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TRESPASSE
OBRIGAÇÃO DO TRESPASSANTE
PERDA
RISCO
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE
Sumário
I – Trespassado um estabelecimento comercial, com entrega efectiva do mesmo ao trespassário, o trespassante cumpre a sua obrigação de entrega, passando o risco da perda da “coisa” a correr pelo adquirente. II – Se no trespasse não vai incluída a cedência da posição contratual de arrendatário que o trespassante detinha, a denúncia do arrendamento celebrado pelo trespassário, por vontade do senhorio, não importa impossibilidade superveniente da prestação do trespassante, que já havia entregue o estabelecimento ao trespassário, apesar da reserva de propriedade.
Texto Integral
Proc. 259/09.8TJPRT - Apelação
José Ferraz (479)
Exmos adjuntos
Des. Amaral Ferreira
Des. Ana Paula Lobo
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1) – B…………….. propôs contra a herança aberta por óbito de C…………….., representada pela cabeça-de-casal D………….., a presente acção declarativa alegando:
O falecido C…………… explorava o estabelecimento comercial denominado “E………..” sito na Rua ……….., ….., r/c, Rio Tinto (1[1]).
Em finais do ano 2003, os seus herdeiros manifestaram a pretensão de transmitir por trespasse esse estabelecimento comercial, de “café e snack-bar” ao Autor, tendo este mostrado interessado nessa transmissão (2).
Tendo a ré comunicado ao senhorio do local essa pretensão, “este impôs como condição um aumento da renda então em vigor para € 175,00, e tal por meio da celebração de um novo contrato de arrendamento, no sentido – alegava – de obviar a um aumento de renda superior ao das actualizações que a lei então permitia” (3).
Tendo comunicado essa posição do senhorio “ao aqui A., mais lhe tendo transmitido que, para que ela Ré lhe trespassasse o estabelecimento, o A. teria de previamente ter celebrado com o senhorio o novo contrato de arrendamento, pela referida renda, com início em 2004 - condições que o A. aceitou (5).
“Para os referidos efeitos, o senhorio remeteu à ora R. uma carta, em 2003.12.24, junto com a qual remeteu o «novo» contrato de arrendamento, solicitando a respectiva subscrição (6).
“Contrato esse que a R. apresentou ao A. e que, na execução do ajustado, este subscreveu, tendo consequentemente celebrado, em 2004.01.01, contrato de arrendamento com o proprietário do local, nos termos do qual foi ajustada a renda mensal de € 175,00, e fixado o objecto do arrendamento como sendo o da exploração de um estabelecimento de Café (7).
“Mais ficou a constar do contrato que o prazo do mesmo era de cinco anos, com início no dia da celebração, renovável por iguais períodos se nenhuma das partes o denunciasse, e que o mesmo era celebrado «nos termos do art. 1270 do Decreto-Lei 321-B/90, de 15/10, aditado pelo Decreto-Lei n0 257/95 de 30/09» (8).
“Igualmente na execução do ajustado, por contrato escrito celebrado em 2004.03.15, a aqui Ré trespassou ao Autor o estabelecimento identificado (9).
“Desse contrato ficou, nomeadamente, a constar o seguinte:
- Que o estabelecimento era «trespassado com todos os elementos que o integram designadamente móveis e utensílios, alvarás, licenças e mercadorias, bem como o direito ao arrendamento».
- Que «o Senhorio do estabelecimento acima descrito, teve conhecimento do trespasse por escrito e autorizou-o, abdicando assim do direito de preferência no trespasse que a lei lhe conferia. Entre o segundo outorgante e mo senhorio foi celebrado novo Contrato de Arrendamento, ficando a renda actual mensal de 175,00 Euros (cento e setenta e cinco euros), conforme fotocópias em anexo, ambas as partes assim o concordaram» (10).
“Também ficou a constar do contrato que o preço do trespasse era de € 42.500,00, a serem pagos mediante a entrega imediata de € 4.000,00 e o restante em 77 prestações de € 500,00 cada uma, vencendo-se a primeira em 2004.04.01 e a última em 2010.08.01 (11).
“E que a Ré mantinha a propriedade do estabelecimento até ao integral pagamento do preço pelo Autor” (12).
