FALTA DE COMPARÊNCIA
MANDADO DE DETENÇÃO
Sumário

Não é exigível a notificação pessoal do arguido (bastando a notificação válida nos termos do CPP, isto é, a notificação por via postal) para comparecer perante os Serviços do MP, com a advertência de que, faltando injustificadamente, fica sujeito ao pagamento de uma multa, bem como à detenção pelo tempo estritamente necessário para a realização da diligência.

Texto Integral

Recurso 5662/08

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Nos autos de inquérito n.º …/07.5PBVLG, do Tribunal de Valongo, por meio de carta registada com prova de recepção, foi notificado B………., residente na Rua ………., ….., ………., “na qualidade de Arguido (…) para comparecer nestes Serviços do Ministério Público, no próximo dia 19/09/07, às 10,00 horas, a fim de se proceder a interrogatório no âmbito dos autos acima indicados, podendo fazer-se acompanhar de mandatário - art.° 61º, n.°1,al. e) do C. P. Penal”.
Mais foi notificado de que, “caso falte e não justifique a falta no prazo legal, (por motivo previsível: com cinco dias de antecedência; por motivo imprevisível: no dia e hora designados - art.° 117°, n.° 2 do CP. Penal), fica sujeito ao pagamento de uma soma entre 2 e 10 Ucs (U.C = € 96,00), bem como a detenção pelo tempo estritamente necessário à realização da diligência ou a aplicação da medida de prisão preventiva, se esta for legalmente admissível - art.° 116.°, n.° 1 e 2 do Código de Processo Penal”.

O notificado não só faltou como não justificou a falta – cfr. fls. 15 e 17.

Na sequência, o Digno Magistrado do M.º P.º lavrou o seguinte despacho:
“Remeta os autos ao M.º Juiz a quem se promove a condenação do faltoso, cfr. fls. 17 e 29 nas legais sanções pecuniárias do art.º 116º do C.P.P.
Com o fundamento neste mesmo preceito, p. a emissão de mandados de detenção contra B………., pelo tempo indispensável à realização da diligência de interrogatório”.

O Sr. JIC condenou o faltoso em 2 Ucs “por ter faltado injustificadamente a um acto processual para o qual estava regularmente notificado”.
Mas indeferiu a emissão de mandados de detenção “uma vez que o faltoso apenas foi notificado por via postal, que não pessoalmente pelo O.P.C, e tendo em consideração o espírito da última reforma do CPP, entendo ser prematura a emissão de mandados de detenção”.

Inconformado, o Ex.mo Magistrado do M.º P.º interpôs recurso, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões.
1. Por decisão de fls. 32, o M.º Juiz de Instrução Criminal junto desta comarca de Valongo, decidiu indeferir a promoção do M.° P.° que promoveu a emissão de mandados de detenção contra o faltoso, que apesar de ter sido regularmente notificado, por via postal, com prova de recepção, não compareceu a tal diligência, não comunicando ou justificando essa falta.
2. O M.º Juiz fundamenta tal indeferimento, com o facto do faltoso não ter sido pessoalmente notificado e com espírito do novo C.P.P.
3. Apesar destes fundamentos para indeferir a emissão de mandados de detenção, o M.º Juiz condenou o faltoso em multa.
4. O M.° P.° não concorda com tal indeferimento, pois não se poderá afirmar que o espírito do novo código de processual penal é diferente do anterior, quando a letra da lei fica exactamente igual, como ocorre em relação aos preceitos legais, aplicáveis ao caso.
5. E também não concorda com a decisão, agora objecto de recurso, pois se o M.º Juiz, condenou o faltoso em sanção pecuniária, de acordo com o estipulado no n.º 1 do art.° 116º do C.P.P., é porque o considerou regularmente notificado.
6. É certo que o n.º 2 do art.° 116° do C.P.P. refere que o M.º Juiz “pode” ordenar a emissão de mandados de detenção e não diz “deve”. Mas no que nos foi dado aperceber o M.º Juiz não ordenou a emissão de mandados de detenção por não ter a certeza que o notificado tomou conhecimento da mesma, veja-se para tanto, o argumento de que o notificado o deveria ter sido via pessoal.
7. Ora, é este argumento que em nosso entendimento não pode proceder, uma vez que, da notificação de fls. 17, resulta inequivocamente que o notificado tomou conhecimento da diligência, pois a carta que continha a notificação foi-lhe entregue pessoalmente pelo funcionário dos correios, que o identificou através do bilhete de identidade e recolheu a sua assinatura.
8. Ao faltar à referida diligência, sem comunicar ou justificar a sua falta, leva-nos a prever que efectivamente o notificado não quer comparecer à diligência para a qual foi notificado.
9. E sendo esta, uma diligência obrigatória de inquérito (quando possível, e no caso, é, através de mandados), cfr. art.° 58° n.º 1 do C.P.P. e Acórdão de fixação de Jurisprudência n° 1/2006, ao indeferir a única forma que o M°P° tem ao seu alcance para cumprir tais normas legais e jurisprudenciais, violou o M.º Juiz essas mesmas normas e ainda o disposto no art.° 116° n.° 2 do C.P.P.
10. Pelo que, deve tal decisão de indeferimento ser revogada e substituída por outra, que, ordenando a emissão de mandados de detenção contra o faltoso, B………. o faça comparecer perante o M.° P.°, com vista à realização do seu interrogatório.

