RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DE COGNIÇÃO
CULPA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Sumário

I - O Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece da culpa na produção de acidentes de viação, quando fundada na violação de qualquer norma legal ou regulamentar.
II - Procede com culpa exclusiva o condutor de um veiculo automovel que efectua uma manobra de mudança de direcção para a esquerda, quando o veiculo que circulava em sentido contrario, e com o qual foi colidir, ja se encontrava a cerca de 30 metros, hesita e, pouco antes de a iniciar, se apercebe de que seguia atras de si um veiculo dos Bombeiros Voluntarios, pelo que abreviou essa manobra.

Texto Integral

Acordam, em conferencia, no Supremo Tribunal de
Justiça:
A propos acção por acidente de viação contra os reus:
1) Fidelidade Grupo Segurador e
2) B, pedindo a condenação solidaria destes a pagar-lhe 1414724 escudos, sendo a re seguradora ate ao limite do capital seguro e tendo em conta as despesas por ela ja efectuadas, como indemnização pelos danos sofridos pelo Autor no acidente de viação ocorrido em 16-04-82, na estrada nacional n. 2, na povoação de Canas de Santa Maria, por culpa exclusiva que atribui ao reu B, conduzindo o seu automovel SM-..., seguro na re, que o embateu no Autor quando este tripulava o seu velocipede com motor 2-TND-....
O reu atribui, na sua contestação, a exclusiva culpa do acidente ao proprio Autor. A re contesta alegando desconhecer as circunstancias do acidente, mas que o seguro do reu tem o maximo do capital de 700000 escudos
(folha 70) e a re dispendeu ja, em pagamentos por esse acidente, a quantia de 741760 escudos, excedendo o seguro.
Proferido o saneador, nele se absolveu do pedido a re seguradora, por extinta a sua obrigação com o pagamento integral do capital seguro. Organizados a especificação e o questionario, procedeu-se a julgamento, respondeu o tribunal colectivo aos quesitos, e, por fim, foi proferida a sentença julgando a acção parcialmente procedente e condenando o reu a pagar ao Autor, de indemnização, a quantia de 1400054 escudos.
Dela recorreu o reu e a Relação de Coimbra, considerando ter havido concorrencia de culpas de cada um dos condutores (autor e reu) por não discutido o total dos danos apurados e seu montante, repartindo em igual medida as culpas, baixou a indemnização ao Autor para 700027 escudos.
Desse acordão traz esta revista para o Supremo o autor
(folha 256) e, em recurso subordinado, o reu (folha
258).
Conclui o Autor nas suas alegações:
1- Por ma interpretação, o acordão recorrido violou o disposto nos artigos 7, n. 1, e 11 do Codigo da Estrada e artigos 38, n. 9, do Regulamento do mesmo Codigo.
2- Pelo mesmo motivo, violou tambem o artigo 566, n. 2, do Codigo Civil.
3- Assim, houve culpa exclusiva do reu na produção do acidente.
4- Deve conceder-se ao Autor, recorrente, indemnização actualizada, referida a data mais recente que o possa fazer.
Conclui o reu, no recurso subordinado:
1- Deve julgar-se o Autor unico e exclusivo culpado do acidente, por circular com excesso de velocidade em transgressão causal nos termos do artigo 7, n. 1, alineas a) e e) do Codigo da Estrada.
2- Ou, pelo menos, julgado o Autor principal culpado do acidente nos termos do artigo 506, n. 1, do Codigo
Civil, com referencia ao artigo 7, ns. 1 e 2, alinea d) e artigo 11 do Codigo da Estrada.
3- Ou que ha repartição de culpas na proporção que se julgar mais ajustada, nunca ultrapassando os limites do artigo 506, n. 2, do Codigo Civil.
4- Não devendo o Autor receber qualquer indemnização,
5- Ou receber indemnização proporcional a culpa que venha a imputar-se ao reu.
