ACIDENTE DE VIAÇÃO
PARALISAÇÃO DE VEÍCULO
Sumário

A mera privação do uso de um veículo acidentado sem a alegação e prova de danos dela decorrente, não constitui, só por si, um dano indemnizável.

Texto Integral

Proc. 6153/08

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório

B………. instaura a presente acção declarativa de condenação contra Companhia de Seguros C………., S.A., pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de 25.438,98€, sendo 15.982,98€, relativa ao valor necessário para a reparação dos danos causados na sua viatura e 9.456,00€ (24€x394 dias), como consequência dos danos causados pela imobilização e privação do uso do veículo até à data da entrada da entrada da petição em juízo, acrescida do montante vincendo a título de privação de uso/paralisação ao quantitativo diário de 24€, acrescido de juros vincendos a contar da citação, até efectivo pagamento.
Alegou que no dia 08 de Fevereiro de 2005, pelas 14,30h, na estrada municipal …, ………., freguesia de ………., concelho de Amarante, ocorreu um acidente de viação, em que foram intervenientes o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-TB propriedade do autor e conduzido por D………. e o veículo ligeiro de mercadorias, matricula ..-..-QE, propriedade de E………., Lda. e conduzido por F………., dando-se o embate por culpa exclusiva do condutor do veículo QE, que entrou num entroncamento em cuja entrada estava aposto um sinal de Stop e sem obedecer a esse sinal, continuando a sua marcha e provocando o embate com o veículo de que é proprietário o autor.
Em consequência do embate o autor sofreu danos patrimoniais pelos quais é responsável a Ré, já que o proprietário do veículo QE havia transferido para ela a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros com tal viatura através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ……… .

Citada, veio a ré contestar a acção, apresentando uma versão do acidente da qual resulta a imputação a culpa pela produção do mesmo ao autor.

Dispensa-se a audiência preliminar e elabora-se despacho saneador, fixando-se ainda os factos assentes e elabora-se a base instrutória.
Realiza-se o julgamento e responde-se aos artigos da base instrutória, sem reparo.
Profere-se então sentença em que se julga a acção parcialmente procedente e se condena a ré.
Inconformados recorrem tanto o autor como a ré.
Recebidos os recursos, apresentam-se alegações.
Colhidos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento dos recursos

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II - Fundamentos dos recursos

O objecto dos recursos está limitado ao teor das conclusões - artigos 684º n.º 3 e 690º n.º 1 do CPC -, donde a justificação para a sua transcrição.
No caso concreto e dado que nos surgem um recurso do ré e outro do autor, serão apresentadas de forma separada.
Assim:

II - I - Recurso da ré C………., S.A.

