INVENTÁRIO
TRANSMISSIBILIDADE DE QUOTA SOCIAL
LICITAÇÃO
Sumário

I- Quando os estatutos ou contrato social dispõem expressamente que, no caso de decesso do sócio, a sua parte se transmite a certo ou certos herdeiros (v. g., a herdeiro que já era, por si, sócio da empresa) ou ao cônjuge do falecido e em todas as hipóteses em que exista um destinatário certo para a quota social, esta não pode ser licitada.
II- A mesma regra entra em funcionamento no caso de ser o inventariante e não o inventariado o sócio da empresa, considerada a quota ou quinhão como bem comum (casamento segundo o regime da comunhão). Neste caso quem falece não é o sócio, mas o cônjuge dele e, perante a sociedade, não há que pôr o problema de transmissibilidade. A quota ou parte social tem destinatário certo: o sócio que não faleceu, embora os herdeiros do falecido tenham direito a quinhoar na sua meação.”.
III- Em ambas estas hipóteses, a correcção do valor opera-se pela segunda avaliação, nos precisos termos do artº 1364º, nº 3 do Código de Processo Civil.

Texto Integral

Rel.47/08- 935
Procº 4206/08-2ª Secção
Apelação
Estarreja-316/06.2TBETR
Relator: Marques de Castilho
Adjuntos: Henrique Araújo
Vieira e Cunha


Acordam na 2ªSecção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Relatório

Nos autos de inventário a que se procede por óbito de B…………….
que ocorreu em 20 de Dezembro de 2005 que faleceu no estado de casado com C……………… em primeiras núpcias de ambos e segundo o regime de comunhão geral de bens e de cujo matrimónio nasceram os seguintes filhos:
1. D…………..., pré falecida em relação ao inventariado que foi casada com E……….. e que deixou o filho F………….…..
2. G…………………
3 H……………...... e
4. I…………………..
vieram oportunamente J…………… e marido interessados no mesmo reclamar do relatório pericial que fora junto aos autos para avaliação da verba nº 4 indicada como
“Quota no valor nominal de vinte e nove mil, novecentos e vinte e sete euros e oitenta e sete cêntimos, no capital social da sociedade comercial por quotas denominada K……………, Ldª como sede na Rua ……………. em Estarreja com a matricula nº 00466/880223 da Conservatória do Registo Predial de Estarreja”

considerando em síntese que o valor atribuído é manifestamente inferior a outro a que se procederam ainda que houvesse sido apenas suportado nos documentos contabilísticos depositados na Conservatória do Registo Comercial de Estarreja únicos que disseram ter acesso bem como se tenha atribuído um valor à empresa inferior à sua situação liquida contabilística existente à data de 31/12/2005.
Que por outro lado, no método baseado na pronta liquidação não compreendem, como é que a avaliação do edifício e do terreno apontam para um valor de mercado de 200 mil euros, quando o seu valor patrimonial (área total 1.100 m2, dos quais 540m2) de área coberta e 3.560 m2 de logradouro se encontra avaliado nas Finanças em 252.112,40 euros.
Que o valor do restante imobilizado (máquinas, mobiliário, ferramentas, viaturas, etc,...), apesar de desactualizado como refere o relatório pericial, não surge com qualquer valor - de mercado...e ainda os stocks a que não é indicado valor.
Igualmente questionam porque não foram utilizados métodos de avaliação mistos ou dualistas, que associam o património e os fluxos de rendimento por ele gerados indicando que basicamente, neste tipo de métodos, o valor da empresa é obtido através da soma do valor patrimonial com um valor de goodwill.
Por último requerem que lhes seja disponibilizado o balancete geral (analítico) relativo a 2005 (mês 13), dos balancetes de 2006 utilizados pelo senhor perito, da lista dos bens de imobilizado existentes a 31/12/2005 (valor bruto e valor líquido) e o mapa de amortizações referente a 2005, de forma a puderem conhecer os documentos que, juntamente com os constantes no Registo Comercial, permitem conhecer a realidade da empresa, podendo assim obter uma avaliação final que suscite menos dúvidas.
Foi na sequência de apresentação do mesmo proferido despacho nos seguintes termos:
“O relatório está suficientemente fundamentado, sendo que no mesmo está bem explícito os critérios seguidos.
As partes não são peritos, por isso mesmo se tendo recorrrido a pessoa habilitada para responder à questão colocada.
Assim indefiro a reclamação apresentada e o demais requerido”

