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PENHORA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
REGISTO
Sumário
Devem ser julgados procedentes os embargos de terceiro deduzidos pelo proprietário de um veículo automóvel penhorado ao executado, se o embargante fizer a prova de que o adquiriu ao executado em data anterior ao registo da penhora, mesmo que não tenha ainda nesta data registada a seu favor a propriedade do veículo.
Texto Integral
Processo n.º 6187/08 – 4ª Secção
Relator: M. Fernanda Soares - 704
Adjuntos: Dr. Ferreira da Costa - 1023
Dra. Albertina Pereira -
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I
Por apenso à execução que B…………. moveu a C………….. Lda., veio D………….. deduzir embargos de terceiro pedindo o levantamento da penhora sobre o veículo automóvel de marca Volkswagen, de matrícula ..-..-OP.
Alega o embargante ser proprietário do veículo penhorado dado o ter comprado à embargada sociedade em Julho de 2006 e desde essa data se encontra na posse do mesmo.
Recebidos os embargos, o embargado/exequente veio contestar pugnando pela improcedência dos mesmos.
Na audiência preliminar foi proferido despacho saneador, consignada a matéria assente e elaborada a base instrutória.
Procedeu-se a julgamento com gravação da prova, respondeu-se aos quesitos e foi proferida sentença a julgar os embargos improcedentes.
O embargante veio recorrer pedindo a revogação da sentença e concluindo nos seguintes termos:
1. Deu-se como não provados os factos constantes dos quesitos 4º e 9º e que o apelante tem por incorrectamente julgados, atento o depoimento prestado pelas testemunhas E…………. e F…………….
2. A fls. 11 a 12 verso e 132 dos autos de embargos, está junto fotocópia certificada do requerimento de registo modelo 5 e do requerimento de extinção de registo modelo 6 da DGRN, ambos com reconhecimento da assinatura do G………….., datada de 7.9.2007, e referentes ao veículo de matrícula ..-..-OP e certidão actualizada à data em vigor do registo automóvel.
3. As testemunhas depuseram de forma séria, objectiva e imparcial.
4. È facto notório e da experiência comum que o homem médio, como o é o embargante, quando faz a compra de um veículo automóvel pretende adquiri-lo sem quaisquer ónus ou encargos.
5. A decisão do Tribunal a quo está em contradição com a prova testemunhal gravada e com a prova documental junta ao articulado de embargos de terceiro e na audiência de julgamento, que foram mal valoradas, não tendo as provas produzidas sido consideradas no seu conjunto.
6. Deve dar-se a matéria constante do quesito 4º como provado e deve dar-se o quesito 9º como provado restritivamente, ou seja, provado apenas que a partir da data de 7.9.2007 o G…………. emitiu e entregou ao embargante os documentos referentes à extinção da reserva de propriedade no registo automóvel.
7. O apelante/embargante em 31.7.2006 comprou sem ónus e encargos à executada o referido veículo em data anterior à penhora (tendo esta sido registada em 8.5.2007), adquirindo de boa fé, a título oneroso e de quem era à data o verdadeiro dono e possuidor, pagou o preço, desconhecendo até à data de 2.1.2008 a existência de qualquer acção executiva ou penhora.
8. Não é pelo registo que se determina quem é o verdadeiro proprietário de um veículo automóvel. O registo automóvel não dá direitos, pois o mesmo tem fins essencialmente identificativos para efeitos de circulação rodoviária, daí a sua obrigatoriedade – arts.1º, 5º nº1 al.a) e nº2, 29º do DL 54/75 de 12.2 e 85º nºs.1 e 2 al.a) do C. de Estrada.
9. O registo automóvel não tem eficácia constitutiva e a sua presunção é iuris tantum.
10. O contrato de compra e venda de veículo automóvel não está sujeito a formalidade especial, sendo válido mesmo quando celebrado por forma verbal, transferindo-se a propriedade por mero efeito do contrato, nos termos do art.408º nº1, 874º e 879ºal.a) do C. Civil.
