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OFENDIDO
LESADO
PRINCÍPIO DA ADESÃO
SEGURADORA
ABALROAÇÃO
Sumário
A seguradora com direito de regresso na situação prevista no art. 19º, alínea c), última parte, do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, não pode, no processo penal instaurado pelo abandono de sinistrado, exercer aquele direito nem constituir-se assistente.
Texto Integral
Proc. Nº 909/07.0TAOAZ-A.P1
.º Juízo do T.J. de Oliveira de Azeméis
Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
No .º Juízo do T.J. de Oliveira de Azeméis, processo supra referenciado, foi recebida a acusação contra B………., pela prática de um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo art. 200º, nºs 1 e 2 do CP.
Pela Companhia de Seguros C………., SA, foi deduzido pedido de indemnização civil contra o arguido, no valor de €62.577,22, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.
A esse respeito, no Despacho de recebimento da acusação, foi decidido o seguinte:
“Dispõe o art. 483º do CC que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
A indemnização de perdas e danos emergentes do crime vem regulada pela Lei Civil (ex vi art. 129º do CP), sendo que só os responsáveis pelo facto ilícito (criminal) poderão incorrer em responsabilidade civil.
Não olvidamos, pois, que, por força do princípio da adesão e da suficiência do processo penal, estamos aqui a tratar de uma questão de natureza civil.
Na verdade, o regime de adesão obrigatória da acção cível enxertada na acção penal não respeita a uma acção qualquer, antes justifica um pedido de indemnização civil para ressarcimento de danos causados por uma conduta considerada como crime.
Temos, assim, no âmbito do regime de aplicação do art. 129º do CPP, que se remete a regulação da indemnização de perdas e danos emergentes do crime para a Lei Civil, apenas contempla a responsabilidade por factos ilícitos, mas com total exclusão da responsabilidade contratual e da responsabilidade por factos lícitos, nos casos contemplados na Lei.
Aqui o fundamento é a prática de crime e a necessidade de reparar os efeitos danosos do delito.
E, após estas breves considerações, desde já se conclui que relativamente ao pedido de indemnização civil formulado pela demandante Companhia de Seguros C………., SA, não haverá que ser admitido.
Com efeito, já foi o arguido condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, tendo, no decurso da Audiência daquele Julgamento sido extraída certidão para apuramento de factos integradores do crime agora imputado ao arguido e ali não considerado.
Ora, salvo o devido respeito, não tem a seguradora legitimidade nem assume a mesma neste processo qualidade de ofendida para efeitos processuais penais, nem a indemnização que se peticiona se configura nos contornos delineados supra, devendo a mesma recorrer às instâncias civilistas e aí accionar o direito de regresso que arroga.
Assim sendo, não admito o pedido de indemnização civil deduzido contra o arguido a fls. 164 a 171.”
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Deste Despacho recorreu a Companhia de Seguros C………., SA, formulando as seguintes conclusões:
No âmbito do art. 71º do CPP, o pedido de indemnização civil deduzido em Processo Penal tem que ser fundado na prática de um crime;
Por esta via, o direito à indemnização por perdas e danos sofridos com o ilícito criminal pode ser exercido no próprio processo penal, enxertando-se o procedimento civil a tal destinado na estrutura do processo criminal em curso;
Ora, no caso em apreço, o pedido de indemnização cível proposto tem exactamente como fundamento a prática do crime de omissão de auxílio pelo qual o arguido vem acusado;
Entre a ora recorrente e o arguido foi celebrado contrato de seguro, titulado pela apólice ……., pelo qual a ora recorrente assumiu a responsabilidade civil emergente do veículo automóvel com a matrícula ..-..-LP;
Em decorrência do acidente verificado no dia 05/02/2004, pelas 23.20h, produzido por culpa exclusiva do ora arguido, foi a ora recorrente condenada a indemnizar o lesado D……….;
Devido à atribuição de culpa exclusiva ao arguido na produção do acidente, a ora recorrente reembolsou, ainda, à congénere E………., seguradora a título de acidentes de trabalho do lesado D………., e que ao mesmo havia pago diversas quantias em decorrência do acidente;
Em Audiência de Julgamento do processo-crime de ofensas à integridade física, que correu termos no .º Juízo Criminal do TJ de Oliveira de Azeméis, sob o processo nº …/04.5GBOAZ, vieram a ser conhecidos factos que deram origem à douta acusação do MºPº dos presentes autos, e que imputam ao arguido a prática de um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo art. 200º, nºs 1 e 2 do CP, em decorrência do acidente de viação supra descrito;
Ao abrigo do art. 19, al. c) das condições gerais da apólice do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, possui a ora recorrente direito de regresso sobre o arguido, com base no abandono do sinistrado;
Assim, não só a ora recorrente possui a qualidade de ofendida, e a de assistente, a qual foi oportunamente requerida, bem assim como o pedido formulado respeita a ressarcimento de danos causados pelo crime objecto de acusação;
Pelo que fica supra alegado, o douto Tribunal a quo violou o disposto na Lei Processual, desde logo, o disposto nos arts. 71º, 72º e 74º todos do CPP.