6- Mas nunca ultrapassando o montante fixado no acordão recorrido, nos termos do artigo 494 do Codigo Civil,
7- Mantendo-se o acordão recorrido quanto a culpa e quantia da indemnização.
Não houve outras alegações
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
São os seguintes os factos dados como provados:
A- Quanto as circunstancias do acidente:
1- No dia 16-04-82, pelas 17,30 horas, o Autor circulava na E.N. n. 2 no sentido Tondela - Viseu, tripulando o seu velocipede com motor 2tnd-73-69, pela sua mão de transito.
2- Na mesma ocasião o reu conduzia o seu automovel ligeiro SM-21-95 dentro da povoação de Canas de Santa
Maria, no sentido Viseu - Tondela.
3- O reu ia cortar a esquerda, ao Km 193,1 tendo, portanto, feito funcionar o pisca-pisca da esquerda.
4- nessa manobra de mudança de direcção, o reu hesitou e cortou a estrada ao Autor, começando a dirigir-se para a estrada que entronca na E.N. em frente do restaurante "A Barca".
5- O reu não teve em conta a circulação do Autor.
6- O reu iniciou a manobra de mudança de direcção quando o Autor se encontrava a cerca de 30 metros.
7- Apesar de ter travado, o Autor não pode evitar o acidente digo o embate, que teve lugar junto a berma direita atento o sentido de transito do Autor, ainda na
E.N..
8- Essa berma e alcatroada.
9- O ciclomotor do Autor embateu, de raspão, na porta traseira direita do carro do reu, tendo o Autor e a motorizada saltado a parte traseira desse automovel.
10- A motorizada acabou por ir embater, ja na faixa de rodagem oposta, num outro veiculo (ambulancia) que circulava atras do carro do reu (antes da mudança da direcção deste) e a 3 metros e meio do local de embate.
11- O Autor acabou por ficar com um dos pes junto a roda esquerda da frente da dita ambulancia.
12- esta, no momento do acidente, estava parada, tendo a frente do lado esquerdo a 3,4 m. da berma esquerda, a parte lateral esquerda de tras a 4,6 m. da mesma berma, e a parte lateral direita de tras a 0,4 m. da berma direita.
13- No local do acidente a estrada tem piso asfaltado, em bom estado de conservação, plano, com boa visibilidade e com a largura de 7 metros, encontrando-se seco naquele momento.
14- Quando se deu o acidente ja o veiculo do reu se encontrava totalmente virado.
15- Pouco antes de iniciar a mudança de direcção para a sua esquerda, o reu deu-se conta de que seguia atras de si um veiculo dos Bombeiros Voluntarios, pelo que abreviou a manobra.
16- A entrada da povoação de Canas de Santa Maria, em ambos os sentidos, existia e existe uma placa de sinalização proibindo que se circule a mais de 50 Kms/hora.
B- Quanto as consequencias do acidente:
1- Em consequencia do embate, o Autor sofreu traumatismo craneano e fractura tibiotarsica.
2- Esteve internado nos Hospitais Univesitarios de
Coimbra, onde permaneceu em coma 23 dias desde a data do acidente.
3- Foi submetido a intervenções cirurgicas ao craneo e a fractura tibiotarsica.
4- Depois foi transferido para o Hospital Distrital de
Viseu onde fez cirurgia plastica (enxertos) para aquela zona tibiotarsica.
5- A essa intervenção seguiram-se outras a plastica cutânea nos Hospitais de Coimbra e da Companhia de
Seguros.
6- Em 22-10-84 foi internado no Hospital Egas Moniz onde foi submetido ao tratamento referido no documento de folha 5.
7- A data do acidente tinha 17 anos.
8- Era operario fabril e tinha um salario iliquido de
12300 escudos.
9- Hoje não ganharia salario inferior ao minimo nacional.
10- As lesões de que e portador na perna direita acarretam-lhe uma incapacidade permanente para o trabalho de 50%, a qual tem tendencia para se agravar com o decurso do tempo.