1. A ora recorrente não se pode conformar com a douta sentença, nomeadamente, na sua condenação na quantia 13.319,15€.
2. Resulta provado que o veículo de propriedade do A. efectuava uma manobra de ultrapassagem.
3. Decorre ainda provado que para efectuar tal manobra de ultrapassagem o veículo passou a circular na faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário, ou seja, destinado ao sentido de circulação do veículo seguro na ora recorrente.
4. Foi dado como assente no douto despacho saneador o facto de o local onde se deu o acidente se caracterizar por ser um entroncamento.
5. Certo é que o condutor do veículo de propriedade do recorrido efectuou uma manobra de ultrapassagem imediatamente antes de um entroncamento, conduta proibida pelo art. 41° n° 1 do Código da Estrada.
6. Praticando um facto ilícito.
7. Tal conduta é proibida e é potenciadora de uma perigosidade anormal para a circulação automóvel.
8. A sentença ora objecto de recurso tem apenas em consideração na sua fundamentação de direito o facto ilícito praticado pelo condutor do veículo seguro omitindo por completo qualquer referência ao facto ilícito praticado pelo condutor do veículo de propriedade do ora recorrido.
9. A produção do acidente ficou-se a dever a uma concorrência de culpa entre os dois condutores dos veículos intervenientes.
10. Estamos perante a prática de dois factos ilícitos.
11. A violação da imposição legal de paragem no sinal vertical STOP.
12. E a violação da proibição legal de ultrapassagem imediatamente antes dos entroncamentos.
13. Foram estas duas condutas contra-ordenacionais que deram causa à verificação do acidente descrito nos autos.
14. Se o condutor do veículo seguro tivesse respeitado a paragem no sinal STOP o seu veículo não entraria na faixa de rodagem direita da E. M. …, sentido ………./………. pelo que não se teria dado o acidente.
15. Todavia se o condutor do veiculo de propriedade do ora recorrido tivesse obedecido à imposição de proibição de efectuar ultrapassagens imediatamente antes de um entroncamento, este veículo não se encontraria a circular na faixa de rodagem destinada à circulação do transito em sentido oposto ao seu sendo certo que não teria embatido no veiculo seguro na ora recorrente.
16. Analisado o acidente descrito nos autos e compulsados os factos dados como provados terá necessariamente de se concluir que o mesmo teve causa por culpa de ambos os condutores.
17. Existindo uma concorrência de culpas a obrigação de indemnizar terá obrigatoriamente de ser repartida.
18. A ora recorrente no máximo terá a obrigação de indemnizar o A. em metade do valor dos danos sobrevindos em decorrência do acidente.
19. Em relação aos danos sofridos no veículo do A. em decorrência do acidente foi dado como provado que o valor venal do mesmo era à data do acidente 10.000,00€, que os salvados valiam cerca de 1.500,00€ e que o valor da reparação se cifrou em 13.319,15€.
20. Nos termos do n° 1 do ad. 20° 1 do Decreto-Lei 83/2006 considera-se que um veículo interveniente num acidente se encontra em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo quando se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100% do valor venal do veículo imediatamente antes do sinistro.
21. No caso em concreto o valor da reparação foi 13.319,15€ e que o valor dos salvados era 1.500,00€, o que somado contabiliza um total de 14.819,15€, sendo certo que o valor venal do veículo era de 10.000,00€.
22. O valor estimado da reparação adicionado do valor dos salvados é superior a 100% do valor venal,
23. Ultrapassa-o em 4.819,15€, pelo que está numa situação de perda total.
24. Por imposição do n° 3 do supra citado art. 20º 1 do Decreto-Lei 83/2006 o valor de indemnização por perda total é determinado com base no valor venal do veículo deduzido do valor do respectivo salvado, caso este permaneça na posse do seu proprietário.
25. O que aconteceu no presente caso.
26. Deduzidos os 1.500,00€ do valor dos salvados aos 10.000,00€ do valor venal, o valor total da indemnização é 8.500,00€.
27. Tendo em conta tudo o que ficou supra alegado no tocante à responsabilidade pela produção do acidente e à respectiva repartição de culpas na mesma o valor de 8.500,00€ terá de ser dividido na proporção de culpa de cada um dos intervenientes.
28. Pelo exposto violou o tribunal “a quo”, o disposto na lei processual, desde logo, o ad. 668° n° 1 alínea c) e d) do C. P. Civil e o artigo do 483° n° 1 do C. Civil.

Nestes termos deve a sentença ora recorrida ser revogada.
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Há contra alegações do autor.

