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ACESSÃO INDUSTRIAL IMOBILIÁRIA
BOA-FÉ
Sumário
I - A acessão industrial imobiliária não é apenas um modo de aquisição do direito de propriedade. É também um mecanismo de resolução de um conflito de direitos da mesma natureza, gerado pela sobreposição de duas propriedades: a do dono da obra e a do dono do prédio onde a obra foi incorporada. II - Embora a letra do n.° 1 do art. 1340.° do Código Civil refira apenas a construção de obra “em terreno alheio”, é hoje incontroverso que ali se compreendem tanto as obras realizadas em prédio rústico como as realizadas em prédio urbano. III - O conceito de boa fé exigida pelo n.° 1 do art. 1340.° do Código Civil não se limita às duas situações descritas no n.° 4 do mesmo artigo. IV - A expressão “entende-se” constante deste preceito quer dizer que, nesses duas situações, presume-se a boa fé do autor da incorporação. Mas não exclui nem impede que se possa estender o conceito de boa fé a outras situações compreendidas na definição dada pelo n.° 1 do art. 1260.° do Código Civil, comprovativas de que o autor da incorporação ignorava, no momento da execução das obras em prédio alheio, que lesava o direito de terceiro.
Texto Integral
Apelação n.º 7531/08-2
1.ª Secção Cível
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto.
I
1. Na acção declarativa com processo comum sumário que correu termos no ..º Juízo Cível do Porto com o n.º …/2002, proposta por B………., residente na ………., na cidade do Porto, contra C………. e D………., E………. e F………., os três primeiros também residentes na cidade do Porto e a última residente em Inglaterra, a autora pediu a condenação dos réus: a) a indemnizá-la no valor despendido com as obras no local que ocupou e foi pertença destes, com fundamento na acessão imobiliária do art. 1340.º do Código Civil; ou b) a restituir-lhe o mesmo valor com fundamento no enriquecimento sem causa, nos termos previstos no art. 473.º do Código Civil.
Em consequência de incidentes de habilitação de herdeiros dos demandados D………. e E………. vieram a ser habilitados, no lugar daqueles, G………., H………., I………., J………., K………., L………., M………., N………. e O………. .
Alguns destes réus contestam a acção, alegando a excepção do caso julgado. Por despacho a fls. 321-324, foi julgada procedente a referida excepção e absolvidos os réus da instância. Mas este despacho veio a ser revogado por acórdão desta Relação de 25-02-2008, a fls. 365-370, que concluiu pela não verificação do caso julgado e ordenou o prosseguimento do processo.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, a fls. 412-418, que, julgando a acção provada e procedente, condenou solidariamente os réus, sem prejuízo do disposto no art. 2071.º do Código Civil quanto aos habilitados, a pagar à autora a quantia de € 8.097,72, com fundamento no art. 1340.º do Código Civil.
2. Os réus apelaram dessa sentença, concluindo as suas alegações do seguinte modo:
1.ª - Pela não verificação dos requisitos necessários à aplicabilidade do n.º 4 do artigo 1340.º do CC, o mesmo, bem como o instituto da "acessão", não tem aplicabilidade "in casu".
2.ª - A ter, o que não se concede, jamais foram cumpridas as exigência descritas na lei, de comunicação a todos os comproprietários, das intenções da A. e do necessário conhecimento destes para consentirem nas obras realizadas.
3.ª - Não tendo assim, o instituto da "acessão", bem como já não o teve o da "locação", aplicabilidade nos presentes autos, a A. carece de fundamento legal para formular o presente petitório.
4.ª - Pelo que, nestes termos, a acção "sub júdice" deveria e deverá ser considerada como totalmente improcedente.
5.ª - Devendo este Tribunal considerar tal decisão improcedente, revogando a sentença proferida em 1.ª Instância, em razão da exposição supra apresentada.
A autora contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso e a consequente confirmação da sentença recorrida.
3. Ao presente recurso é ainda aplicável o regime processual anterior ao Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/08, porquanto respeita a acção instaurada antes de 1 de Janeiro de 2008 (foi instaurada em 01-03-2002). E por força do disposto no n.º 1 do art. 11.º do Decreto-Lei n.º 303/2007, o regime introduzido por este diploma legal não se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, que ocorreu em 1 de Janeiro de 2008 (art. 12.º do mesmo decreto-lei).