11- No acidente, a sua motorizada sofreu estragos cuja reparação importou em 20830 escudos.
12- Gastou em viagens para tratamentos ambulatorios, nos diversos hospitais onde esteve internado, 31819 escudos.
13- Em prescrições medicas e consultas gastou 3850 escudos
14- Em alimentação durante as viagens para tratamentos ambulatorios gastou 3225 escudos.
15- A roupa e o calçado que usava no momento do acidente ficaram inutilizados, sendo o seu valor de
5000 escudos.
16- O Autor estava a trabalhar com contrato a prazo de seis meses, faltando cumprirem-se 3 meses do contrato a data do acidente.
Estes os factos apurados nas instancias.
Cumpre, agora, apreciar as conclusões.
Uma vez que não se põe em crise os danos apurados e seu montante 1400054 escudos resta averiguar se o acidente ocorreu por culpa exclusiva do reu, como pretende o recorrente autor (conclusão 3ª), ou por culpa exclusiva do autor, como pretende o reu (conclusão 1ª deste), ou, pelos menos, por culpas concorrentes e qual o grau de cada um dos condutores(conclusões 2ª e 3ª do reu).
Sabe-se, e e jurisprudencia pacifica deste Supremo, que o Supremo Tribunal de Justiça so pode ocupar-se da culpa na produção do acidente quando se mostre que houve violação da norma legal ou regulamentar. Assim, por exemplo, os Acordãos deste Supremo: de 14-3-79
(Boletim do Ministerio da Justiça 285-273, n. III do Sumario), de 23-10-79 (Boletim 290 p. 390, n. II do Sumario), de 4-3-80 (Boletim 295, p. 364, ponto II do Sumario), de 12-1-84 (Boletim 333-413, n. I do Sumario), etc..
Examinemos se isso acontece no caso dos autos, face as conclusões dos recorrentes.
A sentença da 1 instancia havia considerado o reu como culpado exclusivo do acidente, por infracção ao disposto no artigo 11 do Codigo da Estrada, pois que iniciou a manobra de mudança de direcção sem, previamente, se assegurar de que da sua realização não resultava perigo ou embaraço para o restante trafego.
Efectivamente, vem provado que conduzia o reu o seu automovel SM-21-95, na E.N. n. 2, no sentido Viseu -
Tondela, e, no sentido contrario, Tondela - Viseu, vinha o Autor a conduzir o seu velocipede com motor 2TND-73-69, pela sua mão de transito. Ao Km 193,1 pretendia o reu cortar a esquerda, o que significa que teria que atravessar a metade da estrada, faixa por onde vinha o Autor (vide factos 1, 2 e 3 descritos em
A, de II supra).
Aconteceu que, para efectuar essa manobra de mudança de direcção, "o reu hesitou e cortou a estrada ao autor",
"não teve o reu em conta a circulação do Autor",
"iniciou a manobra de mudança de direcção quando o
Autor se encontrava a cerca de 30 metros" (factos 4, 5 e 6 descritos em A, de II supra). Mais: pouco antes de iniciar a mudança de direcção para a sua esquerda, o reu deu-se conta de que seguia atras de si um veiculo dos Bombeiros Voluntarios, pelo que abreviou a manobra
(facto 15).
Anote-se ainda que, no local do acidente, a estrada e de piso asfaltado, boa visibilidade, piso seco na altura, com a largura de 7 metros (facto 13 em A, de II supra).
Isto significa que, em vez de entrar em hesitações
(facto n. 4) , ou em insegurança de condução porque vinha atras de si um veiculo dos Bombeiros, pelo que "abreviou" a manobra (facto n. 15), o que o reu devia fazer era aproximar-se da berma do seu lado, e deixar passar o veiculo dos Bombeiros (o que, ao mesmo tempo, permitia que o Autor passasse tambem com o seu velocipede, vindo na faixa contraria) e so então efectuar a manobra de mudança de direcção, cortando a esquerda.
