SERVIDÃO PREDIAL
SERVIDÃO VOLUNTÁRIA
EXTINÇÃO
DESNECESSIDADE
PROVAS
VALOR EXTRAPROCESSUAL
Sumário

I – Não é possível defender, “de jure constituto”, a extinção das servidões voluntárias com fundamento em desnecessidade.
II – O que a lei exige é a prova, em ponderação actualizada e prudente do julgador, da desnecessidade da continuidade ou permanência da servidão, aferida essa desnecessidade pelo momento da introdução da acção em juízo, não tendo, pois, aquela (desnecessidade) de ser superveniente.
III – Sob pena de se conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui, não são os factos provados numa acção que, ao abrigo do valor extraprocessual das provas, podem ser invocados noutra, antes e apenas pode, por norma, o tribunal, nesta segunda acção, servir-se dos meios de prova (depoimentos e arbitramentos) que foram utilizados na anterior.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


I.
B………. e mulher C………. intentaram a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra D………. e mulher E………., pedindo a condenação dos RR.:
a) A reconhecerem os AA. como donos e legítimos proprietários do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana de ………. sob o artigo 4.457°;
b) A reconhecerem que os AA. são donos e legítimos comproprietários das águas do poço instalado no prédio dos RR. ou, quando assim se não entenda, que em favor do prédio dos AA. e em detrimento o prédio dos RR. existe constituída uma servidão de águas do referido poço para rega, gastos e consumos domésticos do prédio dos AA.;
c) A reconhecerem que em favor do prédio dos AA. e em detrimento do prédio dos RR. existe constituída por usucapião e destinação do pai de família uma servidão de aqueduto desde o referido poço até ao prédio dos RR., por canalização subterrânea e para condução das águas do mesmo e bem assim uma servidão de passagem desde o muro divisório do prédio de AA. e RR. e até ao poço referido;
d) A procederem à demolição do muro construído e que obstaculiza o acesso dos AA. ao prédio dos RR. pelo portão obstruído;
e) A absterem-se de praticar quaisquer actos ou factos que impeçam os AA. do livre acesso ao referido poço e bem assim à utilização das águas do mesmo em benefício do seu prédio;
f) A pagarem aos AA. a indemnização que vier a ser liquidada em execução de sentença emergente da privação do uso, gozo e fruição das águas do mesmo poço.
Alegaram que eram donos e legítimos possuidores de 3/12 avos de um prédio urbano de dois pavimentos, dependências e logradouro, sito na Rua ………., da freguesia de ………., da comarca de Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 135, sendo dono dos restantes 9/12 avos o casal de F………. e G………., pais da ré mulher.
Entretanto, na sequência de escritura de divisão de coisa comum a que se procedeu, lavrada no Cartório Notarial de Espinho, em 5/6/79, aquele prédio urbano foi dividido em dois prédios distintos, tendo sido adjudicado aos AA. o prédio agora identificado, como segue: Prédio urbano composto de cave, rés-do-chão e dois andares, com terreno a quintal junto e mais pertenças, sito à rua ………., …/…, da freguesia de ………., desta comarca, inscrito na matriz predial urbana sob o art° 4.457_ descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 04426, com inscrição a favor dos requerentes no G1.
Por si e antepossuidores, há mais de vinte, trinta e quarenta anos, de uma forma pública, à vista de toda a gente, pacífica, sem qualquer violência, continuadamente, sem qualquer hiato ou solução de continuidade, de boa-fé, ignorando lesar direitos doutrem, os AA vêm fruindo e utilizando de todas as comodidades e conveniências do citado imóvel, pagando contribuições e impostos, em suma agindo como seus legítimos proprietários, que o são.
O prédio acima identificado confina pelo lado Sul com prédio urbano dos RR. composto de casa de habitação com terreno a quintal, inscrito na competente matriz predial urbana sob o artigo 135°, correspondendo-lhe a fracção de 9/12 avos.
Um e outro prédio pertenceram aos mesmos antepassados comuns, ou seja aos pais da A. mulher e avós da Ré mulher, pois esta é sobrinha daquela.
O prédio dos AA. sempre foi abastecido de água para rega, usos domésticos e consumo através de poço instalado no prédio dos RR., onde os AA. mantêm instalado um motor para fornecimento dessa água, sendo visíveis no prédio dos RR. canalizações e tubaria que provêm directamente do referido poço para o prédio dos AA. e através das quais a água do poço é directamente derivada do prédio daqueles para o prédio destes.
Na referida escritura de divisão de coisa comum consta que o poço em causa é de meação e que ao prédio dos AA. fica a pertencer o direito à água do poço que fica instalado no prédio dos réus.
Embora os prédios dos AA. e RR. estejam devidamente demarcados com muro divisório em toda a extensão Nascente/Poente, existe nesse muro divisório, junto à casa dos AA., um portão de acesso ao poço instalado no prédio destes, o qual sempre foi utilizado pelos AA. para, do seu prédio, acederem directamente ao poço, instalado a escassos metros da linha divisória de ambos os prédios mas dento dos limites da propriedade dos RR., assegurando-se e tratando da conservação e reparação do motor ali instalado e certificando-se de qualquer avaria eventualmente existente em toda a rede de canalizações e tubaria.
Os RR., em finais do mês de Novembro de 1998, construíram um outro muro de vedação, contíguo ao existente, obstruindo completamente a passagem, tapando o portão de acesso ao poço, impedindo assim os AA. de ali entrarem para poderem abastecer-se de água como sempre fizeram.
A partir dessa data os AA. deixaram de ter água a abastecer a sua casa e quintal, desconhecendo os motivos mas que, certamente, advêm do facto de os RR. terem desligado a corrente eléctrica que alimenta o motor de extracção dessa água.
Estão assim os AA. impedidos de fruírem e utilizarem a água do poço em questão, por culpa dos RR..
Tal impedimento tem causado aos AA. prejuízos materiais e continuará a causar, já que não podendo socorrer-se da água do poço para rega, lavagem, consumo e gastos domésticos, terão de socorrer-se da rede pública, que tem custos.
Não podem os AA contabilizar neste momento os prejuízos sofridos e que terão ainda que sofrer em consequência de tal impedimento.
Por outro lado, os RR mantêm soltos no quintal onde se situa o referido poço sete cães de grande porte que também tomam impossível o acesso ao poço, temendo os AA. pela sua integridade física.
Aos AA. assiste o direito de serem restituídos à posse, gozo e fruição das águas do referido poço, como até então dispunham e fruíam. E bem assim ao acesso ao mesmo poço através do portão que os RR. abusivamente encerraram. Tanto mais que o prédio dos RR. é serviente relativamente ao prédio dos AA., achando-se constituída em favor deste uma servidão de aqueduto desde o referido poço até ao prédio dos AA. E bem assim a constituição da correspondente servidão de passagem por forma a poder ser assegurado o gozo e fruição das águas pelo acesso dos AA. ao prédio dos RR. onde se encontra instalado o referido motor.