De harmonia com as disposições contidas nos arts 684.º, n.ºs 2 e 3, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável, são as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação que delimitam o objecto do recurso, sem prejuízo das questões de que, por lei, o tribunal pode conhecer oficiosamente (art. 660.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos apelantes, objecto do recurso compreende a seguinte questão: se ao caso é aplicável o art. 1340.º do Código Civil e se mostram verificados todos os requisitos aí previstos, mormente o requisito da boa fé, segundo a definição dada pelo n.º 4 do referido artigo.
Foram cumpridos os vistos legais.
II
4. Na 1.ª instância foram julgados provados os factos seguintes:
1) A aquisição da propriedade do prédio urbano sito na Rua ………., n.º .., Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 536/19951917, ………., encontra-se inscrita a favor de D………., C………., E………., F………., originais réus na presente acção, por, designadamente, sucessão por morte de P………. .
2) Este prédio tem descrito como valor tributável 560.855$00.
3) Por documento escrito datado de 15 de Novembro de 1943, o anteproprietário P………. declarou dar o imóvel de arrendamento a Q………., declarando este tomá-lo de arrendamento.
4) A autora viveu no referido imóvel desde, pelo menos, 6 de Junho de 1984 e até 11 de Fevereiro de 2000.
5) Aí centrou a sua vida familiar, nomeadamente, viveu em comunhão de facto com S………. e, após a morte deste, com o seu actual companheiro.
6) Recebendo amigos, familiares e correspondência.
7) Sempre suportou as despesas de electricidade, água e saneamento do imóvel.
8) Desde 6 de Junho de 1984 e até ao ano 2000, a autora esteve convicta de ter direito próprio de habitar o prédio, como arrendatária.
9) Durante o período em que no mesmo habitou a autora, o imóvel foi sofrendo diversas deteriorações.
10) Os Réus não realizaram obras no imóvel referido desde, pelo menos, 6 de Junho de 1984.
11) Tais deteriorações eram visíveis na porta da entrada, telhado, tectos e paredes, que apresentavam fissuras, fendas e rachadelas.
12) Em 1991, a autora fez, a expensas suas, as seguintes obras, no valor de € 5.437,81 (1.090.183$00): levantamento de todo o telhado e aplicação do travejamento em pinho e telha nova; arranjo de tectos e paredes no interior; pintura de paredes; aplicação de tijoleira na casa toda.
13) A autora procedeu à colocação no imóvel de uma porta em pinho, aplicando pintura na mesma no interior e exterior, no que despendeu a quantia de € 496,05 (99.450$00).
14) Em meados do ano de 1999, o imóvel apresentava rachadelas e fissuras nas paredes, bem como fendas em vários tectos, que tomaram algumas dependências permeáveis à humidade.
15) A autora remeteu ao réu C………. a carta junta a fls. 22, a qual se dá aqui por integralmente transcrita.
16) Os réus não realizaram, então, obras na habitação ocupada pela autora, nada declarando à autora.
17) A autora procedeu, então, à realização das seguintes obras, a expensas suas: tectos falsos € 832,99 (167.000$00); reparação de estores e janelas € 113,80 (22.815$00); reparação da porta da entrada € 1.167,19 (234.000$00), tudo no valor de € 2.113,98 (423.815$00).
18) A autora realizou as obras na convicção de ter o direito de as realizar, por pensar ter a qualidade de arrendatária e por pensar serem tais obras necessárias e urgentes para garantir a conservação e habitabilidade do imóvel, perante a sua não realização pelos proprietários deste.
19) Na data da realização das obras descritas, o imóvel tinha, antes destas, valor superior ao de quaisquer obras nele incorporadas.
III
5. Os apelantes opõem à sentença recorrida, como única questão, a inaplicabilidade ao caso do art. 1340.º do Código Civil ou, a entender-se que tal preceito é aplicável, a não verificação dos requisitos aí previstos, mormente no que respeita ao requisito da boa fé, segundo a definição dada pelo n.º 4 do referido artigo.
Importa começar por dizer que os apelantes, embora se oponham à aplicação ao caso do art. 1340.º do Código Civil, não justificam porque é que este artigo não é aqui aplicável, como não justificam porque é que não se verifica o requisito da boa fé relativamente a todos os réus.
Ora, a sentença recorrida concluiu pela existência dos requisitos da acessão imobiliária previstos no referido art. 1340.º, que justificou do seguinte modo, citando os ensinamentos de ANTUNES VARELA[*]:
«… são quatro os elementos que compõe a acessão industrial imobiliária retratada no art. 1340.º do Código Civil: 1.º – o acto jurídico de incorporação; 2.º – pertinência dos materiais incorporados ao autor da obra; 3.º – natureza alheia do terreno sobre o qual é feita a obra; e 4.º – a boa fé do autor da incorporação. (…).
