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RECUSA DE MÉDICO
OMISSÃO DE AUXÍLIO
Sumário
I- Há sem dúvida recusa de médico por parte de quem, sendo o único obstreta de serviço, se encontra ausenta do hospital durante um parto e se recusa a comparecer quando a enfermeira parteira lhe diz pelo telefone que está com dificuldades em conduzir o parto e precisa da sua ajuda. II- O crime de recusa de médico traduz uma agravação especial da violação do dever geral de auxílio.
Texto Integral
Proc. n.º 186-05.
T J Mirandela.
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
Os assistentes apresentaram queixa contra B……………., médica, assistente graduada de ginecologia e obstetrícia e directora de serviço no Hospital Distrital de ………. e C…………….., enfermeira especialista de saúde materna e infantil no mesmo hospital[1], imputando-lhes responsabilidade penal pelas lesões com que nasceu o seu filho D…………. derivadas do parto.
Findo o inquérito o Ministério Público entendeu não estar suficientemente indiciada a prática de qualquer crime e determinou o arquivamento dos autos [fls. 307 a 338].
Inconformados, os assistentes requereram a abertura da instrução, alegando factos que, entendiam indiciar-se, e, com base nos quais entendiam verificar-se a prática, por parte de cada uma das arguidas B................. e C................., de [a]um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. no art. 148º, n º 3, do Código Penal, [b] um crime de omissão de auxílio, p. e p. no art. 200º, com referência aos arts. 3º e 10º, do Código Penal, [c] um crime de violação da leges artis, p. e p. no art. 150º, n º 2, do Código Penal, e a prática, por parte da arguida B..............., de [d] um crime de recusa de médico, p. e p. no art. 284º, com referência ao art. 285º, do Código Penal.
Realizada a instrução, foi proferida decisão instrutória de não pronúncia das arguidas pela prática de qualquer dos crimes que lhes era imputado em sede de requerimento de abertura da instrução.
Inconformados recorrem os assistentes apresentando as seguintes conclusões:
1ª - A douta decisão recorrida considerou a inexistência de indícios conducentes à prática pela médica B………….. dos ilícitos criminais de recusa de médico, p. e p. nos artºs. 284º e 285º do CP; de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p no art.º 150º, do Código Penal (violação de leges artis) e de omissão de auxilio, p. e p. pelo art.º 200º, Código Penal.
2ª - Ora, encontra-se demonstrado nos autos e foi invocado no art.º 7º do requerimento de instrução que, não obstante encontrar-se em regime de presença física no Hospital Distrital de ………, a Dr.ª B……….. ausentou-se deste hospital pelo menos a partir das 17.00 horas desse dia, tendo-se deslocado para sua casa.
3ª – E que tendo em vista a sua presença na sala de partos, a Dr.ª B………… foi contactada por via telefónica, pelos menos por quatro vezes, para o seu telemóvel, com o número ……….632.
4ª – No primeiro desses quatro telefonemas, a Dr.ª B………… foi contactada pela Enfermeira C…………., que lhe pediu insistentemente para aquela se deslocar ao hospital, tendo a Dr.ª B………… respondido que se estavam duas parteiras no Hospital que era para trabalhar porque também o ganhavam – cf. fls. 135, 141 e 269.
5ª - A Dr.ª B……… era a única obstetra de serviço no Hospital, encontrando-se, como se disse, em regime de presença física – ou seja com a obrigatoriedade de permanecer nas instalações do serviço do Hospital.
6ª - Quer o regime de presença física a que a mesma se encontrava contratualmente obrigada, quer as solicitações efectuadas á Dr.ª B……….. para estar presente no parto (pelo menos em número de quatro – conforme referido supra – ou em número de seis, conforme relatório da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde – cf. fls. 556 dos autos, ponto 2.3.2) impunham a sua presença, enquanto única médica obstetra de serviço e tendo em conta que é objectivamente necessária a presença de um obstetra durante o trabalho de parto, razão aliás justificativa para a manutenção daquela médica em regime de presença física.
7ª - Tal recusa em estar presente era objectivamente susceptível de causar perigo para a vida ou perigo grave para a integridade física da assistente e seu filho – como de facto aconteceu e se demonstrou nos autos.
8ª - Como resulta sobejamente demonstrado nos autos – e reafirmado a fls. 802, douta decisão – a partir das 19.00 horas, a frequência cardíaca não era normal, existindo um número excessivo de contracções: ESTANDO A DRª. B……….. PRESENTE NO SERVIÇO, a mera compulsa dos registos cardiotocográficos, a partir das 19.00 horas, teriam imposto como conduta normal e previsível uma redução/suspensão da oxitocina, uma vez que a manutenção desta situação por algumas horas poderia causar uma deficiente oxigenação do feto e tal poderia causar-lhe lesões como as que apresentou – cf. douta decisão recorrida, fls. 802.
9ª - Era exigível à Dr.ª B………… a presença no Hospital, seja por via do regime de presença física, seja por via das solicitações telefónicas efectuadas, sendo que a sua não presença lhe acarreta responsabilidade por omissão – cf. art.º 10º, Código Penal.
10ª – Pelo que, ao contrário da douta decisão recorrida, entende-se que existem, de facto, indícios suficientes susceptíveis de configurar a prática dos crimes de recusa de médico, p. e p. nos artºs 284º e 285º do CP; de ilícito de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. no art.º 150º, do CP (violação de leges artis) e omissão de auxilio, p. e p. pelo art.º 200º, CP, pelo que deveria a mesma ter sido pronunciada pela prática de tais crimes.
Acresce que
11ª – Os recorrentes consideram ainda existirem indícios suficientes da prática do ilícito de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. no art.º 150º, do CP (violação de leges artis) à enfermeira arguida C………………
12ª – A douta decisão recorrida – cf. fls. 799, parte inicial – admite que ocorreu, de facto, a violação das leges artis, no exercício das suas funções de enfermeira especialista que realizava / acompanhava o parto.
13ª - Porém, e salvo o devido respeito, de forma paradoxal, a mesma douta decisão considerou que “Afigura-se-nos claro que a arguida C………… não previu minimamente que houvesse circunstancias que tornassem necessário reduzir / suspender a administração da oxitocina e/ou dessas circunstancias dar conhecimento à arguida B…………., e que a sua não redução/suspensão ou não comunicação à arguida B…………. pudesse colocar em grave perigo o corpo ou a saúde do D…………. Na verdade, tudo lhe pareceu estar normal, no que às contracções e à frequência cardíaca diz respeito, não se justificando, no seu entender, nomeadamente, qualquer redução/suspensão da administração da oxitocina, o que sabia ter de fazer se as contracções fossem em número excessivo.
Assim, cremos que, também a prática do crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. no art.º 150º não se mostra indiciada. “
14ª – Ora, a não conformação com tal decisão decorre de fundamentação constante da mesma decisão – cf. fls. 799 –, donde resulta que: “ Na verdade, perante a ocorrência de contracções para além do normal, e uma frequência cardíaca com algumas anomalias (perda de variabilidade e desacelerações discretas mas recorrentes), O QUE É CONFIRMADO CLARAMENTE PELOS MÉDICOS OBSTETRAS INQUIRIDOS, impunham as leges artis (…) que houvesse uma redução/suspensão da administração da oxitocina à parturiente, por forma a que diminuísse a frequência das contracções e o feto pudesse, em consequência, dispor de uma melhor oxigenação, e/ou fosse a médica obstetra informada das contracções excessivas e das anomalias cardíacas verificadas, para que pudesse tomas as medidas que entendesse por adequadas, sendo que a arguida C………….. assim não procedeu.”
15ª - Resulta ainda da douta decisão recorrida – cf. fls. 802 –, “ Quer a arguida, com os seus conhecimentos técnicos, enquanto enfermeira especialista na área em que estava a trabalhar, e com a sua já longa experiencia profissional, quer o “homem médio“ ou a enfermeira média de assim quisermos, com os conhecimentos que a arguida C…………. tem, colocadas naquelas circunstancias, deveriam ter-se apercebido da existência de um número excessivo de contracções e previsto que, na falta de redução/suspensão da administração da oxitocina, e na manutenção desta situação por algumas horas, tal poderia causar uma deficiente oxigenação do feto e tal poderia causar-lhe lesões como as que apresenta e, consequentemente, deveria ter reduzido/suspendido a administração da oxitocina ou comunicado tal factualidade à médica, para que esta pudesse decidir o que fazer”.