Os RR. contestaram, dizendo que após a morte dos antepossuidores, houve divisão de coisa comum entre os herdeiros, pais da Ré e os AA., e porque a parte que ficou a pertencer aos AA. não era servida de água para os gastos domésticos, foi-lhes dada meação no poço existente na parte que coube aos pais da Ré.
Aquando da divisão de coisa comum, não ficou estipulada qualquer compropriedade ou condomínio de águas, mas apenas mera existência de um direito à água do poço em favor do prédio urbano que ficou a pertencer aos AA..
É verdade que os RR. construíram um muro no seu jardim para evitar o acesso indiscriminado dos AA. que, por maldade, envenenavam as suas árvores.
Foi dito, porém, a um familiar dos AA. que, sempre que precisassem de aceder ao dito poço, lhes seria permitida a entrada pela porta principal onde os RR. poderiam vigiar os seus actos e prevenir estragos naquilo que lhes pertencia.
Nunca os RR. desligaram a corrente eléctrica que alimenta o motor de bombagem de água para o prédio dos AA..
Em reconvenção disseram que antes de murarem o seu jardim, os RR. sofriam o envenenamento das suas árvores por substâncias nocivas deitadas pelos AA. na terra do referido jardim, onde se encontravam as raízes das referidas árvores.
O valor de reposição das árvores mortas importa em cem mil escudos.
Na altura em que foi feita a divisão de coisa comum referida nos autos, não havia abastecimento municipal por rede pública de distribuição de água ao domicílio na zona onde hoje residem AA. e RR. Nessa altura, o prédio urbano dos AA. precisava da água do poço situado no prédio hoje pertencente aos RR. para consumo doméstico. Na presente situação, os AA. dispõem de ligação à rede pública de distribuição de água, socorrendo-se da rede pública para obter água e, por isso, não necessitam da água do poço do prédio dos RR.
Pedem a condenação dos AA.:
a) A pagar-lhes a quantia de cem mil escudos por danos patrimoniais, mais juros legais a contar da data de notificação da reconvenção; e
b) Que seja declarado extinto o direito que o prédio urbano pertencente a B………. e C………. tem à água do poço situado no prédio urbano vizinho por desnecessidade.

Os AA. replicaram, pedindo a improcedência da reconvenção.

II.
Elaborou-se despacho saneador e organizou-se a condensação.
Procedeu-se a julgamento e veio a ser proferida sentença que julgou totalmente procedente a acção e condenou os RR.:
a) A reconhecerem os AA. como donos e legítimos proprietários do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana de Pedroso sob o artigo 4.457°;
b) A reconhecerem que os AA. são donos e legítimos comproprietários das águas do poço instalado no prédio dos RR.
c) E absolveu os AA. do pedido reconvencional.

Os AA. pediram a rectificação do que consideraram um lapso da sentença, nos termos do artigo 667.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, adiantando que, caso assim se não entendesse, arguiam a nulidade da mesma, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil, de modo a que na parte decisória passasse a constar a condenação nos demais pedidos.

