RESTITUIÇÃO PROVISORIA DE POSSE
COACÇÃO FISICA
CONCEITO
COACÇÃO MORAL
REQUISITOS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ARRENDAMENTO
LOCATARIO
POSSE
USURPAÇÃO DE IMOVEL
RECURSO DE AGRAVO
AMBITO DO RECURSO
Sumário

I - O locatario, ainda que seja detentor ou possuidor precario, pode excepcionalmente usar dos meios facultados ao possuidor se for perturbado no exercicio dos seus direitos.
II - A coacção fisica pressupõe completa ausencia de vontade da parte daquele a quem a posse foi usurpada e a sua verificação reporta-se ao momento do desapossamento.
III - A coacção moral exige que o coacto deixe o campo livre a actuação do agente por receio de que algum mal lhe seja infligido.
IV - No recurso de agravo, o Supremo tem a sua competencia confinada ao exame e resolução das questões de direito.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I - A e mulher B e C e mulher D intentaram no Tribunal Judicial da comarca de Sintra providencia cautelar de restituição de posse contra E e mulher F pedindo que sejam os requerentes restituidos a posse de sub-sub-cave esquerda existente, no Lote 7 de Quinta de Samaritana, em Belas, onde funciona o estabelecimento de cafe, snack-bar, Cervejaria denominada "Samaritana" e bem assim a posse de todos os bens de natureza consumivel que constituem o seu recheio, ja oportunamente identificados, bem como todo o seu equipamento, tambem ja descrito, e respectivo alvara de licença de porta aberta, de que os requeridos abusivamente tambem se apossaram.
Fundamentam o seu, pedido no facto de os requeridos por Contrato Verbal de 1 de Janeiro de 1989 terem dado de arrendamento aos requerentes do mencionado estabelecimento mediante a renda mensal de 60000 escudos e destinando-o ao exercicio de uma actividade Hoteleira.
Em 14 de Junho, os requeridos que ja se tinham recusado a receber a renda, pelas 7 horas e 30 minutos arrombaram as portas do estabelecimento, entraram nele depois de terem procedido a substituição das fechaduras e apropriaram-se dele bem como de todo o seu recheio e equipamento.
Citados, contestaram os requeridos, invocaram um contrato-
- promessa de cessão de quotas de sociedade comercial SAMARITANAS - Actividades Hoteleiras, Limitada com sede e estabelecimento na referida sub-cave.
Articularam ainda, que o requerido marido entrou no estabelecimento com uma chave que lhe foi entregue por um dos requerentes marido e acompanhado da Guarda Nacional Republicana do Cacem, retomou o estabelecimento, dando conhecimento do facto aos requerentes a quem convidou para irem buscar o que eventualmente lhes pertencia.
Inquiridas as testemunhas foi proferida sentença julgando improcedente a pretensão dos requerentes.
Interposto agravo a Relação negou provimento.
Interposto novo recurso de agravo alegaram os requerentes formulando as seguintes conclusões:
- A decisão proferida pelo tribunal "a quo" e injusta e não se encontra proferida de acordo com a prova dos autos.
- Quem for perturbado ou esbulhado por outrem no exercicio dos seus direitos, pode usar da providencia cautelar de restituição provisoria de posse com vista a restituição da mesma.
- Ora, provado esta que os agravantes tinham a posse do estabelecimento comercial referido.
- Que, no dia 14 de Junho de 1989, pela madrugada, o requerido marido e dois acompanhantes deste dirigiu-se ao estabelecimento, com vista a arromba-lo e ali entrar pela força e, naquele momento so não conseguiu os seus intentos dada a intervenção do guarda-nocturno que inclusivamente teve de chamar um piquete de Guarda Nacional Republicana do Cacem.
- Logo que tal piquete voltou a secção e logo que o Guarda-Nocturno deu por concluido o seu turno de serviço, o requerido marido e os seus dois acompanhantes, arrombaram a porta, apoderaram-se do estabelecimento, dos equipamentos e recheio e trocaram as fechaduras do mesmo.
- Tal facto so por si constitui violencia do esbulhado.
E o facto praticado por tal esbulhador não pode deixar de constituir uma ameaça aos ora agravantes (este sentido Acordão Relação do Porto, de 20 de Abril de 1982 Boletim 316, pagina 275)
- Tal comportamento dos esbulhadores impediu os agravantes de, naquele estabelecimento continuar a exercer a sua posse.