Inconformados vieram os interessados interpor tempestivamente recurso tendo para o efeito nas alegações oportunamente apresentadas aduzido a seguinte matéria que passamos a reproduzir:
1 - Consideramos que o douto despacho que indefere a reclamação viola o dever de fundamentar a decisão judiciais, contido no artigo 158º do Código Processo Civil, uma vez que a razão invocada para o indeferimento é genérica, sendo omissa relativa aos factos concretos que colocavam em causa o Relatório Pericial e falsa quanto às partes não serem peritos.
2 - A omissão da fundamentação acarreta a nulidade do despacho, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 158º, 659º, 668º, nº 1, b) e 660º, nº 3 do CPC.
3 - Além de que, no despacho, nem sequer é mencionado nenhuma disposição legal que sirva de base ao decidido, o que em nossa opinião, também o torna nulo.
4 - Refere-se, também, que a lei possibilita às partes apresentarem reclamações, mesmo não sendo peritos, ao contrário do que se infere da “justificação” do Sr. Juiz contida na segunda frase. Além disso, os peritos não são infalíveis, ao contrário do que se deduz também dessa mesma segunda frase. Se as partes não pudessem reclamar por não serem peritos sobre a matéria objecto de perícia, subvertia-se por completo o espírito do artigo 587º do CPC.
5 - Por outro lado, consideramos que o Mmº Juiz a quo deveria ter ordenado que o perito completasse, esclarecesse e fundamentasse, por escrito, o relatório apresentado, nos termos do artigo 587º, nº 3 do CPC, dada as deficiências - e até contradições - entre o que consta no Relatório Pericial e factos constantes de documentos.
6 - Pelo que, a reclamação apresentada pelos ora recorrentes deverá ser aceite, seguindo-se o constante no artigo 587º, nº 3, do CPC,
7 – Como a reclamação não foi aceite, as licitações e todo o demais processado deverão ser anulados, com as legais consequências.

Foram apresentadas contra alegações nas quais se pugna pela manutenção da decisão proferida.
Efectuou-se a conferência de interessados com o formalismo legal conforme na acta se exara tendo os autos prosseguido o seu ritualismo legal culminando com a decisão homologatória de partilha da qual foi interposto o respectivo recurso de Apelação pelos mesmos interessados reclamantes tendo nas alegações apresentadas aduzido a matéria conclusiva supra referida.
Mostram-se colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Adjuntos pelo que importa apreciar e decidir.
THEMA DECIDENDUM
A delimitação objectiva do recurso é feita pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal decidir sobre matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam do conhecimento oficioso, art. 684 nº3 e 690 nº1 e 3 do Código Processo Civil, como serão todas as outras disposições legais infra citadas de que se não faça menção especial.
A questão que está subjacente no âmbito de apreciação do presente recurso é o que se mostra evidenciado supra no relatório e se traduz:
a) Na nulidade do despacho por falta de fundamentação e não atendibilidade para além do que se mostra apreciado na decisão como mérito da causa traduzem perante o elenco das conclusões formuladas no seguinte:

DOS FACTOS E DO DIREITO
Importa por força do disposto no artigo 710º nº 1 começar por conhecer da matéria constante do recurso de Agravo interposto pelos Recorrentes.
No que concerne ao invocado vicio de falta de fundamentação pelo Tribunal a quo é manifesto, importa dize-lo liminarmente que o mesmo se verifica.
Dispõe o artigo 158º que:
“As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvidas suscitada no processo são sempre fundamentadas”
É inquestionável que a imposição de fundamentação és ta consagrada no artigo 205º nº 1 da CRP encontrando em termos processuais regulamentação especifica e pormenorizada quer no que concerne à decisão sobre a matéria de facto (artigo 653º nº 2) quer no que concerne à decisão (artigo 659º nº 2 e 3)
O mencionado preceito constitucional impõe o entendimento de que apenas o despacho de expediente não carece por natureza de qualquer fundamentação sendo apenas aqueles por meio dos quais o Juiz provê o andamento em harmonia com a lei dos termos regulares do processo sem interferir no conflito de interesses entre as partes.
Isto é, sempre que suscitada questão ou duvida no âmbito processual que imponha uma decisão em que estejam em causa os direitos das partes bem como os seus interesses enquanto tal a decisão a proferir tem que ser fundamentada não se podendo limitar a uma fundamentação ou sustentação meramente formal ou passiva consistente em mera declaração de aderência ou adesão às razões invocadas por uma das partes.
A lei exige e impõe uma fundamentação substantiva ou material que se traduzirá na invocação de fundamentos próprios ainda que coincidentes com os eventualmente invocados mas susceptíveis de permitir concluir e extrair que foi elaborada uma exegese propria e reflexão autónoma.
Analisando no caso sub judicibus o texto exarado pelo Mmº Juiz é apodíctico que o mesmo não traduz nem consubstancia em si mesmo qualquer fundamentação, limita-se a afirmar e a explanar a constatação de um facto em apreciação subjectiva e de valoração axiológica mas sem suporte ou fundamentação estruturante justificante da mesma apreciação.
O que ocorre é que o relatório em si foi questionado, foi contraditado em diversas questões expressamente invocadas e para as quais se pretendia um esclarecimento uma resposta ao critério e à posição assumida.
O despacho não o permitiu e sobretudo não sustentou ou fundamentou o que era ou foi questionado pela parte por forma a como se impõe em qualquer decisão “ex vi” a sua fundamentação lograr obter convencimento da sua justeza e acerto perante a lei.
Dizer que foi nomeada pessoa habilitada para responder a questão colocada é salvo o devido respeito afirmar o já dito. Só que o que foi colocado em causa não é a competência ou o conhecimento ou conhecimentos do mesmo técnico ou perito para o efeito, mas sim o conteúdo do trabalho elaborado – a avaliação – e os elementos estruturantes da sua sustentação, pois esses é que estão ou foram colocados em causa e para os quais se pretende obter e colher resposta cabal e satisfatória.
O fim da diligência e para tal foi ordenada era trazer ao conhecimento dos interessados o valor da quota social por forma a poder alcançar-se uma eventual composição de quinhões pelos interessados e esse fim não em termos de total esclarecimento com eventual preclusão de direitos não foi alcançado no momento nem determinado pelo Mmº Juiz que se limitou a fazer a afirmação nos termos exarados e salvo o devido respeito carecida de qualquer fundamentação nos termos em que foi expressa.
O Magistrado é o perito dos peritos e sobre a posição daquele tem que necessariamente proferir uma decisão que se possa impor pela apreciação crítica e exegética da posição assumida por aquele outro o que no caso não ocorre, por s haver omitido.
Verifica-se pois uma nulidade no despacho proferido.
Na tramitação do processo de inventário alcançada que foi a fase da conferencia de interessados onde se suscitou a questão em conformidade com o disposto no artigo 1362º nº 1 deveriam os Recorrentes desde logo ter indicado o valor que reportavam correcto para a mencionada verba em questão.
Não o fizeram tendo porém a diligencia sido ordenada na conformidade do estatuído no nº 4 do citado normativo havendo a avaliação sido efectuada nos termos do artigo 1369º que dispõe:
“A avaliação dos bens que integram cada uma das verbas da relação é efectuada por um único perito, nomeado pelo tribunal, aplicando-se o preceituado na parte geral do Código, com as necessárias adaptações.”
Ainda com relevância cabe dizer o seguinte:
A quota pelo que é dado colher dos elementos constantes dos autos tem o valor de 40% do capital social, segundo indicação dada ao processo mas não provado documentalmente.
O artigo 1007º do Código Civil não considera causa de dissolução da sociedade a morte de qualquer sócio dispondo porém que falecendo o sócio, se o contrato nada estipular em concreto, deve a sociedade liquidar a sua quota em benefício dos herdeiros; mas os sócios supertistes têm a faculdade de optar pela dissolução da sociedade, ou pela sua continuação com os herdeiros se vierem a acordo com eles art. 1001° nº1 do mesmo diploma legal, na certeza de que, sendo os herdeiros chamados à sociedade, podem livremente dividir entre si o quinhão do seu antecessor ou encabeçá-lo em algum ou alguns deles (artigo citado e seu nº 4).
De idêntico modo estatui o artigo 184° nº 1 do Código das Sociedades Comerciais quanto às que o são em nome colectivo; e, posto que transmissíveis por morte nada impede que o contrato social disponha nas sociedades por quotas que “falecendo um sócio, a respectiva quota não se transmitirá aos sucessores do falecido” – cfr. Código citado por último artigo 225° - ou postule cláusulas limitativas de transmissibilidade das acções como v.g. ocorre por nas sociedades anónimas artigo 328°.
Ainda igualmente importa dizer como é sabido que a redução da empresa à unidade (v.g., sociedade de dois sócios em que um deles era o inventariado) é causal de dissolução dela, isto em princípio e sem curar de averiguar as condições em que poderá ser reconstituída (Código Civil, artigo 1007° alínea d) e Lei das Sociedades Comerciais, artigo 141º).
E não se ignora nem deverá também deixar de dizer que podem os estatutos sociais limitar a transmissibilidade a certos herdeiros do sócio falecido ou ao seu cônjuge, cláusulas essas de validade indiscutível.
Estas questões não estão nem foram suscitadas nos autos nem tão pouco se conhece o que sobre tal matéria dispõe ou determinam nos estatutos da sociedade em causa, o que não é inócuo ou despiciendo e estranha-se mesmo que tal não haja sido suscitado no âmbito do inventario de que nos ocupamos, mas por certo que os interessados dos seus direitos melhor e avisadamente buscarão…
Não vamos pois teorizar sobre tal questão mas apenas reforçar o nosso entendimento no sentido de que, por essa mesma razão, mais se impõe a anulação do acto tal como se encontra por carecer de fundamentação e poder inclusive mesmo com as licitações para a qual se desenvolveu a instancia, eventualmente ter percorrido um caminho ou via não admissível, no que concerne a citada quota, por eventualmente como se aludiu não ser possível a sua licitação, o que como se disse in casu se desconhece face ao desconhecimento nos autos do pacto social.
Seguindo a doutrinação doutamente exposto por Lopes Cardoso in Partilhas Judiciais Vol II e pressupondo que no caso do quinhão ou quota não se transmitir aos herdeiros do falecido, continuando a sociedade com os sócios sobrevivos (cláusula de estabilização, amortização ou intransmissibilidade) neste caso, os herdeiros não são sócios mas meros titulares dum direito de crédito e subsiste irrelevância de segunda avaliação e igual possibilidade de licitação ou seja não se impõe a segunda avaliação eventualmente por não concordância com a que possa ter sido objecto de uma primeira perícia.