E esse tipo de conduta que impõe a 2ª parte do artigo
11 do Codigo da Estrada quando prescreva que "em caso algum" deverão iniciar a manobra sem previamente se assegurarem de que, da sua realização, não resulta perigo ou embargo para o restante trafego.
Infrigiu o reu esse preceito legal.
O douto acordão recorrido considerou que o Autor circularia tambem com velocidade excessiva porque não lhe permitiu parar a sua motorizada no espaço livre visivel a sua frente (2ª parte do n. 1 do artigo 7 do
Codigo da Estrada).
Simplesmente esta conclusão (velocidade excessiva do
Autor) não tem suporte factual.
Nos factos dados como provados nas instancias, quanto a este aspecto, apenas consta que, a entrada da povoação de Canas de Santa Maria (local do acidente: n. 2 dos factos descritos em A, de II supra), em ambos os sentidos, existia e existe uma placa de sinalização proibindo que se circule a mais de 50 Kms/hora - vide facto 16 em a, de II supra.
Mas, em parte alguma vem provado que o Autor conduzisse o seu velocipede, quer a essa velocidade, quer superior a ela.
A consideração do "espaço visivel a sua frente" a que alude o n. 1 do artigo 77 do Codigo da Estrada não tem aqui cabimento, pois que não esta provado que, a frente do Autor, circulasse outro veiculo ou existisse na via, e no sentido em que ia o Autor, obstaculo a que o autor tivesse que atender.
Convem ter presente aquilo a que a doutrina designa como "principio de confiança", de que fala o Prof.
EDUARDO CORREIA no Direito Criminal , volume I, edição de 1963, pagina 424, nota (1).
Significa esse principio que "não são os condutores, em regra, obrigados a prever ou a contar com falta de prudencia alheia", ou "não se exige que os condutores contem com obstaculos que surjam inopinadamente".
Ensinamento doutrinal que a jurisprudencia acolheu.
Assim, entre outros, os seguintes arestos deste
Supremo:
Acordão do S.T.J. no Bol. Minist. Just. n. 160, p. 173
Acordão do S.T.J. no Boletim n. 178, p. 130
Acordão do S.T.J. no B.M.J. n. 185, p. 199
Acordão do S.T.J. no Boletim n. 196, p. 173
Acordão do S.T.J. no B.M.J. n. 221, p. 96
Não tinha, assim, o Autor que contar com a inopinada e imprudente, nas circunstancias do caso, manobra de mudança de direcção pelo reu, que ao Autor cortou, abruptadamente, a faixa da estrada em que circulava (vejam-se os ns. 4 e 5 e 6 dos factos descritos em A, de II supra).
Assim sendo, quando o acordão recorrido atribuiu culpa tambem ao Autor imputando-lhe excesso de velocidade na condução do velocipede com motor, para concluir pela concorrencia de culpas do Autor e do reu, violou, por indevida aplicação do preceito, o artigo 7, n. 1, do
Codigo da Estrada que o autor não infrigiu.
E, pois, o reu o exclusivo culpado do acidente, cabendo-lhe pagar, na totalidade, a indemnização ao
Autor, pelos danos apurados e seu montante não postos em crise.
Essa indemnização foi estabelecida em 1400054 escudos.
Procede, assim, o recurso do Autor e improcede o subordinado interposto pelo reu.
De harmonia com o exposto, concede-se provimento a revista interposta pelo Autor, revogando-se o acordão recorrido e atribuindo-se ao Autor a indemnização fixada na 1 instancia, condenando-se o reu a paga-la.
Nega-se provimento ao recurso subordinado do reu pelos fundamentos que ficaram enunciados.
Custas, na 2 Instancia e neste Supremo, de ambos os recursos, o principal e o subordinado do reu a este
Supremo, pelo reu.
Lisboa, 29 de Outubro de 1991.
Vassanta Tamba,
Meneres Pimentel,
Brochado Brandão.