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A este recurso respondeu o arguido/demandado B………., defendendo a não admissão do pedido cível formulado.
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Nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o seu Visto.
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que a recorrente Companhia de Seguros C………., SA pretende ver decidida a seguinte questão:
- admissibilidade de enxerto num processo Penal pela prática de um crime de omissão de auxílio, de pedido de indemnização civil formulado por uma Seguradora com fundamento num direito de regresso contra o arguido, seu segurado.
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Vejamos, em síntese, o ocorrido nos autos:
O B………. foi interveniente num acidente de viação, tendo sido condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. nos termos do art. 148º, nºs 1 e 3 do CP, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de €6,00.
A aqui recorrente Companhia de Seguros C………., SA, seguradora para a qual o B………. havia transferido a sua responsabilidade civil automóvel, foi condenada a pagar ao sinistrado D………. a quantia de €29.426,00, acrescida de juros até integral pagamento, a título de indemnização pelos danos causados.
Durante esse Julgamento, foi ordenada a extracção de Certidão, para um procedimento criminal autónomo, do qual resultou a acusação do B………., pela prática pelo crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo art. 200º, nºs 1e 2 do CP.
A C………. Seguros pretendeu constituir-se assistente nos autos (não chegou a ser admitida – ver fls. 193, 197 e 201), e deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo o pagamento de €62.577,22, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, com fundamento no direito de regresso contra o seu segurado (condutor do automóvel), por abandono de sinistrado (invocando o art. 19º, al. c), do DL nº 522/85, de 31/12, e o art. 25º da apólice uniforme do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel).
Esse pedido não foi admitido, por a seguradora não ter no processo “a qualidade de ofendida”, nem a indemnização pedida se fundamentar na responsabilidade por factos ilícitos, mas em responsabilidade contratual, pelo que o direito de regresso que invoca apenas poderia ser apreciado na Instância Cível.
A recorrente impugna, afirmando que possui a qualidade de ofendida, porque tem direito de regresso sobre o arguido B………, com base no abandono de sinistrado, respeitando o pedido formulado ao ressarcimento de danos causados pelo crime objecto da acusação.
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No nosso sistema Processual Penal, consagra-se uma regra geral da adesão obrigatória (ou enxerto, noutra terminologia) da acção cível da indemnização, fundada na prática de factos que constituam crime, à acção penal respectiva.
É o que dispõe o art. 71º do CPP (Princípio da adesão): «O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o Tribunal Civil, nos casos previstos na Lei.»
Esta solução encontra a sua razão de ser – tal como se pode recolher de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 2004, reedição da obra de 1974, pág. 562 (a propósito, na altura, do Direito a constituir) – “numa realização mais rápida, mais barata e mais eficaz do direito do lesado à indemnização”, para além da “exclusão de julgamentos contraditórios” e da “indiscutível economia processual que comporta”.