II - II - Recurso do autor

a) O veículo do autor, devido aos danos sofridos, ficou imediatamente impossibilitado de circular.
b) Não foi reparado e permaneceu imobilizado desde a data do sinistro até à presente data.
c) Em consequência do sinistro, ficou o A. privado do uso da viatura e de fruir todas as utilidades que a mesma lhe proporcionaria.
d) A mesma era utilizada pelo A. nas suas deslocações diárias para o local de trabalho, na cidade de Felgueiras.
e) Da simples privação de uso do veiculo decorre a perda de utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se essa perda não foi reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o lesado seja recompensado em medida equivalente que deverá constituir, em principio, o valor diário do custo de um veículo de substituição, até que seja efectivamente reparada a viatura (Ac. TRG, proferido no processo 757/04.1 de 28/04/2004).
f) O preço médio de aluguer de um veículo de idêntica classe é de €24 (vinte e quatro euros - diários).
g) O dano “é todo o prejuízo, e desvantagem ou perda que é causada aos bens jurídicos de carácter patrimonial ou não” (Vaz Serra, Obrigação de Indemnização, BMJ 84-5, n° 3).
h) O dano indemnizável compreende, nos termos do artigo 564° do C. Civil quer os danos emergentes (perda ou diminuição de valores já existentes no património do lesado) quer os lucros cessantes (acréscimo patrimonial que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito mas que, ainda não tinha direito à data da lesão) — Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 1, 8 Ed. pág. 610.
i) Nos termos do art. 562° do O. Civil, o principio geral a aplicar em caso de obrigação de indemnização, é o da restauração natural implícita no principio de que “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstruir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
j) De onde resulta que, haveria de ser posto à ordem do A., durante o período em que se aguardasse ordem de reparação, pelo responsável, um outro veículo que substituísse o veiculo do A. em reparação ou a aguardar ordem de reparação ou, em alternativa, haveria que proceder-se à liquidação das despesas ou prejuízos que a falta dessa substituição acarretou”... (cfr. Ac. R. Coimbra de 26/04/90 in CJ, 111990, pág. 75.
k) A privação do uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui uma perda que deve ser considerada.
1) Nos termos do art° 1305° do CC, o direito de propriedade compreende os direitos de uso e fruição da coisa, e como o A. ficou privado da faculdade de uso, afectado ficou o seu direito de propriedade, que é indemnizável.
m) Refere Abrantes Geraldes, in Indemnização do dano da privação do uso, a pág. 31, “tomando por base a situação típica de um acidente de viação, causalmente imputável a terceiro, de que tenham resultado danos num veículo que obrigam à sua reparação e correspondente paralisação, é incontroverso que o sistema confere ao lesado o direito à reconstituição natural da situação.”
n) “A consumação dessa exigência de ordem legal poder-se-á fazer através da entrega de um veículo com características semelhantes ao danificado, facultando-se ao lesado a sua utilização durante o período de carência.”
o) “Outra alternativa que igualmente permite aproximar o lesado da situação em que ficaria se não fosse o evento lesivo pode traduzir-se na atribuição da quantia suficiente para contratar o aluguer de um veículo com características semelhantes.”
p) Contudo, a privação do uso, desacompanhada da sua substituição por um outro ou do pagamento de uma quantia bastante para alcançar o mesmo efeito, reflecte o corte definitivo “fatia” dos poderes inerentes ao proprietário.
q) Pelo que, o A. terá que ser indemnizado, nos moldes peticionados na P1., no que respeita á privação de uso.
r) Pelo exposto violou o Tribunal a quo, ao não condenar a R. na privação de uso peticionada, os art.s 562°, 564° e 1305° do C. Civil.

Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso, deve também condenar-se a ré no dano de privação de uso,