E continua: “Também será objecto de licitação, e, assim, excluída da incidência de segunda avaliação, a quota ou quinhão em sociedade cujo pacto permita a continuação com os herdeiros do falecido sócio, e isto muito embora o contrário tenha sido sustentado já [1]
De maneira que, mercê das exclusões feitas, considerar-se-á subordinado à regra do art. 1364° n° 3, o caso em que os estatutos ou contrato social dispõem expressamente que, no caso de decesso do sócio, a sua parte se transmite a certo ou certos herdeiros (v.g., a herdeiro que já era, por si, sócio da empresa) ou ao cônjuge do falecido (2190). Em ambas estas hipóteses existe um destinatário certo, pelo que o quinhão ou quota não podem ser licitados, já que o pacto social não permite a atribuição a outrem. Em consequência, a correcção do valor opera-se pela segunda avaliação, nos precisos termos daquele preceito.
Como também a regra entra em funcionamento no caso de ser o inventariante e não o inventariado o sócio da empresa, considerada a quota ou quinhão como bem comum (casamento segundo o regime da comunhão). Neste caso quem falece não é o sócio, mas o cônjuge dele e, perante a sociedade, não há que pôr o problema de transmissibilidade. A quota ou parte social tem destinatário certo: o sócio que não faleceu, embora os herdeiros do falecido tenham direito a quinhoar na sua meação.”
Pelo que vem de ser dito e sem necessidade de outros considerandos declara-se nulo o mencionado despacho, como efectivamente é, nos termos da disposição citada e em consequência todos os actos ao mesmo subsequentes porque susceptiveis de influir na decisão e nessa conformidade assim se declara devendo o Mmº Juiz substituir o seu despacho por outro em que de tome em consideração o requerido e designadamente observe o disposto no artigo 587º.
Fica deste modo prejudicada a Apelação no seu conhecimento como é obvio.

DELIBERAÇÃO
Nestes termos em face do que vem de ser exposto concedendo provimento ao interposto recurso de agravo revoga-se o despacho proferido por estar eivado de nulidade de falta de fundamentação nos termos do artigo 158º acarretando a nulidade de todos os actos processuais subsequentes ao mesmo e ordena-se a sua substituição por outro que atenda ao requerimento formulado observando-se os ulteriores termos designadamente o estatuído no artigo 587º.
Custas a final na proporção dos quinhões pelos interessados recorridos.

Porto, 26/05/09
Augusto José B. Marques de Castilho
Henrique Luís de Brito Araújo
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
______________
[1] CUNHA GONÇALVES (ob. cit., XI-42) escreveu: “Finalmente certos bens que devem subsistir em comum ou ser necessariamente divididos em virtude de convenção ou da lei, não podem ser licitados por um dos herdeiros, desde que haja oposição dos outros. Por exemplo, se o autor da herança for sócio de uma sociedade comercial e no respectivo contrato social existir a cláusula de continuação da sociedade com os herdeiros do sócio predefunto, como prevê o art. 1277.° deste Código, não será lícito a um só herdeiro privar deste direito social os co-herdeiros por meio de licitação, visto importar isto a alteração dum contrato celebrado com terceiros. Quando todos os herdeiros não queiram entrar para tal sociedade, haverá que proceder a um acordo ou proceder a encabeçamento». O último período do troço transcrito constitui a irrefragável demonstração do infundado da tese antes propugnada.