apólice, serem reparados ou indemnizados”. É esse terceiro o beneficiário da atribuição patrimonial a que a seguradora se obrigou, em caso de acidente, “a pessoa ou entidade à qual deve ser liquidada a indemnização nos termos da lei civil ou desta apólice”. E, como consta do artigo 19º da Condições Gerais da apólice que “a seguradora substituirá o segurado na regularização amigável ou litigiosa de qualquer sinistro que, ao abrigo do presente contrato, ocorra durante o período de vigência do mesmo”.

O contrato de seguro de caçador, como seguro obrigatório de responsabilidade civil, de que beneficia terceiro lesado que não (só) o segurado, tem a natureza de contrato a favor de terceiro (artigo 443º do CC), podendo aquele, no exercício do seu direito, demandar directamente a seguradora[1], exigindo deste a prestação a que a promitente (seguradora) se obrigou.
Esse tipo de contratos cria um direito para alguém que é estranho ao contrato e “neste sentido se afirma que o contrato a favor de terceiro constitui uma excepção ao princípio da relatividade dos contratos”[2]. Em relação ao lesado (beneficiário da atribuição patrimonial a cuja liquidação a seguradora fica adstrita), no caso da ocorrência de sinistro, o contrato de seguro constitui a base do direito contra a seguradora. O terceiro lesado é credor (por isso, que pode exercer o direito) da prestação a que a seguradora se obrigou (prometeu) com a celebração do contrato, no caso da ocorrência do evento futuro e incerto (da concretização do risco), a que fica subordinada a sua prestação.
Não se notam discordâncias quanto à possibilidade do terceiro lesado demandar, com base no contrato de seguro (em causa), directamente a seguradora para desta haver a prestação que, pelo contrato, prometeu (se obrigou) pagar ao lesado.
Não se verifica violação da norma do artigo 406/2 do CC (quanto à relatividade dos contratos), pelo que improcede a questão.

4.2) – Da segunda questão – se o acidente em referência no processo não está ao abrigo da cobertura do contrato de seguro celebrado com a apelante.
Como e verifica dos documentos de fls. 12 e 19 (docs. 1 e 6 juntos com a petição), da proveniência da ré, esta aceitou a responsabilidade pelo sinistro e propôs ao autor uma indemnização (em função de uma incapacidade que, pelos seus serviços cínicos, a mesma lhe atribuiu).
Nesta acção, confessa que, após averiguações que entendeu proceder (cfr. artigo 19º da Condições Gerais da Apólice), aceitou a responsabilidade na indemnização ao autor – ver alínea 6 da matéria de facto.
Vem, agora, firmar uma posição contraditória com essa tomada de posição anterior, sem que esclareça ou justifique essa diferença de actuação
Não quadra bem com a lealdade de conduta, com a rectidão de procedimento, com a actuação segundo a boa fé, por que os sujeitos de direito devem pautar a sua conduta, não só na constituição das relações entre eles como no desempenho das relações constituídas (cfr. arts. 227º/1, 334º e 762º/2 do CC), dar o dito por não dito, assumir a responsabilidade, propor uma indemnização e vir a declinar, no processo, a responsabilidade pelo sinistro.
Não é porém, na ofensa a estes princípios, que fundam os alicerces da demanda.

Diz a apelante que o sinistro não ocorre no âmbito da cobertura do seguro.
Interpretando-se a posição por ela afirmada, qualquer dano só seria indemnizável se resultasse de um disparo (mesmo que por acidente ou mero acaso); fez-se fogo, lançaram-se projécteis e houve danos. Responde a seguradora por esses danos, até aos limites do seguro.
O que, diz, não aconteceu no caso trazido ao processo.
Na verdade, na origem dos danos que se pretendem indemnizados, não está um tiro, um disparo, um projéctil lançado pela arma de fogo. Esses danos não resultam da perigosidade típica do uso de uma arma de fogo – fazer fogo, dar tiros, lançar projécteis pela explosão da pólvora.
Entendemos, no entanto, que o sinistro não cai fora da cobertura do seguro.