Afigura-se-nos incontroverso que está demonstrada a existência de um acto jurídico de incorporação de uma obra — reportando-se às obras que a autora mandou realizar no prédio, quer no ano de 1991, quer no ano de 1999, a que aludem os factos provados descritos nos itens 12, 13, 14 e 17; que a obra (incorporada) foi realizada ou custeada pela autora com o que era seu e que o imóvel não é pertença desta, mas sim dos Réus.»
No que respeita ao requisito da boa fé do autor da incorporação, exigido pelo n.º 1 e definido no n.º 4 do art. 1340.º do Código Civil, diz o seguinte, citando novamente a doutrina de ANTUNES VARELA, bem como um parecer de QUIRINO SOARES:
«… o actual conceito de boa fé previsto para a acessão deve ser perspectivado e informado pelo conceito de boa fé previsto para efeitos possessórios. Devemos, pois, considerar que a ratio da lei visa tutelar o estado psicológico do agente que actua na convicção de não lesar o direito de propriedade alheio – cfr. o art. 1260.º, n.º 1, do Código Civil.»
Para concluir que:
«… numa interpretação extensiva da norma em causa, permitida e exigida pelo art. 9.º do Código Civil, devemos considerar que age de boa fé o autor da obra que, embora não tenha obtido autorização do dono do terreno, esteja (errada mas razoavelmente) convencido de que a obteve a devida autorização ou de que agiu ao abrigo de uma legalmente prevista ‘causa de justificação’ que expressamente o isentava dessa necessária autorização.»
Assim fundamentada a procedência do pedido da autora na acessão industrial imobiliária prevista no art. 1340.º do Código Civil, competia aos apelantes alegar as razões da sua discordância, seja com a aplicação ao caso deste preceito legal, seja com a interpretação extensiva que foi acolhida na sentença recorrida. É o que decorre dos n.ºs 1 e 2 do art. 690.º do Código de Processo Civil, que dispõem do seguinte modo: “1 – O recorrente deve apresentar a sua alegação, … (com a) indicação dos fundamentos por que pede a alteração … da decisão. 2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c) …”.
Não bastando, pois, que os recorrentes se tenham limitado a discordar da aplicação do art. 1340.º do Código Civil ou da interpretação feita do n.º 4 do mesmo artigo.
E assim, este tribunal de recurso podia também limitar-se a aderir aos fundamentos constantes da sentença recorrida, nos termos do n.º 5 do art. 713.º do Código de Processo Civil.
6. Sucede que, para além da doutrina já citada na sentença recorrida, pode acrescentar-se o seguinte:
A noção geral de acessão consta do art. 1325.º do Código Civil: “Dá-se a acessão, quando com a coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa que lhe não pertencia”. Assim, a característica essencial da acessão, como modo de aquisição originária do direito de propriedade (art. 1316.º do Código Civil), radica “na circunstância material de a uma coisa pertencente a alguém se unir e incorporar uma outra coisa que lhe não pertence” (cfr. ANTUNES VARELA, em anotação ao ac. do STJ de 06-03-1986, na RLJ, ano 125.º, p. 270).
Nos arts. 1339.º a 1343.º do Código Civil, a lei distingue quatro situações típicas de acessão industrial imobiliária. Das quais, ao caso dos autos interessa apenas a que está regulada no art. 1340.º do Código Civil, sob a epígrafe “Obras, sementeiras, ou plantações feitas de boa fé em terreno alheio”, que abrange a construção de obra, de boa fé, em prédio alheio.
Com efeito, embora a letra do preceito legal citado refira a construção de obra “em terreno alheio”, é hoje incontroverso na doutrina e na jurisprudência que ali se compreendem tanto as obras realizadas em prédio rústico como as realizadas em prédio urbano. Neste sentido se pronunciam, entre outros, os acórdãos do STJ de 17-03-1998, no BMJ n.º 475, p. 690-703, e de 12-02-2004, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 03B4377, e ANTUNES VARELA, na RLJ, ano n.º 132, p. 255. Esclarece este autor que o instituto da acessão cobre igualmente tanto as coisas móveis como as coisas imóveis (art. 1326.º, n.º 2, do Código Civil) e que a categoria de coisas imóveis abrange indistintamente quer os terrenos ou prédios rústicos como os prédios urbanos (art. 204.º, n.º 1, al. a), do Código Civil).
No que respeita ao campo de aplicação do art. 1340.º do Código Civil, para além dos requisitos já referidos na sentença requerida, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (em Código Civil Anotado, vol. II, Coimbra Editora, 1972, p. 147-148), esclarecem que o actual código procurou por termo à confusão de conceitos entre acessão industrial imobiliária e benfeitorias, em face da “existência ou inexistência de uma relação jurídica que vincule à pessoa a coisa beneficiada”. Sendo benfeitorias os melhoramentos feitos “por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico”, como sucede com o proprietário, o usufrutuário, o possuidor, o locatário e o comodatário; e são acessões “os melhoramentos feitos por qualquer terceiro, não relacionado juridicamente com a coisa, podendo esse terceiro ser um simples detentor ocasional”.
Em todo o caso, como decorre dos n.º 1, 2 e 3 do art. 1340.º do Código Civil, o conceito de acessão importa sempre a “incorporação em prédio alheio” de um valor económico acrescentado (cfr. ac. do STJ de 10-10-2002, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 02B2738). Que é o valor que permite aferir se cabe ao autor da obra o direito de adquirir a propriedade do prédio em que foi incorporada, pagando ao respectivo dono o valor que o prédio tinha à data da incorporação (cfr. n.º 1), ou se é o dono do prédio que tem direito a fazer sua a obra incorporada, indemnizando nesse valor o autor da incorporação (cfr. n.º 3).
Nesta perspectiva, o instituto da acessão industrial imobiliária não é apenas um modo de aquisição do direito de propriedade. É também um mecanismo de resolução de um conflito de direitos da mesma natureza, gerado pela sobreposição de duas propriedades: a do dono da obra e a do dono do prédio onde a obra foi incorporada.
O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 205/2000, publicado no D.R. II série, de 30-10-2000, refere a este propósito que “perante a ocorrência de uma sobreposição de duas propriedades distintas, não suportada por um direito de superfície validamente constituído (nem em nenhuma outra situação legalmente admitida de sobreposição de propriedades), a lei vem arbitrar o possível conflito daí emergente, mediante a fixação abstracta de um critério de prevalência. … Este conflito, suscitado pela incompatibilidade entre o direito do proprietário do solo e o direito do autor da incorporação, é para o legislador um conflito inescapável, no sentido de que qualquer solução por ele adoptada, ainda que por simples omissão, irá traduzir-se no sacrifício de um dos direitos em confronto. Na verdade, sempre que se trate de direitos ou pretensões idênticas sobre um mesmo objecto, como sucede na acessão e noutras situações do direito civil, o conflito daí emergente não pode deixar de encontrar uma resposta na lei, seja por via de regras especiais acerca do modo de aquisição e extinção ou oneração de direitos, seja através da aplicação de normas gerais de que resulta a prevalência de um deles”.
Ora, como concluiu a sentença recorrida, os factos provados, designadamente sob os itens 12, 13, 14 e 17, demonstram que a autora realizou obras no prédio dos réus, que então habitava, as quais não só melhoraram as condições de habitação que o prédio passou a proporcionar, como, pela sua natureza e dimensão ao nível do telhado, das paredes, dos tectos, do chão, das portas e das janelas, lhe acrescentaram um valor económico relevante. Sendo certo que o prédio não lhe pertencia, tratando-se, pois, de construção de obra em prédio alheio, e, então, nenhuma relação ou vínculo jurídico tinha com o dito prédio (pensava que era arrendatária, mas essa qualidade foi-lhe negada em anterior acção judicial — cfr. sentença a fls. 270/272 —, o que a reconduz para a posição de mera detentora).
7. Quanto ao requisito da boa fé, importa dizer, primeiramente, que parece inequívoco que a lei o relaciona com a construção da obra — “Se alguém, de boa fé, construir obra …” — e não com a detenção do prédio onde a obra é incorporada.
Em segundo lugar, impõe-se dizer que o requisito da boa fé é exigido pelo n.º 1, e não pelo n.º 4, do artigo aqui em referência. O n.º 4 limita-se a dispor que: “Entende-se que houve boa fé, se o autor da obra, …. desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno”.
Há quem pretenda retirar deste preceito a interpretação restritiva/limitativa de que só existe boa fé, para efeitos da acessão tipificada neste artigo, nas duas situações aí definidas: 1) se o autor da obra desconhecia que o prédio era alheio; 2) ou se foi autorizado pelo dono do terreno a realizar a obra incorporada (cfr. os acs. do STJ de 17-03-1998, acima citado, e de 25-05-99, no BMJ n.º 487, p. 303-308).
Cremos, porém, que a expressão «entende-se» sugere um conceito mais aberto e mais alargado de boa fé, que vai para além das duas situações ali descritas como mera presunção de boa fé. Abrangendo qualquer hipótese em que o autor da incorporação age de boa fé. Que foi a tese acolhida na sentença recorrida. Competindo, então, ao autor da incorporação o ónus de alegar e provar os factos integradores da boa fé (art. 342.º, n.º 1, do Código Civil).
Neste sentido, escreve ANTUNES VARELA (RLJ, ano 125.º, p. 275):
“Para o código de 1966, que reduziu a boa fé, em matéria de posse, a um conceito de raiz essencialmente psicológica, e cortou decididamente o cordão umbilical que a prendia ao suporte básico do título (ou ao justo título) de aquisição do direito, «a posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem» (art. 1260.º, 1).
…
Essencial, de acordo com a nova linha de orientação legislativa, é que o possuidor ignore, ao adquirir a posse, que lesa o direito de outrem.
Quer isto dizer que o possuidor pode perfeitamente saber que o direito não é seu e, apesar disso, possuir de boa fé, desde que aja persuadido de não ofender o direito de terceiro.
…
Ora transplantando esta noção psicológica de boa fé, com as adaptações necessárias, da área significativa da posse para o reduto da acessão industrial imobiliária, como exige a unidade do sistema jurídico, fácil é verificar que o novo conceito de boa fé, aceite neste domínio, se ajusta … a (outras) situações”, do tipo em que a autora da obra, quando iniciou a construção, sabia perfeitamente que o prédio não era seu, mas agiu no convencimento de que as podia realizar enquanto putativa arrendatária.
Ao nível da jurisprudência, para além do texto do Conselheiro QUIRINO SOARES citado na sentença recorrida (publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano IV-1996, T. 1, p. 19), vários acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça acolheram este conceito mais alargado de boa fé, para efeitos da acessão industrial imobiliária prevista no art. 1340.º do Código Civil. Assim, o acórdão de 08-11-2007, disponível em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 07B3545, refere o seguinte:
«Não quis o legislador, neste capítulo dedicado à aquisição da propriedade, desviar-se da ideia de boa fé que adoptou em matéria possessória (art. 1260.º, n.º 1).
Dizer-se que age de boa fé, para efeitos de acessão, o que desconhecia que o terreno onde produziu a intervenção era alheio, ou o que interveio debaixo da autorização do dono do terreno, é, pois, o mesmo que dizer-se que assim age (de boa fé) aquele que ignorava, ao intervir em terreno alheio, que lesava o direito de terceiro.
A uniformização dos conceitos de boa fé em matéria de acessão e de posse, … já vinha, aliás, do código anterior, pelo menos desde quando o Assento do STJ de 28-11-69, interpretou o corpo do art. 2306.º do velho código, no sentido de que a boa fé, ali referida, tinha o conteúdo definido no art. 476.º.
O conceito estritamente psicológico de boa fé adoptado pelo actual código simplificou a tarefa do intérprete e aplicador da lei, mas não deixam de se pôr, com alguma frequência, dúvidas, sempre que aquele estado psicológico é referido a uma autorização e não ao desconhecimento de que o objecto da intervenção é alheio.
A autorização não precisa de provir de uma manifestação de vontade expressa; ela, as mais das vezes, insere-se ou resulta de um negócio que pretende envolver a disposição ou oneração do prédio a favor do autor da incorporação.»
Por sua vez, o acórdão de 05-11-98, também disponível em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ sob o n.º 98A548, perfilha idêntica interpretação, dizendo:
«Nenhuma indicação, a nível literal, há na disposição em análise [o n.º 4 do art. 1340.º do Código Civil] que nos leve a pensar estarmos perante uma enunciação taxativa.
Quando o legislador tipifica, maxime quando enumera, e não esclarece, como é o caso, se a tipologia é taxativa ou enunciativa, deverá, em princípio, entender-se, como bem adverte o Professor Oliveira Ascensão, (in O Direito, Introdução e Teoria Geral, págs. 406 e seguintes) pelo carácter enunciativo e não taxativo da enumeração.