Não há resposta.

O Sr. Juiz sustentou o seu despacho:
“Como é sabido, a detenção para comparência está prevista no art. 27°, n.° 3, alínea f) da Constituição da República Portuguesa (CRP): «... detenção por decisão judicial...para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente...». E no CPP, no artigo 116°, n.° 2: «... o juiz pode ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a detenção de quem tiver faltado injustificadamente...», independentemente da sanção monetária prevista no n.° 1 do mesmo artigo.
Efectivamente, cm lado nenhum a lei constitucional ou ordinária exige, como pressuposto da ordem de detenção, que o Ministério Público (MP) tenha percorrido todas as formas de chamamento de alguém a tribunal e designadamente não exige que o MP esgote todas as formas de notificação previstas no art. 113° do CPP.
No caso, decidiu-se pela falta injustificada de comparência do notificando, o que por si só significa que a notificação tenha sido devidamente formulada.
Sucede, porém e como se disse, com as recentes alterações ao CPP, apesar de não constarem do diploma que as aprovou quaisquer exposições de motivos ou preâmbulos, é patente uma intenção do legislador em tornar excepcional, ou pelo menos mais residuais, as detenções para comparência perante autoridade judicial - cfr. art.º 257°, n.° 1, segunda parte, do CPP. E não se diga que por esta previsão normativa se enquadrar num capítulo diferente não se pode ou deve aplicar ao caso em apreço (o espírito é, obviamente, o mesmo).
Acresce ainda que na previsão normativa do art. 116°, n.° 2 do CPP atribui-se ao juiz o poder de casuisticamente aferir da necessidade da detenção, sendo nosso entendimento que no caso em apreço sempre a notificação por via postal é de mais difícil percepção, nomeadamente quanto às consequências da falta de comparência, do que a notificação pessoal efectuada via Órgão de Polícia Criminal.
É certo que a utilidade do mandado de notificação ou comparência pode ser questionada, porquanto se trataria, em todo o caso, de mais uma notificação que não garantiria a presença do suspeito ante a autoridade judiciária.
Porém, parece-nos que só assim se poderá afirmar que a detenção é proporcional e justificada, e só assim se poderá afirmar convictamente existirem fundadas razões para considerar que o visado não se apresentará espontaneamente.
Por tudo isto é que entendemos ser a detenção ainda desnecessária e proferimos a decisão impugnada”.

Nesta Relação, o Ex.mo PGA emite douto parecer no sentido de que deve ser provido o recurso.

Colhidos os vistos dos Ex.mos Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

Começaremos por salientar que o despacho recorrido é contraditório nos seus próprios termos:
Por um lado, condena o faltoso em 2 Ucs por ter faltado injustificadamente a um acto processual para o qual estava regularmente notificado.
Por outro, indefere a emissão de mandados de detenção “uma vez que o faltoso apenas foi notificado por via postal, que não pessoalmente pelo O.P.C, e tendo em consideração o espírito da última reforma do CPP, entendo ser prematura a emissão de mandados de detenção”.
A notificação por via postal – de resto feita em conformidade com o formalismo legal – é mais do que suficiente para se considerar que o notificado faltou injustificadamente.
Como o Sr. Juiz considerou.
Todavia, logo a seguir, põe-se em crise que o notificado tenha tido total consciência do conteúdo da notificação.
O que é paradoxal.