Foi proferido despacho que reconheceu ter sido cometido o lapso, que se rectificou nestes termos:
“a) No relatório deverá passar a constar, para além dos pedidos a) e b), os seguintes, como “c) A reconhecerem que em favor dos AA. e em detrimento dos RR. existe constituída por usucapião e destinação de pai da família uma servidão de aqueduto desde o referido poço até ao prédio dos RR., por canalização subterrânea e para condução das águas do mesmo e bem assim uma servidão de passagem desde o muro divisório do prédio de AA. e RR. até ao poço referido”, como “d) A procederem à demolição do muro construído e que obstaculiza o acesso dos AA. ao prédio dos RR. pelo portão obstruído”, como “e) A absterem-se de praticar quaisquer actos ou factos que impeçam os AA. do livre acesso ao referido poço e bem assim à utilização das águas do mesmo em benefício do seu prédio”, e como “f) A pagarem aos AA. a indemnização que vier a ser liquidada em execução de sentença emergente da privação do uso, gozo e fruição das águas do mesmo poço”.
b) De igual, se ordena, que na parte decisória passará a constar como indo os RR. condenados a:
c) A reconhecerem que em favor dos AA. e em detrimento dos RR. existe constituída por usucapião e destinação de pai da família uma servidão de aqueduto desde o referido poço até ao prédio dos RR., por canalização subterrânea e para condução das águas do mesmo e bem assim uma servidão de passagem desde o muro divisório do prédio de AA. e RR. até ao poço referido.
d) A procederem à demolição do muro construído e que obstaculiza o acesso dos AA. ao prédio dos RR. pelo portão obstruído.
e) A absterem-se de praticar quaisquer actos ou factos que impeçam os AA. do livre acesso ao referido poço e bem assim à utilização das águas do mesmo em benefício do seu prédio.
f) A pagarem aos AA. a indemnização que vier a ser liquidada em execução de sentença emergente da privação do uso, gozo e fruição das águas do mesmo poço.
No mais, deverá a mesma sentença manter-se.
Ainda que não se tratasse de mero lapso, que o é, sempre estaríamos perante uma nulidade, nos termos sustentados pelos AA., a qual poderia ser suprida por decisão deste tribunal.
Notifique.”

III.
Recorreram os RR., concluindo como segue:
1. De acordo com a jurisprudência da Relação do Porto publicada no BMJ n.º 326 a paginas 535 “a nulidade da sentença consistente em ter o julgador deixado de apreciar questões de que devesse só pode ser arguida perante o Tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário”.
2. Admitindo a sentença proferida nos autos recurso, é de nulo efeito jurídico por lhe haver esgotado o poder jurisdicional o despacho de rectificação proferido a pronunciar-se sobre pedidos que não se tinha pronunciado em sede de sentença.
3. Se os autores em vez de recurso pediram rectificação, ter-se-iam de conformar com a versão inicial da sentença de que não recorreram, anormalmente.
4. A sentença não conheceu do pedido reconvencional, sendo por isso nula por força da alínea d) do n.º l do art. 668.º do C.P.C. na sua versão aplicável a estes autos, nula ainda nos temos da alínea b) do mesmo artigo por não fundamentar de direito o reconhecimento de uma cervidão de aqueduto.
5. O prédio dos réus é urbano pelo que nunca se lhe poderia aplicar como o faz a sentença uma servidão de passagem do art. 1556.º do Código Civil que ainda assim só se tolera para acesso a poços públicos e não para acesso a poços privados.
6. Tal possibilidade absurda poria em causa a segurança das pessoas e bens e daria guarida à devassa da vida privada.
7. Não poderia o tribunal “a quo” na selecção que fez antes da produção de prova em julgamento dar como assente o conjunto das alíneas B), C), F), I) e M) quando não havia prova documental para o fazer e essa matéria estava impugnada na contestação. A alínea C) dá como provada até matéria de direito e não se harmoniza com a realidade de um prédio nascer por divisão de outro em 1979 e já ser possuído há mais de trinta e quarenta anos.
8. Na decisão de facto, a sentença deu mais uma vez vencimento aos apelados dando como provados todos os factos que lhes interessavam ver provados e dando como não provados todos os factos que interessavam aos apelantes ver provados. Para isso louvou-se em toda a prova testemunhal dos apelados, inclusive filhos destes em economia comum com os seus pais, e descredibilizou toda a prova testemunhal dos apelantes cujo rol de quatro pessoas não incluía qualquer filho a viver em economia comum.
9. A resposta de não provados aos artigos 4º, 5º e 6º da base instrutória contraria a cem por cento decisão judicial de 30 de Setembro de 1999 proferida no processo nº ../99 do .º Juízo Cível de Vila Nova de Gaia que declara os apelados autores de envenenamento de alguns cedros existentes na divisória do terreno, o que foi comprovado laboratorialmente por análises feitas a amostras de terreno nessa faixa divisória entre os apelantes e os apelados, e que declara ainda ter sido dito pelos apelantes a um filho dos apelados que se desejassem proceder à reparação do motor ser-lhes-ia facilitado o acesso pela porta principal, o que é agora totalmente contrariado pela decisão recorrida nestes autos.
10. Por razões mínimas de obediência à lei processual, lei civil e aferição consentânea da prova em balança deve a sentença recorrida ser anulada de todas as formas pois não dá garantias que se impõem num Estado de direito.