O contrato de seguro é um contrato de adesão, limitando-se o cliente a aderir, sem possibilidade de discussão, ao clausulado (padronizado) proposto (e predisposto) pelo segurador; clausulado esse, no que concerne aos seguros obrigatórios, sujeito à supervisão do Instituto de Seguros de Portugal que tem o dever de verificar a conformidade legal das cláusulas gerais e que vem a impor o recurso a apólices uniformes.
Trata-se de um contrato formal, a cuja existência, validade e prova é necessário um documento escrito (a apólice, produzindo idêntica função a respectiva minuta) - formalidade essencial ou ad substantiam - e que se rege pelas disposições (não proibidas por lei) da respectiva apólice e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do Código Comercial (artº 427º desse código) e legislação complementar específica do ramo de seguros em causa.
O contrato de seguro em geral é aquele em que uma das partes (o segurador) se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada (o prémio), no caso da ocorrência de um evento futuro e incerto (a realização de um risco), a efectuar (a favor do segurado ou de outrem - o beneficiário, ou seja a pessoa a favor de quem reverte a prestação a cargo da seguradora), determinada prestação, seja uma indemnização pelos danos sofridos em consequência desse evento seja um montante previamente estipulado. Entre os elementos essenciais desse contrato, aleatório por natureza, estão o risco porque se segura e o acontecimento futuro e incerto de que depende a realização da prestação do segurador.
No domínio da interpretação, as “cláusulas gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam” (artigo 10º do DL 446/85, 25/10). No que respeita à interpretação dos contratos vigora a teoria da impressão do destinatário.
Em princípio, a declaração negocial vale de acordo com a vontade real do declarante, se esta é conhecida do destinatário. Se este entendeu o sentido real da declaração é com esse sentido que ela vale, independentemente dos termos que a mesma assume. Se esse sentido não foi captado pelo declaratário (estando este de boa fé), à determinação do sentido da declaração importa o artº 236º/1 do CC, que estipula "a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante ...". Esse sentido é aquele que um homem médio (dotado de inteligência, sagacidade e diligência médias - o bonus pater familias), na posição do destinatário da declaração, dela extrairia. E, no que respeita à cláusulas gerais ambíguas, valem com o sentido que lhes daria um contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las, colocado na posição do real aderente (artigo 11º/1 daquele DL). São disposições que privilegiam o sentido objectivo da declaração negocial.
Na presença do negócio formal do seguro, em atenção ao que dispõe o artigo 238º/1 do CC, a declaração não pode “valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso", sentido que passa a valer (ainda que sem correspondência verbal no texto do documento) se a) corresponder à vontade real das partes e b) as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade[3], de forma que se privilegie a interpretação que respeite a real vontade das partes e conduza ao maior equilíbrio das prestações.
Nestes contratos, o sentido hipotético da declaração que deve prevalecer no quadro objectivo da respectiva interpretação não pode prescindir de um mínimo de correspondência no texto do documento, como decorrência do carácter solene do negócio, o que apenas significa que é o texto do documento que surge como limite à validade do sentido com que o negócio pode valer, apurado segundo as regras gerais da interpretação[4].
Na averiguação do sentido da declaração, da real intenção das partes no contrato de seguro, limitada pelo princípio do artigo 238º, 1, do CC, deve ter-se presente o disposto no artigo 11º, 2, do DL 446/85, de 25/10, (na redacção do DL 220/95, de 31/1), quanto às cláusulas gerais, e que o segurador é o predisponente e o tomador do seguro o aderente, pelo que ‘na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente’[5], protegendo-se a parte mais fraca.