- Os factos provados nos autos, caracterizam a violencia alias confessada pelo esbulhador com a substituição de fechaduras e coacção moral dos possuidores ja que se verificou a completa ausencia de vontade, por parte daqueles a quem a posse foi usurpada (neste sentido o Acordão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Novembro de 1984, Boletim 341, pagina 401 e de 25 de Fevereiro de 1986, in Boletim pagina 354, pagina 649).
- Provados tais requisitos alegados pelos ora Agravantes, a Re, decisão deveria ordenar a restituição provisoria da posse aos agravantes, da sub-cave esquerda do lote n. 7 da Quinta Samaritana em Belas onde funciona o estabelecimento comercial de cafe, snack-bar e cervejaria.
Pelo que, o reu, acordão ora recorrido, violou o que se encontra disposto no artigo 1277 e 1279 ambos do Codigo Civil e ainda o disposto no artigo 393 e 394 do Codigo de Processo Civil.
Os recorridos não se dignaram alegar.
Tudo visto, cumpre decidir.
II - A principal questão a decidir consiste em saber se, face a restituição provisoria de posse se verifica o requisito violencia.
Este procedimento cautelar exige, nos termos dos artigos 393 e 394 do Codigo de Processo Civil e para que possa ser decretada, a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) Posse, b) Esbulho, c) Violencia (Legislação Alberto dos Reis, Codigo de Processo Civil Anotado, I, pagina 667; Moitinho de Almeida, Restituição de Posse, pagina 22 e Acordão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Novembro de 1984, in Boletim 341, pagina 401).
Posse e, nos termos do artigo 1251 do Codigo Civil, o poder que se manifesta quando alguem actua, por forma correspondente ao exercicio do direito de propriedade ou de outro direito real.
A posse, alem de outros elementos exige a prova do corpus (actuação de facto correspondente ao exercicio de direito) e animus (a intenção de exercer, como titular, um direito real sobre a coisa) - legislação Varela, Codigo Civil Anotado, III, pagina 5 e Manuel Rodrigues, A Posse, pagina 73 a 80).
A exigencia do animus deriva de outras disposições do Codigo Civil, designadamente do artigo 1253, que não considera como possuidores mas como meros detentores ou possuidores precarios os que, não tem intenção de agir como beneficiarios do direito, os que se aproveitam da tolerancia do titular, e ainda, todos os que possuem em nome de outrem (Cf. Varele, ob. e loc. cit.).
No entanto, e excepcionalmente, quando a relação obrigacional o justifica, a lei concede a estes meros detentores ou possuidores precarios o exercicio do procedimento de restituição provisoria de posse e da acção de restituição.
Assim, em relação ao contrato de locação o artigo 1037 n. 2 do Codigo Civil estabelece que o locatario que for privado de coisa ou perturbado no exercicio dos seus direitos pode usar, mesmo contra o locador dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276 e seguintes.
Portanto, o arrendatario, locatario de coisa imovel- -artigo 1023 do Codigo Civil, não sendo possuidor, porque o poder que se manifesta não corresponde ao exercicio do direito de propriedade ou de outro direito real, pode usar dos meios facultados ao possuidor quando for privado da coisa.
A ratio legis consiste em a defesa da posição do locatario deve caber-lhe, não so contra actos de terceiro mas contra os do proprio locador (Cf. Varela, ob. cit., II, pagina 391).
Outro requisito exigido para que possa ser concedida a restituição provisoria da posse consiste no esbulho.
O esbulho caracteriza-se, pela privação total ou parcial, do poder do possuidor de exercer os actos correspondentes ao direito real que se traduzem na retenção, fruição do objecto da coisa ou da possibilidade de o continuar a exercer (Cf. Varela, ob. cit., III, pagina 49 e Manuel Rodrigues, ob. cit., pag.400).
Mas esta privação so pode constituir fundamento de restituição provisoria de posse se for ilicita ou violenta - artigo 1279 do Codigo Civil.
A violencia, outro requisito necessario para que se ordena a providencia cautelar, esta hoje definido no artigo 1261 n. 2 do Codigo Civil como o uso de coação fisica ou de coacção moral nos termos do artigo 255.
No entanto, este conceito teve em consideração os dois extremos em que a violencia era definida afastando-os.
Assim, para o direito romano so existia violencia quando se verificasse a vis atrox, de tal modo que o violentado se encontrasse impossibilitado de agir.
Outro extremo afastado foi o conceito de violencia do direito canonico que julgava suficiente para caracterizar a violencia "qualquer actividade material contraria a vontade do possuido" e ate o dolo (Cf. Cuerba Gonçalves, Tratado de Direito Civil, III, pagina 603).
No entanto, ja nessa altura, se defendia, e bem, que a violencia quer sobre a forma de coacção fisica quer sobre a forma de coacção moral, tinha, em ultima analise de ser dirigida contra as pessoas (Cf. Dias Marques, Prescrição Aquisitiva, I, pagina 277).
A violencia fisica podia ser exercida contra as coisas, caracterizando o esbulho violento, desde que essas coisas servissem de obstaculo ou protecção das pessoas (Cf.Cuerba Gonçalves, ob. cit. pag.604).
Não constitui violencia contra as pessoas se estas se encontram ausentes e o individuo muda a fechadura duma casa, arromba uma porta ou destroi parte de um muro porque o proprietario não pode sentir a intimidação, a coacção fisica, e tais actos se destinam a facilitar a ocupação (Cf. Dias Marques, ob. cit., pagina 278).
Na verdade, a coacção fisica pressupõe completa ausencia de vontade por parte daquele a quem a posse foi usurpada e a sua verificação reporta-se ao momento de desapossamento (Cf. Varela, ob. cit., paginas 23 e 52 quanto a exemplos de esbulho violento e Moitinho de Almeida ob. cit., paginas 83 a 98).
A verificação destes requisitos não depende de uma exaustiva apreciação por parte do julgador porque, nos procedimentos cautelares e na restituição provisoria de posse, exactamente por se tratar de uma definição provisoria, o que se exige e um mero juizo de probabilidade ou verosimilhança quanto ao pretenso direito do requerente (Cf. Alberto dos Reis, ob. cit., pagina 668 e Moitinho de Almeida, ob. cit. pagina 100 e Acordão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Janeiro de 1986 in Boletim 353, pagina 376).
Na verdade, o procedimento cautelar destina-se essencial e provisoriamente, a manter a situação de facto para cuja tutela, no processo principal, se solicita a providencia e definição jurisdicional adequada.
III - No caso sub-judice as questões de facto ficaram definitivamente fixadas na Relação e ao Supremo compete definir o regime juridico aos factos provados e fazer aplicação dele a esses factos.
Tambem no recurso de agravo o Supremo tem a sua competencia confinada ao exame e resolução das questões de direito, por força do disposto nos artigos 755 n.2 e 722 n. 2, ambos do Codigo de Processo Civil (Cf. Alberto dos Reis, ob. cit., VI, pagina 28 e Rodrigues Bastos, Notas ao Codigo de Processo Civil, III, pagina 399).
A 1 instancia considerou que os factos provados não constituiam prova de um contrato verbal de arrendamento.
A relação considerou que o documento de folhas 9 indiciava a aparencia da existencia de um contrato de arrendamento porque esta expressão foi empregue para explicar o recebimento de uma renda mensal.
Aceita este Supremo, um regime de verosimilhança, que os requerentes exploravam o estabelecimento por força de um contrato verbal de arrendamento celebrado com os requeridos.
Verificar-se-ia, deste modo, o requisito da legitimidade para requerer a restituição provisoria de posse nos termos dos artigos 1037 n. 2 e 1276 e seguintes do Codigo Civil.
No entanto, não se verifica o requisito da violencia.
Na verdade o que se provou foi que o requerido e os seus acompanhantes, por volta das 7 horas da manhã, lograram penetrar no estabelecimento dos autores, apropriando-se dele e de todo o seu recheio e equipamento, apos o que procederam a substituição da fechadura.
Ora não se encontra provada qualquer actuação violenta do requerido e seus acompanhantes porque penetrar no estabelecimento, como se provou mas sem qualquer explicação adicional, permite que se ponha as hipoteses de ter sido por terem encontrado a porta aberta ou por terem usado da chave propria de fechadura.
Exigir-se-ia que o requerido e seus acompanhantes usassem da força fisica contra os requerentes ou contra as coisas, mas de modo a que, em ultima analise se tratasse de uma vigilancia dirigida contra as pessoas.
Seria necessario que a coacção fisica impedisse os requerentes de permanecerem no estabelecimento ou que a coacção moral fosse de tal ordem que os obrigasse a retirar, deixando o campo livre a actuação dos referidos por receio de que algum mal lhes fosse infringido (Cf. Varela, ob. cit. III, pagina 52).
Não se verifica, assim, qualquer prova de violencia sobre as coisas porque se ignora como os requeridos lograram penetrar no estabelecimento nem sobre as pessoas, quer fisica quer psicologicamente.
Improcedem, deste modo, as conclusões das doutas alegações.
Pelo exposto, acordam no Supremo em negar provimento ao agravo.
Custas pelos agravantes.
Lisboa 12 de Junho de 1991.
Tato Marinho,
Baltazar Coelho,
Cabral de Andrade.