Não existe, pois, obstáculo a que se possa ampliar o conceito de boa fé, para efeito de acessão, de modo a abranger outras situações semelhantes às hipotizadas na lei, igualmente dignas e carenciadas da mesma protecção jurídica.
E é assim que o Professor Menezes Cordeiro, cônscio desta realidade, entende dever aplicar-se à acessão, por analogia, o conceito de boa fé definido no artigo 1260.º do Código Civil (Direitos Reais, II, 719, nota 1118).
Nesta perspectiva, também agirá de boa fé quem construir obra em terreno alheio ignorando que lesa o direito de outrem.»
Este conceito mais aberto de boa fé também encontra convergência com a noção de acessão industrial imobiliária como “mecanismo de resolução de um conflito de direitos”, acolhida no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 205/2000, publicado no D.R. II série, de 30-10-2000. Que fundamenta, dizendo:
«A acessão … é uma forma de aquisição do direito de propriedade, que comporta diversas modalidades e ocorre em situações também variadas. Interessa-nos agora, apenas, a hipótese de acessão industrial imobiliária, prevista no n.º 1 do artigo 1340.º do Código Civil.
Considerada esta forma de aquisição no contexto do princípio da tipicidade dos direitos reais (artigo 1306.º do Código Civil) e da definição legal dos limites do direito de propriedade sobre imóveis ... a acessão constitui, antes de mais, um mecanismo de resolução de um conflito de direitos, gerado pela sobreposição vertical de duas propriedades, a do dono da obra e a do dono do solo onde ela foi incorporada.
Na verdade, perante a ocorrência de uma sobreposição de duas propriedades distintas, não suportada por um direito de superfície validamente constituído (nem em nenhuma outra situação legalmente admitida de sobreposição de propriedades), a lei vem arbitrar o possível conflito daí emergente, mediante a fixação abstracta de um critério de prevalência.
……
Este conflito, suscitado pela incompatibilidade entre o direito do proprietário do solo e o direito do autor da incorporação, é para o legislador um conflito inescapável, no sentido de que qualquer solução por ele adoptada, ainda que por simples omissão, irá traduzir-se no sacrifício de um dos direitos em confronto. Na verdade, sempre que se trate de direitos ou pretensões idênticas sobre um mesmo objecto, como sucede na acessão e noutras situações do direito civil, o conflito daí emergente não pode deixar de encontrar uma resposta na lei, seja por via de regras especiais acerca do modo de aquisição e extinção ou oneração de direitos, seja através da aplicação de normas gerais de que resulta a prevalência de um deles.»
Constata-se, deste modo, que o conceito de boa fé seguido na sentença recorrida tem acolhimento legal, doutrinário e jurisprudencial, contra o qual os apelantes nenhum fundamento mais válido opuseram. E por isso, não vemos razões para alterar o sentido da decisão.
8. Concluindo:
1) A acessão industrial imobiliária não é apenas um modo de aquisição do direito de propriedade. É também um mecanismo de resolução de um conflito de direitos da mesma natureza, gerado pela sobreposição de duas propriedades: a do dono da obra e a do dono do prédio onde a obra foi incorporada.
2) Embora a letra do n.º 1 do art. 1340.º do Código Civil refira apenas a construção de obra “em terreno alheio”, é hoje incontroverso que ali se compreendem tanto as obras realizadas em prédio rústico como as realizadas em prédio urbano.
3) O conceito de boa fé exigida pelo n.º 1 do art. 1340.º do Código Civil não se limita às duas situações descritas no n.º 4 do mesmo artigo. A expressão “entende-se” constante deste preceito quer dizer que, nesses duas situações, presume-se a boa fé do autor da incorporação. Mas não exclui nem impede que se possa estender o conceito de boa fé a outras situações compreendidas na definição dada pelo n.º 1 do art. 1260.º do Código Civil, comprovativas de que o autor da incorporação ignorava, no momento da execução das obras em prédio alheio, que lesava o direito de terceiro.
4) O caso dos autos cabe neste conceito de boa fé.
IV
Por tudo o exposto, julga-se totalmente improcedente a apelação e confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes (art. 446.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
*
Relação do Porto, 09-02-2009
António Guerra Banha
Anabela Dias da Silva
Maria do Carmo Domingues
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[*] Importa, apenas, corrigir que a RLJ (Revista de Legislação e de Jurisprudência) ali citada não é do ano n.º 122, ali referido por lapso, mas sim do ano 125.