Atenta a descrição do acidente, que está na base do processo, nos termos das alíneas 2 e 3 da matéria de facto, não se produz, como se disse, no âmbito da perigosidade típica de uma arma de fogo. Na verdade, o acidente aconteceu com a arma de fogo, como poderia ter acontecido com outro instrumento, nomeadamente com um pau ou com um ferro (como refere a apelante), mas foi com a espingarda.
E aconteceu com o transporte de armas de caça, no local de caça (no monte, à procura da melhor posição para caçar) e no exercício dessa actividade.
O artigo 2º, alínea c), da Lei 173/99, de21/9, define o “exercício da caça ou acto venatório” como “todos os actos que visam capturar, vivo ou morto, qualquer exemplar de espécies cinegéticas que se encontre em estado de liberdade natural, nomeadamente a procura, a espera e a perseguição”.
A apólice uniforme do seguro obrigatório de responsabilidade civil dos caçadores, quanto às definições, objecto do seguro e garantias prevê:
a) no seu artigo 1º:
Acidente ocorrido durante o exercício da caça – “o acontecimento danoso emergente de porte, uso ou transporte de arma de fogo[6], arco e flecha, besta ou virotão, ou qualquer outro apetrecho de caça legalmente permitido, e em que intervenha actividade directamente relacionada com o exercício da caça.
Exercício da caça - toda a actividade tendente à ocupação ou apreensão de animais bravios, designadamente os actos de esperar, perseguir, apanhar ou matar aqueles animais.
Terceiro – “aquele que, em consequência de um sinistro coberto por este contrato, sofra uma lesão que origine danos susceptíveis de, nos termos da lei civil e desta apólice, serem reparados ou indemnizados”.
b) no seu artigo 2º: Objecto do Contrato – “o presente contrato tem por objecto a garantia da responsabilidade civil do segurado, emergente do exercício da caça, nos termos da legislação específica aplicável”.
c) artigo 3º: Garantias do Contrato – “1. O presente contrato cobre, até ao limite do capital fixado nas condições particulares, as indemnizações que possam legalmente recair sobre o segurado, por responsabilidade civil, em consequência de acidente ocorrido no local de caça e durante o exercício da mesma com arma de fogo, com arco e flecha ou com besta e virotão, não envenenados.
2. A cobertura prestada engloba os acidentes que sejam da responsabilidade do próprio segurado, por batedores exclusivamente ao seu serviço e ainda por cães de caça de que seja proprietário”.
Nas “Condições Particulares” (fls. 99/100 do processo) – que prevalecem sobre as condições gerais, desde que não contrariem as normas legais imperativas, as partes não alteram o conceito de “acidente durante o exercício da caça” nem o âmbito da garantia, atrás referidos.
Ora, no seguro, para efeitos de cobertura (arts. 1º e 3º), as partes não fizeram depender a garantia do facto do acidente se produzir no âmbito da perigosidade típica (fazer fogo ou tiro – embora se entenda e aceite ser essa especial perigosidade a razão ou a causa da imposição do seguro obrigatório), pois alarga-se a qualquer acidente que, no local de caça e no exercício da caça, seja causado pela arma (de fogo), independentemente de resultante de disparos, lançamento de projécteis ou, mesmo, explosão inerente ao manejamento da arma. Se a justificação para um seguro obrigatório resida no perigo especial que é manejar armas de fogo, não significa que se “segure” apenas esse risco específico.
Seguro é que o acidente ocorreu em local de caça e durante a caça ou a preparação para a caça, quando o segurador/tomar do seguro e o terceiro lesado subiam um monte para melhor se posicionarem para caçar (als. 2 e 3 da matéria de facto), por isso que no exercício da actividade de caça, no sentido plasmado no artigo 2º, alínea c), da Lei 173/99, e artigo 1º das Condições Gerais da Apólice.
Daí se entender que o sinistro em causa no processo está ao abrigo da cobertura do contrato de seguro celebrado pela apelante. Seria esse o sentido que um contraente indeterminado normal que, na posição do real aderente (o tomador do seguro), extrairia das cláusulas contratuais em causa. Em qualquer ambiguidade, deve prevalecer o sentido mais favorável ao aderente.
Consequentemente, não procede a pretensão.