Desde a data do arrendamento celebrado pelo A. “que o aqui Autor passou a pagar a renda ao proprietário do local, com as actualizações anuais a que este procedeu” (13).
Assim como pagou à Ré a prestação convencionada para a data do trespasse e as prestações mensais a que se obrigara (14).
“Embora tal não tenha constado do texto do contrato de trespasse, as 77 prestações do seu preço foram tituladas por outras tantas letras de câmbio sacadas pela Ré e aceites pelo Autor, com vencimento nas datas em que essas prestações ficaram de ser pagas (15).
“E, mensalmente, o A. foi pagando junto da representante da Ré cada uma das prestações que se foi vencendo, sendo-lhe, de cada vez, restituída por ela a letra de câmbio que a titulava” (16).
“Sucedeu que, por carta registada com aviso de recepção expedida a 2008.03.13, os herdeiros do senhorio do A., atrás referido, comunicaram-lhe, a ele A., que não pretendiam a renovação do arrendamento em questão, que consequentemente teria o seu termo em 2008.12.13”[2] (17).
“Face ao contrato de arrendamento atrás referido, o A. não teve outro remédio senão (e diga-se, contra a sua vontade) aceitar a denúncia e entregar o locado ao senhorio - o que efectivamente se viu obrigado a fazer e que fez, em 2008.12.29 (18).
“O A. deu prévio conhecimento à ora Ré de que iria entregar o locado ao senhorio, por força da denúncia operada, por carta registada com a. r., a ela expedia em 2008.12.15 (19).
“Por meio do contrato de trespasse que A. e R. celebraram, esta transmitiu àquele a fruição do estabelecimento comercial que lhe pertencia, reservando para si a respectiva propriedade até ao pagamento integral do preço (20).
“E em tal contrato, a Ré declarou que o trespasse compreendia a transmissão do «direito ao arrendamento», direito esse que todavia era o constante do contrato de arrendamento que foi referido no de trespasse e que a este ficou anexo (21).
“Ou seja, esse direito ao arrendamento podia ser, como efectivamente veio a ser, limitado no tempo, situação que tanto o Autor como a Ré conheciam, da forma referida (22).
“Por força da denúncia do contrato de arrendamento e da consequente entrega do locado, o Autor deixou de, contra a sua vontade, poder fruir dele e de explorar o estabelecimento, a partir de Janeiro de 2009 (23).
“O «direito ao arrendamento» que a Ré transmitiu ao A. extinguiu-se pois com a respectiva denúncia por iniciativa do senhorio (24).
“Ou seja, por força dessa denúncia a Ré não mais pôde, a partir da referida data, assegurar ao A. o «direito ao arrendamento», a fruição do local como arrendatário, que com o trespasse lhe transmitira (25).
“Tendo-se tornado impossível tal prestação da Ré, o A. fica desobrigado da contraprestação, ou seja, de pagar as prestações do trespasse que se venceriam a partir de Janeiro de 2009, inclusive (26).
“O A. referiu à Ré que se encontrava desapossado do local objecto do trespasse e que consequentemente ele A. ficaria desobrigado de pagar as prestações do preço do trespasse que se vencessem após essa entrega (30).
“O que a Ré afirmou não aceitar, pretendendo inusitadamente receber as prestações vincendas do preço do trespasse, quando, como se disse, não se encontra na possibilidade de, a partir de Janeiro de 2009, assegurar o direito ao arrendamento do local (31).
“Pelo que, pela presente acção, o A. pretende obter sentença que declare que ele não é devedor da Ré das prestações do preço do trespasse que se venceriam desde Janeiro de 2009 a Agosto de 2010, num total, pois, de € 9.500,00” (32).
Termina a pedir:
a) seja “declarado que o Autor não é devedor da Ré das prestações do preço do trespasse que se venceriam desde Janeiro de 2009 a Agosto de 2010, num total de € 9.500,00”;
b) seja “a Ré condenada a restituir ao Autor as letras de câmbio que titulam tais prestações”.
Em despacho liminar, o Senhor Juiz, conhecendo do mérito da pretensão, concluiu pela sua inconcludência e indeferiu liminarmente a petição inicial.
2) - Discordando da decisão, apela o autor.