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II- Factos provados

Após julgamento, o tribunal deu como provado:

A) No dia 08 de Fevereiro de 2005, pelas 14:30 horas, na Estrada Municipal n.º …, ………., freguesia de ………., concelho de Amarante, ocorreu um acidente de viação.
B) Foram intervenientes nesse sinistro o veículo ligeiro de mercadorias matrícula ..-..-TB, registado em nome do A. e conduzido por D………., e o veículo ligeiro de mercadorias, matrícula ..-..-QE., propriedade de E………., Lda. e conduzido por F………. .
C) No local, atento o sentido ……….-………., a via configura uma recta com cerca de 100 metros de comprimento e ligeira inclinação descendente.
D) Apresenta duas hemi-faixas de rodagem, uma em cada sentido, sem qualquer traço de separação, delimitada por bermas de ambos os lados.
E) A meio da recta, existe um entroncamento, para a esquerda, atento o referido sentido.
F) O tempo estava seco e havia boa visibilidade.
G) O piso era em paralelo e encontrava-se em bom estado de conservação.
H) A velocidade permitida para o local era 50 km/hora.
I) O TB seguia no sentido ……….-………. .
J) O QE seguia por uma via que entronca na Estrada Municipal n.º …, pretendendo aceder a esta.
L) Nesse entroncamento, para quem pretende aceder à Estrada Municipal n.º …, encontra-se aposto um sinal STOP.
M) O TB e o QE embateram, respectivamente, com as suas parte lateral esquerda e parte lateral frontal esquerda.
N) A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo com a matrícula ..-..-QE encontrava-se transferida para a Companhia de Seguros C………., SA mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ……… .
1º No local do acidente, a via tem 5,75 metros de largura.
3º Ao aproximar-se do ………., o TB deparou-se com um veículo automóvel parado na via onde seguia, ocupando parcialmente com a sua largura a sua hemi-faixa de rodagem direita atento o seu sentido de marcha, e por onde seguia.
4º O condutor do TB certificou-se que naquele momento não havia qualquer viatura a circular em sentido contrário.
5º Accionou o indicador de mudança de direcção para a esquerda.
6º E iniciou o contorno do motociclo.
7º Quando terminava a manobra, surgiu inesperadamente pela esquerda o QE.
8º ... provindo do entroncamento referido em J).
9º ... e sem que tivesse parado no sinal STOP.
10º ... invadindo a faixa de rodagem que o TB utilizava para efectuar a manobra.
11º … e embatendo no TB.
12º ... que por sua vez, ante a violência do embate foi projectado e desgovernou e foi embater, com a parte lateral direita, no pilar do muro de vedação de uma residência existente no local.
13º O condutor do QE apresentava, no momento do acidente, uma taxa de 0,61 g/l de álcool no sangue.
14º Com o embate o TB ficou danificado nas portas direita e esquerda, nos painéis direito e esquerdo, dois air bags, embaladeira, coluna esquerda, cintos de segurança, forras das portas, suporte, vidro Lateral direito e friso
15º ... cuja reparação ascende a pelo menos 13.319,15€.
16º O TB, devido ao embate, ficou impossibilitado de circular.
17º... permanecendo imobilizado desde a data do sinistro até hoje.
18º À data do acidente o TB era utilizado pelo Autor nas suas deslocações diárias.
20º Durante cerca de um mês o A. socorreu-se de automóveis de familiares e amigos, a título de favor.
21º O aluguer de um veículo de idêntica classe custa cerca de 24,00€/ dia.
22º O QE, no referido entroncamento, pretendia virar à direita.
23º .. e continuou a sua marcha.
24º Ocupou, assim, parcialmente e de forma enviesada a hemi-faixa direita de rodagem atento o sentido de marcha que pretendia tomar.
30º Após o embate o TB foi projectado para o seu lado direito, em consequência do que percorreu de forma enviesada uma distância aproximada de 11,50 metros indo embater com a sua parte lateral direita no pilar do muro referido em 12º.
31º O valor venal do TB era á data do acidente de 10.000,00€.
32º E os salvados valiam cerca de 1.500,00€.
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IV - O Direito