4.3) - Quanto à questão de não se alegar nem provar ter o autor sofrido “quaisquer lucros cessantes futuros de perdas de rendimentos”.
Não obstante a pretensão da apelante de ser absolvido do pagamento de € 100.000.00, fixados para esse efeito (reparação por perda de rendimentos futuros), nota-se que aquela não foi condenada no pagamento desse montante (total), mas apenas € 49.879,00 (por nele se esgotar o capital do seguro) e, de facto, a título de reparação por perdas de rendimentos futuros, limita-se a uma reparação a dez mil, novecentos e setenta e nove euros, pois que do valor da condenação, vinte mil euros respeitam a danos não patrimoniais e dezoito mil e novecentos euros referem-se a danos efectivos por perda de rendimentos enquanto o autor esteve impossibilitado de trabalhar.
Certo é, porém, que na sentença se entendeu que a reparação integral por perdas de rendimentos futuros demandaria a quantia de € 100.000,00.

Se o juiz, na indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, não está condicionado pela alegação das partes, não pode socorrer-se de factos que por elas não tenham sido trazidos ao processo (artigo 664º do CPC), sem prejuízos daqueles que oficiosamente pode atender na sentença, nos termos do artigo 264º desse diploma, como sejam os factos notórios e factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.
Ao contrário do afirmado pela apelante, na sentença não se recorre a factos não alegados para se concluir por aquele valor global ajustado à reparação do dano, não se violando a norma do artigo 664º do CPC.
O autor alega uma incapacidade permanente de 27,28% (aliás, atribuída pela seguradora), bem inferior à que os danos descritos poderão justificar em termos de incapacidade geral a que, como bem afirma a apelante, deve atender-se na reparação civil. E ninguém refere que o autor ficou com incapacidade total (100%) para o trabalho, extraindo as inerentes consequências, mas atém-se a decisão apenas a esses reduzidos (mas graves, o que as lesões descritas não deixam atenuar) 27,28%.
O autor alega os rendimentos que auferia na sua actividade (média de € 2.100,00 mensais), a perspectiva de plena actividade futura até aos setenta e cinco anos, e a perda de rendimentos, em função da perda de capacidade de trabalho, não conseguindo o mesmo rendimento que, antes, obtinha em virtude da incapacidade, das dores e da perda de calma e concentração (ver items 45 a 51 da petição). E toda essa factualidade se encontra provada (mesmo que, eventualmente, se não descreva na sentença – arts. 659º/3 e 484º/1 do CPC), pelo que deve ser atendida. E tendo presente que, antes do sinistro, o autor era pessoa sem qualquer deficiência física, saudável e robusta, com 60 anos de idade.
Se tais factos bastam para se fazer um juízo pela adequação ou não do valor global de cem mil euros para reparar tais danos, é questão diversa.