16ª - Em face de tal entendimento, não pode deixar de considerar-se que a Enfermeira C………… violou um dever geral e objectivo de cuidado, consubstanciado no seguinte: atenta a sua qualificação e experiencia, o não se aperceber da existência de um número excessivo de contracções SÓ PODERIA TER OCORRIDO devido a incúria, a mera falta de consulta dos respectivos registos cardiotocográficos.
17ª - E só essa falta de acompanhamento devido do parto teria levado a que a mesma não tivesse percebido que havia circunstancias que tornavam necessário reduzir/suspender a administração da oxitocina e/ou dessas circunstancias dar conhecimento à arguida B………….
18ª - E que a mesma não tivesse percebido que a sua não redução/suspensão ou não comunicação à arguida B………….. pudesse colocar em grave perigo o corpo ou a saúde do D…………..
Ocorre ainda que
19ª - Na avaliação desta ocorrência, a douta decisão não terá tido em conta a seguinte circunstancia: É que, nos termos dos Registos Clínicos do Hospital Distrital de ……….. – cf. fls. 209, parte inicial, dos autos, resulta que “Ás 18 horas foi conduzida (a parturiente) ao Bloco Operatório para fazer epidural e recomeçou oxitocina, mas reagiu mal à oxitocina, fez uma bradicardia, suspendeu a oxitoxina durante mais ou menos 20 minutos e depois retomou “ – cfr. Fls. 209, parte inicial.
20ª - Ou seja, pelas 18.00 horas, a Enfermeira C…………… suspendeu a ministração de oxitocina, que DEPOIS FOI RETOMADA, DE FORMA INDEVIDA.
21ª - Circunstancia que motivou as lesões causadas ao D…………...
22ª – Donde resulta que tal conjunto de actos e omissões configuram a pratica daquele crime de violação de leges artis por parte da Enfermeira C……………..
Acresce ainda que
23ª – Os assistentes consideram que os autos contêm elementos que indiciam a prática, por parte das arguidas B…………… e C……………, dos crimes de ofensa à integridade física por negligencia, p. e p. no art.º 148º, nº 1 e 3, do CP.
24ª - Dos elementos clínicos constantes dos autos e dos pareceres e opiniões demonstrados até ao momento do requerimento de abertura de instrução – Dr. E………..; Dr.ª. F…………….; Relatório do Instituto de Medicina Legal – Gabinete Médico Legal de Bragança – Ext. de Mirandela / Dr. G…………. e Professor Doutor H………… – resultava a existência de um nexo de causalidade entre a falta de assistência no trabalho de parto e as sequelas registadas pelo D………..
25ª – Designadamente, o relatório do Dr. E………….., médico especialista em pediatria e Director do Serviço de Cuidados Neonatais Pediátricos do Hospital Distrital de Santo António – cf. fls. 229 e 230 dos autos –, expressava o seguinte:
“Relativamente à patologia apresentada pelo D………… pode afirmar que a mesma teve origem nas horas que antecederam o seu nascimento uma vez que a criança não apresenta qualquer outra patologia que possa ser relacionada com o processo a nível cerebral que posteriormente se desenvolveu.
Esta criança foi submetida a um sofrimento fetal prolongado, tendo nascido com um índice de apegar de 2/4 a que corresponde praticamente uma morte aparente.
DURANTE AS HORAS QUE ANTECEDERAM O PARTO ERA POSSÍVEL AOS ELEMENTOS DO CORPO CLÍNICO TEREM A PERCEPÇÃO EXACTA DA SITUAÇÃO em que o feto se encontrava e deveriam os mesmos ter detectado sinais de sofrimento fetal o que implicava da parte do obstetra responsável uma intervenção consentânea com a situação e que fizesse cessar tal sofrimento, o que não foi feito pela ausência prolongada do obstetra. ... Refere que a presença física de um médico obstetra na sala de partos é absolutamente indispensável “.
26ª – Por sua vez, do Relatório do Instituto de Medicina Legal – Gabinete Médico Legal de Bragança – Ext. de Mirandela, da autoria do Sr. Dr. G…………, datado de 10/02/2006 – cf.. fls. 195 a 198 dos autos –, cuja “ INFORMAÇÃO “ foi proferida tendo por base a documentação clínica fornecida pelo Hospital Distrital de Mirandela, Hospital de Vila Real e Hospital Distrital de santo António, resultava também o seguinte – fls. 198 dos autos:
DISCUSSÃO: Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o evento (parto distócico) e o dano (encefalopatia hipóxico-isquémica de grau II/III).
CONCLUSÕES: 1. D…………. nasceu de parto distócico-ventosa – às 21.10 horas do dia 11/02/2003, no Hospital Distrital de Mirandela. Sofreu de encefalopatia hipóxico-isquémica de grau II/III que lhe sobreveio como complicação do referido parto.
27ª – Também já nessa altura, o Parecer do Professor H………… expressava o seguinte: “Ás 18 horas foi conduzida (a parturiente) ao Bloco Operatório para fazer epidural e recomeçou oxitocina, mas reagiu mal à oxitocina, fez uma bradicardia, suspendeu a oxitoxina durante mais ou menos 20 minutos e depois retomou “ – cf. fls. 209, parte inicial.
“Neste caso, a gravidez já se tinha completado, o feto apresentava bom desenvolvimento, o feto apresentava bom ritmo cardíaco, o parto estava a ser arrastado no tempo, havia registo de uma certa intolerância à oxitocina, em face de um episódio de bradicardia, ás 18 horas, o que aconselharia a retirada do feto do útero materno antes daquele começar a entrar em anóxia o que poderia ter evitado o estabelecimento da anóxia cerebral grave que provocou as sequelas que o examinado apresenta” – cf. fls. 211.
28ª – Ou seja, daqueles relatórios e deste parecer resultava já inequívoca a necessidade de ter ocorrido uma intervenção médica durante o trabalho de parto, sendo que este último sublinhava a necessidade do parto ter ocorrido pelas 18.00 horas, por aplicação de ventosa ou realização de cesariana, sendo que as lesões ocorreram em consequência do atraso na extracção do feto.
29ª – Da prova produzida em sede de instrução resultou o seguinte:
O Dr. H………… reafirmou integralmente as considerações e conclusões veiculadas no seu parecer, tendo porém o seu depoimento sido “desvalorizado“ – cf.. fls. 803, parte inicial.
Dos depoimentos do Dr. I……….. resultou que o nexo causal entre o trabalho de parto / não redução / suspensão da oxitocina e as lesões apresentadas pelo D……….. é admissível, chegando a dizer que é mesmo provável – cf.. fls. 803, 3º parágrafo.
Por sua vez, o Dr. J…………. referiu ser provável que o D………… não nascesse com os problemas que nasceu se tivesse sido suspensa a administração da oxitocina – cf. fls. 803, 7º parágrafo.
30ª - Desta forma, do conjunto de elementos e depoimentos constantes dos autos não pode deixar de se considerar suficientemente indicado que, quer a Médica Olímpia, por omissão de presença e intervenções médicas necessárias e exigíveis, quer a Enfermeira C……………, por omissão de tratamento necessário e exigível (designadamente a suspensão ou redução da oxitocina), praticaram o crime de ofensa à integridade física por negligencia, pp pelo art.º 148º, nº 1 e 3, do CP.
31ª - E como tal deveriam ter sido pronunciadas.
32ª – Neste particular e no caso da Enfermeira C………….., releva ainda a circunstancia (já supra referida) de que, nos termos dos Registos Clínicos do Hospital Distrital de Mirandela – cf. fls. 209, parte inicial, dos autos – “Ás 18 horas foi conduzida (a parturiente) ao Bloco Operatório para fazer epidural e recomeçou oxitocina, mas reagiu mal à oxitocina, fez uma bradicardia, suspendeu a oxitoxina durante mais ou menos 20 minutos e depois retomou “ – cfr. fls. 209, parte inicial.