Os apelados contra-alegaram, pediram a confirmação da sentença.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

IV.
Factos considerados provados na sentença:
A) Os requerentes eram proprietários de 3/12 de um prédio urbano de dois pavimentos, dependências e logradouro, sito na Rua ………., freguesia de ………., Vila Nova de Gaia; inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 135.º sendo dono dos restantes 9/12 o casal de F………. e G………., pai da requerida.
B) Por escritura de divisão de coisa comum lavrada no Cartório Notarial de Espinho em 5-6-1979, aquele prédio urbano foi dividido em dois prédios distintos, tendo sido adjudicado aos AA. o prédio agora identificado, como segue: Prédio urbano composto de cave, rés do chão e dote andares, com terreno a quintal junto e mais pertenças, sito à rua ………., …/…, da freguesia de ………., desta comarca, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 4457, descrito na Conservatória do registo Predial sob o n.º 04426, com inscrição a favor dos requerentes no G1.
C) Por si e antepossuidores, há mais de vinte, trinta e quarenta anos, de uma forma pública, à vista de toda a gente, pacifica, sem qualquer violência, continuadamente, sem qualquer hiato ou solução de continuidade, de boa-fé, ignorando lesar direitos doutrem, os AA. vêm fruindo e utilizando de todas as comodidades e conveniências do citado imóvel, pagando contribuições e impostos, em suma agindo como seus legítimos proprietários.
D) O prédio dos mesmos AA., identificado, confina pelo lado Sul com prédio urbano dos RR, composto de casa de habitação com terreno a quintal, inscrito na competente matriz predial urbana sob o artigo 135.º, correspondendo-lhe a fracção de 9/12 avos.
E) Um e outro prédio pertenceram aos mesmos antepassados comuns, ou seja aos pais da A. esposa e avós da ré esposa, pois esta é sobrinha daquela.
F) O prédio dos AA. sempre foi abastecido de água para rega, usos domésticos e consumo através de poço instalado no prédio dos réus onde os AA. mantêm instalado um motor para fornecimento dessa água.
G) Sendo certo que são visíveis no prédio dos RR canalizações e tubaria que provêm directamente do referido poço para o prédio dos AA. e através das quais a água do poço é directamente derivada do prédio daqueles para o prédio destes.
H) Consta na escritura pública aludida em B), que no prédio urbano de dois pavimentos, com a área coberta de 198 m2, terreno a quintal com a área de 540 m2, na rua ………., da mesma freguesia de ………., existe um poço de meação.
I) De igual modo consta da mesma que o prédio adjudicado aos AA. e supra identificado, fica com direito à água do poço situado na parte que ficou a pertencer à F………. e marido.
J) Embora os prédios dos AA. e RR. estejam devidamente demarcados com muro divisório em toda a extensão Nascente/Poente, existe nesse muro divisório, junto à casa dos AA. um portão de acesso ao poço instalado no prédio destes.
K) Sempre os AA. utilizaram este portão para, do seu prédio, acederem directamente ao poço, instalado a escassos metros da linha divisória de ambos os prédios, assegurando-se e tratando da conservação e reparação do motor ali instalado e certificando-se de qualquer avaria eventualmente existente em toda a rede de canalizações e tubaria.
L) Sucede porém que os RR, em finais do mês de Novembro de 1998, construíram um outro muro de vedação, contíguo ao existente, obstruindo completamente a passagem, tapando o portão de acesso ao poço, impedindo assim os AA. de ali entrarem para poderem abastecer-se de água.
M) A partir dessa data os AA. deixaram de ter água a abastecer a sua casa e quintal.
N) Os autores dispõem de ligação à rede publica de distribuição de água.
O) Os RR. desligaram a corrente eléctrica que alimenta o motor de retracção dessa água.
P) Tal impedimento tem causado aos AA. prejuízos materiais e continuará a causar já que não podendo socorre-se da água do poço para rega, lavagem, consumo e gastos domésticos, terão de socorrer-se de rede pública que tem custos.
Q) A água do poço é indispensável para rega do quintal.

V.
Questões suscitadas no recurso:
- inadmissibilidade da rectificação da sentença;
- nulidade da sentença por não ter conhecido do pedido reconvencional;
- nulidade da sentença por não fundamentar de direito o reconhecimento da servidão de aqueduto;
- natureza do prédio dos RR. e inadmissibilidade de constituição de servidão de passagem a favor do prédio dos AA.;
- não se pode considerar assente a matéria das alíneas B), C), F), I) e M), por não estar documentalmente suportada e por ter sido impugnada;
- valoração injustificada dos depoimentos das testemunhas dos AA. em detrimento das dos RR.;
- respostas negativas aos quesitos 4.º, 5.º e 6.º contraria a decisão judicial de 30.9.1999, proferida no ..º Juízo Cível de Vila Nova de Gaia, que considerou os apelados autores de envenenamento de alguns cedros existentes na divisória do terreno e ainda reconheceu ter sido dito pelos apelantes a um filho dos apelados que se desejassem proceder à reparação do motor se lhes facilitaria o acesso pela porta principal.