Várias questões são colocadas para resolver, em função das conclusões dos recursos, tanto do autor como da ré, que se podem sintetizar:
- se há concorrência de culpas na verificação do acidente:
- valor da indemnização pelos danos no veículo
- valor a fixar pela privação do uso.

Analisemos cada uma de per si.

IV - I - Quanto ao acidente.

Para a ré o tribunal apenas apreciou a conduta do condutor do QE e nada disse quanto à conduta do condutor do TB, sendo que este também terá contribuído para a sua produção, em percentagem que considera ser de 50%.
Ora, relendo a decisão recorrida, verificamos que o tribunal considerou que, atentos os factos provados, a produção do acidente ficou a dever-se à conduta negligente do condutor do veículo QE, o qual terá violado a regra do Código da Estrada que lhe impunha a obrigação de paragem perante o sinal de STOP, que se situa na via por onde circula e imediatamente anterior ao acesso à via por onde circulava o TB, e uma vez que não observou esta regra e logo num entroncamento sinalizado com sinal STOP, tendo entrado na via por onde circulava o autor sem parar, quando este efectuava uma manobra de ultrapassagem a um veículo que se encontrava parado, ocupando parcialmente a hemi-faixa por onde seguia, violando o disposto no artigo 21º B2 do Regulamento de Sinalização de trânsito, aprovado pelo Decreto regulamentar n.º 22-A/98, de 1 de Outubro.
Concluiu ainda que, provada a violação destes preceitos estradais, esta conduta contra-ordenacional foi causa do acidente e contribuiu adequadamente para ele e foi, segundo as circunstâncias concretas do caso, idónea para produzir o evento danoso ocorrido, na medida em que se o condutor do veículo QE circulasse observando aquela regra de trânsito teria parado antes de entrar no entroncamento junto do qual o sinal de STOP estava colocado e teria cedido a passagem ao autor que estava a finalizar a manobra de ultrapassagem e só depois teria entrado na via, conduta com a qual teria evitado o acidente, actuando ainda, o condutor do veículo QE, de forma culposa, já que não agiu com a diligência de bom pai de família, que no caso concreto teria circulado observando aquelas regras de trânsito.
Ora, estas observações estão totalmente correctas, na medida em que não vemos em que medida a ultrapassagem do condutor do TB tenha contribuído, de qualquer forma, para a produção do acidente.
O condutor do TB faz uma ultrapassagem a um veículo parado na via por onde seguia, ocupando parcialmente com a sua largura a sua hemi-faixa de rodagem direita atento o seu sentido de marcha, e por onde seguia, certificando-se que naquele momento não havia qualquer viatura a circular em sentido contrário, pelo que accionou o indicador de mudança de direcção para a esquerda e iniciou o contorno do veículo e quando terminava a manobra, surgiu inesperadamente pela esquerda o QE, provindo do entroncamento e sem que tivesse parado no sinal STOP, invadindo a faixa de rodagem que o TB utilizava para efectuar a manobra.
Ora, a manobra de ultrapassagem proibida na previsão da al. d) do art. 41 do CE não pode ser vista em termos absolutos e tão rigorosos como pretende a ré, mas sim em termos relativo e com razoabilidade, sob pena de, num caso como o dos autos, o condutor do TB nunca poder continuar a sua marcha, dado que um veículo se encontrar parado na estrada, mesmo em frente a um entroncamento.
Se na via por onde circula o TB se encontra um veículo parado na sua faixa de rodagem, mesmo que seja em frente a um entroncamento que se apresenta pelo seu lado esquerdo, atendendo ao seu sentido de marcha, ao condutor não resta senão fazer a ultrapassagem, sob pena de ter de imobilizar o seu veículo e parar também.
Por isso é que podemos afirmar que, em tais situações, a conduta do condutor do TB tem mais as características, não de uma típica e prevista ultrapassagem do art. 41º do C.E, que pressupõe um carro ou motociclo à sua frente em movimento, mas antes de ter de contornar um obstáculo parado, no caso, por sinal um veículo, para poder prosseguir a sua marcha.
E o facto de poder ter de ocupar a faixa contrária, não merece censura, mais ainda quando, pelos factos provados, se pode concluir que cumpriu as normas e regras impostas pelo art. 38º do m.d.l., não circulando qualquer veículo em sentido contrário.
Por isso é que não vemos razões para censurar a conduta do condutor do TB e atribuir-lhe qualquer percentagem de culpa para a produção do acidente, pois consideramos que a sua conduta não pode ser considerada ilícita.
Pelos factos apurados não descortinamos sentido para, em qualquer medida, censurar a sua conduta, nem podemos afirmar que de algum modo contribui para a verificação do acidente.
Já o mesmo não podemos dizer do condutor do QE, que ao não obedecer ao sinal Stop, indicador de paragem obrigatória antes de entrar no entroncamento e ceder passagem a todos os veículos que transitem na via onde vai entrar e não cuidando de averiguar quem circulava na via que passaria a usar, atendendo ao trânsito que se fazia em ambos os sentidos, invadindo sem mais a faixa de rodagem, mesmo aquela que lhe estava mais próxima, terá de ser considerado como o único e exclusivo culpado.
Não pode haver aqui repartição de culpas, dado que apenas há uma conduta contra-ordenacional que foi causadora exclusiva do acidente e esta situa-se no comportamento do condutor do QE.

IV - II - Questiona ainda a seguradora o valor atribuído ao dano do veículo.

A sentença considerou que valendo o veículo à data do acidente 10.000,00€ e que a sua reparação custa pelo menos 13.319,15€, entendeu que a desproporção entre o valor comercial da viatura e o valor da reparação não é de uma desproporção tão clamorosa que objectivamente imponha que se considera excessivamente onerosa a reparação - art. 566º n.º 1 do CC - e, por outro lado, vendo as coisas do lado do autor, considerou que a diferença observada entre o valor objectivo da viatura e o valor da sua reparação é a diferença razoável para que levando em atenção o mencionado valor de compra de um veículo nas condições do sinistrado ainda se proceda à reparação, com o fim de evita que o autor, que não teve culpa na produção do acidente, fique com prejuízos ou custos acrescidos para se repor na situação pré acidente, donde entender que o autor tem direito à reparação do veículo, e sendo a reparação ascendente a pelo menos 13.319,15€, ser esse o quantitativo da reparação.
A ré pretende que seja aplicado o fixado no art. 20ºI do DL n.º 83/2006 de 3 de Maio de 2006.
De facto este artigo prevê, regulamenta e fixa as hipóteses da indemnização a fixar no caso de perda total de veículo, sendo a obrigação de indemnização cumprida em dinheiro e não coma reparação do veículo, para além de fixar também os critérios de fixação do valor venal e atender aos anos de idade deles.
Acontece porém, que o art. 5º do mesmo decreto-lei determina que o disposto neste diploma aplica-se aos sinistros que ocorram após a data da entrada em vigor e sendo que a sua entrada em vigor ocorreu 120 dias após a sua publicação - 3 de Maio de 2006 -, logicamente que tendo o acidente dos autos ocorrido em 8 de Fevereiro de 2005, não pode ficar a ele sujeito.
Os cálculos da ré seguradora não podem ser aplicados ao caso dos autos.
Por outro lado, os cálculos aplicados na sentença são sensatos e conforme os ensinamentos e diplomas legais vigentes.
Não há que alterar o montante fixado para a reparação do veículo.