33ª – Ou seja, como se disse, pelas 18.00 horas foi suspensa a oxitocina, MAS DEPOIS FOI RETOMADA, DE FORMA INDEVIDA, circunstancia que motivou as lesões causadas ao D…………...
Acresce ainda que
34ª – Dos autos resulta que não foram apresentados pelo Centro Hospitalar de Bragança os registos cardiotocográficos correspondentes ao período compreendido entre as 20.45 horas e o nascimento – cf. fls. 803 e 804 –, isto apesar das várias insistências efectuadas pelo Tribunal a quo nesse sentido – cfr., designadamente, fls. 675, 676, 679, 689 e 690 dos autos.
35ª – Quanto a este particular, da douta decisão resulta que “Se houvéssemos conseguido obter os registos após as 20.45 horas, pensamos que muito do que agora deixa dúvidas poderia passar a deixar certezas, porém, apesar das nossas insistências em tentarmos averiguar da existência ou não, destes registos, perante o facto de vislumbrarmos da importância dos mesmos, não nos foi possível saber indiciariamente sequer se existiam, ou não, tarefa em que, incompreensivelmente, ou não, nos foram colocados obstáculos / resistências por parte de quem deve, legalmente, colaboração ao Tribunal”.
36ª – Ora, neste pressuposto, em face dos elementos já disponíveis dos autos, impunha-se que ocorresse a pronuncia das arguidas, mesmo sem a existência de tais registos que, naturalmente, até ao julgamento, poderiam ser obtidos, desde logo pelo recurso à Inspecção-Geral da Saúde ou Ministério da Saúde – entidades que esclareçam da possibilidade dos mesmos registos serem ou não encontrados e/ou reconstituídos.
Foram violados os artºs 284º, 285º, 150º, 200º e 148º, nºs. 1 e 3, todos do Código Penal e artºs. 308º, nºs 1 e 2, este com referencia ao 283º, nº 2 e 290º, nº 1, do C.P.P.
Nestes termos e nos mais de direito que doutamente serão supridos por VªsExcªs. deverá ser concedido provimento ao presente recurso, devendo em consequência ser reformulada a douta decisão e, em consequência:
1 - ser a arguida B............ pronunciada pela prática dos crimes de recusa de médico, p. e p. nos artºs. 284º e 285º do Código Penal ; de ilícito de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e .p no art.º 150º, do Código Penal ( violação de leges artis ); de omissão de auxilio, p.p. pelo art.º 200º, Código Penal e de ofensa à integridade física por negligencia, p. e p. no art.º 148º, nº 1 e 3, do Código Penal.
2 – ser a arguida C…………. pronunciada pela prática dos crimes de ilícito de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p no art.º 150º, do Código Penal (violação de leges artis) e de ofensa à integridade física por negligencia, p. e p. no art.º 148º, nº 1 e 3, do Código Penal.
Na oportunidade o Ministério Público e as arguidas pronunciaram-se pela improcedência do recurso. Nesta Relação a Ex.ma Procuradora Geral Adjunta, pronunciou-se, igualmente, pela manutenção do despacho recorrido.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417º n.º 2, do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir
O Direito:
A questão suscitada pelos recorrentes prende-se com a existência, ou não, de elementos indiciários bastantes para suportar a pronúncia das arguidas B………… e C…………., pela prática de [a] um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. no art. 148º, n º 3, do Código Penal, [b] um crime de omissão de auxílio, p. e p. no art. 200º, com referência aos arts. 3º e 10º, do Código Penal, [c] um crime de violação da leges artis, p. e p. no art. 150º, n º 2, do Código Penal, e ainda a prática, por parte da arguida B…………., de [d] um crime de recusa de médico, p. e p. no art. 284º, com referência ao art. 285º, do Código Penal.
***
Dispõe o art.º 308º n.º do Código Processo Penal:
Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronuncia.
Adianta o legislador, art.º 283º n.º 2 do Código Processo Penal, que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento uma pena ou uma medida de segurança.
Tem entendido a doutrina e a jurisprudência, que os indícios se consideram suficientes quando dos elementos probatórios carreados para os autos resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança, ou seja, quando, a partir de tais elementos, se crie a convicção de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido, ou que haja uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Na tarefa da concordância prática das finalidades também em jogo nesta fase processual, finalidades conflituantes como se sabe – a realização da justiça e a descoberta da verdade material; a protecção perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoas e o restabelecimento, tão rápido quanto possível, da paz jurídica posta em causa pelo crime e a consequente reafirmação da validade da norma violada [2] – importa ter presente, parafraseando F Dias[3], que o acto de levar alguém a julgamento representa já um ataque ao bom nome e reputação do acusado. Daí que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.
Uma primeira nota para registar que o juiz não elencou e compartimentou de modo claro e inequívoco, expressamente ou por remissão para o requerimento de abertura de instrução ou para o despacho de arquivamento, os factos que considerava e os que não considerava suficientemente indiciados. Apenas faz referência genérica aos factos constantes do requerimento de abertura de instrução, à sua indiciação ou não, não segmentando o momento em que faz a apreciação de indícios e o momento em que procede à aplicação do direito. E esses momentos são distintos e devem ser distinguidos.
A narração, expressa ou por remissão, como permite o art.º 307º n.º1 in fine, na decisão instrutória de não pronúncia, dos factos que o juiz considera e dos que não considera suficientemente indiciados é obrigatória e legalmente imposta, como resulta do art.º 308º n.º1 do Código de Processo Penal. Essa remissão, apesar de o art.º 307º n.º1 do Código de Processo Penal referir apenas «razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução» pode ser estendida ao despacho de arquivamento. Não se vislumbra motivo impeditivo de o juiz, finda a instrução, v.g., poder remeter para o despacho de arquivamento se os motivos pelos quais profere despacho de não pronúncia, e portanto confirma a decisão de não acusar, são os constantes desse despacho. O que se impõe é que essa remissão seja precisa, clara e inequívoca[4]. Assim o art.º 307º n.º1, parte final, do Código de Processo Penal, onde o legislador diz «acusação» deve lido como «despacho que decide sobre a acusação», que é o despacho que encerra o inquérito, art.º 276º do Código de Processo Penal, isto é, quer o despacho de acusação, quer o despacho arquivamento[5]. A predita omissão, não descrição/discriminação, no despacho de não pronúncia, de modo expresso ou por remissão, dos factos que o juiz não considera e dos que considera suficientemente indiciados, atendendo ao princípio da legalidade que vigora em matéria de inobservância das formalidades processuais, art.º 118º do Código de Processo Penal, configura simples irregularidade, art.º 123º do Código de Processo Penal, que no caso não afecta o acto praticado como iremos ver pelo sentido da decisão a proferir.
A – Responsabilidade da enfermeira C…………...
Pretendem os recorrentes que a arguida C…………. seja pronunciada pela prática dos crimes de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. no art.º 150º, do Código Penal (violação de leges artis) e de ofensa à integridade física por negligencia, p. e p. no art.º 148º, nº 1 e 3, do Código Penal.
A argumentação assenta, no essencial, em que a decisão recorrida – cf. fls. 799, parte inicial – admite que ocorreu violação das leges artis, no exercício das suas funções de enfermeira especialista que realizava/acompanhava o parto, ao não reduzir/suspender a administração da oxitocina. Censuram depois a decisão recorrida, porque, de forma paradoxal concluiu que a arguida C………….. não previu minimamente que houvesse circunstancias que tornassem necessário reduzir/suspender a administração da oxitocina e/ou dessas circunstancias dar conhecimento à arguida B…………, e que a sua não redução suspensão ou não comunicação à arguida B…………. pudesse colocar em grave perigo o corpo ou a saúde do D………... Na verdade, tudo lhe pareceu estar normal, no que às contracções e à frequência cardíaca diz respeito, não se justificando, no seu entender, nomeadamente, qualquer redução/suspensão da administração da oxitocina, o que sabia ter de fazer se as contracções fossem em número excessivo. Pelo que concluiu a prática do crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. no art.º 150º não se mostra indiciada.
Importa dizer, muito claramente, que a decisão de não pronúncia não ponderou uma circunstância essencial e por isso afirmou a violação das leges artis, no exercício das suas funções de enfermeira especialista. Em causa estava a decisão de prescrição/administração de um fármaco a oxitocina. Quando referimos prescrição/administração estamos a falar no seu sentido amplo: prescrever, começar a administração, diminuir, suspender… A decisão de prescrever e administrar esse fármaco, constituindo prescrição/administração de drogas, é um acto médico, pelo qual não pode ser responsabilizada a enfermeira. Se bem se vir nos autos a administração de fármacos esteve sempre dependente de decisão médica, quer da médica obstetra, que para tal foi contactada pelo telefone, quer da médica anestesista. Não sendo este o momento para apreciar a correcção desse procedimento [pelo telefone[7]], e averiguar qual o agente a quem deve ser imputada eventual responsabilidade, o certo é que a administração[8] do fármaco em questão, não é da responsabilidade da enfermeira, que por isso não pode ser responsabilizada. O mesmo se passa com a leitura dos registos cardiotocográficos, cuja responsabilidade não era também da enfermeira parteira. Por tudo isso, andou menos bem a decisão instrutória ao afirmar que ocorreu violação das leges artis, no exercício das suas funções de enfermeira especialista que realizava/acompanhava o parto, ao não reduzir/suspender a administração da oxitocina. Essas eram, e são, decisões médicas que a enfermeira não podia nem devia tomar. Neste sentido vão os depoimentos do Prof. E…………, ainda em inquérito e do Prof. I…………., na fase de instrução. Mesmo assim, E…………., testemunha que após o nascimento seguiu o D………….. no Hospital de S. António, chega a afirmar, quanto à oxitocina, que a enfermeira «tendo ido além do que lhe é legalmente permitido tomou uma decisão positiva», fls. 230. A enfermeira apenas responde pelas suas decisões e condutas não pode ser, sequer co-responsabilizada e menos ainda ser singularmente responsabilizada pela correcta ou incorrecta administração de um fármaco, ou pela incorrecta leitura do registo cardiotocográfico.
Quanto ao mais, importa vincar, o que nem sempre foi feito nos autos, que a médica obstetra tinha a obrigação regulamentar de estar no hospital, pois estava em regime de presença física, de assistir passo a passo ao evoluir do parto e não assistiu, em contraponto com as condutas profissionais irrepreensíveis da anestesista e da pediatra, além do corpo de enfermagem. Apesar de não ser exigível à arguida B…………. uma presença física contínua e ininterrupta junto da parturiente, competia-lhe e era-lhe exigível, acompanhar passo a passo em presença física a parturiente no desenrolar do trabalho de parto, pois, nenhuma outra actividade médica reclamava a sua presença. Seguramente entre as 17.00 horas e até depois das 21.00, a arguida B………… não se aproximou da parturiente, não se inteirou pessoalmente, ou sequer indirectamente, por sua iniciativa, da evolução do parto, cujo desencadeamento foi da sua responsabilidade, quando é certo que nesse período temporal, repete-se, não desenvolveu qualquer acto médico no hospital que impedisse a sua presença física junto da parturiente. Bem pelo contrário, pelas 17.00 horas ausentou-se do hospital e terá ido para casa. E daí só regressou ao segundo pedido de ajuda, como se não fosse sua obrigação estar presente, mesmo que tudo corresse «às mil maravilhas». E sabemos hoje que já durante a tarde havia sinais claros e inequívocos de alerta, que a arguida B………… teria detectado se estivesse presente e tivesse lido os registos cardiotocográficos como era sua obrigação, pois o número de contracções da parturiente era excessivo, a frequência cardíaca do D……….. não era «normal». Claro que a arguida B…………… diz agora, após consulta à posteriori dos registos, que eles lhe parecem normais. Essa afirmação, quando confrontada com a unanimidade em contrário dos vários peritos e testemunhas/especialistas ouvidos nos autos e com a conclusão do Colégio de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia da Ordem dos Médicos – que é taxativo «após as 17h 50 minutos, surgem alterações, associadas a excessiva frequência de contracções uterinas. Assim, estes registos nunca poderão ser classificados como normais ou tranquilizadores» fls. 659 – não pode ser considerada como uma declaração de uma médica obstetra, assistente graduada de ginecologia e obstetrícia e à data directora de serviço do Hospital de ………., mas apenas como a declaração da arguida B…………. que não tem qualquer obrigação processual de verdade podendo dizer o que lhe aprouver em prol, está claro, da sua defesa.
Ver aqui uma omissão da enfermeira, por não ter avisado a médica, é «virar o bico ao prego» e alijar responsabilidades, pois a médica tinha a obrigação de estar presente, é coonestar um comportamento em violação das leges artis.
Segundo alguns depoimentos «o costume» é o parto ser conduzido pelas enfermeiras e o obstetra só é chamado em caso de complicação… Isso, além do liminar registo de que, esses profissionais, sendo chamados estão presentes…, merece-nos duas observações/explicações: Essas afirmações foram produzidas pressupondo serviços onde os obstetras «não têm mãos a medir», com volume de serviço enorme e vários partos em simultâneo, o que não era o caso dos autos. O parto em causa era «O parto», o único que, em todo aquele dia, se desenvolveu no hospital e a médica não esteve – pelo menos a partir das 17.00h – ocupada com qualquer outro serviço clínico. Em todo o caso, e esta é a segunda observação, «o costume» não é, neste particular, fonte normativa, pois esbarra quer com as leges artis, quer com os protocolos de procedimento rigorosos já então vigentes [9], nem é tolerável que seja biombo de más práticas.
Assim, com a correcção que antecede, não merece o sentido do despacho de não pronúncia da arguida C…………, qualquer censura, improcedendo nessa parte a pretensão dos recorrentes.
*
Responsabilidade da médica B……………..
Pretendem os assistentes que a arguida seja pronunciada pela prática dos crimes de recusa de médico, p. e p. nos artºs. 284º e 285º do Código Penal; de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, (com violação de leges artis) p. e p. no art.º 150º, do Código Penal; de omissão de auxílio, p. e p. pelo art.º 200º, Código Penal e de ofensa à integridade física por negligencia, p. e p. no art.º 148º, nº 1 e 3, do Código Penal.
Dispõe o art.º 284º do Código Penal:
O médico que recusar o auxílio da sua profissão em caso de perigo para a vida ou de perigo grave para a integridade física de outra pessoa, que não possa ser removido de outra maneira, é punido com pena de prisão até cinco anos.
O crime de recusa de médico é um crime especial ou específico próprio ou puro. Crime específico num duplo sentido: agente deste crime só pode ser um médico e a conduta terá de consistir na omissão de cuidados médicos, sendo estes imprescindíveis para remover o perigo para a vida ou o perigo grave para a integridade física[10].
Este normativo pune casos de omissão própria[11]. Isto partindo do pressuposto, aceite pela generalidade dos autores, de que o critério fundamental de distinção entre crimes de omissão puros e impuros passa pela circunstância decisiva de os impuros, ao contrário dos puros não se encontrarem descritos num tipo legal de crime da parte especial, tornando-se necessário o recurso à cláusula de equiparação contida no art.º 10º para resolver correcta e seguramente os problemas do círculo dos autores idóneos e da caracterização do seu dever de garantia.
Os bens jurídicos protegidos são a vida e a integridade física.
O crime é de perigo concreto, quanto ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos – vida e integridade física – e de resultado quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção.
A não prestação de cuidados consiste numa omissão, numa recusa de prestar os cuidados médicos indicados, em tempo útil, uma vez conhecida, directa ou indirectamente, a situação de perigo para a vida ou saúde.
Exige-se finalmente que o perigo não possa ser removido de outra maneira, sendo a actuação médica, em concreto, o único meio capaz de eliminar o perigo.
O tipo legal em análise é doloso: terá de haver o dolo de perigo concreto, ou seja, no caso da recusa de médico, a representação do perigo para a vida ou do perigo de grave lesão da integridade física, a consciência acerca da “indispensabilidade e adequação do auxílio médico que o omitente podia ter prestado” e a conformação (atitude de indiferença) perante tal situação. Se o agente se mantém passivo, apesar de ter consciência do perigo e da imprescindibilidade (para remoção do perigo) de auxílio médico, que podia prestar, poderá concluir-se que, no mínimo, se conformou com esse perigo, demonstrando uma atitude de indiferença (dolo eventual)[12].
Este tipo legal parece-nos subsidiário, na consideração estrita do que aqui importa, relativamente ao crime de ofensa corporal graves.
Dispõe o art.º285º do Código Penal:
Se dos crimes previstos nos artigos (…) 284º resultar morte ou ofensa á integridade física grave de outra pessoa, o agente é punido com a pena que ao caso caberia, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
Esta agravação pelo resultado tem de ser conjugada com o art.º 18 do Código Penal que em matéria de agravação da pena pelo resultado estatui:
Quando a pena aplicável a um facto for agravada em função da produção de um resultado, a agravação é sempre condicionada pela possibilidade de imputação desse resultado ao agente pelo menos a título de negligência.
No caso há dois ofendidos: a parturiente que sofreu dores físicas e psicológicas e o nascituro que sofreu lesões a nível da sua saúde. Como de início foi referido, o inquérito, a instrução e agora o recurso apenas envolvem as condutas que originaram as lesões no nascituro. É esse o objecto do processo a essa realidade está limitado o recurso.
Como se trata de nascituro importa esclarecer se ao mesmo é dispensada tutela penal. A resposta é quanto a nós afirmativa. Uma vez que a omissão da arguida se verifica depois de iniciado o acto de nascimento, depois de se iniciarem as contracções ritmadas, intensas e frequentes que previsivelmente culminarão com a expulsão do feto, quando o parto estava eminente, o nascituro está incluído no âmbito e no fim de protecção da norma do art.º 284º, como do art.º 144º do Código Penal. Não tem aqui aplicação o art.º 66º n.º1 do Código Civil, que remete a tutela penal para o fim do processo de nascimento – o nascimento completo e com vida – a protecção penal neste e outros casos, como ofensas corporais e homicídio, começa logo com o início de nascimento[13].
Segundo o despacho recorrido foi afastada a imputação do crime de recusa de médico pelos seguintes fundamentos:
Começaremos pelo crime de recusa de médico, p. e p. no art. 284º e 285º, do C.P., imputado à arguida B................
Parece-nos evidente a inexistência de indícios da prática de tal ilícito.
Na verdade, o único momento em que poderia abstractamente considerar-se ter a médica em causa recusado o auxílio da sua profissão, ocorre aquando do telefonema que lhe é feito pela arguida C..............., pelas 20.30 horas do dia a que os autos dizem respeito.
Porém, não podemos dizer indiciar-se haver, então, perigo para a vida ou perigo grave para a integridade física do D............. ou de sua mãe.
E, ainda que se pudesse considerar indiciado tal perigo, não pode concluir-se que, o mesmo não pudesse ser removido de outro modo senão com o auxílio da arguida B.............., já que, desde logo, estavam enfermeiras especialistas na sala com a mãe do D............, bem como médicas e outras haveria no hospital.
Mas, ainda que houvesse tal perigo e ele não pudesse ser removido de outro modo senão através do auxílio da arguida B..........., tal perigo era da arguida B............. desconhecido, bastando para tanto atentar nas palavras que esta última arguida terá trocado com a arguida C.............. nos telefonemas que esta lhe fez nesse dia do parto.
Assim, nunca poderia afirmar-se uma conduta dolosa da arguida, quando o ilícito em causa é doloso e não também negligente.
Portanto, parece-nos que, a recusa da arguida B............. em deslocar-se ao hospital, quando tal lhe foi pedido pela arguida C............., pelas 20.30 horas do dia em causa, não consubstancia a possibilidade de se poder considerar indiciada a prática de um crime de recusa de médico, p. e p. no art. 284º, do C.P.
Julgamos não ser esta a melhor leitura da prova carreada para os autos. Entrando na apreciação do caso importa advertir que se leva em conta o já expendido quanto ao comportamento da arguida B……………, aquando da análise da responsabilidade da enfermeira C………….. e que por razões de economia aqui não vamos repetir.
No caso, impendia sobre a arguida B……….., um dever jurídico de garante. O facto de este tipo de ilícito, art.º 284º do Código Penal, não exigir esse elemento, não significa que a presença de tal elemento impeça a sua aplicabilidade[14].
Da recusa.
Se a arguida tinha a obrigação de estar presente e acompanhar o parto e não o faz, isso, só por si, configura uma situação de recusa de médico. O perigo, em abstracto, para a vida ou integridade física existe sempre em qualquer parto, sendo do conhecimento da arguida que, de um momento para o outro um parto se pode complicar, pelo que é necessária a presença da obstetra para atempadamente tomar decisões e desenvolver práticas que só ao médico cabem, como, p. e., decidir se o parto vai ser vaginal, vaginal com instrumentos ou cesariana, aplicar ventosa, etc.
A ausência do hospital da única obstetra de serviço durante o trabalho de parto, sem se preocupar ou indagar da situação clínica da parturiente, sabendo como é óbvio na sua especialidade, que de um momento para o outro a situação pode reclamar a tomada de decisões e onde o factor tempo, mais uns minutos menos uns minutos, pode fazer a diferença entre a vida e a morte, configura, em abstracto, a recusa de médico. Como já disse o Supremo Tribunal de Justiça, pode haver recusa no caso de simples inércia do agente[15].
No caso, mais do que perigo abstracto, que não é típico como sabemos, existiu um perigo concreto grave para a integridade física do feto, o que foi do conhecimento da arguida, pois foi-lhe claramente dito pela enfermeira que precisava da sua ajuda pelas 20.32 horas. Se uma enfermeira parteira muito experimentada, que já fez muitos partos sozinha, diz à médica que precisa da sua ajuda na fase final de num parto vaginal, que mais é preciso para concluir pela gravidade da situação? Se dizem à obstetra que a parturiente está ansiosa, que mais precisa ela saber para concluir que o parto se está a complicar e com isso corre grave perigo a integridade física do feto e da mãe ou mesmo a vida de ambos? Uma mãe em primeira gravidez, que na fase final de um parto prolongado entra em ansiedade, como muito bem sabe a arguida, é uma mãe que dificilmente vai colaborar adequadamente na expulsão do feto. E sem colaboração da mãe o feto só pode ser tirado com intervenção do obstetra, que em tempo oportuno terá que decidir qual a melhor via: cesariana aplicação de ventosa, etc.
A arguida B………… era já uma profissional experimentada, conhecia as capacidades da enfermeira desde há anos e se esta lhe diz que precisa da sua presença é porque a situação é mesmo de emergência. Ou será que alguém entende que no caso só se podia indiciar o tipo de ilícito de recusa de médico se a enfermeira, munida do Código Penal e lendo à arguida B…………. o art.º 284º do Código Penal, lhe dissesse Sr.ª Dr.ª «há perigo para a vida ou perigo grave para a integridade física» do feto ou da parturiente? A comunicação entre oficiais do mesmo ofício tem códigos conhecidos e usados pelos intervenientes. Se a enfermeira queria ajuda era porque não era capaz[16], como não foi, de fazer o parto sem a obstetra tendo que esperar pela sua chegada.
A omissão da arguida é qualificada pois tinha o dever, que violou, de assistir ao desenrolar do parto, comportamento omissivo que reiterou quando, solicitada pelas 20.32 horas, se recusou a comparecer. Se foi pedida a sua comparência foi porque era precisa, pois só nesses casos era chamada. Neste contexto a arguida conhecia e tinha consciência da situação de perigo grave para a saúde. E quando, depois das insistências, compareceu já não foi em tempo útil, pois a lesão já se tinha produzido. E a arguida sabia que num parto, uns minutos, podem ser a diferença entre a vida e a morte, uma criança saudável e um vegetal, perdoe-se-nos a crueza da expressão. Por isso não é preciso enfatizar o conhecimento do perigo pois é a natureza das coisas, um facto notório na classe médica.