Alegando doutamente, conclui como se segue:
......................
......................
......................
......................
A ré não respondeu ao recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
3) – A matéria de facto a atender é a alegada na petição inicial, reproduzida em 1).
4) – Perante o teor das conclusões de recurso, que delimitam o âmbito do conhecimento, cumpre apreciar:
- se a ré não realizou a sua prestação;
- se a essa prestação se tornou objectivamente impossível e
- se o apelante ficou desonerado da sua contraprestação pela compra do estabelecimento.
5) – Alude o apelante – e com razão – à irregularidade processual do indeferimento liminar[3] (por alegada manifesta inconcludência), despacho liminar não previsto na lei.
Sucede que, como expressamente o afirma, o apelante não coloca essa questão (não argui qualquer nulidade), mas apenas ataca a decisão no campo do direito material, do bem fundado do direito invocado (à desoneração do pagamento da restante parte do preço do trespasse, por impossibilidade (objectiva) da prestação ou contraprestação, a cargo da ré, na posição descrita na petição).
5.1) – Das questões suscitadas.
Diz o autor que, por via da denúncia do contrato de arrendamento, pelo senhorio, “a ré não mais pode assegurar ao A. o «direito ao arrendamento», a fruição do local como arrendatário, que com o trespasse lhe transmitira”, tornando-se impossível a prestação da ré (artigos 25 e 26 da petição) e como se encontra “desapossado do local objecto do trespasse … ficaria desobrigado de pagar as prestações do preço do trespasse que se vencessem após essa entrega”.
Do que expõe na petição, alicerça o direito no facto da ré já não assegurar ao autor o arrendamento (a “fruição” do local como arrendatário).
Como alega o autor, subscreveu um contrato de arrendamento, com início em 01/01/2004, passando a partir dessa data a pagar a renda ao senhorio.
O que era do conhecimento da ré.
O autor “aceitou” as condições para o trespasse, incluindo a celebração de um “novo contrato de arrendamento” (5 da petição).
Em 15/03/2004, o A. celebra o “contrato de trespasse” com a ré.
E aquele contrato já fora celebrado com vista ao “trespasse”.
Extrai-se da sua (A.) posição que começou a pagar as rendas antes do trespasse.
Da alegação resulta que o contrato de arrendamento que existia na data do trespasse e que foi nele “incluído” (segundo a alegação) é o celebrado entre o apelante e o senhorio (artigo 10º da petição) e não o que, antes, vinculava a ré. Aspecto sobre que a alegação não permite dúvidas.
O contrato denunciado foi precisamente aquele (não este).
Isto, sempre supondo a realidade do alegado.
Na decisão recorrida entendeu-se que a apelada não tinha obrigação de transmitir ao apelante o direito de arrendamento extinto por denúncia (pois não lhe “pertencia”).
Por outro lado, a apelada cumpriu a sua obrigação emergente do contrato (entregou o estabelecimento) que não ficou suspensa
E o efeito jurídico, sob condição – a transferência da propriedade, ocorre independentemente de qualquer acto do alienante e depende apenas de actuação do adquirente (pagar o preço).
E não ocorre impossibilidade da prestação da ré porque esta já foi cumprida.
Acrescenta-se, nessa decisão, que se a ré podia transmitir um direito que não era seu (na tese do autor), nunca tendo sido titular do direito denunciado como ainda não o é, continua tal prestação (cedência de direito presentemente alheio) a ser possível, reconduzindo-se a questão a mero incumprimento e não a questão de impossibilidade da prestação.
Verificada a condição, a propriedade do estabelecimento transmite-se desde a data inicial, momento em que a locação existia e no qual a ré entregou o estabelecimento.
Diferente é a tese do apelante doutamente “sintetizada” nas conclusões de recurso.
A ré transmitiu o direito ao arrendamento, ainda que por forma indirecta (acedendo em revogar o contrato anterior e acedendo a que fosse celebrado um novo).
Com a denúncia do arrendamento a prestação da ré tornou-se impossível.
À data da denúncia do arrendamento, a ré ainda não havia cumprido a sua prestação, já que reservara a propriedade até integral pagamento do preço – não transferira a propriedade do estabelecimento.