IV - III - Vejamos agora a privação do uso do veículo.

Ele centra-se na questão largamente debatida na doutrina e jurisprudência sobre a problemática da privação do uso de veículo automóvel.
O tribunal considerou que perante os danos dados como provados e uma vez que não provou que a paralisação do veículo tivesse causado qualquer prejuízo, para além dos naturais incómodos e aborrecimentos, e que tivesse procedido ao aluguer de uma viatura para colmatar a privação do uso da sinistrada e, por outro lado, qualquer pagamento a familiares e amigos, não teria direito a qualquer indemnização e daí ter julgado improcedente o pedido.
Centremos os factos provados neste particular para melhor abordarmos o problema.
Provou o autor que:

O TB, devido ao embate, ficou impossibilitado de circular, permanecendo imobilizado desde a data do sinistro até hoje.
À data do acidente o TB era utilizado pelo Autor nas suas deslocações diárias.
Durante cerca de um mês o A. socorreu-se de automóveis de familiares e amigos, a título de favor.
O aluguer de um veículo de idêntica classe custa cerca de 24,00€/ dia.

Ora, sobre esta problemática, qual seja da concreta fixação de indemnização pela privação do uso, encontra-se dividida, com dois plenos distintos, tanto a doutrina como a jurisprudência.
E o ora relator, sendo ainda presentes os mesmos adjuntos actuais, proferiu decisão sobre esta questão, inserida em www.dgsi.pt, Relação do Porto, Acórdão de 16-10-2006, cujo sentido ainda hoje considera válido e actual e que tem merecido inclusive apoio jurisprudencial actualizado, pelo que, passamos a usar os fundamentos aí expostos, ainda que com novas adaptações jurisprudenciais.
Ai se considerou que, de facto, para uns, a mera privação do uso de um veículo em virtude de danos sofridos constitui em si um dano que merece a tutela do direito em sede de indemnização – entre outros e por todos, Ac. R. Porto, de 15-04-2004, em www.dgsi.pt e Abrantes Geraldes, em Temas da Responsabilidade Civil, Vol. I, Indemnização do Dano da Privação do Uso, pág. 52 a 54 –
Ainda dentro desta perspectiva e neste mesmo sentido se enquadra o entendimento manifestado em Ac. STJ, de 29-11-2005, CJSTJ, Tomo III, pág. 151, segundo o qual, nestes casos, se deve fazer uso da equidade para a fixação da indemnização.
Nestes se apoia o autor.
Segundo outros, porém, consideram que a mera privação do uso de um veículo automóvel, sem qualquer repercussão negativa no património do lesado, ou seja, se dela não resultar um dano específico, é insusceptível de fundar a obrigação de indemnizar no quadro da responsabilidade civil – Ac. STJ, de 12.01.06, em www.dgsi.pt -
E no mesmo sentido se manifesta o Ac. STJ, de 8-06-2006, também em www.dgsi.pt, segundo o qual, embora considere que a mera privação do uso de um veículo automóvel constitui um ilícito por impedir o proprietário de gozar de modo pleno e exclusivo os direitos de uso, fruição e disposição, nos termos do art. 1305º do CC, entende que a simples privação do uso não basta “quo tale” para fundar a obrigação de indemnizar se não se alegarem e provarem danos por ela causados.
Porém, mais recentemente, bem recente aliás, encontramos dois acórdãos do STJ, subscritos por Ilustre Conselheiros, que demonstram o sentido a atribuir ao dano da paralisação do veículo.
Assim, diz o Ac. de 30-10-2008, subscrito por Bettencourt de Faria:

“Que a privação do uso integra uma ofensa do direito de propriedade, disso não temos dúvidas. No entanto, como é sabido, a ofensa de um direito só funda a indemnização por dano patrimonial, se este concretamente se verificar. A simples privação do uso não é, só por si, uma lesão económica.
Entendimento contrário – que foi o adoptado no Ac. deste STJ de 06.05.08, www.dgsi.pt 08A1279 -, indicado pela recorrente - levar-nos-á sempre a dar relevância ao dano económico provável e não ao dano económico real. Sem prejuízo da mera ofensa do direito ser indemnizável a título de dano não patrimonial. Aliás, a tese contrária ao entendimento que defendemos acaba sempre por ter de fixar uma indemnização através da equidade, dada a manifesta impossibilidade de determinar o conteúdo económico da lesão em si.
Como se entendeu no Ac. deste STJ de 16.09.08 – www.dgsi.pt 08A2094 – “A paralisação de um veículo não gera de per si prejuízos. Para que a imobilização de uma viatura possa significar danos para o seu proprietário é necessário alegar-se e provar-se factos nesse sentido.”.

E daí o seu sumário

– A privação do uso do veículo, por parte do seu proprietário, em virtude de acidente de viação, só é reparável, se aquele provar, como é ónus do lesado, quais os danos em concreto que derivaram daquela privação.

Também Salvador da Costa, Ac. do STJ, do mesmo dia 30-10-2008, consultável também em www.dgsi.pt, entende que:

“Visa o instituto da responsabilidade civil, para o caso de afectação de bens materiais, a reconstituição da situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento causador do prejuízo, ou seja, indemnizar os prejuízos sofridos por uma pessoa (artigo 562º do Código Civil).
É certo, em regra, por um lado, gozar o proprietário de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (artigo 1305º do Código Civil).
E, por outro, dever o agente que, ilícita e culposamente violar aquele direito, indemnizar o referido proprietário dos danos que lhe causar (artigos 483º e 499º a 510º do Código Civil).
Todavia, a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil depende da existência de danos e pressupõe a verificação do nexo de causalidade entre eles e o facto ilícito lato sensu (artigos 563º do Código Civil).
Também é certo dever o tribunal julgar equitativamente, dentro dos limites que tiver por provado se não puder averiguar o valor exacto dos danos (artigo 566º, nº 3, do Código Civil).
Isso significa que os juízos de equidade não suprem a inexistência de factos reveladores do dano ou prejuízo reparável derivado de facto ilícito lato sensu, porque o referido suprimento só ocorre em relação ao cálculo do respectivo valor em dinheiro.
Ademais, prescreve a lei que, em regra, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos (artigo 566º, nº 2, do Código Civil).
Assim, face ao referido normativo, a indemnização pecuniária deve corresponder à diferença entre a situação patrimonial efectiva do lesado aquando da decisão da matéria de facto e a sua situação provável nessa altura se a causa do dano não tivesse ocorrido.
A referida regra de cálculo da indemnização em dinheiro, inspirada pelo princípio da diferença patrimonial, não dispensa, como é natural, o apuramento de factos que revelem a existência de dano ou prejuízo na esfera patrimonial da pessoa afectada.
Assim, face ao nosso ordenamento jurídico, a mera privação do uso de um veículo automóvel, isto é, sem qualquer repercussão negativa no património do lesado, ou seja, se dela não resultar um dano específico, emergente ou na vertente de lucro cessante, é insusceptível de fundar a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil”.

E daí o respectivo sumário que:

1. Os juízos de equidade relevam em matéria de cálculo indemnizatório, mas não suprem a inexistência de factos reveladores do dano ou prejuízo reparável envolvente.
2. Como a indemnização em dinheiro é medida pela diferença entre uma dada situação patrimonial do lesado e a que ele então teria se não tivesse ocorrido o dano, não dispensa a lei o apuramento de factos que revelem a existência de dano específico na esfera da pessoa afectada.
3. A mera privação do uso de um veículo automóvel, sem factos reveladores de dano específico emergente ou na vertente de lucro cessante, é insusceptível de fundar a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil.