VI.
1.
Como se disse supra no relatório, a sentença foi rectificada no seguimento de pedido dos AA. nesse sentido, por se entender que havia sido cometido um lapso consistente em se omitir no dispositivo a referência aos pedidos constantes das alíneas c) a f) do pedido por aqueles formulado, quando é certo que se julgou a acção totalmente procedente.
O art. 666.º do CPC estabelece que proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (n.º 1), sem prejuízo de ser lícito ao juiz rectificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer dúvidas existentes na sentença e reformá-la nos termos dos artigos seguintes (n.º 2).
Por seu turno, o art. 667.º permite a rectificação de erros materiais antes de o processo subir em recurso (n.ºs 1 e 2), ao passo que o art. 668.º/1-d) comina de nulidade a sentença que deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
A resolução do tema levantado pelos apelantes passa por se definir se na sentença se cometeu um erro material ou a nulidade apontada.
Sublinham Varela, Bezerra e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora Limitada, p. 666, que há que entender em termos hábeis a cessação do poder jurisdicional do juiz na acção, decorrente da emissão da sentença.
O esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa significa que, lavrada a sentença e junta aos autos, o juiz não pode alterar a decisão da causa, nem modificar os fundamentos dela – ibid.
Mas o juiz conserva o exercício do poder jurisdicional para a resolução de algumas questões marginais, acessórias ou secundárias que a sentença pode suscitar e, entre estas contam-se os erros materiais, as nulidades, as dúvidas suscitadas pelo texto e ainda o erro registado em matéria de custas e de multa – ibid.
Desta forma, os erros materiais do tipo do simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita (art. 249.º do CC), bem como as omissões manifestas sobre pontos essenciais, mas que não interferem na substância ou na fundamentação da decisão, podem ser corrigidos a todo o tempo ou, havendo recurso, até este subir, por meio de simples despacho – ibid., p. 667.
Ora, temos de considerar que iniciando-se o dispositivo da sentença por um lapidar “julgo totalmente procedente por provada a presente acção”, é evidente que a falta de menção a pedidos expressamente feitos na p.i. só pode encerrar um manifesto lapso.
Não estamos, pois, perante uma nulidade só arguível em sede de recurso.
Pelo que a rectificação era admissível.