Com as limitações físicas alegadas e descritas na matéria de facto, incluindo a IPP de 27,28%, não é de admitir que se pretenda que a pessoa afectada não fica diminuída na sua capacidade de trabalho, de obtenção de ganhos, de produção (e o homem é uma máquina produtiva e que – independentemente dos humanismos apregoados, com tanto de oco como de conveniente - cada vez mais tende a ser valorizada essencialmente por essa faceta e descartado quando não tem essa capacidade). Uma redução na capacidade de trabalho implica sempre com a capacidade produtiva da pessoa, com a possibilidade de obter rendimentos, o que, em regra, ou importa a sua diminuição ou, ao menos, esforço suplementar para manter a mesma produtividade, daí que a afectação da capacidade de trabalho constitui um dano indemnizável[7].
A indemnização deve abranger todos os danos resultantes da lesão e refiram-se aos prejuízos efectivos ou correspondam a benefícios frustrados, entre os quais se encontram os relativos da ganhos futuros que sejam previsíveis, isto é, os que, com elevada probabilidade, segundo critérios de normalidade ou o que acontece normalmente (o id quod plerumque accidit), se não fosse a lesão, vir-se-iam a obter (arts. 562º e 564º/1 e 2 do CC). Com toda a probabilidade, uma pessoa, em idade activa, continua a trabalhar e, por essa via, obter rendimentos que, em virtude da lesão, se vêm a frustrar. São pois danos previsíveis e, portanto indemnizáveis. E a indemnização deve equivaler ao que o lesado teria obtido se não fosse a lesão.
A dificuldade está em quantificar os danos, dada a incerteza do futuro, a diversidade de factores que interferem na quantificação dos danos e o desconhecimento da evolução futura do lesado, nomeadamente no campo profissional e laboral. Nos termos do artigo 566º/3 do CC, “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”. Daí que, no cálculo da indemnização por perda da capacidade de ganho, além do recurso às tabelas de cálculo financeiro como referenciais tendentes a obter-se alguma uniformização nas indemnizações, deve recorrer-se sobretudo à equidade, tendo presente a verosimilhança, segundo o normal devir das coisas e as circunstâncias concretas do caso. Ora, na situação, tendo presentes a idade do autor (60 anos), que se tratava de pessoa saudável e robusta, no valor dos rendimentos médios mensalmente auferidos (€ 2.100,00), pelo trabalho desenvolvido, a esperança de vida, não é excessivo considerar-se uma vida activa, em pleno, até aos 70 anos, sem que se despreze que, passada essa idade, a pessoa não se reduz à inactividade, mantém capacidade produtiva de rendimentos, continua a viver, a ter despesas que implicam a existência de meios para satisfazer as suas necessidades. Considera-se, no entanto, que segundo o normal curso das coisas, face à idade do autor, não se perspectiva que melhore a sua capacidade de trabalho nem, por essa razão, um aumento dos inerentes rendimentos. Perante este circunstancialismo, não só a incapacidade permanente de 27,28% como todas as demais limitações que afectam o autor e que a matéria de facto revela, melhor se adequaria uma indemnização de setenta mil euros, por perdas de rendimentos futuros. De qualquer forma, muito superior ao que, a esse título, a apelante foi condenada a pagar, pelo que o recurso improcede.

5) – Pelo exposto, acorda-se no tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 12 de Junho de 2008
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira

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[1] Ver Ac. do STJ, de 30/03/89, n BMJ 385/563 – “o contrato de seguro de responsabilidade civil é um contrato a favor de terceiro e assim, o segurador, ao celebrar esse acto jurídico, obriga-se, também, para com o lesado a satisfazer a indemnização devida pelo segurado, ficando assim, aquele com o direito de demandar directamente a seguradora, ou o segurado, ou ambos, em litisconsórcio voluntário”. Ver Mota Pinto, em “Cessão da Posição Contratual” (1982), pág. 33; Vaz Serra, na Revista de Legislação e Jurisprudência, 97º, 296 e segs., e 99º, 56/57; A. Pinheiro Torres, em “Ensaio obre o Contrato de Seguro”, 82/83.
[2] Diogo Leite Campos, em “Contrato a favor de terceiro”, 2ª ed., 107.
[3] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 2º Ed/451
[4] Ver Acs. STJ, de 11/7/89, AJ, 1º/1-12; da RP, na CJ/1982, 4, 239.
[5] Ver Ac. STJ, de 12/05/05, em ITIJ/net, proc. 05B484.
[6] Itálicos nossos.
[7] Sentido em que se vem afirmando a jurisprudência – ver, entre outros, Acs. STJ, de 14/05/08, proc. 08B1343 - “O dano biológico, de cariz patrimonial, justifica a indemnização, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial”; de 22/01/08, proc. 07A4338 – “o dano biológico, de cariz patrimonial, justifica a indemnização, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial, tendo que ser indemnizada a maior dificuldade para o exercício das actividades profissionais e da vida quotidiana até ao fim da vida activa (até ao termo médio de 73 anos, no caso dos homens); de 30/10/07, proc. 07A3340 – “o lesado não tem de alegar perda de rendimentos laborais para o tribunal lhe atribuir indemnização por ter sofrido incapacidade parcial permanente, apenas tem de alegar e provar que sofreu incapacidade parcial permanente, dano cujo valor deve ser apreciado equitativamente” e de 7/11/2006 e 30/11/2006, procs. 06A3349 e 06B3622 – todos em ITIJ/net.