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ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
PESSOA SINGULAR
PESSOA COLECTIVA
GERENTE
NOTIFICAÇÃO
Sumário
Sendo arguidos a sociedade e o gerente, a notificação deste, na qualidade de representante legal daquela, para o efeito previsto no art. 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, não dispensa a mesma notificação em seu nome pessoal, pois são diversas as qualidades em que intervém no processo.
Texto Integral
Processo 142/05.6IDPRT.P1
Relator: Melo Lima
Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
1. Relatório.
1.1 Nos autos de Processo Comum -Tribunal Singular a correr termos sob o Nº 142/05.6 pelo 2ºJuízo Criminal do Porto, foi designado o julgamento de a) B…………………., SA; b) C……………..; c) D……………., acusados da prática de dois crimes continuados de abuso de confiança contra a Administração Fiscal, p. e p. pelos artigos 6º nº1, 105º nºs 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei nº15/2001 de 05/06, na redacção da Lei nº53-A/2006 de 29.12) e artigos 30º e 79º do Código Penal (advindo a responsabilidade penal da B……………….. do disposto no artigo 7º nº1 do regime Geral das Infracções tributárias (Lei nº15/2001 de 05/06, na redacção da Lei nº53-A/2006 de 29.12)
1.2 Uma vez aberta a Audiência de Discussão e Julgamento a Ex.ma Senhora Juíza, no conhecimento do requerimento ditado para Acta pelo Exmo. Mandatário do Arguido D………………, decidiu:
i. «Declarar irregular a notificação efectuada aos arguidos nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º nº4 al. b) do RGIT;
ii. Não determinar neste momento a repetição de tal notificação, por inutilidade, uma vez que já está comprovado nos autos o pagamento das quantias previstas no referido normativo legal, pelo que os arguidos sempre se poderiam aproveitar desse mesmo pagamento;
iii. Ao abrigo do disposto no artigo 2º nº4 do Código Penal, declarar extinto o procedimento criminal instaurado contra os arguidos, por se julgar não verificada a condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105º nº4 do RGIT;
1.3 Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o Exmo. Procurador-Adjunto, rematando a respectiva Motivação com as seguintes Conclusões ([1]):
a) O recurso é interposto do despacho que declarou irregularmente efectuada a notificação a que alude o artigo 105º nº4 al. b) do regulamento Geral das Infracções Tributárias (R.G.I.T.) e ao abrigo do disposto no artigo 2º nº4 C.P. declarou extinto o procedimento criminal instaurado contra os arguidos por falta da verificação da condição objectiva da punibilidade prevista no referido normativo do R.G.I.T.
b) O nº4 do artigo 105º do R.G.I.T. contemplava uma condição objectiva de punibilidade, reservando a reacção jurídico-penal às situações em que tivessem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
c) A Lei 53-A/2006 de 29/12 alterou aquele nº4 que passou a conhecer a seguinte redacção: «Os factos previstos nos números anteriores só são puníveis se: a) tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.»
d) Esta nova redacção desencadeou uma divergência jurisprudencial que veio a ser decidida pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 6/2008 de 09.04.2008, nos seguintes termos: «A exigência prevista na alínea b) do nº4 do artigo 105º do RGIT, na redacção conferida pela Lei 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, nos termos do artigo 2º nº4 do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo (alínea b) do nº4 do artigo 105 do RGIT.»
e) Resulta dos autos:
■ Em 15.03.2007, o arguido D………….. foi notificado por contacto pessoal, nos termos e para os efeitos do artigo 105º/4 al. b) R.G.I.T. (Fls.128)
■ Em 16.03.2007, foi remetida uma notificação dirigida ao arguido C…………….. para, em 30 dias, ser paga a quantia em dívida acrescida de juros de mora e da quantia devida a título de coima (Fls.129 e 130);
■ O texto das notificações refere que as mesmas são feitas aos arguidos na qualidade de legais representantes da sociedade arguida;
■ A carta para notificação do arguido C…………….. foi depositada no dia 20 de Março de 2007 (Fls. 132);
■ Não obstante, a quantia devida não foi paga nos trinta dias subsequentes à notificação efectuada em último lugar.
f) Manifestamente, pois, os arguidos tiveram conhecimento de que podiam eximir-se à punição pela prática do crime de abuso de confiança fiscal que se mostrava indiciado mediante o pagamento da quantia apurada nos termos do artigo 105º/4 al. b) do RGIT. Donde,
g) Os arguidos foram regularmente notificados [Cfr. Também artigo 11º e 113º ambos do C.P.P. e artigo 3º al. a) RGIT] para proceder ao pagamento da prestação tributária em dívida, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito, o que determinaria que não fossem sancionados penalmente;
h) O sujeito devedor das prestações tributárias retidas e não pagas que estão descritas na acusação é a sociedade arguida, pelo que é ela a contribuinte que se encontra, em primeira linha obrigada a efectuar os pagamentos em causa.
i) Nos termos do artigo 7º RGIT, as sociedades comerciais são responsáveis pelas infracções previstas naquele diploma legal quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo, sendo certo que aquela responsabilidade não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes – cfr. Nºs 1 e 3 da norma referida;
j) De acordo com a acusação é claro que a responsabilidade criminal dos arguidos deriva da sua actuação enquanto legais representantes da sociedade arguida;
k) É a sociedade enquanto contribuinte devedor das prestações omitidas que deverá ser notificada na pessoa dos seus legais representantes, para proceder à regularização da situação tributária e se os legais representantes são também arguidos no processo, residindo a sua responsabilidade criminal na actuação que desenvolveram nessa qualidade, que se mantém à data, não se vislumbra que a notificação que lhes tenha sido feita nessa qualidade, para os termos do artigo 105º /4 al. b) seja irregular;
l) Ao decidir que os arguidos deviam ter sido notificados pessoalmente para efectuar o pagamento das quantias tributárias em dívida e que a notificação que receberam, para esse efeito, enquanto legais representantes da sociedade arguida, não é suficiente, o Tribunal violou, por erro de interpretação, o disposto no artigo 105º/4 al. B) do RGIT, motivo pelo qual o despacho sob recurso deverá ser anulado, determinando-se o prosseguimento do processo para realização da audiência de julgamento.
1.4 Contra-alegaram:
i. A Arguida B……………….., SA, assim concluindo a respectiva motivação:
● A Lei 53-A/2006 de 29/12 alterou o artigo 105º do RGIT, introduzindo uma condição objectiva de punibilidade
● Tal impõe que, decorridos os 90 dias sobre o termo do prazo legal para entrega da prestação, legalmente obrigatória, de valor superior a €7 500,00, a Administração Tributária notifique o agente e aguarde 30 dias para que este possa proceder ao pagamento da prestação em dívida bem como dos juros e coimas aplicáveis.
● São arguidos no caso concreto, uma pessoa jurídica ficta e duas pessoas jurídicas individuais.
● O Artigo 7º nº3 do RGIT estabelece que a responsabilidade das pessoas colectivas não exclui nem prejudica a responsabilidade individual dos respectivos agentes.
● Apenas a sociedade arguida foi regularmente notificada para os efeitos da alínea b) do nº4 do artigo 105º do RGIT, notificação essa que quanto à sua perfeição e eficácia relativamente a cada arguido se coloca no mesmo plano que a notificação da acusação ou da que designa dia para julgamento ou da que notifica aos arguidos a sentença por exemplo.
● Não tendo os restantes arguidos sido notificados a título pessoal, não pode considerar-se verificada em relação a eles a condição objectiva de punibilidade referida.
● Impunha o artigo 2º/4 do Código Penal que se realizasse, por isso, correctamente a notificação aos arguidos identificados no número anterior.
● Todavia o comprovativo junto aos autos do pagamento integral das prestações em dívida a fls. 280 torna inútil a realização de tal diligência.
● A decisão recorrida não merece censura, devendo ser confirmada e negado inteiro provimento ao recurso.
ii. O Arguido D………………., dizendo, em síntese:
● Aplica-se no caso, por se tratar do regime mais favorável, a alínea b) do nº4 do Artigo 105º do RGIT.
● O Arguido não foi notificado nos termos determinados neste dispositivo.
● Exigindo-se uma actuação dolosa no sentido de subtrair receitas do Estado, nomeadamente através da omissão da entrega nos termos e no prazo da entrega fixado para cada prestação, exige-se a notificação dos arguidos como agentes individualizados do crime pretensamente cometido, não como meros representantes da Sociedade.
● Apesar da falta de notificação pessoal legalmente exigida, os arguidos liquidaram a quantia em causa. Destarte,
● Não se encontram reunidos os requisitos dos quais depende a punição pelo crime de abuso de confiança fiscal.
1.5 Neste Tribunal de recurso, o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto apôs o visto nos autos.
1.6 Colhidos os vistos, cumpre conhecer e decidir.
2. Fundamentação.
2. São os seguintes os factos processualmente adquiridos:
2.1.1 Em 15 de Março de 2007, D………………. foi notificado, no termos do artigo 105º nº4 al. B) do RGIT, “na qualidade de legal representante da sociedade arguida”, “para, no prazo de 30 dias a contar da notificação, proceder ao pagamento da prestação tributária, juros respectivos e coima aplicável, que se encontrem em falta”, com a cominação de que “ caso não proceda ao referido pagamento, verificar-se-á a condição de punibilidade a que alude a alínea b) do nº4 do artigo 105º do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001 de 5 de Junho, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 53-A/2006 de 29/12, o que importará o prosseguimento dos presentes autos de inquérito” [Fls. 128]
2.1.2 Em 16 de Março de 2007, foi enviado ofício por via postal simples, com prova de depósito – depósito efectivado em 20.03.2007 -, ao arguido C……………….. notificando-o nos termos do artigo 105º nº4 al. B) do RGIT, “na qualidade de legal representante da sociedade arguida”, “para, no prazo de 30 dias a contar da notificação, proceder ao pagamento da prestação tributária, juros respectivos e coima aplicável, que se encontrem em falta”, com a cominação de que “ caso não proceda ao referido pagamento , verificar-se-á a condição de punibilidade a que alude a alínea b) do nº4 do artigo 105º do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001 de 5 de Junho, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 53-A/2006 de 29/12, o que importará o prosseguimento dos presentes autos de inquérito” [Fls. 130]
2.1.3 Em 23 de Outubro de 2007, o Ministério Público deduziu Acusação contra i) B………………, SA; ii) C……………….; iii) D…………….., imputando-lhes a prática, em autoria e em concurso real, de dois crimes continuados de abuso de confiança fiscal contra a Administração Fiscal, p. e p. pelos artigos 6º nº1, 105º nºs 1 e 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei nº 15/2001 de 05/06, na redacção conferida pela Lei 53-A/2006 de 29/12) e artigos 30º e 79º do Código Penal, sendo a B…………….. penalmente responsável nos termos do disposto no artigo 7º nº1 do Regime Geral das Infracções Tributárias. [Fls.187-194]
2.1.4 Em 21.12 2007, foi proferido despacho judicial a designar o dia 13.01.2009 – ou 29.01.2009, em caso de adiamento – para o julgamento daqueles Arguidos pelos factos descritos na acusação e de acordo com a qualificação juspenal constante da mesma. [Fls. 208-209]
2.1.5 Por requerimento de 2 de Janeiro de 2009, o arguido C…………….., na consideração: i) da nova condição objectiva de punibilidade do crime de abuso fiscal decorrente do artigo 105º/4 do RGIT- verificação do não pagamento da prestação bem como dos juros respectivos e coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação efectuada para o efeito pela administração tributária –; ii) da não consideração desta formalidade relativamente ao requerente, assim o privando da possibilidade de regularizar a sua situação de forma voluntária, iii) de que já se encontravam liquidados os impostos em causa; iv) de que por não ser já Administrador da Sociedade Arguida, carecia de legitimidade para requerer junto da Administração Tributária certidão comprovativa do pagamento, solicitou que o Tribunal requisitasse certidão comprovativa do pagamento, junto daquela Administração, pari passu julgasse extinto o procedimento criminal. [Fls.265-267]
2.1.6 Pronunciou-se sobre o requerimento aludido em 2.1.5 o Exmo. Procurador-Adjunto no sentido de que: i) “lhe parecia que tinha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 105º/4 al. B) do RGIT, cf. Fls. 128, 129 a 132, pelo que a condição objectiva de punibilidade estava cumprida; ii) não se opunha, todavia, à obtenção, junto do Fisco, da pretendida informação/certidão.[Fls.272]
2.1.7 Conhecendo do mesmo requerimento, o Exmo. Juiz do Processo decidiu:
«Contrariamente ao alegado pelo arguido C......................., o despacho acusatório teve em consideração a alteração introduzida pela Lei 53-A/2006 de 29/12, ao nº4 do artigo 105º do RGIT (cfr. Fls.191, último parágrafo e fls. 192, 1º parágrafo), referindo expressamente que os arguidos “não pagaram as contribuições em falta e respectivos juros de mora nos trinta dias subsequentes à notificação para o efeito, o que resulta, aliás, do teor de fls. 128, 129 a 132. Assim e face ao que consta dos autos, não há fundamento para despenalizar a actuação do arguido requerente, indeferindo-se nessa parte o requerido» [Fls.273]
2.1.8 Com data de 7 de Janeiro de 2009, a Direcção Geral dos Impostos – DF Porto emitiu certidão comprovativa de que a B……………… SA tinha a sua situação tributária regularizada, visto que não era devedora perante a Fazenda Nacional de quaisquer impostos em prestações tributários e respectivos juros” [Fls.279-280]
2.1.9 Para a Acta de Audiência de Discussão e Julgamento levada a efeito em 13.01.2009, o Exmo. Mandatário do arguido D………….. ditou o requerimento que se transcreve na parte pertinente:
«Compulsados os autos a fls. 127 e 130 verifica-se que os arguidos C…………….. e D……………. não foram notificados pessoalmente, mas apenas como legais representantes da sociedade, para nos termos da lei proceder, em 30 dias, ao pagamento voluntário do imposto em falta, coimas e juros devidos (Artigo 105 nº4 al. B) do RGIT). Ora o adiamento da prestação por um período superior a 90 dias não faz incorrer o agente na prática daquele crime, uma vez que é necessário que o agente seja notificado para em 30 dias efectuar o pagamento da prestação tributária, juros respectivos e coima aplicável e não o faça, como condição objectiva de punibilidade – al. B) do nº4 do Artigo 105º do RGIT e artigo 2º nº4 do C.Penal. A exigência prevista na alínea b) do nº4 do artigo 105º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei nº53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade que, por aplicação do artigo 2º nº4 do Código Penal, é aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor. Em consequência, e tendo sido cumprida a respectiva obrigação de declaração, deve o agente ser notificado nos termos e para os efeitos do referido normativo [alínea b) do nº4 do artigo 105º do RGIT] – Ac. Do STJ nº 6/2008.
Não tendo sido, deve considerar-se, uma vez que estão liquidadas tais quantias, extinto o procedimento criminal.» [Fls.283-284]
2.1.10 Conhecendo do requerido, a Exma. Juíza ditou a decisão objecto do presente recurso, do seguinte teor:
«Compulsados os autos verifica-se que, na verdade, os arguidos D…………… e C....................... foram notificados nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº4 do Artigo 105º do RGIT (introduzida pela Lei nº53-A/2006 de 29/12) apenas e tão só, na qualidade de legais representantes da sociedade arguida e não também em seu nome pessoal. (Cfr. Fls 128 e 130)
A responsabilidade criminal de cada um dos arguidos não se confunde com a responsabilidade criminal da sociedade arguida. Daí que aqueles respondam, em seu nome pessoal, pelos actos descritos na acusação.
Não é indiferente, em nosso entender, que os arguidos tenham sido notificados na referida qualidade e não também em nome pessoal. Uma coisa é a responsabilidade de cada um deles enquanto representantes de uma determinada sociedade, coisa distinta é a sua responsabilidade enquanto pessoas singulares.
Ao serem apenas notificados na qualidade de legais representantes da sociedade arguida, o pagamento das quantias a que se reporta o citado preceito legal deveria ter sido feito pela sociedade arguida e não, como poderia ter sido, pelos próprios arguidos, respondendo pelas mesmas, deste modo, o património pessoal de cada um deles e não o património da sociedade.
Daí que, no Ac. Do STJ nº6/2008 (publicado no DR 94, Série I, de 15.05.2008) se fale em notificação ao agente (do crime) e não em notificação do devedor da prestação tributária em causa.
Face ao exposto, este Tribunal tem necessariamente de concluir que os Arguidos C....................... e D……………. não foram, efectivamente, pessoalmente notificados para, querendo, no prazo de 30 dias, liquidarem as quantias previstas no citado artigo 105º/4 al. B) do RGIT, não se mostrando verificada por isso, a condição objectiva de punibilidade aí prevista.
Aqui chegados, resta concluir em conformidade com o citado Ac. Uniformizador de Jurisprudência, que sendo tal condição objectiva de punibilidade aplicável ao caso dos autos, por força do disposto no artigo 2º/4 do C.Penal, devem os arguidos ser agora notificados nos termos e para os efeitos do referido normativo.
Tal notificação afigura-se porém, neste momento, face ao teor da certidão junta a fls.280, manifestamente inútil, porque já se mostra comprovado nos autos o pagamento integral das prestações tributárias referidas na acusação, bem como dos respectivos juros de mora e juros compensatórios e ainda do valor das coimas aplicadas
Tal inutilidade não impede, porém, que se retire do pagamento entretanto efectuado as respectivas consequências.
A falta de notificação dos arguidos em nome pessoal, nos termos e para os efeitos do artigo 105º nº4 al. B) do RGIT, constitui em nosso entender, uma irregularidade. O Tribunal pode ordenar, oficiosamente, a reparação da irregularidade em causa, no momento em que da mesma tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado (cfr. Artigo 123º/2 do C.P.Penal)
Como vimos, a notificação feita aos arguidos, apenas na qualidade de legais representantes da sociedade arguida, não obedeceu aos trâmites legais, pois não foram notificados para, por si, procederem ao pagamento das quantias em causa. Estando estas quantias já pagas, apesar da irregularidade da notificação, sempre os arguidos se poderiam valer do pagamento já efectuado, caso agora fossem notificados em nome pessoal, pelo que sempre se verificaria a condição de não punibilidade da conduta que lhes vem imputada, o que se declara para todos os efeitos legais.
Em face do exposto decide-se:
a)Declarar irregular a notificação efectuada aos arguidos nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º nº4 al. B) do RGIT;
b)Não determinar, neste momento, a repetição de tal notificação, por inutilidade, uma vez que já está comprovado nos autos o pagamento das quantias previstas no referido normativo legal, pelo que os arguidos sempre se poderiam aproveitar desse mesmo pagamento;
c)Ao abrigo do disposto no artigo 2º/4 do C.Penal, declarar extinto o procedimento criminal instaurado contra os arguidos, por se julgar não verificada a condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105º/4 al. B) do RGIT» [Fls.285-286]
2.2 Subsunção legal.
O objecto do presente recurso reconduz-se à questão de saber se as notificações levadas a efeito e documentadas a fls. 128 e 129 a 132 padecem do vício da irregularidade apontado no despacho judicial, despacho que, tomando-o por comprovado, veio a determinar a extinção do procedimento criminal.
2.2.1 Uma questão prévia.
Não foi esta a primeira vez que a sobredita questão relativa à notificação foi objecto de apreciação.
Como flui dos itens 2.1.5, 2.1.6 e 2.1.7, precedendo o julgamento, já o arguido C……………. tinha suscitado a questão da falta da sua notificação pessoal nos termos e para os efeitos do disposto em b) do nº4 do Artigo 105º do RGIT, na redacção conferida pela Lei 53-A/2006 de 29/12.
Não logrou obter, então, atendimento. Na verdade, a decisão judicial que sobre aquela incidiu teve por cumprida a pretendida notificação. (Supra 2.1.7).
A decisão judicial entretanto proferida em Acta de Audiência revelaria uma substancial alteração relativamente ao sentido e decisum assumidos naquele 1º despacho.
Poderá objectar-se com a exceptio do caso julgado?
Entende-se que não. Sequer da autoridade do caso julgado. E, aqui, visto a específica natureza do processo penal onde se joga o bem da liberdade.
De afastar, de todo o modo, a exceptio do caso julgado visto a inexistência de identidade de sujeitos já que a decisão aludida em 2.1.7 respeitou a um requerimento deduzido pelo arguido C…………… enquanto a decisão agora sob directa apreciação respeitou a um requerimento deduzido – e pela primeira vez deduzido – pelo arguido D…………….
2.2.2 São de considerar afastadas, de outra parte e visto o entendimento comum de recorrente e recorridos, eventuais questões atinentes i) quer à aplicação, in casu e por força do princípio da retroactividade in melius do regime concretamente mais favorável emergente do RGIT na redacção conferida pela Lei nº 53-A/2006 de 29/12, ii) quer à consequência da extinção do procedimento criminal caso prevaleça o sentido da decisão sob recurso relativamente ao impugnado vício e, assim, na consideração de que o cumprimento agora da notificação traduzir-se-ia em pratica de acto inútil visto mostrar-se alcançado já o efeito que com a mesma se poderia pretender conseguir.
2.2.3 Subsiste, então, a questão de saber:
i) se a notificação documentada a fls.128 enferma de irregularidade, conforme decidido na decisão sob recurso;
iii) ou se, como defende o Exmo. Procurador-Adjunto recorrente, careceria de sentido uma nova notificação (pessoal) já que “os arguidos tiveram conhecimento de que podiam eximir-se à punição mediante o pagamento da quantia apurada” pelo que uma nova notificação pecaria por formalismo excessivo visto que a finalidade da notificação seria idêntica e idênticos seriam os destinatários da notificação
Atalhando caminhos entende-se que a razão não está do lado do Exmo. Procurador-Adjunto recorrente.
Pelas razões que se expõem.
Logo num primeiro momento importa tomar em linha de consideração o estatuto processual do arguido.
“Desde o momento em que uma pessoa adquirir a qualidade de arguido é-lhe assegurado o exercício de direitos e de deveres processuais…” (Artigo 60º C.P.Penal)
Diz-se, a propósito, que “no direito processual penal português o arguido é qualificado como ‘sujeito processual’” ([2])
Ora “afirmar-se… que o arguido é sujeito e não objecto do processo significa, …, ter de assegurar àquele uma posição jurídica que lhe permita uma participação constitutiva na declaração do direito do caso concreto, através da concessão de autónomos direitos processuais, legalmente definidos, que hão-de ser respeitados por todos os intervenientes no processo penal”
“O arguido é pois, sempre e fundamentalmente, sujeito do processo penal que co-determina de forma autónoma a sua conformação e desenvolvimento concretos…” ([3])
Constituem, aliás, expressão do reconhecimento prático deste estatuto processual os direitos, entre outros, de presença, de audiência, de informação, ao silêncio, de assistência por advogado ou Defensor nomeado, de intervir oferecendo provas ou requerendo diligências, enfim de recurso, consignados no artigo 61º da lei penal adjectiva.
Dizer, de igual passo, que por estar em causa o processo de natureza penal e visto a possibilidade da compressão dos direitos que o mesmo pode comportar, importa salvaguardar cuidadamente a integral observância das formalidades necessárias à garantia de um genuíno exercício do direito de defesa, num processo equitativo e leal [due process of law , fair process]
Num segundo momento, torna-se imperioso atentar na específica natureza quer dos ilícitos em causa, sobremaneira na responsabilidade cumulativa emergente do libelo acusatório.
A acusação foi deduzida contra três arguidos: i) B…………….., ii) C……………… e iii) D…………….., ou seja contra uma sociedade comercial e contra duas pessoas singulares, imputando-lhes, segundo uma responsabilidade que, embora cumulativa, não deixa de caber a cada um em particular, ([4]) a autoria de dois crimes de abuso de confiança contra a Administração Fiscal.
É de todos sabido como, por princípio, são apenas susceptíveis de responsabilidade criminal as pessoas singulares. Excepcionalmente, porém – ou seja, nos casos especialmente previstos, nomeadamente os casos expressamente consignados no item 2 do artigo 11º do Código Penal – também as pessoas colectivas e entidades equiparadas são susceptíveis de responsabilidade criminal, de uma responsabilidade criminal específica.
Específica, no sentido, desde logo, de que a responsabilidade dos entes colectivos concorre com a responsabilidade individual dos respectivos agentes: «A responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes …» (Artigo 11º/7 do Código Penal) e, assim, é que «É punível quem age voluntariamente como titular de um órgão de uma pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, ou em representação legal ou voluntária de outrem, mesmo quando o respectivo tipo de crime exigir: a)….; b) que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado» (Artigo 12º/1 C.Penal) como assim é, igualmente, que «sem prejuízo do direito de regresso, as pessoas que ocupem uma posição de liderança são subsidiariamente responsáveis pelo pagamento das multas e indemnizações em que a pessoa colectiva ou equiparada for condenada, relativamente aos crimes: a) praticados no período de exercício do seu cargo, sem a sua oposição expressa» (Artigo 11º/9 C.Penal)
Distinção na responsabilidade criminal de uns (entes colectivos) e outros (agentes dos entes colectivos) que tem a sua compreensão na ideia de que se, de uma parte, (i) não há uma representação para delinquir, antes são os representantes que delinqúem no desempenho do seu encargo (princípio da responsabilidade do membro ou representante por actuação através de facto pessoal próprio), originando o comportamento voluntário e desviante da pessoa física ou singular a responsabilidade criminal do ente colectivo, também é certo, de outra parte, (ii) que a responsabilidade da pessoa colectiva exige, além dos elementos essenciais do facto típico, comuns aos agentes e à pessoa colectiva, que o facto seja praticado em seu nome e no seu interesse (seu, dela pessoa colectiva), bem assim exige se comprove a culpa própria da pessoa colectiva, culpa própria no sentido de que a vontade do acto seja a vontade da pessoa colectiva e não a do agente, ainda que titular de órgão ou representante. ([5])
Feita a distinção ao nível da específica responsabilidade penal é tempo de, num terceiro passo, considerar já a legitimidade já a capacidade para cada um dos referidos arguidos estar em juízo.
Se a legitimidade tem a ver com a identificação subjectiva entre quem é chamado a juízo e quem é o sujeito (o agente) da imputação do facto-típico-ilícito descrito na acusação (legitimatio ad causam: a legitimidade para agir em certa e determinada causa), já na capacidade judiciária, está em causa que, uma vez identificado aquele, possa o mesmo, por si próprio (a se), exercitar validamente os direitos processuais respectivos (legitimatio ad processum :susceptibilidade de estar por si em juízo).
Ora é aqui que se suscita o punctum prurens.
Na verdade, posto que, como vai referido, a pessoa colectiva possa ser sujeito de responsabilidade criminal (dizer, sujeito capaz de acção e de culpa jurídico-penais), não pode, todavia, por si, ser parte em juízo, mas só através dos seus representantes.(Artigo 21º C.P.C.; 163º e 996º C.Civil) ([6])
Pois bem. Se é possível acontecer que, devendo a pessoa colectiva estar no processo pelo seu representante legal ao tempo do acto processual, este possa ser diverso do representante legal à data da prática do crime objecto do processo, também é possível poderem coincidir o representante da pessoa colectiva e a pessoa física, agente da infracção cumulativamente responsável. ([7])
Esta coincidência que é manifesta no caso dos autos ([8]) não invalida, de modo nenhum, as diferentes e individualizadas legitimidades ad causam como não invalida o dever de que correctamente se atente em como “em termos processuais são diversas as qualidades em que o agente, pessoa física, intervém no processo e a pessoa que representa a pessoa colectiva”, e/ou se atente em que “a representação dos entes colectivos nada tem a ver com a responsabilidade criminal dos representantes; trata-se apenas da representação judiciária: o modo dos entes colectivos estarem em juízo” ([9])
No caso concreto.
O arguido D…………….. – tal como o arguido C....................... – foi notificado “por si e na qualidade de legal representante da B…………….” da acusação deduzida pelo Ministério Público a imputar-lhe a prática, em autoria material e em concurso real, de dois crimes continuados de abuso de confiança contra a Administração Fiscal (Fls.197 e 198)
Como se diz – e bem - no despacho recorrido “a responsabilidade criminal de cada um dos arguidos não se confunde com a responsabilidade criminal da sociedade arguida. Daí que aqueles respondam, em seu nome pessoal, pelos actos descritos na acusação”.
A defesa de cada um é, por isso mesmo e não obstante a responsabilidade cumulativa, autónoma.
Cada arguido, sujeito da imputação do facto-típico-ilícito descrito na acusação tem a sua própria legitimidade ad causam, para agir.
Beneficia, pari passu, do estatuto processual que lhe preserva, além do mais a garantia do seu direito de defesa.
Se a lei prevê a sua notificação para que ele possa comprovar que já não se justifica a pena por via do afastamento da condição objectiva de punibilidade ([10]) ([11]) não pode uma tal notificação ser omitida sob pena de violação intolerável do seu direito de defesa (due process).
Ora, in casu, a omissão da notificação é manifesta.
Pela notificação enquanto representante legal da co-arguida sociedade teve o arguido conhecimento da possibilidade do exercício (pela representada) daquele direito? Por certo.
Mas não há que confundir.
Cabia-lhe o direito de ser também ele notificado, em nome próprio e enquanto arguido, sujeito processual com estatuto próprio, legitimidade e posição jurídica autónomas, para nos termos consignados na lei, exercer o seu direito de participar constitutivamente na declaração do direito no caso concreto, exercer o direito de, enfim, poder pôr termo, pela comprovação do pagamento, ao procedimento criminal.
É que, não é demais repeti-lo, “em termos processuais são diversas as qualidades em que o agente, pessoa física, intervém no processo e a pessoa que representa a pessoa colectiva”.
Uma tal omissão de notificação consubstancia a irregularidade prevista no artigo 123º/1 do C.P.Penal.
Porque a reparação das irregularidades é dever que se impõe legalmente aos tribunais (123º/2 C.P.Penal) bem andou o Tribunal em nela atentar relevando-lhe a capacidade de afectação do direito de defesa.
Igualmente bem decidiu quando ponderou que o respectivo suprimento pela realização da notificação em falta constituiria, agora, pratica de acto inútil e, por isso e na comprovada infirmação da condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105º/4 al. b) do RGIT, julgou extinto o procedimento criminal.
3. Decidindo
São termos em que, na improcedência do recurso, se confirma a douta decisão recorrida.
Sem custas.
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Porto, 13/05/2009
Joaquim Maria Melo Sousa Lima
Francisco Marcolino de Jesus
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[1] As Conclusões 2 a 4 não constam do Recurso interposto, sendo certo que parecendo este corresponder a um texto de 8 páginas, apenas se mostram juntas 7, faltando a nº6. Por uma questão de economia de tempo, visto a integralidade da Motivação, oficiosamente leva-se a efeito o suprimento daquelas.
[2] Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Código de Processo Penal – Comentários e Notas Práticas, Coimbra Editora 2009, pag.144
[3] Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ºVol. Coimbra Editora 1974, Pág. 429-431
[4] “A responsabilidade cumulativa significa que pela mesma infracção podem responder várias pessoas, mas não se trata de comparticipação. Pode verificar-se comparticipação entre várias pessoas físicas, porventura também entre várias pessoas colectivas, mas a responsabilidade das pessoas colectivas, ainda que condicionada pela actuação dos titulares dos seus órgãos ou representantes, é autónoma: respondem por facto e culpa próprios e não por facto de outrem; o facto é-lhes imputado por lei como facto próprio, embora condicionado materialmente pela acção ou omissão dos seus órgãos ou representantes”. “A responsabilidade cumulativa consiste, em síntese, em atribuir a infracção tanto à pessoa colectiva como às pessoas físicas que sejam os seus agentes”. Germano Marques da Silva, “Questões Processuais na Responsabilidade Cumulativa das Empresas e seus Gestores” in «QUE FUTURO PARA O DIREITO PROCESSUAL PENAL?» – Simpósio em homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do C.P.P.Português, Coimbra Editora, 2009, Págs.790, 793.
[5] Vide: Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette – Código Penal Anotado e Comentado, Quid júris, Sociedade Editora/2008, Pág.90. Ainda: Germano Marques da Silva, ob cit. 793,794
[6] “A representação da pessoa colectiva, em juízo e fora dele, cabe a quem os estatutos determinarem ou, na falta de disposição estatutária, à administração ou a quem por ela for designado”.Artigo 163º nº1 C.C.
“A sociedade é representada em juízo e fora dele pelos seus administradores nos termos do contrato ou de harmonia com as regras fixadas no Artigo 985º“. Artigo 996º do C.C.
[7] Coincidência que deverá obrigar a especiais cuidados sobre uma eventual incompatibilidade de defesa, como ocorrerá ex.g. (i) se a pessoa colectiva invoca ter o representante agido contra ordens ou instruções expressas de quem de direito na pessoa colectiva ou (ii) se a defesa da pessoa física consistir em demarcar-se da pessoa colectiva, quer procurando elidir ter sido o agente da infracção, quer negando a delegação de poderes. Germano Marques da Silva, ob. cit. Pág.801-802
[8] Coincidência que logo sai relativizada se levada em consideração a informação chegada aos autos de que o arguido Rui Manuel Neno Cardoso tinha deixado de ser administrador da sociedade arguida (Artigo 14º Articulado de fls. 271)
[9] Germano Marques da Silva, ob. cit. Pág.795
[10] Nos termos da redacção atribuída pelo artigo 95º da Lei nº53-A/2006 (Lei do Orçamento) ao artigo 105º nº4 do RGIT: “Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorridos mais de noventa dias sobre o termo legal do prazo de entrega da prestação b) A prestação comunicada á Administração tributária, através da correspondente declaração, não for paga acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável no prazo de trinta dias após a notificação feita para o efeito”
[11] As condições objectivas de punibilidade próprias são puras causas de restrição da pena, podendo ser perspectivadas como o contraponto objectivo das causas pessoais de exclusão ou de anulação da pena. Isto porque ainda que se verifiquem o ilícito e a culpa, o legislador rejeita, em determinados casos, a necessidade de pena quando não se verifique uma circunstância ulterior que possa referir-se ao próprio facto, ou à evolução subjacente, e lhe confere uma maior significação na relação com o mundo circundante