2.
A segunda questão levantada pelos apelantes é a da nulidade da sentença por se não ter pronunciado sobre a reconvenção.
Dizem eles que a sentença se não pronunciou sobre a reconvenção, “mesmo depois de rectificada de modo ilegítimo”.
Desta afirmação resultaria que a sentença é totalmente omissa quanto à reconvenção, quer antes quer depois do despacho rectificativo, o que não corresponde à realidade. Com efeito, logo na primitiva sentença se deixou dito o seguinte imediatamente antes do dispositivo:
Por sua vez e conhecendo a reconvenção, para além do que ficou dito na decisão da providência cautelar quanto à defesa dos RR. e que aqui se segue inteiramente, porque os RR. nem lograram fazer prova de tal, terá a mesma que improceder.
E na alínea c) do dispositivo disse-se expressamente:
Vão os AA. absolvidos do pedido reconvencional.
Por conseguinte, essa omissão total de pronúncia não ocorre.
No entanto, os apelantes reportam-se a algo mais específico, à invocada desnecessidade da servidão de águas, constituída por os AA. precisarem de aceder à água do prédio dominante, afirmando que as servidões não onerosas, como a configurada pela sentença, se extinguem por desnecessidade, sendo abusiva a continuação de uma servidão que se tornou supérflua para o prédio dominante.
No art. 16.º e ss. da contestação/reconvenção, os RR. alegaram que na altura em que foi feita a divisão de coisa comum não havia abastecimento municipal, pelo que o prédio urbano dos AA. precisava da água do poço situado no prédio hoje dos RR., para consumo doméstico. Hoje os AA. dispõem de ligação à rede pública, dela se servindo para a obtenção de água, pelo que não precisam da água do poço do prédio dos RR.
De toda esta matéria nada foi objecto de quesitação.
Mas havia-se quesitado um facto alegado pelos AA., que mereceu resposta positiva:
A água do poço é indispensável para rega do quintal.
E temos como claro que os factos atrás referidos e concernentes à desnecessidade de utilização pelos AA. da água do poço, em termos de acabar com a servidão que foi reconhecida, não podem ter o efeito pretendido pelos RR., pelo que não devem determinar a ampliação da base instrutória.
Dispõe o n.º 2 do art. 1569.º do CC que as servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante.
Na sentença classificou-se, parece-nos que bem, a servidão como de constituição pelo pai de família:
No meu entender estamos perante uma verdadeira constituição de servidão de passagem para o dito poço a qual foi constituída por destinação de pai de família – artigo 1547.º e 1549.º do Código Civil.
Com efeito, nos termos do artigo 1549.º do Código Civil, “Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento.”
Assim, não tem aplicação o n.º 2 do art. 1569.º, que apenas é aplicável às servidões constituídas por usucapião – cfr. Acórdão do STJ de 18-12-2003, Nº do Documento: SJ200312180029872, www.dgsi.pt.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2.ª ed., III, p. 676, apesar de ter havido quem entendesse que se devia estender o princípio da extinção da servidão por desnecessidade a todas as servidões, fosse qual fosse o seu título constitutivo, tal sugestão não vingou, por se ter reconhecido que há diferença, sob esse aspecto, entre os encargos constituídos por usucapião e os estabelecidos por acordo das partes.
Com efeito, os primeiros são impostos pelos factos que, uma vez desaparecidos ou ultrapassados, nenhuma reserva se levanta contra a extinção da servidão; já no caso das servidões voluntárias há o acordo das partes ou a declaração de vontade do testador a respeitar e nem sempre são conhecidas razões determinantes desse acordo ou dessa declaração. Não é, pois, possível defender de iure constituto a extinção das servidões voluntárias com fundamento em desnecessidade.
Mesmo no caso das servidões por destinação do pai de família, ponderou-se o facto de os sinais que lhes servem de suporte exprimirem de certo modo uma declaração tácita de vontade e, por isso, foram relegadas para o regime geral, ficando o âmbito do n.º 2 circunscrito às servidões constituídas por usucapião – ibid. e p. 677.
Por outro lado, o facto de os AA. disporem, agora, da rede pública de abastecimento de água, mesmo que se tratasse de servidão constituída por usucapião, não implica necessariamente desnecessidade da água do poço.
Na jurisprudência das Relações era generalizada a ideia de exigência de uma alteração ou modificação objectiva superveniente das circunstâncias no prédio dominante para que fosse possível concluir-se pela desnecessidade. Com efeito, o decurso do tempo pode alterar o quadro circunstancial existente ao tempo da constituição da servidão. Mas a necessidade de prova da superveniência da causa decorrente de alterações no prédio dominante não encontra suficiente suporte nem no espírito nem na letra da lei.
O que a lei exige é a prova da desnecessidade da continuidade ou permanência da servidão, aferida essa desnecessidade pelo momento da introdução da acção em juízo.
O texto da lei, ao dizer que se "mostrem" desnecessárias, em vez de se "tornem" desnecessárias, parece sugerir que essa necessidade/desnecessidade pode ser reavaliada e sopesada - quer seja originária quer seja superveniente - à luz da realidade objectiva actual.
O que se pretende é uma ponderação actualizada da necessidade de manter o encargo sobre o prédio, deixando à prudência do julgador avaliar se no momento considerado haverá ou não outra "alternativa" que, sem ou com um mínimo de prejuízo para o prédio encravado, possa ser eliminado o encargo incidente sobre o prédio serviente.
O que se torna necessário é garantir uma acessibilidade em termos de comodidade e regularidade ao prédio dominante, sem onerar desnecessariamente o prédio serviente – cfr. Acórdão do STJ de 27-05-99, Nº do Documento: SJ199905270003942, www.dgsi.pt.
Como se disse, a mera possibilidade de utilizar a água da rede pública de abastecimento não configura essa desnecessidade, sem que os RR. houvessem alegado, nomeadamente, que os custos dessa utilização são menores do que os gastos de energia eléctrica para a captação no poço, ou que o fluxo nunca sofre diminuições, etc.
Posto isto, a reconvenção foi acertadamente julgada improcedente.

3.
Seguidamente, os apelantes suscitam a nulidade da sentença por não fundamentar de direito o reconhecimento da servidão de aqueduto.
Na sentença acabou por se decidir:
c) A reconhecerem que em favor dos AA. e em detrimento dos RR. existe constituída por usucapião e destinação de pai da família uma servidão de aqueduto desde o referido poço até ao prédio dos RR., por canalização subterrânea e para condução das águas do mesmo e bem assim uma servidão de passagem desde o muro divisório do prédio de AA. e RR. até ao poço referido.
No entanto, nada de expresso se disse a tal respeito na fundamentação de direito.
Mas seria tal necessário?
Na sentença diz-se que a água do poço é pertença em comum de AA. e RR.:
Pois que …, no dizer expresso da escritura pública, o poço é de meação – que quer dizer, divisão em duas partes iguais ou metade. Se assim é, nenhuma dúvida se põe que o dito poço é dos AA. e dos RR.. Pois se assim não fosse, não haveria o mínimo de correspondência entre o ali determinado e o sentido que lhe poderia ser assacado – designadamente o atribuído pelos RR.!
Então o que verdadeiramente está em causa, é o acesso a tal poço por parte dos AA. – e daí a questão do portão!!
Se assim é, como os RR. admitem no art. 5.º da contestação “foi-lhes dada (aos AA.) meação no poço existente na parte que coube aos pais da Ré”, e como decorre do facto de não porem em causa a instalação da tubagem que permite a condução da água para o prédio dos AA., mas apenas não pretenderem a passagem destes pelo seu prédio sem a sua supervisão, tendo, segundo alegam, dito a um filho dos AA. que estes podiam aceder ao prédio deles RR. pela porta principal.
A passagem da tubagem insere-se no âmbito da servidão constituída por destinação do pai de família, não sendo caso do disposto no art. 1561.º do CC., que regula as condições da constituição coerciva da servidão de aqueduto (Pires de Lima e Antunes Varela, o. c., p. 657) que, neste particular, como referem os factos provados F) e G) sempre existiu (-O prédio dos AA. sempre foi abastecido de água para rega, usos domésticos e consumo através de poço instalado no prédio dos réus onde os AA. mantêm instalado um motor para fornecimento dessa água. - Sendo certo que são visíveis no prédio dos RR canalizações e tubaria que provêm directamente do referido poço para o prédio dos AA. e através das quais a água do poço é directamente derivada do prédio daqueles para o prédio destes).
Não se verifica, pois, a mencionada nulidade.