11. O apelante/embargante é terceiro para efeitos de registo de penhora, pois adquiriu de boa fé sobre o mesmo veículo de um transmitente comum, a executada, sendo que o embargante foi o primeiro a adquirir, sendo-lhe inoponível os efeitos do registo da penhora.
12. A penhora recai sobre coisa alheia, que é do embargante, uma vez que a executada à data desta não era proprietária e possuidora do veículo, tratando-se de um acto ferido de nulidade, nos termos dos arts.892º e 289 do C. Civil, sendo ineficaz relativamente ao embargante proprietário.
13. Deve aplicar-se ao caso concreto o disposto no nº3 do art.291º do C.Civil.
14. Pelo menos desde Julho de 2006 que o embargante tem vindo a usar o veículo automóvel e dado que os actos de posse do embargante são anteriores à data do registo da penhora e há mais de um ano e um dia, a presunção do registo a favor do executado e exequente cede perante a presunção de titularidade por via da posse – arts. 1252º,1259º,1260º e 1268º nº1 do C. Civil.
15. A posse do embargante é titulada, presumida de boa fé, porque adquiriu validamente por um contrato de compra e venda que pode ser verbal, tendo o Tribunal a quo alterado o ónus da prova ao impor ao embargante a prova que cabia ao embargado, decidindo mesmo em contradição com a prova produzida.
16. Está errada a interpretação jurídica e a aplicação ao caso do disposto no art.819º do C.Civil.
17. No caso concreto, por acto voluntário da executada e em data anterior à penhora, procedeu à venda do veículo, pelo que não pode a execução prosseguir já que os actos de disposição e oneração dos bens, com data anterior ao registo da penhora prevalecem sobre esta – art. 819º do C. Civil, a contrario) e são inoponíveis ao adquirente.
18. A penhora do veículo, tal como consta dos autos de execução, é nula, não constando do auto de penhora o valor do bem penhorado e procedeu o exequente ao registo definitivo da penhora sem previamente ter cancelado a reserva.
19. O Tribunal a quo violou o disposto nas citadas disposições legais.
O embargado veio contra alegar pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto desta Relação emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.
Admitido o recurso e corridos os vistos cumpre decidir.
***
II
Matéria dada como provada pelo Tribunal a quo.
1. Dá-se por reproduzido para todos os efeitos legais, o teor e conteúdo do auto de penhora, datado de 8.5.2007, junto a fls. 75 e seguintes dos autos de execução nº…../05.4TTPNF-A.
2. Dá-se por reproduzido o teor e conteúdo da nota de registo da nota de penhora constante de fls.78 dos autos de execução nº…../05.4TTPNF-A.
3. O embargante teve conhecimento em 2.1.2008, que nos autos de execução apensos foi penhorado em 8.5.2007 o veículo automóvel de marca Volkswagen, de matrícula ..-..-OP.
4. O embargante só teve conhecimento da penhora na data referida no número anterior em virtude de nessa data se ter dirigido à Conservatória com vista a registar a aquisição.
5. No ano de 2006, o embargante marido comprou ao executado pelo preço de € 6.235,00 o veículo supra identificado.
6. O executado entregou em 31.7.2006 ao embargante o requerimento para efeitos de registo de propriedade.
7. Para pagamento do preço do veículo o embargante em Julho de 2006 entregou o veículo automóvel de marca Mitsubishi L200, ligeiro de mercadorias, de cor branco, até então propriedade do embargante, permutando-o.
8. Com data de 15.9.2006 entregou um cheque no valor de € 4.500,00, assim pagando o restante valor.
9. Desde a data da compra que o embargante tem a posse do veículo, usando-o e usufruindo do mesmo, continuadamente, à vista de todas as pessoas e sem oposição de quem quer que seja.
10. Sendo nesse veículo que o embargante se faz deslocar, com amigos e familiares, na sua vida quotidiana e utiliza-o no transporte de trabalhadores, alfaias e produtos agrícolas.