A arguida B…………. ignorou os «pedidos insistentes» feitos pela Enfermeira C…………, pelas 20.32 horas, para que regressasse ao hospital, quando a dilatação da parturiente já estava nos 8 centímetros, quando o parto era eminente. Mais, nessa altura a arguida B…………. teve conhecimento que a parturiente estava «muito ansiosa por não ter voltado a ver a médica»; «a sua médica», a médica que a seguiu em toda a gravidez, internou a parturiente e decidiu desencadear o parto[17]. Aos pedidos insistentes da enfermeira respondeu que «estavam duas parteiras no Hospital que era para trabalhar porque também o ganhavam». Só depois de mais dois telefonemas – um às 21.00 horas e outro dois minutos e vinte segundos depois – é que compareceu [fls. 141, 289 e 372]. Estes dois últimos telefonemas foram originados pelo facto de o feto não estar a descer e ter encaixado numa posição que não permitia a progressão para ser expulso. Foi por este motivo que a médica foi novamente chamada. Como o desenvolvimento do parto dependia da obstetra e nenhuma das pessoas presentes se sentia habilitada a fazer mais o que quer que fosse, esperaram pela obstetra que foi chamada pelo telefone, pois como sabemos encontrava-se fora do hospital. O parto ocorre às 21.10 horas, com o D…………. em «morte aparente», fls. 230.
Uma médica obstetra, para mais a directora daquele serviço, com o dever jurídico de presença física, sendo a única obstetra de serviço, quando lhe telefonam às 20.32 horas, na eminência do parto, pedindo que venha e ela não vem, tem de ter a consciência da necessidade da sua presença, se não acede ao pedido é porque venceu no seu íntimo a vontade de recusar assistência médica. A afirmação produzida pela arguida B………….. de que estão aí duas enfermeiras é para trabalhar … é, sem outros comentários, quanto a isso eloquente. No caso, ela sabe, por conhecimento científico e experiencia própria, e por isso tem de representar a necessidade da sua presença, não sendo plausível afirmar que não prefigurou a gravidade da situação e das suas consequências. As «regras» estabelecidas entre a médica a as enfermeiras eram claras, ela só era chamada se e quando fosse mesmo necessário. Se no caso foi chamada, repetidamente chamada, não pode a médica invocar desconhecimento do perigo, perigo que é conatural ao parto. Só porque as enfermeiras, dada a gravidade da situação, não conseguiam fazer sozinhas o parto é que a médica foi «incomodada»; porque as enfermeiras, sentiram que havia essa necessidade, e de facto essa era «a regra»[18] como vimos. Neste quadro a arguida sabe e tem consciência de que graves complicações poderem ocorrer de um momento para o outro e que o protelar de uma intervenção pode resultar em graves lesões ou mesmo morte para o nascituro ou parturiente. Se não acatou o pedido logo pelas 20.32 horas, sabendo da possíveis consequências é porque se conformou com essa eventualidade pelo que há, pelo menos, dolo eventual[19].
Uma «obstetra média», para mais directora de serviço, jamais abandonaria um parto por si ordenado e da sua exclusiva responsabilidade, ausentando-se do hospital onde o mesmo decorria e nunca recusaria comparecer se solicitada. Isto num quadro agravante em que a médica não estava ocupada com qualquer outro caso, não teve qualquer indisposição, etc.
Se a dilatação já estava completa, se a parturiente já tinha entrado no período expulsivo mas não colaborava, por exaustão e o feto estava encravado, a permanência deste no canal do parto, para mais apresentando-se de cabeça, certamente provocaria dificuldades respiratórias cada vez mais graves e consequentemente falta de oxigenação do sangue. Nestas situações o risco de anóxia é conhecido e a falência de órgãos vitais ou da própria vida uma consequência mais que provável. A isto acresce o sofrimento fetal prolongado por falta de adequada oxigenação que já vinha desde as 19.00, que não foi objecto de avaliação médica nem sequer de registo clínico[20], pois a obstetra não acompanhou o parto[21].
No caso não havia qualquer conflito de deveres – impossibilidade de assistir várias parturientes em risco – aquele era o único parto, «O parto» e a arguida ausentou-se, presumivelmente, para casa….
Conclui-se assim que está a coberto de qualquer dúvida que existiu recusa.
A arguida tinha consciência, em virtude da sua experiência e conhecimentos, do perigo de grave lesão que a integridade física do feto e da parturiente corriam, pelo menos a partir das 20.32 horas e sabia que a sua presença para pronta actuação era indispensável. Ao não estar no hospital como era sua obrigação, ao não ter regressado ao hospital como lhe foi insistentemente pedido, apesar de ter consciência do perigo e da imprescindibilidade do auxílio médico, que podia prestar, poderá concluir-se que, no mínimo, se conformou com esse perigo, demonstrando uma atitude de indiferença, pelo que actuou com dolo eventual.
Que esse perigo não podia ser removido de outra maneira, como resulta do exposto, é uma conclusão clara fornecida pelos autos: estando presentes a anestesista, a pediatra, duas enfermeiras parteiras, ninguém conseguiu fazer o parto, apesar de o terem tentado por todos os meios[22] chegando a um ponto de impasse em que apenas lhes restou esperar pela chegada da obstetra.
Nexo causal e imputação do resultado:
O nexo causal e a imputação do resultado nos crimes por omissão tem de ser visto com olhos diversos dos que apreciam a condutas por acção. Em sede de omissão, quando se responsabiliza o agente pelo resultado danoso, é porque se entende que o agente podia ter «interrompido» aquele processo «naturalístico» tomando medidas, actuando de modo a que, no caso, com um grau de quase certeza evitaria o resultado, mas não tomou. Como F Dias[23] acaba de reafirmar o problema da imputação objectiva nos crimes de omissão, conforme pôs em evidência Liszt[24] não é propriamente uma questão de causalidade que deverá ser equacionado nos crimes omissivos. Mas já de uma perspectiva normativa poderá falar-se, à maneira de Engisch e agora Roxin, de uma causalidade da omissão como condição conforme à lei. Deste modo, o problema da imputação objectiva do resultado típico à omissão só poderá ser em definitivo solucionado no seio da chamada «conexão do risco»: a acção esperada ou devida deve ser uma tal que teria diminuído o risco de verificação do resultado típico.
Será que o resultado pode ser imputado à arguida?
Dispõe o art.º 18 do Código Penal que a agravação é sempre condicionada pela possibilidade de imputação desse resultado ao agente pelo menos a título de negligência.
A agravação pelo resultado decorre duma real e reconhecida existência de perigo, ínsito na conduta omissiva e por ela posto em marcha. Exige-se assim um nexo de causalidade entre a omissão típica e o resultado agravante E é condicionada pela possibilidade de imputação desse resultado ao agente ao menos a título de negligência. A negligência, nestes casos de crimes qualificados pelo resultado, satisfaz-se com a previsibilidade desse resultado. A imputação objectiva, a agravação pelo resultado, deve restringir-se aos casos em que esse resultado mais grave é consequência imediata da comissão do ilícito fundamental ou básico, já que o motivo para a agravação da pena reside somente na realização do perigo específico ligado ao tipo básico[25].
No caso indicia-se a existência de uma relação de causalidade entre a omissão da arguida – não actuou em tempo útil – e a produção do resultado agravado. Esse resultado era objectivamente previsível para a arguida, dados os seus conhecimentos científicos e aptidões profissionais, sendo que para o caso releva o tipo de agente concreto, não o «homem médio»[26], quando muito «o médico obstetra médio». Pode assim estabelecer-se uma relação de causalidade entre a omissão da arguida e o resultado. Mesmo na sua formulação mais exigente, que exige que fique demonstrado que o resultado poderia ter sido evitado mediante o comportamento conforme ás regras e que essas regras têm como objectivo evitar a produção de resultados como o que acorreu no caso. Que o acompanhamento do parto pela arguida evitaria o resultado foi já acima afirmado; que a obrigação de presença física tem como objectivo obstar a resultados como o dos autos resulta confessadamente do Anexo 10, junto aos autos Documento Relativo à Rede de Referenciação Materno-Infantil, p. 21, sendo um dos desideratos da política de saúde materno infantil do nosso país, que a arguida conhecia e devia seguir.
A pergunta que não foi feita e a que por isso se não dá resposta no despacho recorrido é a seguinte: se a arguida, como era sua obrigação – e para tal não havia qualquer obstáculo pois não estava em qualquer serviço urgente – tivesse acompanhado o parto, pelo menos a partir das 19.00 horas, o D…………. teria nascido com aquelas sequelas[27]?
A resposta é clara e negativa: se a arguida tivesse acompanhado o parto, o D………… não teria nascido com aquelas sequelas. Esta conclusão assenta nos seguintes pressupostos constantes dos autos: a gravidez da assistente foi normal, nos múltiplos exames não foi detectado qualquer problema do feto, que era normal e saudável; aquando da rotura de membranas o «líquido era normal»[28], o que evidencia a falta de problemas do feto, pelo que a lesão da integridade física do D………… ocorreu durante o parto. E sabendo nós que no período expulsivo a dado momento o feto não descia e encravou durante largos minutos, tendo-se esperado pela chegada da obstetra para o retirar com recurso a ventosa, a conclusão é a de que foi a anóxia na parte final do parto que originou a grave lesão de que padece o D………….. Segundo os peritos as lesões evidenciadas pelo D…………… são compatíveis com uma anóxia prolongada. Ora se pelas 21.00 horas o feto já está encravado, logo em anóxia, se o parto ocorre às 21.10 temos mais de 10 minutos o que já é anóxia prolongada. Se a este elemento de facto for aditado o sofrimento fetal que já vinha desde as 19.00 horas, temos um quadro de falta de oxiginação.
As reservas de dois dos peritos em estabelecer o nexo causal derivam da gravidade das lesões do D………….. quando confrontadas com os registos objectivos que lhes foram dispensados, pois não é normal, dizem face ao que consta dos registos, as lesões provocadas pelo parto serem tão graves. Importa deixar dito que há apenas registo de enfermagem do parto. Partem os peritos de um juízo de normalidade que não existe no caso concreto. Não entram em linha de conta, nem tinham de entrar, com um dado de facto que temos por assente nos autos: na parte final do parto, o D………… encravou e esteve à espera da chegada da obstetra para ser retirado com recurso a ventosa. Esses – pelo menos dez – minutos de anóxia são a causa do estado em que nasceu o D…………..
As reservas dos peritos, mesmo assim, são relativas, o Prof. I…………. no depoimento em Instrução afirma que, com base apenas nos registos – e sabemos que da fase final do parto eles não existem, ou não apareceram – o nexo de causalidade é admissível, não o pode é afirmar de modo absoluto.
Os depoimentos do Profs. E……………, reputado especialista na matéria, e sem qualquer interesse nos autos, que nos dias seguintes seguiu o D………… no Hospital de Santo António e que teve acesso ao processo clínico, quer do Hospital de Mirandela quer do Santo António e H…………, vão no sentido de estabelecer o nexo causal.
Conclui-se assim pela existência de nexo causal e pela imputação objectiva do resultado agravado – lesões físicas graves – pelo menos a título de negligência.
Quanto aos outros crimes imputados à arguida B……………..:
Pretendem os assistentes ainda a pronúncia da arguida B…………., pela prática dos crimes de ilícito de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. no art.º 150º, do Código Penal (violação de leges artis); de omissão de auxilio, p. e p. pelo art.º 200º, Código Penal e de ofensa à integridade física por negligencia, p. e p. no art.º 148º, nº 1 e 3, do Código Penal.
Quanto ao ilícito de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. no art.º 150º, do Código Penal (violação de leges artis):
Este é um tipo de ilícito problemático, eliminado na Reforma do Código Penal de 1995, foi reintroduzido na de 1998. O art.º 150º constitui um modo antecipado e de reforço da tutela penal dos bens jurídicos em causa e só se aplica, subsidiariamente, se a factualidade não integrar crime mais grave, como resulta da parte final do seu n.º2. Parece-nos que o tipo não admite a comissão por omissão, pois, só é tipicamente relevante uma acção. As meras omissões, como resulta do próprio art.º 150º do Código Penal, não são punidas por este tipo. Logo, não pode realizar o crime de intervenção médica com violação das leges artis do art.º 150º do Código Penal, que, actualmente se estrutura sobre uma conduta positiva, quem, como a arguida, se limita a uma conduta omissiva[29].
Assim a conduta omissiva da arguida B……….. não cai no âmbito de previsão desta norma.
Acontece que a sua conduta é multifacetada, não temos só omissão, há também acção quando a arguida através do telefone dá instruções[30] v.g. quanto à prescrição/administração de fármacos. Sublinhe-se: acção em violação das leges artis quando, pelo telefone, numa situação que não era de excepcionalidade e quando era sua obrigação e nada impedia a arguida de praticar o acto presencialmente, prescreveu/administrou fármacos. Acontece que essa acção não chega a ser típica porque daí não resultou, rectius, não está indiciado que tenha resultado dessa acção[31], «perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde». E o art.º 150º n.º2, constitui uma incriminação de perigo concreto para a vida ou de verificação de lesão grave da integridade física[32]. Não acompanhamos, assim, com todo o respeito o Supremo Tribunal de Justiça[33] quando disse, em caso similar, que há concurso real entre este crime e o de recusa de médico.
Quanto à sua acção e desempenho na parte final no parto, aquilo que a arguida nesse momento fez abstraindo de tudo o resto, a aplicação da ventosa, «tarde e a más horas», fez sem que qualquer reparo possa ser feito.
Quanto ao crime de omissão de omissão de auxílio, p. e p. pelo art.º 200º do Código Penal, o mesmo é de afastar da ponderação no presente caso. Afasta-se não porque a conduta da arguida B…………. não preencha o teor literal do tipo, nem porque não se verifica uma omissão de auxílio, que de facto existe, mas pela razão de que existe mais do que isso. O crime de recusa de médico traduz uma agravação especial da violação de dever geral de auxílio[34]. Como certeiramente observa Conceição Cunha[35] o que se pode concluir é que, de acordo com esta ideia de solidariedade (que está na base de ambos os tipos legais), cada pessoa deverá fazer o que estiver ao seu alcance (e for efectivamente necessário) para remover uma situação de perigo grave; o médico relativamente ao não médico terá de fazer mais, se tal for indispensável à remoção do perigo, e evidentemente se, face ao caso concreto, tiver os conhecimentos (e os instrumentos) específicos necessários. Não se trata apenas de se poder exigir mais ao médico, trata-se ainda de este ser mais responsabilizado, caso omita esse auxílio necessário, por comparação com a responsabilização de outro cidadão que também omita o auxílio de que é capaz. Ora se não existisse o tipo legal de recusa de médico, o médico responderia como qualquer cidadão evidentemente, inexistindo dever de jurídico de garante – pois existindo pode ponderar-se o art.º 10º do Código Penal) – pela omissão geral de auxílio, embora se lhe pudesse (devesse) exigir mais, mesmo face ao mesmo tipo de crime – cuidados médicos específicos, se estivessem ao seu alcance e fossem imprescindíveis è remoção do perigo. Donde resulta que a verificação do tipo do art.º 200º do Código Penal, está consumida pela verificação do tipo do art.º 284º ou do art.º 144º e 10º do Código Penal, se for o caso[36] [37].
Quanto à ofensa à integridade física por negligência, p. e p. no art.º 148º, nº 1 e 3, do Código Penal, além do já exposto, basta salientar que a existência de dolo eventual afasta a negligência; a negligência relevante será considerada para agravação pelo resultado que é imputado a esse título.
Em conclusão, se bem que por fundamentação diversa, coincidimos no juízo de não pronúncia, quanto a estes crimes.
Decisão:
Na parcial procedência do recurso deve o despacho de não pronúncia ser substituído por outro que, pelo menos, pronuncie a arguida pela prática de um crime de recusa de médico, p. e p. nos artºs. 284º e 285º do Código Penal.
Custas pela arguida fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.
Porto 3 de Junho de 2009
António Gama Ferreira Ramos
Custódio Abel Ferreira de Sousa Silva
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[1] A queixa apenas visou a parcela de comportamento em que a vítima foi o nascituro. Mas há uma outra vítima a parturiente que sofreu danos físicos e psicológicos de relevo – o prolongamento desnecessário das dores do parto provoca, simultaneamente, dano físico e psicológico – que decorreram da falta de assistência médica; por outro lado a ausência da médica causou á parturiente, como dos autos resulta, grande ansiedade, pois sentiu-se desamparada pela médica que a assistiu na sua gravidez, a internou para o parto que também desencadeou. Como realça Conceição Cunha, ob cit. P.831, haveria concurso efectivo de crimes entre os crimes em que é vítima o nascituro e a parturiente, pois trata-se de bens pessoais e são diferentes as vítimas. Essa parcela da vida, não constituiu objecto de queixa, nem de inquérito ou instrução nem foi sindicada em recurso, pelo que não é questão a decidir.
[2] Maria João Antunes, Segredo de Justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coacção, Liber Discipolorum, pág. 1237 e segts.
[3] Direito Processo Penal, 1974, pág. 133.
[4] Pois releva para efeitos de caso julgado, de reabertura do inquérito, Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, p. 198-9, Acórdão do TRG CJ XXX, tomo IV, p. 300-1.
[5] Em contrário, Pinto de Albuquerque, Comentário…, 2ª ed. p. 780.
[6] Acórdão do TRL, de 15.1.2004, CJ, XXIX, tomo I, p. 125 e Acórdão do TRG citado.
[7] Como resulta de fls. 241 quanto à administração de nova anestesia.
[8] Reiteramos: administração no seu sentido amplo: começar a administração, diminuir, suspender…
[9] Ver anexo 10, Rede de Referenciação materno-infantil, o Hospital de Mirandela, como Hospital de apoio perinatal, fls. 11, garantia serviço de urgência com presença física, 24/24 horas, e p. 59: «…presença física permanente, 24/24 horas, de um obstetra, de um médico para o ajudar nos actos cirúrgicos, de um pediatra e de um anestesista…».
[10] Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo, II, comentário ao art.º 284º, Conceição Cunha, Algumas considerações sobre a responsabilidade penal médica por omissão, Liber Discipulorum, p. 844 e Teresa Quintela de Brito, Responsabilidade Penal dos médicos, RPCC, Ano 12, n.º3, p. 391.
[11] Tipos especificamente descritos na lei como tais. Já a omissão imprópria abarca os tipos não especificamente descritos na lei como tais, mas em que a tipicidade resulta de uma cláusula geral de equiparação da omissão à acção, caso do art.º 10º do Código Penal. Esta classificação varia de autor para autor, assim Roxin, puras são aquelas omissões típicas que não têm correspondência num delito de acção, aquelas relativamente às quais o delito de acção não existe; impuras aquelas para cuja tipicidade se torna necessária uma cláusula de equiparação. Como refere, F Dias, Direito Penal, Tomo I, 2004, pág. 681, citando Stratenwerth, a escolha entre as distinções é pouco mais que uma questão de conveniência.
[12] Conceição Cunha, Algumas considerações sobre a responsabilidade penal médica por omissão, Liber Discipulorum,Pág. 847.
[13] Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo, I, p. 6-7 e Conceição Cunha, Algumas considerações sobre a responsabilidade penal médica por omissão, Liber Discipulorum, p. 821.
[14] A verificação desse elemento – dever jurídico de garante – pode levar o JIC a ponderar, a verificação, ou não, do crime de ofensas corporais graves, por omissão, art.º 144º e 10º do Código Penal, o que afasta a verificação do crime de recusa de médico. Nessa hipótese deve proceder-se, como é óbvio, com respeito dos mecanismos legais, art.º 303º do Código de Processo Penal. Neste sentido Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo, II, comentário ao art.º 284º e Conceição Cunha, Algumas considerações sobre a responsabilidade penal médica por omissão, Liber Discipulorum, p. 845.
[15] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.1.93, CJ, I, tomo I, p. 164, e Pinto de Albuquerque, Código Penal, anotação ao art.º 284º p. 729.
[16] O depoimento da enfermeira parteira em instrução é elucidativo: telefonou pelas 20.30 a solicitar a presença da médica porque achou que precisava de ajuda. Noutros casos não o fez, naquele sentiu que devia chamar. Na sua avaliação era necessária a presença da arguida obstetra. Em resposta obteve da arguido que estavam lá duas parteiras era para trabalhar…
[17] O que reforça a possibilidade de ser equacionada e discutida – repete-se com respeito do art.º 303º do Código de Processo Penal – a existência de dolo eventual de ofensa à integridade física grave do art.º 144º do Código Pena, questão que de modo incipiente é aflorada pelos recorrentes na conclusão 9ª ao fazerem apelo ao art.º 10º do Código Penal.
[18] Como resulta do depoimento da enfermeira Maria de Jesus. Regra em clara violação das suas obrigações contratuais e das leges artis, será escusado enfatizar.
[19] Nesta conclusão em caso similar – sofrimento fetal prolongado, sucessivos sinais de alerta ignorados, nascimento em morte aparente – Conceição Cunha, ob cit. P.827.
[20] Resposta do INML de fls253.
[21] A violação das leges artis por parte da arguida é patente durante o trabalho de parto que se arrastou por várias horas, pois não se inteirou pessoalmente junto da parturiente da evolução do parto, quando não estava ocupada com qualquer outro serviço clínico. Mais, ausentou-se para fora do hospital. Esta omissão constitui violação da sua obrigação de acompanhar a evolução do trabalho de parto. A arguida como chefe se serviço tinha uma consciência acrescida do seu dever, logo maior obrigação. Maior obrigação porque é uma profissional experimentada, logo em melhores condições de saber que só depois de acabados é que os partos «podem correr bem ou mal»; as complicações acontecem de um momento para o outro, maior ansiedade e/ou falta de «colaboração» da mãe problemas com o cordão, etc.
[22] É a expressão correcta apesar de o terem tentado por todos os meios, mesmo o desaconselhável carregar de forma violenta na barriga da parturiente, referido pela assistente.
[23] F Dias, Direito Penal, parte geral tomo I, questões fundamentais a doutrina geral do crime, pág. 694.
[24] Já no fim do séc. XIX Liszt dizia que o melhor modo de tratar os problemas da omissão é propor a questão correctamente. E acrescentava, não deve ser formulada nestes termos: «Quando é que a omissão é causal»? Mas sim deste modo «quando é que a omissão é ilegal? «Quando é que o não impedir o resultado equivale a causá-lo?» , Tratado de direito penal, tomo I, p. 232, Russell editores, 2003.
[25] Hans-Heinrich Jescheck, Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal, 2002, p. 278-280.
[26] Sobre o requien do homem médio tradicional e geral, Maria Joana Castro Oliveira, A imputação objectiva na perspectiva do homicídio negligente, p. 110.
[27] Neste preciso sentido Conceição Cunha, ob cit. P.824
[28] Resposta do Conselho Médico-Legal, fls. 252.
[29] Na conclusão Teresa Quintela de Brito, Responsabilidade Penal dos médicos, RPCC, Ano 12, n.º3, p. 388 e397. Conceição Cunha, ob cit. P. 832, também entende que se «trata de um tipo legal que pressupõe uma conduta activa do médico (ou da pessoa legalmente autorizada a intervir,), que haja uma intervenção ou tratamento.
[30] Esta também, em idêntica situação, a conclusão de Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo, II, p. 1025.
[31] Diversa é a valoração como vimos da omissão de estar presente e acompanhar o evoluir dp parto e de não ter tomado decisões médicas quanto ao parto.
[32] Teresa Quintela de Brito, Responsabilidade Penal dos médicos, RPCC, Ano 12, n.º3, p. 377.
[33] Acórdão de 7.11993, CJ Ano I tomo I, 164.
[34] Eduardo Correia, Comissão… Actas, 1979, p. 309.
[35] Ob e loc cit. P. 849.
[36] Concluindo do mesmo modo, Conceição Cunha, ob. cit. p. 853.
[37] Fica em aberto a possibilidade de ser ponderada a verificação, ou não, do crime de ofensas corporais graves, art.º 144º e 10º do Código Penal, praticado por omissão, o que, na afirmativa, afastaria a verificação do crime de recusa de médico, tudo com respeito, como é óbvio, pelos mecanismos legais, art.º 303º do Código de Processo Penal.