Ora, voltando ao caso em apreço no recurso, certo é que o autor, com os factos que conseguiu provar, não demonstra nem se apurara danos concretos e visíveis que tivessem resultado da paralisação do veículo da autora, isto porque apenas resultou provado que desde o embate o veículo esteve impossibilitado de circular e está imobilizado até hoje, que usava o veiculo nas suas deslocações diárias e que se socorreu de automóveis de familiares e amigos durante um mês.
E embora se prove que o aluguer de um veículo de idêntica classe custe cerca de 24,00€/dia, o certo é que não ficou provado que a imobilização causasse à autora esse prejuízo diário de 25€, sendo que este valor apenas funcionaria como factor a atender caso se provassem prejuízos.
Por outro lado, também não provou que a privação do veículo lhe causasse mais qualquer outro prejuízo, como por exemplo, aluguer de outro veículo, incómodos e aborrecimentos sofridos com a paralisação, de ser o único veículo que dispunha, por ter de usar meios de transporte alternativos, como transportes públicos ou privados (taxis), sempre com prejuízo monetário e quantificável seu, pedir emprestado um outro veículo a um amigo a quem teve de pagar, senão em dinheiro, pelo menos com outros favores quantificáveis, etc., etc.
Podemos até aceitar, como mero raciocínio jurídico, como mera hipótese lógica e académica, que o autor teve prejuízos, mas esta mera eventualidade, tudo dentro do possível, não tem o condão nem a virtualidade de fazer funcionar o art. 562º (obrigação de indemnizar) e 563º (nexo de causalidade) e nem mesmo o art. 566º n.º 3 (recurso à equidade), todos do CC.
E a seguir-se a tese do apelante, que bastaria a privação do uso para haver lugar à indemnização, seria ter uma visão redutora da acção da parte em processo civil, atento o princípio dispositivo que entre nós vigora – art. 264º do CPC e 342º do CC -.
A regra de cálculo da indemnização em dinheiro do art. 566º n.º2 do CC não dispensa o apuramento de factos que revelem a existência de dano ou prejuízo na esfera patrimonial da pessoa afectada, ou seja, os factos têm que ser alegados e provados.
Por isso que consideramos mais adequada esta segunda orientação, isto é, que a mera privação do uso sem a alegação e prova de danos dela decorrente, não constitui, só por si, um dano indemnizável.
Deste modo, ficando indemonstrado, por falta de prova, que a privação do uso tenha acarretado qualquer dano concreto e específico, não se lhe pode fixar indemnização.
Isto porque consideramos, como aliás assim o entendeu a decisão em recurso, que os factos que provou são insuficientes para se deles partir para a afixação de uma indemnização.

E falamos até aqui de dano patrimonial.

Mas poderemos integrar a matéria factual num dano não patrimonial do art. 496º do CC?

Como dissemos já, o autor poderá eventualmente ter sofrido incómodos e aborrecimentos como resultado do acidente para o qual em nada contribuiu. É mesmo natural que os tenha sofrido.
Só que também aqui há uma falta total de factos provados que possam conduzir à fixação de um valor para esse efeito e nem mesmo podemos usar a equidade, uma vez que o n.º 3 do art. 566º exige que seja usado este instituto “dentro dos limites que tiver por provados” e o n.º 3 do art. 496º remete para o art. 494º do CC.
Mas, independentemente desta circunstância, só por si relevante, há ainda um outro factor que impossibilita a fixação de qualquer indemnização a título de dano não patrimonial, qual seja o facto de não ter sido pedida pelo autor e o tribunal não pode condenar em quantidade ou objecto diverso do que se pede - n.º 1 do art. 661º do CPC.

Em conclusão, o pedido formulado pelo autor relativamente à paralisação do veículo, não pode ser atendido.
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V - Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em se julgar improcedentes os recursos e confirmar inteiramente a decisão apelada.
Custas por autor e ré na proporção do decaimento
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Porto 17/12/2008
Rui de Sousa Pinto Ferreira
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira (Vencido, em parte. Não ignorando a complexidade da questão da ressarcibilidade da mera privação do uso de um bem, como dano autónomo de natureza patrimonial, propondemos para considerar que a falta da prova de prejuízos patrimoniais concretos, decorrentes da imobilização de um veículo, não conduz necessariamente o tribunal à denegação da pretensão indemnizatória, no entendimento de que a privação do gozo de um veículo poderá constituir um dano ressarcível se se traduzir, como no caso concreto (pontos 18 e 20 dos factos provados), na perda de uma concreta e real vantagem do gozo da coisa. Atribuiríamos, por isso, uma indemnização a favor do Autor, pelo mencionado dano patrimonial, calculada segundo a equidade, dentro dos estreitos limites do que se teve por provado, no montante de 1.000 euros.
Neste sentido, já foi o nosso voto de vencido aposto no Ac. desta secção, de 16.10.2006, citado a fls 16 do presente acórdão).
Manuel José Caimoto Jácome