A notificação foi efectuada em conformidade com as disposições legais aplicáveis, maxime o disposto na alínea b) do n.º 1 e n.ºs 5 e 6 do art.º 113º do CPP.
O que vale por dizer que o notificado tomou conhecimento de que, em caso de falta injustificada ficava sujeito ao pagamento de uma soma entre 2 e 10 Ucs, bem como a detenção pelo tempo estritamente necessário à realização da diligência.
Apesar disso, não só faltou como não justificou a falta.

A CRP, na alínea f) do n.º 3 do art.º 27º, permite a detenção, por decisão judicial, para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente”.
O preceito “pressupõe, implicitamente, não apenas um dever de acatamento das decisões judiciais, como também um dever de comparência «condução sob custódia» perante as autoridades judiciárias (cfr. Cód. Proc. Penal, art.º 116º-2). Evidente é que a detenção só pode ocorrer nos casos e para os efeitos previstos na lei (proémio do n.º 3) e mediante decisão judicial”[1].
O que significa que nenhum obstáculo de ordem constitucional existe à passagem de mandados de condução sob custódia para assegurar a comparência do faltoso perante autoridade judiciária competente.
Ponto é que os mandados sejam emitidos pelo JIC e que se justifique a comparência sob custódia.
A lei ordinária – art.º 116º, n.º 2 do CPP - diz que, em caso de falta injustificada de pessoa regularmente convocada ou notificada, o juiz, para além de condenar o faltoso ao pagamento de uma soma entre 2 UC e 10 UC, pode ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a detenção pelo tempo indispensável à realização da diligência.
Ou seja, justifica-se a comparência sob custódia se e quando o notificado faltar injustificadamente.
O Tribunal Constitucional, em Plenário[2], considerando conforme à CRP o art.º 116º do CPP, explanou:
“A soma cujo pagamento é imposto ao abrigo do n.º 1 do artigo 116.º do CPP para a falta injustificada de comparecimento de pessoa regularmente notificada ou convocada para acto do processo penal sanciona um comportamento que, em extremo rigor, poderia integrar crime de desobediência, mas ao qual a lei tradicionalmente confere tratamento privilegiado, sancionando-o expeditamente com uma multa processual, aplicável mediante um incidente simplificado (Cfr., a propósito de mecanismo sancionatório semelhante que já constava do artigo 91.º do Código de Processo Penal de 1929, o Parecer n.º 98/78, da Procuradoria-Geral da República, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 284, págs. 30 e segs.).
O fim imediato desta sanção é reprimir o incumprimento do dever de colaboração para que o agente é solicitado no âmbito de um concreto processo. Dever esse a cujo cumprimento o faltoso pode, aliás, ser judicialmente coagido (n.º 2 do artigo 116.º do CPP e alínea f) do n.º 3 do artigo 27.º da CRP; cfr., quanto ao processo civil, n.º 2 do artigo 519.º do CPC).
Mas a sanção cumpre também um fim de prevenção geral, intimidando os potenciais infractores e contribuindo para instilar na comunidade a consciência da efectividade desse dever, minorando a perniciosa repercussão da generalização de uma atitude de desrespeito pelas convocatórias dos tribunais na tarefa fundamental do Estado de administrar justiça. Esta preocupação em atacar o que era identificado como um dos pontos críticos da morosidade da justiça penal tornou-se evidente com as novas regras de justificação das faltas em processo penal, introduzidas no artigo 117.º do CPP pela Lei n.º 55/98, de 25 de Agosto. Avulta neste regime a imposição de que a falta seja comunicada com cinco dias de antecedência, se for previsível, ou no dia e hora designados para a prática do acto, se imprevisível, e não em momento posterior à falta, como era tradicional (Outro aspecto em que se verificou inovação, para o presente recurso irrelevante, consiste em ter deixado de se fazer referência aos critérios de justificação da falta por remissão para o regime substantivo de exclusão da ilicitude e da culpa, o que pode ser interpretado como alargando a margem de apreciação judicial das razões justificativas da não comparência) (…)
A colaboração dos cidadãos na administração justiça, que se desdobra nos deveres de testemunhar, de intervir como perito, de participar no tribunal do júri e intervenções ocasionais semelhantes (com ressalva dos casos de recusa legítima), corresponde a um dever fundamental dos cidadãos para com o Estado, de conteúdo cívico-político. Afigura-se lícito extrair essa fundamentalidade da expressa autorização constitucional para impor o cumprimento coercivo de tal dever (rectius, da imposição coactiva de um dever prodrómico desse dever de colaboração, que é o dever de comparência perante as autoridades judiciárias quando a pessoa é regularmente convocada – alínea f) do n.º 3 do artigo 27.º da CRP), o que pressupõe o seu implícito reconhecimento constitucional. De todo modo, mesmo quem assim não entenda não negará carácter de dever legal fundamental ao dever de colaborar na administração da justiça (Parece ser esta a opinião de Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., pág. 534 e de José Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, pág. 94). (…)
Mas não se concebe que possa prescindir-se da imposição de comparência perante as autoridades judiciárias por parte de quem deva prestar depoimento, porque esse é um meio de prova sem o qual a instrução e o julgamento das causas é, geralmente, impossível. E não pode deixar de estabelecer-se o adequado e expedito sancionamento dos faltosos, pois de outro modo a imposição do dever não teria eficácia. (…)
Todavia, a norma que manda impor ao faltoso o pagamento de uma «soma» não se destina, ou não se destina apenas, a reprimir a falta em função do resultado concreto, mas a sancionar a desobediência à ordem de comparência, enquanto conduta potencialmente lesiva da boa administração da justiça, que transcende esse resultado ou o perigo concreto.
Pretende-se, por um lado, mediante a imposição do dever de comunicação antecipada da causa impeditiva de comparência previsível, habilitar o tribunal (ou a autoridade judiciária) com informação atempada que lhe permita reorganizar o serviço e reduzir, até onde for possível, as consequências negativas da falta, seja para o serviço em geral, seja para os restantes intervenientes processuais. E visa-se, concomitantemente, criar na comunidade em geral a convicção na efectividade da norma que estabelece o dever de testemunhar e, para tanto, de comparecer no local e na data determinados pela autoridade que dirige o processo” (sublinhado nosso).
As considerações feitas a propósito da condenação em “soma” valem inteiramente para a emissão de mandados de mandados de comparência sob custódia, como, de resto, se vê da fundamentação do acórdão citado.
Os faltosos, que não se dão ao “trabalho” de, sequer, tentar justificar a falta, têm de ser intimidados de forma consistente, “para instilar na comunidade a consciência da efectividade desse dever, minorando a perniciosa repercussão da generalização de uma atitude de desrespeito pelas convocatórias dos tribunais na tarefa fundamental do Estado de administrar justiça”.
O que só se consegue condenando-os em soma pecuniária e, para além disso, coagindo-os a comparecer em tribunal, sendo este um órgão de soberania, cuja função é a da administração da justiça.
Concorda-se inteiramente com o Sr. Juiz quando afirma a excepcionalidade da medida.
Tal resulta, inequivocamente, do n.º 1 do art.º 257º do CPP: “Fora de flagrante delito, a detenção só pode ser efectuada, por mandado do juiz ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do Ministério Público, quando houver fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria espontaneamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado”.
Certo é, porém, que se a pessoa regularmente notificada falta a acto processual e não justifica a falta, não só há “fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria espontaneamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado”, como antes, há a certeza de que não se apresentou.
E, por isso, não é de presumir que o venha a fazer. Antes, tudo indica que, perante nova notificação o resultado venha a ser o mesmo.
Não deve exigir-se nova notificação, por meio de OPC, que não tem maior solenidade e não tem mais garantia de cumprimento, do que a efectuada por carta registada com aviso de recepção (estamos a falar de notificação para comparência).
Se tal acontecesse, o prejuízo e o descrédito da justiça eram óbvios.
O que a norma do art.º 116º visa prevenir, como se referiu.

Merece, pois, provimento o recurso.

DECISÃO:
Termos em que, na procedência do recurso, se revoga o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que ordene a emissão de mandados de detenção contra B………., pelo tempo indispensável à realização da diligência de interrogatório de arguido não detido.
Sem tributação.

Porto, 29.10.2008
Francisco Marcolino de Jesus
Élia Costa de Mendonça São Pedro

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[1] GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa, Anotada, 4ª edição revista, p. 483
[2] Ac. 237/2008