Se a declaração da ré feita no título de trespasse – que este é feito com os demais elementos que integram o estabelecimento, bem como o direito de arrendamento - era falsa, o contrato era nulo, por venda de coisa alheia, com a consequente desobrigação do apelante de pagar as prestações do preço do trespasse vencidas após a denúncia e entrega do locado.
O trespasse é a “venda” de um estabelecimento comercial como um todo e em globo[4], de que surgem para o trespassante a obrigação entregar a coisa (o estabelecimento) e para o trespassário a de pagar o preço (artigo 879º, als. b) e c), do CC). Por ele transmite-se, definitivamente, o estabelecimento como um todo unitário, que pode incluir o direito ao arrendamento (como um activo do estabelecimento).
O estabelecimento comercial é uma realidade mais vasta e complexa que o local onde é exercida a actividade económica (local que pode nem ser arrendado). Esse local constitui apenas um dos seus elementos corpóreos, de maior ou menor relevância, consoante a sua localização, embora, ao funcionamento do estabelecimento, e como seu elemento integrante, seja indispensável o gozo de um espaço. O estabelecimento configura-se como a “estrutura material e jurídica integrante, em regra, de uma pluralidade de coisas corpóreas e incorpóreas – coisas móveis e ou imóveis, incluindo as próprias instalações, direitos de crédito, direitos reais e a própria clientela ou aviamento - organizados com vista à realização do respectivo fim”. É esta unidade económica e jurídica, objecto de direito de propriedade, que pode ser trespassada.
Na situação, as partes celebraram um contrato de trespasse, com vista à transferência da titularidade do estabelecimento para o autor.
Sujeitaram a transferência da propriedade ao prévio pagamento do preço do trespasse, isto é, o estabelecimento foi vendido com reserva de propriedade a favor da trespassante até que o preço fosse integralmente pago (artigo 409º/1 do CC).
Diz-se na cláusula 2ª do contrato que o “estabelecimento é também trespassado com todos os elementos que o integram designadamente móveis e utensílios, alvarás, licenças e mercadorias, bem como o direito de arrendamento” (cláusula tabelar).
Como já se referiu e é alegado, o arrendamento subjacente ao concreto trespasse é o celebrado entre o autor e o senhorio (e não o que vigorava entre a “ré” e o trespassante – até porque se fosse este, não haveria este dissídio) e é esse arrendamento que foi denunciado pelo senhorio. É o que inequivocamente se extracta da petição e da cláusula 3ª “entre o segundo outorgante” (o apelante) “e o senhorio foi o celebrado um novo contrato de arrendamento, ficando a renda actual mensal de 175,00 euros … conforme fotocópias em anexo, ambas as partes assim o concordaram”.
Se ao funcionamento do estabelecimento (no caso, um estabelecimento de café) é indispensável o gozo de um espaço/prédio, esse gozo, pelo trespassário (apelante), assenta já no contrato que este celebrou – com início em 1/1/2004 (segundo alega e o documento que o titula refere) - com o senhorio e não no arrendamento pretérito que tinha como inquilina a “ré” que não foi englobado no trespasse (antes se extinguiu por vontade das partes nesse contrato). Portanto, a ré não transmitiu a sua posição contratual de arrendatária.
Ambas as partes (no trespasse) bem sabiam que não era transmitido o antigo arrendamento, até porque já havia sido celebrado novo contrato que vigorava entre o autor e o senhorio, com que a ré concordou. Claro que a execução (que não a celebração) do novo contrato dependia do acordo da ré (de contrário, era-lhe inoponível, não podendo o gozo da coisa ser efectivamente cedido a outrem sem o seu consentimento). Querendo as partes reportar-se ao novo arrendamento, na base do qual o apelante passou a fruir o imóvel, não podia este ser englobado no trespasse, pois que nele não era parte a ré.
Mas isso não torna nulo o trespasse até porque o estabelecimento pertencia ré, que não “vendeu” coisa alheia (sempre em consideração do exposto na petição). A referência à inclusão do arrendamento no trespasse (cláusula 2ª), porque o novo contrato teve a aceitação da ré (e só assim o autor podia passar a gozar o local por via do arrendamento que celebrara) significa isso mesmo – a aceitação de que o autor passasse a fruir a coisa por força desse novo contrato (e não daquele em que a ré era arrendatária), ficando revogado tacitamente o anterior, com a entrega do arrendado ao apelante. E o estabelecimento passava a incluir, como elemento integrante, o novo arrendamento. Não que a ré ou ambas as partes quisessem fazer declaração falsa ou desconforme com a realidade (que a ré transmitia a posição de arrendatária que não tinha); simplesmente poderão ter-se exprimido em termos deficientes.
Qualquer desconformidade entre o elemento literal e a realidade ou vício algum das declarações não é sequer invocado como causa da pretensão do autor.
Os factos alegados (suposto integralmente provados) não permitem afirmar má fé da ré nas negociações e execução do contrato, uma actuação que levasse o autor ao engano ou até a uma falta de cautela na celebração do novo contrato “a prazo”, quando para a transmissão da posição contratual pelo trespasse não é exigida a autorização do senhorio (artigo 115º/1 do RAU – aplicável à data do trespasse), podendo continuar vigente o que vigorava anteriormente ao trespasse (como o A. diz no artigo 4º da petição), que teria evitado a situação de desconforto do apelante.
Sabido é que os contratos só vinculam as partes (artigo 406º/2 do CC); só emergem efeitos para terceiros nos casos previstos na lei. Os efeitos obrigacionais do arrendamento apenas vinculam as partes nesse contrato.
Resulta já suficientemente claro que a ré não cedeu, por via ou efeito do trespasse, a sua posição de arrendatária; o contrato denunciado é o celebrado com o autor, a que a ré é “estranha”, independentemente de à celebração do novo contrato não ser estranha a posição de aceitação da ré (como decorre da petição inicial - arts. 3, 5 e 6). Mas daí não pode concluir-se que transmitiu qualquer posição de arrendatária nem o que se alega indicia que a celebração de novo contrato obedece a estratégia da ré para trespassar o estabelecimento. Segundo se afirma, foi uma conveniência do senhorio com que o autor/apelante concordou.
A aceitação da cessação do contrato em vigor, para permitir o arrendamento ao autor não equivale, nem directa nem indirectamente, à transmissão de um arrendamento em que não se é parte. Se fosse transmitida a posição contratual da ré (arrendamento pretérito), não estaria sujeito à denúncia que determinou a extinção da relação contratual estabelecida entre o autor e o senhorio.
A impossibilidade da prestação alegada pelo apelante está no facto da apelada não poder assegurar-lhe o gozo do local (que não se pode confundir com o estabelecimento comercial que nele funciona) como arrendatário.
Porém, não sendo parte no contrato de arrendamento denunciado, e não tendo cedido (pelo trespasse) a sua posição contratual em que era arrendatária, a ré a nenhuma prestação se vinculou (emergente do arrendamento) que se tornasse (objectivamente) impossível.
A ré realizou a sua prestação – entregou o estabelecimento ao autor que passou a explorá-lo como “proprietário”, a deter o seu gozo e fruição sem qualquer limitação.
Porque não incluída no trespasse a posição contratual de arrendatária da ré, esta não se obrigou a proporcionar ao autor a utilização do local arrendado como arrendatário.
Não consta que algum dos elementos integrantes do estabelecimento “trespassados” (não incluído o arrendamento) tenha perecido por qualquer causa.
Entregando o estabelecimento – que existia íntegro à data da traditio - ao autor, que o passou a explorar, a ré cumpriu a obrigação a que se vinculou.
Situando a impossibilidade (superveniente) na inviabilidade da ré proporcionar esse gozo do arrendado e, consequentemente, a pretensão de desoneração da sua contraprestação nessa impossibilidade (artigo 795º/1 do CC), porque inexistia tal obrigação da ré, não existe obrigação não cumprida que se tenha tornado impossível.
Concorda-se, assim, com a posição exposta na decisão impugnada.
Como se concorda que a ré cumpriu a sua obrigação.
Do contrato decorrem dois efeitos obrigacionais principais – a entrega da coisa (pelo vendedor/trespassante) e o pagamento do preço (pelo comprador/trespassário) (artigo 879º, als. b) e c), do CC).
Decorre da posição do autor, vertida na petição, que a ré cumpriu a sua obrigação, pois entregou o estabelecimento ao A., que passou a explorá-lo, a “possuí-lo”, a retirar dele todas as utilidades. Com a entrega do estabelecimento ao apelante, a ré cumpriu o dever de entrega do estabelecimento (que existia nas condições acordadas no trespasse). A nenhuma outra prestação positiva se vinculou nem a “perda” do gozo do locado foi obra da ré ou consequência de actuação desta em prejuízo da fruição do estabelecimento pelo apelante.
Com este entendimento não contende o facto do trespasse ser celebrado com reserva de propriedade. A reserva (que tem uma função meramente de garantia) tem a ver com o efeito real (essencial) do negócio, com a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito (que, nos contratos reais quod effectum, é mero efeito do contrato – artigo 408º do CC).
A reserva de propriedade visa essencialmente assegurar os efeitos resolutivos do negócio (restituição da coisa), a oponibilidade “erga omnes” da resolução (que venha eventualmente a ter lugar). A reserva não impede que a posse seja transmitida ao trespassário com a tradição do estabelecimento e, nesta situação, este passa a deter os poderes de gozo e disposição do direito de propriedade, ‘cabendo à propriedade reservada do alienante apenas a titularidade abstracta’ desse direito[5].
Por via da reserva de propriedade, o efeito translativo – efeito directo e definitivo que resulta do contrato – é transferido para momento posterior (logo que esteja pago o preço do trespasse), não se produz imediatamente.
Mas esse diferimento da transferência da titularidade («abstracta») do direito não importa uma obrigação autónoma a cumprir em momento posterior; a transmissão do direito, nessa situação, não constitui o cumprimento de obrigação nem depende de qualquer acto do vendedor. Produz-se automaticamente praticado o facto de que depende – o pagamento do preço.
Esse diferimento da transferência da titularidade do direito não constitui nem importa a suspensão do cumprimento das obrigações que do contrato emergem para o vendedor (no caso, trespassante). Se o estabelecimento foi entregue, em execução do trespasse, ao trespassário (não se questionando a existência de todos os elementos que o integravam, a realidade/unidade económica e jurídica trespassada, aquando da entrega), a prestação do trespassante ficou cumprida, pelo que, na data da denúncia do arrendamento celebrado pelo apelante, a prestação da ré não se encontrava por cumprir, mas cumprida, o que inviabiliza a conclusão pela impossibilidade superveniente da prestação.
O recurso não pode proceder.
Não é de afastar “culpa” do autor na “perda” do gozo do local onde funcionava o estabelecimento. Quando celebra um contrato sujeito a um prazo de duração efectiva (artigo 117º/1 do RAU), bem sabe que pode ser denunciado, na situação, ainda antes do decurso do prazo para o pagamento integral do preço do trespasse, e quando tal poderia não suceder, na continuação da vigência do arrendamento pretérito (a que o senhorio não poderia opor-se), não deixa de actuar com alguma imprudência ou de assumir o risco daquela “perda”.
Seja como for, a ré não se vinculou à prestação – proporcionar gozo do local como inquilino – que o apelante diz ter-se tornado impossível.
5.2) – Vem o apelante alegar que, à data da denúncia do arrendamento, a prestação da ré “não se encontrava ainda cumprida pois que (…) mantinha a propriedade do estabelecimento até ao integral pagamento do preço pelo Autor, (…) o Autor tinha a posse e fruição do estabelecimento, mas não a respectiva propriedade, que a Ré reservara para si até esse integral pagamento”; “a transmissão da propriedade do estabelecimento ficou submetida à condição suspensiva do pagamento integral do preço, daí que a prestação da Ré não se encontrava ainda cumprida à data da denúncia pelo senhorio – apenas o estaria, extinta por cumprimento, com a transmissão efectiva da propriedade” (conclusões 20 e 21).
A observação feita não tem a ver com o cumprimento da obrigação que, de facto, já estava cumprida, mas só com a produção do efeito translativo da titularidade do direito de propriedade que, como já se adiantou, não depende de qualquer conduta do trespassante, do cumprimento por este de uma qualquer obrigação, mas somente da actuação do trespassário, isto é, do pagamento do preço que este deve efectuar.
A questão, como se ventila na decisão de que se recorre, teria a ver com a impossibilidade da produção desse feito translativo por perecimento da coisa (que, nos limites da alegação, se reduziria ao direito ao arrendamento, e não ao estabelecimento comercial, como uma unidade integrante de vários elementos corpóreos e incorpóreos).
Portanto, quem deve suportar o risco da perda da coisa.
Os factos alegados permitem afirmar que a “perda” do gozo do local arrendado não pode ser imputável à ré trespassante, daí que o risco corre pelo adquirente (artigo 796º/1 do CC).
Mas, a entender-se a venda sujeita a condição suspensiva, esse risco recaía (ou podia recair) sobre o alienante (que continua a deter o domínio da coisa) – nº 3 (ine fine) daquele artigo.
O pagamento do preço não pode ser visto como condição (acontecimento futuro e incerto – artigo 270º do CC), cláusula acessória, elemento acidental do negócio, exterior aos elementos constitutivos do negócio e aos seus efeitos típicos. O preço é elemento essencial do negócio e o seu pagamento é uma obrigação e não uma condição (um ónus para se obter algo)[6]. O pagamento não significa a verificação de condição alguma a que as partes subordinaram a produção de determinado efeito do negócio, mas antes o cumprimento da obrigação principal do comprador.
Como ensina Luís Menezes Leitão[7] a solução de que é o “vendedor, na venda com reserva de propriedade, suporta o risco pela perda ou deterioração da coisa, mesmo após a entrega ao comprador é claramente inaceitável, uma vez que a partir da entrega, o comprador fica já integralmente investido nos poderes de uso e fruição da coisa, servindo a manutenção da propriedade no vendedor apenas para assegurar a recuperação do bem, em caso de não pagamento do preço”, diríamos antes, em caso de resolução do contrato por falta de pagamento do preço.
O risco deve correr por conta de quem beneficia do direito e, não há dúvida de que, a partir da entrega do bem ao comprador é este que beneficia do direito (que, como já se referiu, passa a deter o ‘conjunto de poderes de gozo e de disposição que correspondem ao conteúdo do direito de propriedade, cabendo à propriedade reservada do alienante a titularidade abstracta desse direito”). Daí que o risco da perda da coisa, a partir da entrega, corre por conta do comprador, não ficando desonerado do pagamento do preço. Nesta situação, o alienante também corre um risco, pois que perdendo-se a coisa, perde a garantia
Ainda, neste entendimento, se a perda do gozo do locado implicasse a perda do estabelecimento, a pretensão do autor (de desoneração do pagamento do preço) não procederia, como não procede o recurso.
Conclui-se – trespassado um estabelecimento comercial, com entrega efectiva do mesmo ao trespassário, o trespassante cumpre a sua obrigação de entrega, passando o risco da perda da “coisa” a correr pelo adquirente.
- se no trespasse não vai incluída a cedência da posição contratual de arrendatário que o trespassante detinha, a denúncia do arrendamento celebrado pelo trespassário, por vontade do senhorio, não importa impossibilidade superveniente da prestação do trespassante, que já havia entregue o estabelecimento ao trespassário, apesar da reserva de propriedade.
6) - Pelo exposto, acorda-se neste tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Porto, 25 de Junho de 2009
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Raínho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira
________________
[1] Entre parênteses o respectivo artigo da petição.
[2] Quer dizer “2008.12.31”, como consta do documento que cita (doc. 04 junto com a petição).
[3] Não se detecta justificado motivo para suprimir etapas do processo, legalmente previstas.
[4] Ver Ferrer Correia, em “Lições de Direito Comercial”, Lex, 134.
[5] Ver Luís Lima Pinheiro, em “A Cláusula de Reserva de Propriedade”, 115.
[6] Ver Luís Menezes Leitão, em “Direito das Obrigações”, I, 4ª Ed., 189; Ana Maria Peralta, em “A Posição Jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade”, 140/148I, e Gabriela Figueiredo Dias, “Reserva de Propriedade”, em Comemorações dos 35 Anos do Código Civil, III, Direito das Obrigações, 426/428. [7] Em ob. cit., 189/190 e em “Garantia das Obrigações”, 2ª ed., 263; ver Luís Lima Pinheiro, ob. cit., 47 e 53.