4.
Os apelantes invocam a natureza do seu prédio (urbano) e a inadmissibilidade de constituição de servidão de passagem sobre ele a favor do prédio dos AA..
Cabe dizer que o art. 1556.º a que se faz referência na sentença não tem aqui aplicação, porquanto regula a possibilidade de constituição coerciva de servidão de passagem para acesso às águas públicas capazes de satisfazerem as necessidades dos gastos domésticos dos proprietários – ibid., p. 648.
Mas também não tem aplicação a limitação constante do n.º 2 do art. 1557.º, na medida em que, precisamente, não estamos perante a possibilidade de constituição de uma servidão nos termos previstos no n.º 1 do art., mas ante o reconhecimento de uma servidão, constituída por destinação do antigo proprietário, estando definido, por outro lado, o direito à meação na água do poço.

5.
Dizem, em seguida, os apelantes que não se pode considerar assente a matéria das alíneas B), C), F), I) e M), por não estar documentalmente suportada e por ter sido impugnada.
Quanto à alínea B):
Os RR., efectivamente, dizem no art. 1.º da contestação que é falso o conteúdo do art. 2.º da p.i., mas no seguimento disso, nos art.s seguintes, reconhecem que os AA. são donos do prédio que lhes foi atribuído na divisão de coisa comum.
Assim, a única coisa que podia estar em causa na sua impugnação seria a identidade física do prédio, já que há discrepância entre a descrição feita na escritura e a que é feita pelos AA., admitindo-se que isso se deva a que o mesmo tenha sido, posteriormente, sujeito a alterações.
No entanto, o que releva é que haja coincidência entre o que foi atribuído aos AA. por via da divisão de coisa comum e o seu prédio actual, independentemente de quaisquer alterações da sua estrutura.
O cerne da questão não reside na estrutura do prédio, mas na sua existência, na sua qualidade de prédio dominante em relação ao prédio dos apelantes.
Por isso, é despicienda a posição assumida pelos apelantes quanto à formulação da mencionada alínea, visto que não é susceptível de influenciar o que é verdadeiramente o cerne da questão trazida aos autos.
Quanto à alínea C):
Não se vê que haja sido impugnada a matéria nela contida.
Por outro lado, a matéria de direito nela referida vem explicitada, relativamente a cada conceito jurídico, pelos correspondentes factos.
Relativamente ao facto de o prédio ter resultado da divisão operada em 79, tendo a acção dado entrada em 99, assegurados estão os prazos previstos nos art.s 1294.º e ss. do CC, pelo que se não reputa relevante a alteração da alínea.
Quanto à alínea F):
Também o alegado pelos AA. no art. 8.º da p.i. não foi impugnado pelos RR. Vejam-se os art.s 5.º e 6.º da contestação.
Quanto à alínea I):
Esta alínea reproduz o que consta da escritura de divisão, a fls. 8 do apenso, onde se diz que o prédio dos AA. fica com direito à água do poço situado na parte que ficou a pertencer à F………. e marido.
Quanto à alínea M):
O que os RR. impugnaram no art. 9.º da contestação é que tivessem desligado a corrente eléctrica que alimenta o motor de bombagem da água para o prédio dos AA., mas não que estes estejam sem água, como alegam no art. 14.º da p.i. e é o que consta da alínea.

6.
Insurgem-se os apelantes contra a valoração injustificada dos depoimentos das testemunhas dos AA. em detrimento das dos RR..
A convicção do Tribunal a quo só é passível de questionação se se impugnar a decisão de facto observando-se os requisitos impostos pela lei a tal propósito.
Sem isso, os depoimentos das testemunhas são livremente apreciados pelo tribunal, nos termos do art. 396.º do CC.
Ora, os apelantes não observaram o comando contido no art. 712.º/1-a) do CPC, pelo que o seu inconformismo quanto á apreciação dos depoimentos é estéril.