11. È o embargante que zela pela sua conservação e condições de funcionamento, pagando as despesas das oficinas de automóvel, pagando o consumo de combustível, o seguro de responsabilidade automóvel e procedendo às inspecções e fiscalizações necessárias.
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III
Questões a apreciar.
1. Da alteração da decisão sobre a matéria de facto.
2. Da procedência dos embargos.
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IV
Da alteração da decisão sobre a matéria de facto – as respostas aos quesitos 4 e 9.
O apelante defende que o quesito 4 deve ser dado como provado e o quesito 9 deve ser dado como provado, mas restritamente (que a partir de 7.9.2007 o G…………. emitiu e entregou ao embargante os documentos referentes à extinção da reserva de propriedade no registo automóvel). E fundamenta o apelante a sua pretensão no depoimentos das testemunhas E………….. e F…………. e nos documentos juntos a fls.11,12 e 132 dos autos. Vejamos então.
No quesito 4 pergunta-se: “Na altura, o vendedor, obrigou-se a transmitir o veículo sem qualquer ónus ou encargo?”. No quesito 9 pergunta-se: “Só em Setembro de 2006 é que o embargado pagou o preço restante do veículo, porque só nessa data o executado desenvolveu as diligências necessárias à extinção da reserva de propriedade, tendo sido entregue em Dezembro de 2007 ao embargante pelo G……….. S.A., os documentos referentes à transmissão e extinção da reserva de propriedade?”. O Tribunal a quo respondeu aos quesitos 4 e 9: não provados.
Após audição de toda a prova gravada podemos afirmar que a pretensão do apelante não procede.
Na verdade, e no que respeita ao quesito 4, foi ouvida a testemunha F……….. e H…………. A primeira testemunha apenas referiu que disseram que o carro estava livre de penhoras. A segunda testemunha nada disse à matéria do quesito.
Quanto ao quesito 9 a testemunha E…………… apenas referiu que fez o favor ao embargante, ligando para o G……….., a pedir o cancelamento da reserva de propriedade e que tal aconteceu nos primeiros dias de Setembro de 2007, mas não sabia se os documentos foram ou não enviados ao embargante.
O acabado de referir é manifestamente insuficiente para se dar como provada a matéria dos referidos quesitos.
Por outro lado, os documentos de fls. 11, 12 e 132 dos autos, por si só, não podem conduzir à pretensão do apelante em ver o quesito 9 dado como provado ainda que restritamente: os documentos de fls. 11 e 12 são fotocópias de um requerimento de registo (modelo nº5) de transmissão de posição de reservante e de um requerimento de extinção de registo (modelo nº6), ambos com a mesma data (7.9.2007), e referentes ao veículo penhorado e objecto dos presentes embargos; o documento de fls.132 dos autos é uma certidão do Registo Automóvel referente ao mesmo veículo com indicação dos encargos em vigor na data de 29.4.2008.
Acresce que da audição dos depoimentos gravados e análise dos documentos juntos aos autos não resulta, de modo algum, que o Tribunal a quo tenha respondido aos quesitos 4 e 9 em clara contradição com a prova produzida (a testemunhal e documental).
Por isso, e pelos fundamentos expostos considera-se assente a matéria constante do § II do presente acórdão.
* * *
V
Da procedência dos embargos de terceiro.
O recorrente/embargante defende que através de contrato de compra e venda realizado em Julho de 2006 com a executada, o mesmo encontra-se desde aquela data na posse do veículo penhorado e como tal a penhora, com data de registo posterior à referida venda, não lhe é oponível.
Na sentença recorrida concluiu-se que sendo o registo automóvel obrigatório – art. 5º nº1 al.a) e nº2 do DL 54/75 de 12.2 -, a compra do veículo por parte do embargante à executada é ineficaz em relação ao exequente/embargado atento o disposto nos arts.819º do C. Civil, 5º nº1 do C.R. Predial e acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ nº3/99 de 18.5.99. Que dizer?
Nos termos do disposto no art. 5ºnº1al.a) e al.h) do DL 54/75 de 24.12 estão sujeitos a registo o direito de propriedade e a penhora de veículos automóveis.
Por sua vez o art. 1º nº1 do citado DL (na redacção dada pelo DL 178-A/2005 de 20.10) prescreve que “O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”.
Finalmente, dispõe o art. 29º do DL 54/75 que “São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, mas apenas na medida indispensável ao suprimento das lacunas da regulamentação própria e compatível com a natureza de veículos automóveis e das disposições contidas neste diploma e no respectivo regulamento”.
Tendo em conta a matéria dada como provada – nºs.5 a 11 do § II do presente acórdão – e o disposto nos arts. 408º nº1, 874º e 879ºal.a), todos do C. Civil, podemos concluir que o embargante quando comprou o veículo, no ano de 2006, à embargada, adquiriu o respectivo direito de propriedade, já que o contrato de compra e venda de veículo automóvel não está sujeito a qualquer formalidade especial e a declaração de venda é apenas necessária para efeitos de inscrição no registo.
Tendo o registo da penhora do veículo ocorrido em 8.5.2007 (tal facto é referido na sentença e não directamente na factualidade dada como provada), nesta data, a viatura já não se encontrava no património da executada/vendedora, não sendo, assim, aplicável ao caso o disposto no art. 819º do C. Civil.
Com efeito, os actos de disposição que o executado pratique após a penhora são ineficazes em relação ao credor/exequente, mas assim já não é se os actos de disposição ocorreram antes da realização da penhora e do seu registo, como é o caso dos autos.
E neste particular considera-se pertinente citar o acórdão unificador de Jurisprudência nº3/99, do STJ., publicado no DR nº159/99 I-A série de 10.7.99, por precisamente a situação nele tratada ser idêntica à dos presentes autos: (…) “Situação diferente é a resultante do confronto do direito real de garantia resultante da penhora registada quando o imóvel penhorado já havia sido alienado, mas sem o subsequente registo. Aqui, o direito real de propriedade, obtido por efeito próprio da celebração da competente escritura pública, confronta-se com um direito de crédito, embora sob a protecção de um direito real (somente de garantia). Nesta situação, mesmo que o credor esteja originariamente de boa fé, isto é, ignorante de que o bem já tinha saído da esfera jurídica do devedor, manter a viabilidade executiva, quando, por via de embargos de terceiro, se denuncia a veracidade da situação, seria colocar o Estado, por via do aparelho judicial, a, deliberadamente, ratificar algo que vai necessariamente desembocar numa situação intrinsecamente ilícita, que se aproxima de subsunção criminal, ao menos se for o próprio executado a indicar os bens à penhora, Assim, poderia servir-se a lex, mas não seguramente o jus.” (…) “São ineficazes, sem prejuízo das regras do registo, e em relação ao exequente, os actos de disposição ou de oneração dos bens penhorados. Dos bens penhorados, mas pertencentes ao devedor.”
E as considerações acabadas de referir assentam no pressuposto de que o registo predial (e também o registo automóvel) não tem natureza constitutiva. È o que decorre do disposto no art.7º do C.R. Predial.
Assim, e em conclusão, podemos afirmar que tendo o embargante feito a prova a) da aquisição da viatura à embargada; b) da prática de actos correspondentes ao direito de propriedade; c) e que a aquisição e a prática dos actos ocorreram antes do registo da penhora, procedem os embargos, na medida em que o veículo em causa não era propriedade da executada na data em que o registo da sua penhora se efectivou.
Por isso, procede a apelação.
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Termos em que se julga a apelação procedente, se revoga a sentença recorrida e se substitui pelo presente acórdão, e em consequência se julga os embargos procedentes, ordenando-se o levantamento da penhora sobre o veículo automóvel de marca Volkswagen, matrícula ..-..-OP e o consequente cancelamento do registo.
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Custas dos embargos e da apelação a cargos dos embargados/apelados.
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Porto, 09.02.2009
Maria Fernanda Pereira Soares
Manuel Joaquim Ferreira da Costa
Albertina das Dores N. Aveiro Pereira