Dela decorrendo que o lesado está obrigado a deduzir a sua pretensão na acção penal, sob pena de ver precludido o seu direito a ser indemnizado.
Por lesado se designa «toda a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente», tal como decorre do art. 74º, nº 1 do CPP.
Paralelamente, e em conjugação, no art. 129º do CP estabelece-se que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela Lei Civil, ou seja, quanto aos seus pressupostos e à determinação do quantum da indemnização.
No caso, o que a Seguradora pretende fazer valer não é um direito de indemnização por danos gerados pelos factos ilícitos culposos, tipificados como crime, mas um direito de regresso (de reembolso dessa indemnização paga ao lesado), contra o condutor (no caso, o seu segurado), por este ter abandonado o sinistrado.
Direito de regresso esse, fundado no art. 19º do Diploma que regula o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (DL nº 522/85, de 31/12):
“Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso:
Contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente;
Contra os autores e cúmplices de roubo, furto ou furto de uso do veículo causador do acidente;
Contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado;
(…)”
Este direito de regresso constitui um direito novo, surgido com o cumprimento da obrigação de indemnização, contratualmente estabelecida (“satisfeita a indemnização…”), assistindo à Seguradora – na previsão que ao caso interessa – a faculdade de ser reembolsada pelo condutor que tiver abandonado o sinistrado, ou seja, que tenha sido interveniente num acidente de viação, do qual resultem lesões corporais, e “fugido” do local sem auxiliar o(s) sinistrado(s).
Acontecendo que – e essa é orientação Jurisprudencial maioritária, v.g., os Acórdãos do STJ de 27/01/1993 (relator Cura Mariano); de 28/05/2002 (relatado por Simões Freire); de 09/12/2004 (relator Pinto Monteiro); de 29/11/2005 (relator Custódio Montes); de 30/05/2006 (relator Fernandes Magalhães); de 31/01/2007 (relator Urbano Dias); e o Acórdão do TRC de 28/11/2006 (relator Freitas Neto), todos publicados no sítio www.dgsi.pt – o direito de regresso não abrange a totalidade da indemnização paga pela Seguradora, circunscrevendo-se aos danos específicos derivados do abandono do sinistrado, ou os resultantes da agravação dos causados pelo acidente, que se não registariam, caso abandono não tivesse existido.
Supra referido Acórdão do STJ de 29/11/2005, “para responsabilizar o segurado, pela sua quota de responsabilidade na indemnização paga pela seguradora, tem que resultar provado que do abandono do sinistrado resultaram danos específicos ou a agravação dos causados pelo acidente”.
Supra referido Acórdão do STJ de 31/01/2007, “caso o segurado fosse obrigado a suportar todo o montante indemnizatório previamente pago pela seguradora, sem qualquer discriminação entre os danos produzidos normalmente em consequência do acidente e os acrescidos em virtude da atitude reprovável do segurado haveria, sem dúvida alguma, um desequilíbrio contratual resultante do facto de estar a suportar importâncias que só a seguradora devia pagar pela singela razão de que foi isso mesmo o que foi contratualizado”, “à seguradora só assiste direito de regresso do montante que pagou em consequência directa e necessária do abandono, mas já não em relação a tudo o mais pago, em virtude da consequência “normal” do acidente”.
Não se trata, pois, de uma acção de indemnização por danos provocados pelos factos ilícitos culposos, tipificados como crime, que tenha de ser enxertada na acção penal respectiva, mas de uma acção a interpor autonomamente, na Jurisdição Civil, paga essa indemnização.
Em conclusão, o Despacho que não admitiu esse pretendido enxerto, mostra-se, deste modo, correcto.
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Nos termos relatados decide-se julgar improcedente o recurso, mantendo-se o Despacho recorrido.
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Custas pela recorrente, fixando-se a Taxa de Justiça em 6 UC’s.
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Porto, 13/05/2009
José Joaquim Aniceto Piedade
Airisa Maurício Antunes Caldinho