7.
Finalmente, dizem que as respostas negativas aos quesitos 4.º, 5.º e 6.º contrariam a decisão judicial de 30.9.1999, proferida no ..º Juízo Cível de Vila Nova de Gaia, que considerou os apelados autores de envenenamento de alguns cedros existentes na divisória do terreno e ainda reconheceu ter sido dito pelos apelantes a um filho dos apelados que se desejassem proceder à reparação do motor se lhes facilitaria o acesso pela porta principal.
Esta matéria reporta-se aos quesitos 4.º e 5.º, relacionados com o pedido reconvencional.
O processo mencionado pelos apelantes é o procedimento cautelar comum apenso, instaurado pelos aqui AA. contra os aqui RR..
Na decisão final proferida nesse procedimento cautelar, entre os factos considerados provados, constam os seguintes:
14- Em Agosto de 1997 os requeridos foram confrontados com o envenenamento de alguns cedros plantados junto ao muro que serve de divisão entre as propriedades destes e dos requerentes.
15- Esse envenenamento foi da autoria dos requerentes e foram colhidas amostras de terra, posteriormente analisadas e cujo resultado consta da informação junta aos autos a fls. 19.
Os requeridos do procedimento cautelar foram citados e deduziram oposição, tendo oferecido provas, que foram consideradas.
Dispõe o art. 522.º/1 do CPC que os depoimentos e arbitramentos produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do art. 355.º do CC; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e arbitramentos produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova.
Este preceito "dita o princípio da eficácia extraprocessual das provas. O valor das provas não fica confinado ao processo em que foram produzidas; projecta-se para além dele. As provas produzidas num processo podem ser invocadas noutro. Mas o princípio não se acha formulado nos termos genéricos que acabamos de inculcar. A regra do artigo não diz respeito a qualquer meio de prova; refere-se unicamente aos depoimentos e arbitramentos. Com estas expressões abrangem-se a prova por depoimento de parte, a prova por inquirição de testemunhas, a prova por exame, vistoria e avaliação. Ficam excluídas a prova documental e a prova por inspecção judicial" - Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, 4ª edição, Reimpressão, Coimbra, 1985, pag. 344.
Porém, "para que as provas sejam reconhecidas noutro processo, a lei exige que tenham sido produzidas com audiência contraditória da parte, entendendo-se que não é necessário que a parte contrária haja efectivamente intervindo, participado ou assistido, bastando que tenha sido notificada para esse fim" - António Montalvão Machado e Paulo Pimenta, "O Novo Processo Civil", 6ª edição, Coimbra, pag. 227.
Na verdade, "desde que na produção da prova se tenham concedido às partes as garantias essenciais à sua defesa, nada repugna, com efeito, aceitar que a prova possa ser utilizada contra a mesma pessoa num outro processo, para fundamentar uma nova pretensão, seja da pessoa que requereu a prova, seja de pessoa diferente, mas apoiada no mesmo facto" – Varela-Bezerra-Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra, 1985, pag. 492, citando, entre outros, o Ac. RL de 09/12/81, in CJ Ano VI, 5, pag. 175 (relator Amaro Farinhas Ribeiro).
No entanto, como se refere no acórdão do STJ de 05-05-2005, Nº do Documento: SJ200505050006917 (Araújo Barros), www.dgsi.pt, Não pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objecto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes. Efectivamente, "o caso julgado não se estende aos fundamentos de facto. Ou melhor: estes fundamentos não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial. (...) Portanto, pode afirmar-se que os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado - Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, 1977, pags. 579 e 580. Cfr. Ac. STJ de 20/04/2004, no Proc. 3513/04 da 7ª secção (relator Araújo Barros); e Ac. RE de 29/09/94, in BMJ nº 439, pag. 667 (relator Cortez Neves).
O que os apelantes parecem pretender é que se tivessem importado para estes autos os factos que foram considerados provados no procedimento cautelar apenso, o que, como vimos, não é possível.
No acórdão do STJ que mencionámos, diz-se expressamente que o acórdão recorrido, considerando que tais factos foram considerados assentes naquela acção nº 2000/94 (Ac. STJ de 25/06/2002 - fls. 223 a 235) limitou-se a importá-los para a matéria de facto desta acção, julgando-os assentes com o argumento de que "por haver sido exercido o contraditório nessa acção, terem esses factos sido considerados provados, e serem todos eles contrários aos interesses dos autores, têm os autores necessariamente de os aceitar, atento o disposto no art. 522 n. 1 do CPC, que, a respeito do valor extraprocessual das provas, permite que sejam invocados noutro processo, factos que já tenham sido objecto de apreciação em processo anterior, contra a mesma parte, e cujo resultados da produção da prova lhes tenham sido desfavoráveis, desde que as garantias de prova do primeiro processo não tenham sido inferiores às deste - como foi o caso" (fls. 427).
Entendemos que, neste aspecto, não aplicou o acórdão em crise correctamente a disposição do art. 522º, nº 1, do C.Proc.Civil, exactamente porque, como até agora se vem demonstrando, não são os factos provados numa acção que podem ser invocados noutra, antes e apenas pode o tribunal, nesta segunda acção, servir-se dos meios de prova (depoimentos e arbitramentos) que foram utilizados na anterior.
O contrário - transpor os factos provados numa acção para a outra - constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui.
Assim, nada há a criticar neste âmbito á sentença.

8.
Face ao exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes.

Porto, 9 de Outubro de 2008
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes